quarta-feira, 10 de junho de 2009
OSCAR WILDE
OSCAR WILDE
BALADA DO CÁRCERE DE READING
(Trecho)
Trad. de Gondin da Fonseca
I
Não trazia a sua túnica vermelha, mas sangue púrpuro, encarnado, sangue e vinho das mãos lhe gotejavam, quando o viram, alucinado, junto do leito dela - o seu amor, seu pobre amor apunhalado. Ia andando entre os mais e era cinzento o traje velho que vestia. Usava um gorro de listas, e o seu passo, ligeiro e alegre parecia. Porém, eu nunca vi homem que olhasse tão tristemente a luz do dia.
Jamais, jamais vi homem contemplar, com tão profundo sentimento, essa breve, essa estreita faixa azul que os presos ,chamam firmamento; e as nuvens brancas, côr de prata, ao longe, - velas sem rumo, andando ao vento.
Eu, que junto a outras almas padecentes, sofria, em pátio separado, quis saber se era grande, se pequeno, o crime dêsse condenado, - quando alguém sussurrou atrás de mim: “aquêle, vai ser enforcado!”
Jesus! as próprias grades da prisão, rodam, de súbito, em delírio! Pesa o céu sôbre mim, qual elmo de aço que o Sol inflama - ardente círio! E a minha alma, de mágoas trespassada, esquece, olvida o seu martírio.
Eu soube, então, a idéia lacerante que o atormenta, e o faz correr, e o faz olhar, tristonho, o céu radiante, radiante, e alheio ao seu sofrer: de matou aquela que adorava, - por causa disso vai morrer.
No entanto (ouvi) cada um mata o que adora: o seu amor, o seu ideal. Alguns com uma palavra de lisonja, outros com um duro olhar brutal, O covarde assassina dando um beijo, o bravo, mata com um punhal.
Uns matam o Amor, velhos; outros, jovens; (quando o amor finda, ou o amor começa); matam-no alguns com a mão do Ouro, e alguns com a mão da Carne — a mão possessa! E os mais bondosos, esses apunhalam, - que a morte, assim, vem mais depressa.
Há corações vendidos, e há comprados; uns amam, pouco, outros demais; há quem mate a chorar, vertendo lágrimas, ou a sorrir, sem dor, sem ais. Todo homem mata o Amor; porém, nem sempre, nem sempre as sortes são iguais.
II
Seis semanas inteiras êle andou com a veste usada que trazia. Tinha um gorro de listas, e o seu passo ligeiro e alegre parecia. Porém eu nunca vi homem que olhasse tão tristemente a luz do dia.
Jamais, jamais vi homem contemplar, com tão profundo sentimento, essa breve, essa estreita faixa azul que os presos chamam firmamento; e as nuvens esgarçadas no horizonte, - flocos de espuma errando ao vento!
Não retorcia as mãos - tal como alguns de idéia curta, e alma louçã, que ousam crer, mesmo em negro Desespêro, numa Quimera estulta e vã: ele fitava, calmo, a luz da aurora sorvendo o ar puro da manhã.
Não retorcia as mãos e não chorava, nem lamentava o seu inferno; ia, apenas, bebendo o ar como um bálsamo, bálsamo bom; bálsamo eterno... Abria os lábios e bebia o Sol, como uma taça de falerno.
E eu, e todos os mais - nos que penávamos num outro pátio separado, esquecemos de pronto as nossas faltas, a nossa Sorte, o nosso Fado, e contemplamos com tristeza imensa o que ia, enfim, ser enforcado.
E era estranho que o víssemos andando, - Tão leve e alegre parecia... E era estranho que o víssemos fitando, saudosamente, a luz do dia. E era estranho pensar que êle — a sua dívida tràgicamente a pagaria.
Tem lindas fôlhas o álamo e o carvalho, que em maio brotam viridentes; mas é medonha a fôrca - árvore negra, cujas raízes são serpentes: e verde ou sêca, morre o condenado e não lhe vê frutos pendentes.
É para o céu, para o azulado empíreo, que o anseio humano se alevanta! Mas quem, do alto da fôrca, atado a um laço, com a corda prêsa na garganta, ergue seu turvo olhar ao firmamento quando o carrasco se adianta?
É bom dançar, ao som dos violinos, se a Vida é bela e é belo o Amor; dançar ao som de flautas e alaúdes, é raro, fino, embalador...
Mas é horrível, no ar, com os pés ligeiros, dançar, num último estertor!
E nós, curiosos, mudos, consternados, o vigiávamos dia a dia, pensando que talvez nosso destino igual ao dêle acabaria: pois ninguém sabe a que horroroso inferno a Sorte bárbara nos guia.
Por fim, deixei de vê-lo entre os mais presos, sempre sòzinho e vagabundo. Soube então que o levaram; que jazia em negro cárcere profundo, e que eu, jamais, de novo o enxergaria, neste belo e risonho mundo...
Dois navios fantasmas que se cruzam, em noite má, caliginosa, - nós nos cruzamos, mudos, sem um gesto, numa atitude silenciosa: pois de dia nos vimos (não de noite) e a luz é casta, é vergonhosa.
Muros de uma prisão nos circundavam, éramos réus por nossos danos. Deus e o seu mundo, inexoràvelmente, nos repeliram desumanos; e a sinistra armadilha do Pecado nos seduziu com seus enganos.
Cadenciados, marchando em volta ao pátio, nós somos loucos em parada! Que importa? Bem sabemos que Satã é o general desta Brigada.
Lenta, arrastando os pés, cabelo curto, lá vem a alegre mascarada!
Desfiamos cordas alcatroadas, rijas, unhas gastas, dedos sangrentos; esfregamos o chão, limpamos portas, e metais claros, espelhentos; e enxaguamos, aos turnos, o assoalhado, batendo baldes barulhentos.
Cosemos sacos e quebramos pedras, furamos tábuas com uma pua. Tinem marmitas; cantos se misturam; gira o moinho, e a gente sua... Mas dentro da nossa alma, um terror mudo, um terror grande se insinua.
Por isso os dias correm lentos, como vagas rolando com sargaços! E nós nos esquecemos do Destino, que os homens vis prende em seus laços, - quando, ao vir do trabalho, um dia, vemos uma cova, ante os nossos passos.
Bôca amarela e rude, ela bradava por uma vítima, e feroz, sua terra hostil pedia sangue ao pátio, - pedia sangue, em alta voz! Ah! logo vimos que ao romper da aurora iria à fôrca um dentre nos.
Recolhemo-nos todos, a alma atenta à Morte, à Sorte, e ao Mêdo infando. O Algoz passou com o seu pequeno saco, na treva os passos arrastando; e cada qual, na tumba numerada, se enfiou, trêmulo e cismando.
Cantaram galos, rubros e cinzentos, sem que rompesse o dia após... Tortuosas formas tétricas, nas celas, nos transiam de horror atroz; e os espíritos maus da noite-morta, riam, pulando em frente a nos.
E rápidos giravam, deslizavam, como viandantes na neblina. Imitavam a Lua, contorcendo-se em pose grácil, feminina: e, passos nobres, elegância odiosa, chegavam outros, em surdina.
Alegres, trejeitando, e de mãos dadas, entram, de súbito, em ciranda! Rodopiam fantasmas em delírio, numa grotesca sarabanda; e, caricatos, fazem arabescos, como o vento na areia branda!
Com piruetas gentis de marionetes, leves, levíssimos bailavam! Era estridente a música do Mêdo, com que o seu baile acompanhavam: e para despertar na cova os mortos, alto, e sem pausa, êles cantavam:
“Oh! - diziam - o mundo é largo. A viagem, para os trôpegos, é enfadonha! Jogar os dados uma ou duas vêzes, é de bom-tom, gente bisonha! Mas, ai! perde quem joga com o Pecado, na oculta Casa da Vergonha.”
Não eram sombras vagas que bailavam, com bizarra alacridade! Para nós - vidas prêsas na Prisão, pés tolhidos, sem liberdade, eram - nome de Deus! - criaturas vivas, de horripilante fealdade!
Sempre ao redor, valsavam contorcendo-se: alguns, giravam com seus pares; outros subiam, ágeis, as escadas, em atitudes singulares... E outros arremedavam nossas preces, rindo, a zombar, fazendo esgares.
Súbito, na Prisão, soa o relógio, e o som, no ar, vibra horroroso! E um gemido de dor, de desespêro, ecoa, lúgubre, estrondoso, - qual o grito que lança, num paul, a bôca negra de um leproso.
Como que, no cristal claro de um sonho, vê uma tragédia apavorante, assim vimos a corda gordurosa balançar, no poste infamante; e ouvimos a oração, que o nó do Algoz cortou, num grito lancinante.
Eu compreendi, melhor do que ninguém, aquêle grito amargo e forte, e o seu remorso, e o seu suor de sangue, e tôda a angústia da sua sorte! - Pois o que vive mais do que uma vida, deve morrer mais do que uma morte.
IV
Não há ofício, no dia em que na fôrca um dentre nós cumpre a sua sina: ou sente, o Capelão, pálido a face, ou grande dor d’alma o domina: ou, coisas que ninguém deve saber, inda lhe bailam na retina.
Meio-dia era já, quando vibrou do sino o toque funerário! A cada qual, espiando, os guardas abrem a cela - e em passo tumultuário vamos descendo a férrea escada, livres do nosso inferno sedentário.
Fomos andando ao ar suave de Deus, mas, como dantes, ninguém ia; - pois, faces brancas uns, outros cinzentas, o mêdo, nelas transluzia! E eu nunca vi ninguém olhar assim, saudosamente, a luz do dia.
E nunca vi ninguém olhar assim com tão profundo sentimento, essa breve, essa estreita faixa azul que os presos chamam firmamento. E as nuvens, sem cuidado, ao longe, no ar, felizes, livres como o vento!
Mas, entre nós, havia uns que marchavam cabisbaixos, alma aflitiva, sabendo bem que a fôrca mereciam, pois sua falta era excessiva: mataram uma coisa morta, e o outro, - apenas uma coisa viva.
O que peca segunda vez, acorda para a Dor uma alma dormente: tira-a do seu sudário maculado, e a faz sangrar sangue vivente; e a faz sangrar, num jôrro largo e forte, e a faz sangrar inùtilmente.
Quais monos e truões, vestes listadas, bizarramente, uma por uma, seguimos, silenciosos, dando a volta ao pátio escuro, envolto em bruma:
seguimos, silenciosos, dando a volta, e ninguém disse coisa alguma.
Seguimos, silenciosos, dando a volta, e à nossa mente, ôca e vazia, a memória fatal de coisas fúnebres, um vento fúnebre a trazia; e o Horror nos enfrentava a cada passo, e o Tenor, bárbaro, o seguia.
Passam guardas de um lado para o outro, vigiando, espiando a horda de brutos. Seus uniformes novos, de domingo, brilham, asseados, impolutos. mas a cal dos sapatos denuncia o que fizeram há minutos.
Pois onde a cova tinha sido aberta, não se notava a menor falha: só uma faixa de terra e areia fôfa, junto da hórrida muralha; e um punhado de cal, para servir ao pobre morto, de mortalha.
Ai! mortalha de cal, abrasadora, bem pouca gente é que a reclama! Sob um pátio de cárcere (e despido, para mais triste e negra fama!) êle dorme, com os pés acorrentados, envolto num lençol de chama.
E por tempo sem conta a cal roerá a carne e os ossos dêsse irmão: de dia os ossos duros, e de noite, a carne mole, em consunção: comerá, turno a turno a carne e os ossos, mas, sem cessar, o coração!
Três longos anos, nada irão plantar nesse local de desventura! Maldito ficará três longos anos, maninho estéril de secura! E olhará, com assombro, o céu azul, amargamente e sem censura.
Pensam que o coração do que matou, mata as sementes dadivosas. Não! A Terra de Deus é acolhedora, tem qualidades generosas: mais rubras brotariam rosas rubras, e mais brancas as brancas rosas!
Sairiam rosas rubras da sua bôca e rosas brancas do seu peito! Quem sabe? Tem Jesus estranhas vias, e é estranho, às vêzes, seu conceito: - fêz, outrora, ante um Papa, abrir-se em flôres sêco bordão de um Seu eleito.
Mas nem rosas vermelhas, nem de neve, podem florir nestes terrenos. Só nos dão cacos, sílex e pedras; só nos dão mágoas e venenos... A flor abranda o Desespêro aos simples, e é crime, aqui, sofrer de menos.
Assim, nenhuma pétala esfolhada há de cair, piedosa e bela sôbre esta campa rasa, junto ao muro da Prisão que nos arrepela, - pra lembrar que Jesus morreu por todos, aos que passarem perto dela.
Contudo, embora a fúnebre muralha o envolva, o cinja em férreo abraço, e um espírito de pés acorrentados
não possa, à noite, errar no espaço, mas só chorar, chorar, nessa ímpia terra, morto de mágoa e de cansaço,
êle dorme em sossêgo - o malfeliz! ou dormirá, dentro de pouco! Não mais, vendo o Terror em pleno dia, sofre, e receia ficar louco. Não mais! a Negra Pátria em que repousa, não tem, nem sol nem luar tampouco.
Enforcaram-no, assim como a uma fera! Nenhum sino dobrou na igreja, que à sua alma assustada lhe trouxesse uma paz doce e benfazeja: mas depressa o esconderam numa cova, onde a parede mais negreja.
Despiram-no. Em seguida o abandonaram, e com sarcástico sorriso, fitaram-lhe a garganta, inflada e púrpura, e o olhar imóvel, indeciso... E envolveram-no, após, numa mortalha, brutos, torcendo-se de riso.
Jamais o Capelão se ajoelharia na sua campa, que traduz a Desonra. E jamais nela poria a triste bênção de uma Cruz, - visto êle haver pecado, e ser dos míseros por quem veio morrer Jesus.
Enfim tudo acabou. Do Reino Escuro ele transpôs o limiar, A urna da Piedade, urna partida, há de, por êle, transbordar! Por de chorarão todos os réprobos, êsses que sempre hão de chorar.
V
Não sei se as Leis são justas ou se injustas. Os pobres presos miseráveis, só sabem que as muralhas da prisão são altas, fortes, invioláveis; e que um dia é mais longo do que um ano, - ano de dias infindáveis.
Mas sei que as Leis, que o Homem, para o homem fêz, com seu ânimo iracundo, desde o primeiro que matou o irmão, e deu início à Dor do mundo, são peneiras que guardam joio vil e atiram fora o grão fecundo.
E sei também (assim todos soubessem!) que as paredes de uma Prisão são feitas com tijolos de ignomínia e têm grades negras, que são para Cristo não ver como o homem trata bàrbaramente o seu irmão.
Grades que a lua amável desfiguram, e o sol, de raios triunfais! É melhor, sim! que escondam êsse inferno: pois lá se passam coisas tais, que nem Filho de Deus nem filho de Homem as deveria olhar jamais.
Os piores feitos, os piores venenos, geram-se no ar de uma cadeia. Só o que é bom no homem lá se perde, só o que é mau lá se granjeia. Há dentro um guarda: o Desespêro; e à porta, a Angústia fica de alcatéia.
Matam de fome às timidas crianças, até que chorem noite e dia; azorragam os fracos e os dementes, maltratam velhos à porfia. Uns enlouquecem; todos se pervertem, - mas ninguém diz sua agonia.
Cada célula estreita é uma latrina escura, fétida e nojenta! Um hálito mortal, fecalizante, enche a lucarna pardacenta. Tudo morre; a Luxúria, apenas, vive e a Humana Máquina atormenta.
A água suja e salobra que bebemos, lôdo e imundície traz consigo. O pão escasso e amargo que êles dão, tem cal e gêsso mais que trigo. E o Sono, sem dormir, pede em desvairo que o Tempo abrande o seu castigo.
Embora em nós a Fome e a Sêde lutem, como serpente em refrega, ninguém cuida em sustento. O que nos mata é, quando desce a noite cega, sentir cada um no coração, os blocos que o dia inteiro êle carrega.
Com meia-noite dentro d’alma, e a cela num crepúsculo funerário, damos à manivela e esfiamos cordas em nosso inferno sedentário. E o silêncio é medonho como um sino a badalar num campanário.
Nunca uma voz amiga vem falar-nos, meiga, num gesto humano e puro; o olhar que nos vigia no postigo, é impiedoso, áspero e duro: apodrecemos - alma e corpo em ruínas, esquecidos neste monturo.
Arrastando os grilhões férreos da Vida, vamos, sòzinhos, degradados: um se maldiz; o outro chora - e seguem em silêncio, os mais desgraçados; mas a Divina Lei suaviza e quebra os corações dos condenados.
E cada um que se quebra na Prisão, é como aquela ânfora cheia, que outrora se partiu, e o seu tesouro deu a Jesus da Galiléia, espargindo na casa do Leproso o olor do nardo da Judéia.
Feliz êsse que parte o coração e ganha a Paz, e ganha o Amor! Quem, de outra forma, pode libertar-se do pecado escravizador? E onde, a não ser num coração partido entra Jesus, Nosso Senhor?
Ah! o morto de garganta inflada e púrpura, e olhar imóvel, indeciso, espera que lhe dê sua bênção. Esse que ao bom ladrão deu o Paraíso: Pois Cristo acolhe as almas penitentes, - e é estranho, às vêzes, Seu juízo.
O homem da lei, vestido de vermelho, deu-lhe, de vida, três semanas, para a sua alma conciliar consigo, e sem idéias ruins, tiranas, purificar do sangue derramado, as mãos, um dia desumanas.
E ele purificou, chorando sangue, as rudes mãos de instintos crus: pois só o sangue lava o próprio sangue, e só o pranto ao Bem reconduz; e a nódoa rubra de Caim transforma na branca auréola de Jesus!
VI
No cárcere de Reading, junto a um muro, terra de opróbrio os ossos come de um desgraçado, envolto num sudário que o afogueia e que o consome! É uma campa infamante essa em que jaz, uma campa que não tem nome!
E aí, até Jesus chamar os mortos, tranqüilamente há de jazer. Inútil verter lágrimas inúteis, e dar suspiros, e gemer. - Ele matou aquilo que adorava, teve, por isso, de morrer.
No entanto (ouvi) cada um mata o que adora; o seu amor, o seu ideal. Alguns com uma palavra de lisonja, outros com um duro olhar brutal. O covarde assassina dando um beijo, o bravo, mata com um punhal.
sexta-feira, 5 de junho de 2009
Mavignier de Castro
Antonio Mavignier de Castro nasceu no Ceará, no dia 21 de novembro de 1895, fez curso primário em Belém. Com nove anos de idade, em companhia da tia, seguiu para a França até concluir o Curso de Bacharel em Ciências e Letras. Regressando ao Brasil, entrou para a redação do jornal “A Época”, em Manaus. Em 1916, foi nomeado chefe de revisão do Diário Oficial do Estado do Amazonas. Foi repórter do jornal “O Tempo” e no “Jornal do Comércio”, de Manaus. Como Promotor Público, atuou nas Comarcas de Eirunepé, Tefé e Manacapuru, deixando-as para ser nomeado Prefeito de Moura, no interior do Amazonas. Foi professor de Francês na Escola de Comércio “Solon de Lucena”. Escreveu “Síntese Histórica e Sentimental da Evoluçao de Manaus” e
“Amazónia Panteísta”. Era membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e sócio correspondente da Academia de Letras do Ceará.
Capítulo de "Amazônia panteísta":
"Orfeu das selvas amazônicas"
“Leucolepia arada modulatrix”... Na classificação dos milhares de pássaros existentes nas selvas, nos campos e nos montes de todos os continentes, talvez nenhuma especificativa se ajuste melhor que a do uirapuru amazônico. Até a terminologia tupi interpreto a vulgaridade que o torna conhecido - “uirú”, (boca) e “purú”, (ruidosa, cantora).
É na quietude balsâmica das manhãs luminosas, antes do sol atingir o zênite, que, invariàvelmente, na copa de uma árvore altíssima da terra firme, um gorjeio harmonioso se foz ouvir em escala crescente de acordes enleantes, de sonidos puríssimos, tal um conjunto inefável de notas metálicas e cristalinas vibradas ao mesmo tempo, num misto aproximado de arpejo eólio e avena pastoril, cuja gama de sublimada consonância nenhum instrumento musical, por mais sonoroso, pode imitar.
Então, como que atraídos pela suave melodia, ora evanescente, ora altissonante, centenas de pássaros revoam transpondo os recessos florestais. Suas asas não tatalam e nenhum pipilo lhes sai da garganta. Crer-se-ia que temendo profanar a serenidade panteística do momento, êles se aproximam silenciosos do minúsculo orfeu plumiliforme, e, pousados a seu redor, vão matizando os ramos com as suas plumagens azuis, citrinas, purpúreas, brancas e negras.
Terminada a fantasia de côres esvoaçantes com a quietude embevecida dos alígeros ouvintes, o gorjeador faz pausa, voeja para empoleirar-se na ramagem de outra árvore, seguido triunfalmente pela profusão de penas deslumbrantes que lembram a policromia de um fogo de artifício caindo na penumbra do matagal silente.
Na sucessão dêsses rápidos intervalos, é possível, de relance, vislumbrar a tonalidade barrosa do corpo do pequeno virtuose ornitológico. Quem jamais ouviu as modulações do mago passarinho, dificilmente acreditará no estranho fascínio que a sua harmonia exerce sobre os sêres alados e, também, na extraordinária influência que ela desperta em nosso espírito.
Excluída a prodigiosa propriedade do canto inimitável, pouco se sabe dos hábitos do “Leucolepia arada modulatrix”. Jamais um exemplar de qualquer idade resistiu ao cativeiro. Pacientes observações, entretanto, revelaram que êle é insetívoro, nunca se alimentando com gramíneas ou frutos silvestres. A plumagem do casal é uniforme, —côr de argila escura, mais carregada que a do vulgaríssimo ‘joão-de-barro”. Não possuem, ambos, os soberbos reflexos metálicos vistos nas asas dos rouxinóis do Rio Negro; não lhes ornam as cabeças penachos carmezins como os dos “galos-de-campina”, e suas gorjeiras não ostentam as cintos douradas que refulgem no peito dos “japiins”. Em compensação, quando êles nidificam, no período nupcial, a capacidade vocal se lhes desenvolve de modo tão imprevisto que a melodia patética do gorjeio adquire, dentro do místico recolhimento da natureza, surpreendente motivo de elevação hierática, somente comparável aos temas poéticos que nos levam aos paroxismos da emotividade, como quando ouvimos, sublimadas, a execução suave, espiritualística, das extasiantes músicas sacras.
(De “Amazônia Panteísta’)