sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 1


Nós nos despedimos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - e de lá partimos para Cabo Frio onde um barco alugado nos esperava no cais do canal - entretanto choveu persistentemente durante quase toda aquela nossa viagem de lua de mel ("onda de mel", contava Val; "luz de mel", corrigia eu) e Val relatava que naquelas vagas pelo resto de nossas vidas ouviríamos aquela música da ventania nos nossos ouvidos, a chuva, e nos afogaríamos naqueles golfões do sentimento mole e maciço do fundo do mar de nós mesmos, porque era aquela sensação de claridade no meio daquela chuva no espaço do mar, naquele espaço verde por onde o barco penetrava como num labirinto selvagem, e onde nos introduzíamos num horizonte desconhecido e invisível - Val nua no convés: e assim que ainda a vejo hoje cantar aquela canção de amor daqueles heróicos tempos de mar e de vendavais roqueiros que eu ouvia - tentando avançar com cautela por esta pormenorizada narração - e para tornar o rumo de mais seguro porto devo dizer que naquela época a situação nos colocava no pátio do paraíso que eu não divisava bem, um furo, algo significante e que tem força decisiva: porque aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória de mim mesmo, a brisa corrente que nos trazia de volta como se lancha fosse um veleiro e nos conduzisse pelo mar - ficamos no hotel, o colo cheio dos jornais sobre o golpe, a beber um coquetel de frutas sobre as notícias, as notícias cada vez mais terríveis, mas os olhos de Val recolhiam os reflexos daquele mar com sua superioridade lunar e esmeralda, ela mais parecia uma Marilyn Monroe morena naquele tempo, dourada, a vida toda simulava ali estar em sua homenagem - e no dia seguinte de lá partimos para Búzios, a camisa branca, larga feito uma bandeira de sol luminosa, meio ávida, adejava, o tórax à mostra sobre a curva da anca suave, os homens se surpreendiam de vê-la tão loura, tão artificialmente loura e límpida que nem parecia que comigo estivera ressonando levíssima no seu leitoso perfume depois de se debater no gozo selvagem dos seus sonhos nos meus ombros durante a noite anterior: o veículo saía soprado pela mágica do vento e nós íamos para a casa de Búzios emprestada de um amigo meu - passamos velozes pela ponte do canal (Val dirigia) e ao longo da estrada litorânea se ouvia a areia da estrada de terra batida na fuselagem enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.

À tarde entramos naquele mar, completamente despidos como se vestíssemos um verde vivo e com alegria dei uns tiros com o revólver de Val que estava no porta-luvas, herança do pai dela, estourando uma garrafa de cerveja - mas logo tivemos de nos vestir, pois vinha chegando um garoto, quase criança, com um cão solto que corria.

Foi somente quando me deitei na areia que os vi: largos, na espuma da rebentação branca, o sol se rebelando nas gaivotas de vôo rasante como aviões em combate de bandos ruidosos: eram três jovens, e estavam na crista das ondas do horizonte provável.

Uma tarde, nela atravessávamos a luz, andávamos pela rua daquele subúrbio, o bairro, silenciosos, graves, gravemente subimos o aclive, os passos, resumimos nossas conversas a um leve contato, leve toque dos dedos, ocasionais, toque rápido, cheio de emoção e felicidade. Mas a vida não, mas a vida não é um brinquedo. Não consigo saber o que se passou, as recordações recortam imagens irrecuperáveis. Tento compreender. O que acontecia naquele momento, naquele passar de sua presença inteira, fixa, na minha frente - de uma existência - o passado como tela de cinema implantado no olho da memória. A vida não pára, não parou. Não chego ao desespero, ao estranho relacionamento que tenho, hoje, com o que hoje sou. O presente aqui não é nem alegre, nem triste. Tenho de começar devagar.

Certo dia, quando aciono, quando acordo, o teto do quarto com uma coloração rósea, a janela aberta dá para um labirinto em que o olhar ostenta mover-se, e que se vai desdobrando em abstrata claridade, a fragrância marinha emanando suave, fria, perfumada, vinda do horizonte, a janela respirava... Entrava, quase imperceptível, um som, aquele som, um murmúrio, doce, azulado, como o mar. As pessoas amigas me tinham recomendado calma. Mas eu não consigo. Lembro-me ainda das retas cruzes das ruas da cidade indiferente. Vista do alto prédio, a cidade. Foi naquela madrugada que a sentença me chegou, forte, perfeita, correta, aterradora como a de um assassino: Val. Era ela. Val me abandonava. As persianas batem, fortes, nervosas. As roupas por cima da cama, acordava do sonho do meu amor desfeito. O amor, como uma bala, passava de boca em boca. Se espalhava. Eu sofria a angústia, a queda. O amor é um mar. Cheiro familiar de café. Um pente um espelho. Eu penso. Matar o meu sonho. Não, Val. Eu tinha soluções. Alguns homens formavam grupo no ângulo da esquina, e ela... ah, súbita felicidade da totalidade!... agora nós estávamos na praça. Na orla da praia eu subia até um pedestal vazio, que chegava à cabeceira do tanque retangular, e no ar abria os braços, espalmava as mãos, feliz, e ainda me consigo ver. De lá dizia, de lá me recordava de mim mesmo, eu para mim agora, a um majestoso e largo mar que soava no ar com a clara voz de Val, com todas as claras vozes daquele tempo, a aragem crescendo no meio de tudo, infiltrando-se na camisa aberta, os seios nus.

Nada me prende mais, hoje, do que a demora do passado no momento presente, esse momento interior imensurável, onde às vezes a força dos instantes retardam os passos do passado para sempre. Às vezes, como num sonho, largo pesado sonho estirado, os momentos são assim inteiramente vivos, inesperados. Neles me movo, me reconstruo, me recomeço. Em frente. Naquela praia nós nos largávamos, era como se durante a vida toda estivéssemos ali. Na areia suave, como se as lembranças estivessem inteiramente nuas. Visto de hoje o mar, vedação alta e azul, as coisas vastas, as coisas em bloco, as coisas se dissolviam em explosões de brancas espumas, cristas, covas, límpidas cintilações coriscantes.

Ainda estou perdido, perplexo. Ainda me movo mal nesse espaço. Ela. Ela penteia os cabelos, diante do espelho, os ombros largos. Muitos anos se passaram diante da imagem de Val, naquele espelho. Era ali, a sua viagem, uma viagem de barco, ela, os cabelos muito soltos no convés, chovia quase todo tempo, interminável ruído da chuva, a chuva nascia da ondulação das dobras do lençol de chuva azul, ou verde, nós riamos, recebíamos de face as espetadelas gélidas das gotas do ar. Isso é tudo? Durante todo o tempo em que vivemos juntos, parece hoje, por uma misteriosa deformação mágica, que todas as tardes são sua presença, de seu mar, onde sempre se ouvem ondas, onde as luzes, os sóis se impunham, juvenis, um elemento, alto, magro, qual garça branca, andando atrás da pedra, do deserto, entre o carro e um adorno, uma corrente, ele se precipitava entre as coisas da memória, se encostava ao cimento do muro. Aqui, Val aqui, atrás o seu ciúme, conectando com o que se refere, com tudo o que... bombas (anos depois os soldados invadem o prédio, rebentam no meio da sala cruelmente as bombas, eu procurava Valquíria entre os acontecimentos tumultuosos, estávamos encurralados ali, não conseguimos sair daquilo, não há nenhum telefone funcionando). Esse amor. Tenho de deixar sossegado? Posso iludi-lo com amenidades? Eu sempre penso em matar minha lembrança, meu passado. Ele estaria morto finalmente se eu não o estivesse revirando agora.

Depois que eu me separei de Val penso que a vida está acabada. Não podia amar o amor, aquela doença, o relacionamento com Val, o fantasma. Tinha ido lá, ver o fantasma. Tinha ido até lá, a porta da cozinha estava em frente de onde eles se encontravam, passava a mão sobre sua cintura, mordendo-a suavemente no ventre, mas a porta ameaçou abrir, estava sendo arrombada, uma prosaica chave começou a ser introduzida na fresta, seria surpreendido ali, ele, um nome, uma legenda, ele, como ainda me lembro de tudo isso? estarei vitima de uma Val que estava em minha vida como uma alucinação, um convite ao prazer, ao mais louco prazer, em sua vida, fonte máxima, única, ela era um vivo convite à vida, a porta, os azulejos brancos, duas pias do lado da geladeira. A beleza, a beleza acompanha o tempo.

No barco, na lua de mel, ainda chove persistente, a voz era como sempre clara e dizia que ouviriam uma certa música, sim, para não nos afogarmos naqueles golfões de sentimento maciço, mole, gosmento. Não, não nos afogaremos nesse mar, não nos afogaremos dentro do fundo de nós mesmos.

Não no barco, esmagada, não, mas na cozinha, com Val, a eterna, a porta se abre, a polícia se apodera do que tinha sido aquela casa, eles estão fora, jogam o conteúdo fora, foram engolidos pelo silêncio? fugiram dali! Val, a política, a nova liberdade de viver é assim? Todo o meu empenho é vão, todo o meu empenho para que nada aconteça a ela, desde minha juventude eu assim jogo, tudo, joguei tudo na mesa verde da via do destino, a vida, a família, e era ela, fugimos dali, que valia tudo diante dela? De que valia tudo isso?

A revolução, a ditadura militar estava vitoriosa, nos colocava na clandestinidade. Fomos parar numa estação de trem do subúrbio, distante, onde ela morava, olhando a planície com desânimo, quase uma centena de pessoas esperava a vinda do trem. Ali mesmo, naquela zona, passavam soldados sem destino, rapazes distraídos entre gritos de vendedores de balas.

Palavras. Palavras entrecortadas. Curiosa angústia. Eu ponho tudo em jogo, eu não estou com ela. Que faço aqui? Novo grupo de policiais acaba de chegar, as imediações são um campo de guerra, um campo selvagem. Quando a porta se abriu, nós nos precipitamos pela saída dos fundos. Eu ainda pensei que a porta resistiria, mas cedeu de uma vez, uma invasão começou. Depois começa a lavrar o incêndio. Armários despencam aos tiros, granadas, rebentam estrondos. "Sim, fui uma juventude agredida", disse Val, anos depois. O silêncio aquece o inverno longo. Você coloca sua marca, a marca de seus dedos em tudo o que faz. Você traz no corpo o seu sinal.

Na estação, o garoto olha para trás, e corre, assustadíssimo. A fome passa. Estou bem disposto, a viagem de trem me reanima, a vida volta a seus trilhos, volta ao natural. Sinto-me de novo participante, cidadão, digo que isso é passageiro. Não sei dar linearidade a esta narrativa, ela vai-se desenrolando de dentro – a sua ordem é desordem, parece impossível, fico diante do que sai de minhas lembranças, fico impotente, sob flashes atordoantes. Os olhos dela me chegam, me abraçam. Às vezes, penso que é ela quem me reencontra, seu fantasma comigo — a minha morte — um salto surpreendente. Eu tenho de usar de muita habilidade para prosseguir o tema doloroso, o tema fundamental, o propósito verbal de minha existência devastada, não mais estando disposto à lastimação solitária de origem. Minha lembrança. Recebo minha lembrança no seio de sua vacuidade. A emancipação desaparece, por momentos. Mas nada pode ser dito. Vivo disto. Sobrevivo disto. Vivi com o principal de meus dias de paz. «Quem colhe o mel dos deuses», diz a voz, «não mais se cura». Sei que amanha acordo melhor. Bela sensação de claridade, de espaço, daquele espaço em que passamos nossos corpos e nos estabelecemos — quero abraçar este espaço — rematar o real nele contido - recortá-lo para o recriar. Hei de contar, de cantar a mais bela canção de amor aqui, mais bela que alguém já pode viver. Val me telefonou dizendo que Ricardo... Mas isso resiste à clareza de uma narração, de uma explicação, tenho de avançar a palmo. Com teimosia, mas com cautela. Estou perdido. Melhor seria se eu pudesse logo contar certos detalhes, tornar seguro o caminho. A situação está na reta final. Mas não, não há mais ninguém, senão você, vem você, você prossegue, sim. Todos se colocaram na ausência. Sinto-me ainda na ilha, mergulho para esquecer, deixar para trás o som de suas praias, sempre nos meus ouvidos. Não, devo clamar, duvidar. Naquele tempo vivia numa ilha. Lá estava Val, também. Tínhamos uma casa na ilha. O principal de mim estava lá. Eu amava ou não tinha outra escolha. Ali era um ser todo dissolvido — um ser úmido, onde os sentimentos mais estranhos assustavam, assaltavam, chegavam com seu trânsito nervoso, a violentação de suas multiplicidades — de não sei quantos desagradáveis motivos nervosos difíceis de aturar.

A tarde ia desaparecendo. Um calor brando, silencioso. Valquíria aparece. Jovem. Máxima. Ela aparece jovem. Reencontro a Valquíria adolescente na Valquíria de hoje. Estou decididamente envolvido na sua substância material. Desde sempre nos envolvemos, nos identificamos. Ela vive, dança no meu ser, à vontade. Tento compreender isso, tento a resposta. Sua voz vem de longe, do tempo. Sua voz. Quando se convive, durante toda uma vida, mesmo com intervalos, com essa voz, nunca se pode sobreviver sem ela. Pessoa que se ama sempre. Estou sempre prestes a procurá-la, de novo. Por isso nunca a liberto. Sempre fui a ela, onde ela estiver. Seu timbre sempre adquire o som de um fundo que conheço mas não sei dizer de onde. Agora é o tom do amor desfeito. Refaço. Tento. Nós corremos paralelos, juntos, nos unimos em tempos sucessivos. Eu sempre. Tenho-a em meus braços? Ou ela me domina? Agora, como depois. Como sempre antes de sempre, depois, depois de depois. Nós nos deitávamos, era a comunhão, ela tão presente, como se fosse ela o mais sólido e absurdo elo da vida. Sem ela, vivo em abstrato. Se pacifica. Eu sou agora Val. Ela cheira a floresta. Nós sempre corremos em vias paralelas, nos unimos no tempo. O bom contato de seu corpo, de sua materialidade, de seu cheiro de mato moreno, de seu calor algo que eu podia beber o insaciável. Estrada. Depois a estrada. As palmeiras, eucaliptos, rubor essencial que sempre a eterniza. E eu sei que posso ficar até o sangue correr de meus dedos, aqui, a falar e a repetir sobre ela, interminável, inesgotável, solitariamente.

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