sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 14



Rôni escrevia. A varanda onde ele escrevia, em Búzios, era iluminada por uma luz que caía diretamente do teto sobre sua mesa. Seu corpo, forte e atlético, queimado do sol, não parecia o de um intelectual. Aparência de um explorador, navegador, pernas rijas, sólidas, mãos que ocupavam todo o enquadramento da máquina datilográfica. Densos, soltos, emaranhados, negros cabelos. Olhos negros, fixos na produção do texto. A linha do tórax descia suave até o ventre magro. Não era feio e não envelhecera. Compensava com natação e ginástica os anos da juventude. Bom nadador. Lábios sensuais, coloração semi-dourada da pele bronzeada. Fonte de muitas paixões de mulheres, jovens e maduras, a que ele correspondia quase sempre.

Tudo ao redor, trevas. Além do círculo de luz da luminária que descia do teto para a máquina datilográfica, nada. O mundo de Búzios mergulhava nos seus melhores silêncios, nas suas mais fantásticas horas de assombro, no ritmo do mar, perto e invisível. Do alto mar vinha um sopro longínquo trazendo inspiração de ilhas distantes, do “cortinado de ametistas”. Algo pulava no bojo da sombra da noite, sem luminosidade.

Rôni levantou-se. Foi até a pequena geladeira a querosene. Tirou uma lata de cerveja. Olhou em torno. Nada via. Tudo frio, o vento trazia uma sonoridade fria. A linha invisível do horizonte estava lá, longe. E aqui, no mistério do aqui, as primeiras linhas do texto de "A história dos amantes".

.......


Eu me separei de Val no dia 19 de dezembro de 1967, e em março de 68 me uni a Luísa Castello Chermont, que já conhecia. Pequena, magra, elétrica, leviana. Rica. Eu a amei. Era mulher de seu tempo, conhecida, três anos mais velha. Cabia com justeza no vazio estonteante em que Va1 me lançava. Com vantagem. Levantou-me do chão onde eu me tinha abatido. Luísa reerguia meu amor-próprio, abatido. Me recompôs no meu ambiente pequeno-burguês. Ela se encaixava muito bem e me reconduzia ao meu lugar de origem. Nossa ligação e o pouco sucesso de meus livros me recuperavam da perda sem remédio de não ter mais a meu lado a mulher perdida. Luísa de certo modo me fazia satisfeito. Eu respirava aliviado, livre daquilo que estava sempre perto das situações limites, das crises que, no fim, mais me perturbavam do que me davam felicidade ou me punham em seguro.

Luísa Castello Chermont era o contrário de Val.

Filha de um General de Divisão, com uma descendente, em linha direta, de meu tio-avô, Luísa sabia viver a alegria nervosa de sua única preocupação e interesse: o seu próprio corpo e ser, e tudo o que revelasse nele brilho e poder. Era desquitada de um político conhecido. Mulher bela, à sua maneira. Vivia a beleza exclusiva. Massagens e cabeleireiros. Tinha uma incomparável vantagem sobre Val: nada a preocupava mais do que o corte de seus vestidos e a coloração dos cabelos. Luisa não era, graças a Deus, intelectual, mas inteligente, bem educada, perspicaz. E prática.

Eu continuei a pagar a pensão de Val até quando pude. Tive de interromper quando estava economicamente arruinado e passava a viver às custas de minha mulher. Mas Val naquele tempo já tinha a loja em Cruzeiro. Isso é outra estória, não vem ao caso, nem quero contar.

Depois de "O amor vestido de luto" - meu pior romance - não consegui mais escrever uma única linha que valesse a pena, embora continuasse a trabalhar incessantemente na composição daquela que eu pensava ser a minha melhor obra: "A História dos amantes", resumo de mim mesmo, em que gastei doze anos de pesquisa e anotações. E eu, que era capaz de redigir um livro em meses, me vi inexplicavelmente e há anos escrevendo e reescrevendo as 200 páginas. Meus livros foram explosivos fracassos. Não venderam quase nada. Eu era o marido de Luisa Castello Chermont.

Luisa me amou, ou me aturou, naquele tempo. Depois envelheceu e me abandonou por um jovem.

Como ela só se importava consigo mesma, foi sempre a esposa ideal, dando-me permanentemente a liberdade de que necessito para que nunca me canse das pessoas com que vivo. Do contrário teria de me ver na privativa dedicação a ela, na dependência das variações de humor. Passei anos sem fazer nada, pois além de nadar, correr, ir ao cinema, freqüentar os poucos amigos e os de Luisa (que eram muitos e diferentes), viajando com ela e administrando os seus bens, eu nada fazia.
E pesquisava as fontes da minha "A história dos amantes".

Durante aquele tempo vivi em Copacabana, no apartamento dela. Luisa não morava em uma modesta habitação. Não, não tenho capacidade de gerir dinheiro, de Luisa apenas fazia o que ela mandava.

Por fim Luisa se libertou.
Eu nunca pensava seriamente nela, ela nunca se constituíra num problema a ser pensado. Era a esposa, talvez ideal, cuidando de si e interessada sempre na sua própria vida.
Luisa tinha uma filha do primeiro casamento. Mas Renata estava bem casada, e se emancipara completamente dos pais. Vivia sua vida.
Eu e Luisa existíamos sem grandes problemas, sem grandes ciúmes. Nossa vida conjugal seguia tranqüila e simples. Éramos corteses um com o outro e nos orgulhávamos disso.
Fazíamos amor com regularidade, sem explosões, mas tínhamos prazer mútuo nisso.
Ela vivia confortável e segura.

Mas eu a amava? Se pudéssemos chamar de verdadeiro amor aquele estranho e forte sentimento que me uniu a Val - não. Se amor era o que me ligava a Luísa como sócio - sim. Como amigos ou como amantes, fosse amor ou não, sim: eu amei Luisa, e muito. Verdadeiramente.

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