quinta-feira, 23 de outubro de 2008

Paulo Augusto: FALO (integral)

Paulo Augusto

FALO

Rio de Janeiro, 1976




AVANT-PREMIERE
Não foi medo que senti
quando você imenso
- era a primeira vez –
me rasgou a blusa
inebriado e tonto.
Eu era virgem
como todo mundo um dia foi
mas isto não vem ao caso. Fardos pesados,
no canto do muro, tu e eu.
Vislumbrei à luz murcha da tarde
tua fortaleza pontiaguda
e me recordo: meu coração
recuou.
Mas juntei minhas forças todas
e num relance lembrei-me
que mamãe sempre dizia:

- Homem é para-mulher,
e mulher é para-homem.

VAE VICTIS

Sensação de cão sem plumas
a máscara
a farsa - o medo
isto tudo nasceu comigo.
A primeira mentira dita,
a gente se documenta,
se habilita
se exercita - e acaba se acostumando.
A enfermeira é porta-voz.
Oficiosa, a víbora morde, sopra,
e cospe um verbete: Homem!
Meu pai acredita,
minha mãe se deleita
o povo festeja. Bandeiras, discursos,
charutos - bandas de música.
Beberam o mijo do menino
magricela - sem lhe perguntar
sem lhe auscultar - a sina.
Toda festa tem seu preço.

Etiquetado, recebo no berço
a humanidade
me olhando e rindo
um riso que eu não entendo
e que não me larga.

Só não ri o anjo. que me protege
assexuado, a-ético, aéreo,
sobrevoando o meu ser
e dizendo:
- Vai, Paulo, ser gay na vida!
No espaço geográfico do discurso há-sumo.
Nihil obstat.

INTIMIDADE

Flagro admirado e grave
no meio do teu corpo insone
sob a névoa que o encobre
teu cabeludo pecado.
Lanço nele mãos sedentas
de fomes transcendentais.
Rolas sob o cobertor
procurando na floresta
densa e quente do meu ventre
a árvore os frutos doces
os doces frutos do amor

NO COMEÇO VOCÊ FOI MAIS GENTE

No começo você foi mais quente.
Entrava batendo a porta
correndo - me entregava as flores
murchas que o trem secou.
Rondava o prato de leite,
bichano, terno, barbudo,
olhava o mundo por mim.

No começo você foi mais gente.
Andava a rua comigo,
o braço apoiado - e eu
podia ainda beijar
teu rosto e saber por que.

No começo você foi eterno.
Parecia feito em sal.
Eu levava os lábios sôfregos
e ungia o teu corpo todo.
Você não se desprendia,
vibrava em mim,
vivia em mim
trepava.

No começo foi somente amor.

E NO ENTANTO É PRECISO VIVER

Caminhões continuam saindo
do Nordeste
carregando gente
como gado. E eu choro.
o homem que amo viaja
na carne brasileira,
no sangue latino
- trazendo um punhal.
Às 8 horas da noite
o continente estremece
e o povo não atina
o que fazer com os órgãos
genitais da gente.
E, no entanto, mil crianças
de todos os sexos
acabam de nascer.
Amarro minha fome de amor
fortemente
com os cordões de miséria
da minha cidade.
Boto as tropas na rua.
Temo pelo futuro. Danação.
Você que não sabe o que fazer da vida
pegue-me pela mão
e me carregue para o vazio
do que há-de-vir.
Eu também profundamente
entediado com isto tudo.
E, no entanto, é preciso viver.
As gerações futuras nada têm com isto.

O MEU AMOR PELOS HOMENS

No fundo eu gosto dos homens,
todos os homens,
de todas as cores.
Apesar de suas horas odiosas,
de suas lâminas
e de suas balas.
Com as suas discrepâncias e acima delas.

No fundo eles não são tão maus.
Até que a gente entenda
que a necessidade patrocina
dores, medos, lágrimas,
tiros, greves, convulsões.
Para entender o motor dos homens
humano é necessário ser.

No fundo meu amor emana
e os cobre, engloba,
engole-os.
Esqueço a face má que tem vez
mascaram para me assombrar
e os amo um pouco.

No fundo meu amor almeja
ser entre eles
e realizar-se comunistamente
como solução.

Se pudessem receber, todos,
eu dava, salmista,
todos os peixes
que meus olhos guardam
nos lagos sombrios, distantes,
que eu nunca vi.
No fundo os homens me amam
na mudança mútua de nossos ódios,
na troca de todos os beijos
por todas as balas.

No fundo meu amor abunda.
Através dele há de ser salvo
o mundo.

A MULHER QUE MORA EM MIM

A mulher que mora em mim
de noite sacode a saia,
remexe e bebe,
intumescida e apaixonada.
Nas noites que eu não quero
ela me atira nos braços
de homens que eu nunca vi.
Pensa, nostálgica, canta,
e embeleza o rosto
como um girassol.
Anda todas as ruas,
beija todos os homens,
se procura.
Encarcerada em minhalma
faz de mim ofício.
Requebra quando não vejo,
canta quando lamento,
romântica, frenética, bêbada.
Não me infunde medo,
mas só me apavora
quando nas horas graves
do meu dia
quer sair para trottoir.
Feroz, voraz, insana,
quer amar a cidade inteira,
ser anel de toda mão,
chapéu de toda cabeça.
Aprendi a gostar dela
e dos sons arroubos
um pouco demoradamente.
Coexistimos equilibrados,
largos e satisfeitos
a maior parte do tempo.
Há dias que ela alucina:
quando eu durmo ela acorda,
quando canto ela cala,
silencia quando falo.
Me investe,
me explora,
me oprime - mas eu gosto.
Compreendi finalmente
que em mim está vivendo
a síntese crucial do mundo:
aqui os contrários se unem,
poderosa, apaixonada, eterna
e furiosamente.

SYSTEM-ATTICA

Porque sou fresco,
hábil, lépido,
a gerontocracia sente medo,
se arrepia
como um rato.
Cospe leis, editos, atos.
Se agasalha, modorrenta, rouca,
recua
na cadeira de balanço
botando graxa
na dobradiça das pernas.
A tosse, a vista cansada,
a velha despótica me espreita.

Quando exibo meu porte,
meu corte,
me chama de trans
viado
me cobra pedágio - a doida
quer me ver casado,
parindo mão-de-obra
para eternizá-la.
Para destruí-la, esterilizo-me.
Minha praxis.
Por puro capricho
me amedronta, me persegue, me degrada.
Nego, renego, faço ouvido mouco.
Se me encontra pela rua
madrugada
quer violentar-me,
ver meus documentos,
me revista e se delicia
apalpando minhas partes,
pensa em coito.
Nego, renego, abomino.
E ficamos eternamente
nessa cachorrada.

Quer me tributar,
me chupar – foder-me
porque sabe que é maravilhoso,
ser fresco
como um dia de Domingo
ensolarado e pendurado
no varal.

EU ERA O OUTRO

Cúmplice de teu medo,
assombrei-me com o mundo.
Calei, me deixei ficar, perdi-me.
Cúmplice da tua vontade,
existi para os teus ditames,
para os teus atos, farto, cupincha.
Cúmplice do teu ódio,
não apertei os gatilhos,
vi somente cair os corpos.
Cúmplice de tua hipocrisia,
emudeci, neguei-me, aceitei.
Cúmplice de tua fome,
fartei-me na tua mesa,
bebi do teu doce vinho,
gargalhei dos teus prazeres.

Hoje não penso nisto, não.
Bastam as dores do olho,
do meu visor, do meu ângulo.
Sofrer, não - esquecer...
O mundo é outro hoje,
há outras caras na sala,
mas não quero mais ser ninguém.

UM HOMEM LÁ DO NORDESTE?

Nordestino sim
com fome e com sede
de amor
e justiça - dinheiro,
no coldre, no Banco,
longe da mão e dos olhos.
Nordestino sim,
dos cabras da peste,
de esquistossomose,
do Bumba-rneu-boi,
um bamba,
uma bomba,
uma pomba,
da paz e do grito
- barriga vazia,
pregada no espinhaço.

Lampião jogava a criança
pra riba,
a criança sorria,
o céu era azul,
o vento bom.
A criança abundância,
a criança gorducha,
o povo espiava:
- Oh! quanta sustança!
Lampião recebia a criança
na ponta da faca.

HOMEM COME CARNE HUMANA NO CARIRI

Homens comendo homens,
com farinha e pinga,
comendo paçoca de carne
de bunda - mole e fresca.
Nordestino véio!
Eita... muié macho sim sinhô...
Das bandas da Borborema
nordestino no meio dos cabras,
com enxerimento,
a fome danada
- ô peste!
Come diabo,
o que é do homem o bicho não come.
Homo-sensual,
mulé, fulô
- um cabra da peste
que pinta os beiços.
Um frege da gota.

- Que friage é essa, bichim?
- Num é chuva, não, meu pai.
Padim Ciço vai matar nós tudo.

Come, Aderaldo, canta,
bebe,
espanta Belzebu.

Nordestino no meio do mato
alisando a batata
da perna, chupando
cana caiana.
- Tá cum a bixiga lixa!
Êta, Severino duma gota.
Gosta, se demora,
no meio, do verde
do cacto, sentado
na coroa avermelhada
de padre - a secura.
A frescura - o medo.
Esta seca é braba, ô xente!
Nós sofre, mas nós goza...
Come Severo, come...
Este mando todo é teu.

DECRETO EM CORDEL

Para democratizar
o amor
o decreto ora assinado
determina:
todo humano tem direito
de possuir uma fonte
de plena gratificação.
Principalmente no Norte,
no Nordeste
e em Mato Grosso
caravanas vão correr
distribuindo carinhos
afagos e beijos,
apertos de mão.
Onde houver necessidade,
onde houver irmão faminto
terá conforto no peito –
sossegarás coração!
Se faltar mulher ou homem,
pra fazer um par certinho –
atenção compatriotas:
Aqueles que apreciam
carinhos por outras rotas,
atenção, eu peço agora,
trabalhas pro teu irmão,
faz pra eles que em troca
tu terás compensação.
Abençôo e dou partida
Nessa comunicação.
Levem meu consentimento,
Colaborem com a nação.

ESTATUTO

Ser bicha é ser enquadrado
no inciso C
do parágrafo terceiro
do artigo 24
da lei de segurança inter
nacional.

É ter medo à flor da pele,
é ter a língua ferida,
a boca rubra,
o beijo fácil,
o amor saindo pelos poros.

Ser bicha é um estado de espírito,
de choque, de sítio,
de graça.

Como o artista pinta seu quadro,
como a luz que filtra
a janela do quarto
a lua bojuda no céu.

Ser bicha: ser inspecionado,
é ter revirado o passado
e investigado o medo –
subindo o cheiro saudoso
dos primeiros tempos.

É a polícia, acesa e trêmula
no encalço do baitola
amedrontado.

Ser bicha é ser metade gente,
a outra metade - o povo,
gargalha garganta a dentro
ri e galhofeiro.

É Ter parte com o demônio,
aprendiz de feiticeiro.
É estar entre, no meio, ser meta-de
Outros homens.

ATENTADO AO PUDOR

Para prender-me
a polícia
por a-tentar
- o pudico e ávido
público
termina por decifrar
a mensagem
dos órgãos de segurança
sexual
e mergulha
sob as cobertas
comigo.
Deliciosamente infratores
simultaneamente
gozamos
entre relinchos, unhadas,
beijos e coronhadas.

FELICIDADE

Procuro a felicidade
como quem cata uma agulha
às quatro horas da tarde
num matagal do arrabalde.

A polícia me vicia.
A-guarda, solícita, me guarda.
E permanece à distância
expectando fuxicos.

Duas mãos que me procuram
liames, cordas, arames,
se perdem - me perdem
no matagal de arrabalde
onde a felicidade
às quatro horas da tarde
é uma agulha
que a polícia aparvalhada cata
sem nunca achar - a gente
sempre perdendo.

O jogo.

PETIÇÃO TERRORISTA

Um dia que eu estava quieto
João revelou que me amava.
Incendiei.
Como se um jorro
de napalm me tivesse atingido.
Meu coração, desolada cratera,
vi João. Como uma pluma,
um B-52,
possante, rijo, sobrevoava minhalma.
Fui aos ares.
Desfraldei-me,
a ouvir bandas marciais.
Olhei atento seus olhos,
medi seu porte, senso
e falo:
- João, pense no que diz como se morresse.
A vida eu vejo
como um desdobramento de mortes.
Quero viver todas elas.
Ele me olha, nostálgico.
Seus cílios, arames farpados,
fecham-se comigo dentro.
Eu vejo:
mulheres batendo roupas,
as panelas vazias, um filho
repulsivo no colo,
os cabelo de azinhavre,
os dentes postiços,
a missa aos domingos
e a xepa no final da feira.
- Não, João. Mata-me três vezes,
para lavar tua honra
pois eu te trai - agora,
mesmo antes de dizer
que aceito.

POEMA PARA AS MÃOS DE ANTÔNIO

Essa mão que me segura
pelo pescoço,
me sacode
e me revista,
essa mão eu amo.

Toda vez que vai ao coldre
leva um beijo meu.

Se atira pedras
e arrebenta vidros,
assusta gente, cidades,
eu gozo - ela é minha.

Nas sombras de minhas colchas
desliza atrevida
em partes que eu não permito.

Silencia, vibra, fala
- abarca tudo que vê,
ambiçiosa e chula.

Se peço que pare,
avança - adoro!
Louca, impura, grossa,
entra aonde não deve,
cava, coça, atira e treme,
goza - banha-se
no meu torpor,
vive para acarinhar
meu rosto
e me bater
se grito
quando quer me amar.

NA PENSÃO A FLOR DE MINAS

O rapaz do quarto 14
é rebento, 24 anos,
da tradicional família mineira.
Olhou nos meus olhos
um dia
seu pecado feito carne
e viu meus cílios baterem.
Ele estremece,
foge o olhar - mas fala.
Disse-me que tem muito medo.
Nas noites frias de junho
ele atravessa a sala
e demora-se no banheiro.
Passa pela minha porta,
estou no leito,
mas não vejo, sinto.
O chão de táboas me diz
que ele foi para lá
ou que ele está de volta.
Me olha, estremece, tem medo.
Eu gosto de vê-lo assim
e ele me parece
feliz quando meus cílios batem
e descobre no meu olho
seu pecado feito gente.
Ouço tudo que acontece
dentro dele
no quarto 14.
Sua comunicação é na cama,
quando gira, tosse,
contorce seu medo - ela range,
ele ruge, mas não tem coragem.
Deitado, espero, seu pecado,
batendo os cílios e lembrando
a disciplinar Minas Gerais.
Seu pecado, a vontade, deitado
estou sempre,
esperando que na ida para o banheiro
a cupidez mineira
da família tradicional
permita o medo dele vir
pelo meu quarto
misturar na noite fria de junho
nossas humanidades
no pecado amplo,
fofo,
que deitado estou para isso...

RAÇÃO BALANCEADA

Pudibundo, aparatoso,
o homem togado,
convicto e obeso,
absolve o criminoso
de guerra – patriota,
festejando sua indômita
e voraz bravura.

Tem pressa, tamborila,
a voz, rouca, tange:
- O próximo!
As grades rangem,
Rebanhos pastam, aguardam
a vez.
Vadios, prostitutas,
bichas loucas,
estelionatários
que um camburão despejou lá fora.

Fedem.

O magistrado ri, balofo,
cego e balança a saia.
Protege a nação
da desregulada
e momentosa dissolução
dos costumes.
Grave e generoso,
grasna: - O próximo!
O código bordeja a corja
- a sala cheia, barganha.
Como reza a lei,
a salvo a tradição fica
de famílias quietas
a gerar mundanas, a
desovar foras-da-lei
inéditos e rechonchudos.

PESADELO

Pari chorando
horrivelmente
sonhos impossíveis.
Através o túnel da ilusão
flutuei, boiando no fog
e alcancei, nem mesmo lembro
como
o éter.
Terremoto, uma hecatombe linda.
Pluralista em cores.
Os bancários na rua,
Plaqueando remorsos,
Angústias – inutilmente...
No rol dos ratos
o chefe – Camundongo-Mestre,
liberalizando remessas
para o exterior
do sonho nacional.
Um filme pornográfico
no horário nobre,
um grito ensurdecendo
a gente no subway
e longe, muito longe
na Praia de Iracema
você sob uma palmeira.

VIDA-MEDO

Olho para ele embevecido.
Ânsia voraz de agarrá-lo.
AS BARREIRAS.
Busco seu olhar,
fugindo, fugindo, fugindo.
Nessas horas, persevero.
AS BARREIRAS.
Vou para o outro lado.
Mudo a tática.
Deixo me ver -à luz do sol.
Os olhos, fugindo.
- a chance, fugindo.
Sempre as barreiras, sempre.
É preciso ter consciência
de nossa profunda inutilidade
para suportar o estabelecido.

TEU CORPO

Deitado sobre o teu corpo
esqueço o quanto sou mau,
esqueço o quanto sofri,
esqueço a panela no fogo.

A maciez do teu corpo,
a gramínea, o preto
do pelo, o tecido da pele,
tudo me traz arrepios,
tudo me faz melancólico,
tudo me acende e me apaga.

Anúncio luminoso,
luz de vela,
encrespo-me nos teus braços,
perco-me pelas tuas portas
decoradas e indecorosas
e beijo a tua carcaça.

Teu olho preto, chupo,
longo tempo - tremo,
como se mamãe chegasse
de mansinho e eu pudesse
ver que ela me olha e me quer.
Pálida, quieta, cálida.

Redemoinhas meu cérebro,
e traz aflições ver-te assim,
inerte, frio, sabendo
que ainda há pouco
eras vida
minha
- e agora és morte.
Eternidade que vou aturar
a carregar pela vida inteira
teu féretro.
Morre, Antônio, morre e me esquece!

BALADA PARA MADAME SATÃ

Madame Satã,
acabaram de me contar
que você andou por aqui.
Não forneceram detalhes,
mas eu imagino.

Gostaria de saber de ti:
possuias algum cãozinho,
cativo, para alimentar?
Havia o teu, particular,
que afagavas e, modorrento,
botavas para dormir - cheiroso?...

Sim - madame divina!
eu penso.
Precursora, poderosa,
Lampião do asfalto.
A Lapa tremia contigo,
vibrava, amava contigo,
trepava.

Pelo menos ficou urna certeza:
vão demolir toda a Lapa,
mas teu nome vai ficar,
enorme - suspenso no ar.
Bojudo, grave,
prenhe de emoção e de glória.

Eu agora estou no palco,
Samuai,
que foi o teu viver.
Mas não tenho tua força
de expressão,
a ginga.
Ogum não quis me dar
- ele sabe...
o chapéu de Panamá, a voz,
as noites, o bordel.
Tudo isto era muito teu,
muito nosso.
Gostaria de te cochichar
as últimas que ouvi na Lapa.
O malandro aposentou-se,
Vive agora de welfare state,
a noite agora é outra,
poluída, massiva,
Lasciva, ainda, mas morta.
Levaste um pouco da Lapa,
ou tudo - a Lapa
não é mais aquela.
Trocaram muito de vez,
e a bunda dela agora é kitch,
sucesso, fora de ângulo, démodé
Ficou teu brinco, o charme,
a tônica, a perna no ar,
capoeira e pinga.
As paredes da Lapa, Satã,
são eternas,
e nelas você está definitivamente,
preto, feroz, uma pedra.

PORTARIA INTRUSA

Uma portaria caiu
de súbito
estrondosa
mente
sobre o meu desejo.
Para minha segurança,
vela, pontiaguda, e não
me sacia,
inquieta-me.
Faz renascer em meus
anos
sabores estupefacientes
de noctívagas buscas.
Arregalo os olhos
e vejo o inciso
perpetrando introduções
no meu ser –
insolente, arranhando
minhas paredes retais
em busca do meu centro.

AVISO
AOS NAVEGANTES

HOJE - AQUI - GRÁTIS

FARTA DISTRIBUIÇÃO DE AFAGOS E CARGAS ERÓ-
-TICAS. EXCLUSIVAMENTE PARA OS EXTRAVIADOS
E DESOCUPADOS DESTE BAIRRO. PEDIMOS AOS
NAMORADOS E PESSOAS EQUILIBRADAS ABANDO-
-NAREM O LOCAL

A sessão terá início às 15 horas, com meneio de
cabeça coletivo. Seguir-se-á, a entrega dos brindes
jubilosos.

ATENÇÃO

Como a porção de sentimentos para esta área é limitada, pedimos aos interessados chegarem à hora marcada, a fim de evitar traumas e carências
prematuras de afetividade.

BRINDES - BRINDES - BRINDES

Cafunés com mãos cheirosas de alecrim. Cantos
suaves ao ouvido. Declarações de amor e prazer
pelo contato. Pequeno fluxo de informes alcovitei-
-ros. Mão-na-mão entre demorados passeios. Me-
-lopéias cantadas por jovens virgens negras. Beijos
estalados. Beijos com sussurros. Olho no olho. Pis-
-cações de cílios e golpes de sorte no amor. Afabili-
-dades. Cestos de cortesia. Delicadezas em profusão.

Recomenda-se não abusar para
resguardar-se de enfados

Garantimos: a Polícia não foi convidada e possuí-
-mos esquema de cordão sanitário para mantê-la a
uma distância ponderada.

UNIÃO DAS SOLTEIRONAS DE IRAJÁ




ANGELINO DISTRIBUITORS & CO.
Trata casos de solidão crônica. Faz extração
de dores antigas. Anula recalques. Remove
rusgas amorosas. Elimina angústias. Telefo-
ne: 200.0000

DEUS ESTÁ EM TODA PARTE

Achei Deus na cesta do lixo,
no grito horrendo
e nos estertores da morte,
no pneu firestone do carro
que conduz e mata.
Na luz do sol
e nas sombras perigosas da noite.

Nos olhos avermelhados
de uma lambioia.
Ele hoje está de plantão
com a guarda costeira. Vi-O
no balançar suave da folha
do coqueiro,
no intestino delgado
do famélico,
na palidez do defunto,
na gargalhada estridente
e carente de amor da mundana
- nos céus,
no chão, na fossa
ouvindo Roberto Carlos.

Senta-se onipotente com o vendedor
magricela
oferecendo café
numa viela do Mangue.

Treme, no falo, vibra,
nas entranhas feminís,
no ânus.
Na mão ágil que segura a arma,
está no dedo
que aciona o gatilho
e - atingindo,
está na vítima que cai numa dança bonita.

Está louco, bêbado, trôpego
nos descaminhos da seca - migra.

Inocente sorri
nos cabelos claros da infância,
no pródigo frescor juvenil.

Estampa-se no sensacionalismo
barato e ôco
da manchete de jornal.

Está no fundo do mar -
cata conchas com os mergulhadores,
indonésios.
Na fila do INPS, desespera,
quer brigar.

Está na letra do livro,
viaja no trem da Central
agarrado com um pingente
para evitar os postes.

Viram-nO na Cidade Baixa
vendendo gordos pedaços
de muqueca e tapioca - os dentes
alvos, negro como fuligem.

Na boca do nordestino,
está no dente que falta,
na cusparada, nas rugas.
Em toda parte, Ele, em frenesi,
Aparece,
sem lugar e hora,
desde a nuvem que umedece
o sertão, fustigando a seca,
até à distribuição aérea
de napalm
sobre campôneos na Ásia

Mas agora está cansado, aporrinhado,
terminando este poema.

O MEU MAIOR DESEJO

Tudo, tudo eu te queria dar - um deus
eu queria ser,
para presentear-te o mundo.
Eu me faria então a mais bonita
- o mais doirado corpo de Ipanema:
dengosa, nega danada, pedaço de mau
[caminho,
toda tua, eternamente.
Conversaríamos, então, sofregamente,
acerca do sol e das flores.
Dos gerânios... (Examinaste já
os gerânios? Precisas!...)
E eu te diria, sibilina, que o mar é teu
- o meu presente primeiro.
Depois, ah! depois eu te faria ver:
são todos teus os germes
que lavrando a terra enobrecem
o trabalho do teu braço
generoso e bom que a cultiva.
E só então eu te faria ver
que eu sou também humana
como as outras escondidas
sob a pele bronzeada de Ipanema.
E que terra sou, também, fecunda
e boa para o teu arado.
E que não vês em mim hoje senão
um verme malcriado e arredio,
por ser Lúcia Ninguém,
bêbada e suja, dormitando sob as mil
letras de um jornal,
de uma rua sórdida da Lapa.

AS CRIANÇAS DO MUNDO

Como o orvalho que contém a noite
e a luz primeira da manhã,
sou uma possibilidade, uma promessa.
Para mim tudo é porvir. Tudo!
Tudo em mim e em torno de mim há por ser
[descoberto,
tocado, sentido, amado. Tudo.
Enigma transluzente da aurora,
beleza boreal, luxuosa e frouxa,
a força hidrelétrica dos rios,
o humo da terra. Tudo sou.
Fresco como a manhã cálida,
cheio de viço e de cheiro,
garboso, latente.
Virtualmente lato e frágil, prodigiosamente.
Contenho-me, componho-me, esperando e
[indo.
Sendo a cor luxuriante e louca da selva
e a fragrância inebriante da relva,
o que há de vir e o que está vindo.
Extensão, alcance, alvo,
ponto intermédio entre desejo e ato,
alço vôo, sendo asa.
Lânguida asa de pássaros selvagens,
o seu gorgeio e sua débil configuração.
Rumo, caminho, reta,
desembocam em mim todos os deltas,
as corredeiras todas -
a força do mar.
Todos os homens.
Os brancos e os insípidos e até
os azuis, que nem existem...
De você, sou o fim, que você perdeu,
e o seu recomeço.
Latente está em mim suscetível
a realização - e eu suporto,
de tudo que você não pôde
ou não quis, pois esqueceu.

Agitam-se em mim todos os ódios,
todos os medos e os desassombros,
os recuos todos e a intrepidez.
Força e querer,
poder e vontade,
a conspicuidade desse vir-a-ser.

E eu serei você decuplicado.
Recuperarei suas ânsias e os seus ângulos
extraviados, e
assumirei seus temores.

Por causa do que foi deixado,
em mim zunem mil ferros,
vocalizam em mim as dores contidas
cantam em mim os cantos,
doces e ternos, tristes e envergonhados.

Sou o futuro que você pensava,
o fim da linha que você deixou,
sou o recomeço.

Comigo está a liberdade, que embriaga,
está em mim o medo, que entorpece.
Sou acúmulo do mundo de todos vocês,
de todas as suas guerras e garras,
de todos os mortos.
Trago as cicatrizes todas, as mutilações
e as medalhas.

Assim, ininterrupto e limpo é o meu começo.
Vejo vocês e pergunto - os olhos presos no
[cosmos:
- Deverei mesmo, digam homens,
ser continuação de vocês?


O HETEROSSEXUAL
Elizeu tinha um comportamento francamente heterossexual. Costumava andar com mulheres, e as amava, sempre que oportunidades aparecessem. Não era normal este costume, na época, em sua cidade, mas ninguém jamais atinou em recriminá-lo por tais práticas.
Possuia um pênis normal, e, segundo entrevistas colhidas junto às suas amantes, ele alcançava o orgasmo quatro ou cinco minutos após deitar sobre elas, no intercurso sexual.
Em geral, fumava cigarros de filtro, com gestos estudados, meticulosos, como um homem faz. E pronunciava, ao meio do discurso, incontáveis palavrões, o que dava à sua conversa, um caráter másculo, viril.
Dizem que, no começo, chamou a atenção, no clube, no bar, e na quadra de tênis. Apesar de o mundo estar em paz, totalmente, e da explosão demográfica ter sido controlada há muito tempo, todos se acostumaram com o Elizeu, e ninguém mais o recriminava por esse ostensivo comportamento machista.
Havia associações entre o comportamento viril e a sociedade opressora, do passado, que levou o mundo à Terceira Guerra Mundial. Mas, ninguém supunha - ou mesmo poderia atribuir ao Elizeu, aspirações, ou que belicistas fossem suas pretensões comportamentais.
Apenas certas mães amedrontavam-se com ele, e o evitavam, além de repreender veementemente suas filhas, caso ouvissem falar que alguma delas simpatizara, mesmo em sonho, com o rapaz.
No mais, em meio à turma da escola, composta por homossexuais, passivos e ativos, Elizeu nunca arranjou intrigas. Costu-mava ser delicado com todos eles, ainda que nunca tivesse manifestado o mínimo interesse em andar com qualquer um.
Era sabido por todos, a atenção desmedida que os meninos de sua escola lhe dispensavam. Mas, hábil, educado, Elizeu a todos despistava, desconversava, evitando maiores aproximações.
Pelo que se sabe, apenas um, de todos os rapazes da escola, conseguira algo dele: um beijo, no rosto, no dia em que todos comemoraram o seu aniversário. Desde esse dia, no entanto, Elizeu se descontrolava, visivelmente, quando João Belizário, o felizardo do beijo, se aproximava ou estava por perto.
Um rapaz bem estranho, o Elizeu, mas muito benquisto.
Ameaça à paz e à prosperidade, para uns - espécime arqueológica, de um passado belicoso e esquecido da humanidade, para outros.


VIDA LATINA
A cidade adormece
entorpecida, semi-morta,
mas as chaminés não descansam.

Tufos de fuligem
encobrem meu sexo
e há uma criança sem futuro assaltando
uma velha operária.

Ai, América,
como tua voz está sumida!
Tomo algumas frutas nos pomares e vejo
teus contornos industriais.

A seiva, teu sangue,
desencadeiam violências diuturnas.

No entanto, sei da dor
que trazes no peito.

Serão precisos séculos
para teus homens virem a mim
anunciar que é chegada a hora?
Hoje há outro putsch ao meio dia
e a gente nem sabe que roupa usar.

O fardamento está roto
de tantas revoluções
mas o beijo da vitória
há de ser dado
na boca do homem
que chegar primeiro e arrebatar
o cetro.
Como eu amo este teu descontrole,
bêbada América!

A FERRUGEM QUE EXISTE EM NÓS

Homens e mulheres desta parte
do universo
estamos no mesmo barco,
sob a mira do ódio.
Pode ser para amanhã,
para hoje, para agora,
fiquemos alertas.
Eriça meus pelos a coberta
e teu beijo me sufoca.
Tanto amor será inútil?

Esta ferrugem que existe em nós
só matará os covardes.

A cada criança que nasce
meu coração se convence
da salvação irreversível.

Sacudam este meu mundo,
crianças! Atraiam-me!
Eu quero estar com vocês.

SOBRE O AUTOR – Paulo Augusto da Silva nasceu em Pau dos Ferros, Alto Oeste do Rio Grande do Norte, aos 3 de agosto de 1950. Formado em Jornalismo pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), em 1976 trabalhou nos jornais O Fluminense (Niterói/RJ), Última Hora (RJ), Diário do Grande ABC (Santo André/SP), Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e Diário Comércio & Indústria (São Paulo/SP).

De volta ao RN, a partir de 1982, trabalhou nos jornais Diário de Natal, Tribuna do Norte e Jornal de Natal. Ex-editor do suplemento cultural Encartes, do Jornal de Natal (1995/1998), onde assinou as colunas “Balão de Ensaio” e “MidiAtica”. Assina, no mesmo suplemento, a coluna “Antena XXI” e a página cultural “Sacadas do Potengi e Refoles”.

É assessor de imprensa da Secretaria da Saúde Pública e editor do jornal Onda Alternativa, de distribuição dirigida na Zona Sul de Natal. Colaborador em jornais alternativos de distribuição gratuita, em Natal.

 Seu  único livro FALO hoje está  famoso, foi tema de uma dissertação de mestrado, citado em antologias etc.


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