quinta-feira, 23 de abril de 2009

MARIA AZENHA






(óleo de maria azenha)


nossa senhora de burka


rogel samuel


Ela escreveu NOSSA SENHORA DE BURKA (Coimbra: Alma Azul, 2002). Ela é Maria Azenha. Escreveu um livro de elegias que enquadram, que descrevem nosso mundo, a realidade pós-11-de-setembro. Uma edição primorosa, papel especial, pesado. Livro bonito. É um dos mais impressionantes textos sobre esta história recente, presente. Azenha mostra o rosto "coberto de sangue e de feridas". Sua primeira parte se chama "Da guerra" e trata do horror das novas guerras de nosso tempo ("este é um tempo de terror"), da nossa hipocrisia ("um tempo de máscaras"), época de partida, tema português ("os navios partiram / nunca mais regressaram"), ou seja: "hoje / ao som de guerras / os homens / esfomeados". Porque, diz Azenha: "eis como tudo entra de súbito no mundo / e um certo país é de repente um sino / tudo começou subitamente naquele segundo / igual e tão terrível à morte de tanta gente / ainda com a luz e os escombros de raiz / naquele dia terrível como a espada do vento".

Raras vezes se encontra poeta tão radicalmente engajado na Terra, para desenterrar esta palavra gasta, como noticiário do Terror, isto é, do horror da nova política de guerra que grandes e poderosas nações "desenvolvidas" da "civilização" movem agora contra povos miseráveis, mulheres veladas, religiões negadas, crenças consideradas exóticas. Perpassa ali o vento quente do deserto, naquelas 57 páginas ("pássaros mortos / um dia apodrecem").

Ela nasceu em Coimbra, licenciou-se em Coimbra, na Universidade de Coimbra, em Ciências Matemáticas. Publicou cerca de 10 livros. Foi professora nas Universidades de Coimbra, Évora e Lisboa. Mas logo optou pela Arte. Hoje é professora de numa escola de ensino artístico de Lisboa. É Doutora. É Pintora.

Azenha se mostra um poeta que questiona o pensamento do mundo. Pensar o mundo, em poesia,deve ter-se porte grandioso que ela realmente tem. Dá conta, ela, transforma a tragédia histórica contemporânea em pura poesia ("américa nas tuas mãos ficou o sinal da cruz / o terrorismo entrou / e em alguns livros também").



Tecer melhor quem poderia aquele cenário da brutalidade mundial, da barbárie atual? "agora o pequeno barulho da guerra / é tão natural / como este poema que fiz".



eis como tudo chegou

eis o que não chega ao fim



No seu livro ouvimos o grito surdo, o agudo grito das mulheres do Afeganistão, mulheres de burca. O grito entre bombas. Nos seus versos a doutrina nova das armas, Azenha tripula, expõe a nudez da guerra contemporânea, com maestria e simplicidade, como contasse de um tempo remoto, o tempo nosso.



Em livro anterior, escreveu: AS VEIAS DO ESPAÇO



digo o voo das aves

essas veias levíssimas do espaço

as suas sílabas subitamente sentadas

em cadeiras voláteis

digo essas delicadas naves

que navegam por metáforas matemáticas



as suas figuras de números tranquilos

os seus modos de penetrar o espaço

as suas danças de átomos

os seus múltiplos resíduos

em silenciosos halos de naufrágios



digo as suas galáxias de luz e números





***



A segunda parte de NOSSA SENHORA DE BURKA se intitula: "Da morte": "guardo a minha vida em livros de poemas / poemas que vou soletrando devagar / escritos em toalhas de sangue / indefesos às chuvas matinais, / é nos livros que vou negando / o vazio das grandes ausências, / sobre a morte nada direi. / é inverno frio. estou à porta".

Dia virá em que Maria Azenha será lembrada como a grande autora da poética da alma de nossa época, porque "o meu destino é este o preço / é escrever. porque eu meço / os mistérios da morte e do mundo. / guardo a minha parca bagagem / sem poderes a minha caligrafia / de medos e de campas dentro / do sangue dos pomares / e o teu nome que escrevo / contra o tédio dos livros, mãe".

Abrindo o pórtico do corpo, do seio, ela diz: "sobre o meu corpo cresce uma rosa", que é a cicatriz no corpo da geografia do mundo em chamas e em dores.

Ou, como diz Azenha: "a europa é a minha casa / por isso posso chorar muito / estou triste muito triste / não estou triste estou triste / sinceramente não estava à espera disto / quem tem a culpa toda sou eu / fui eu quem fez esta embrulhada / em vez de ouvir a empregada dizer / temos que ser uns para os outros / devia era ter continuado a escrever / poemas de amor / poemas de amor"





poemas

poemas



poemas

que foi sempre o que escrevi



agora percebo o que é o terrorismo

agora percebo

estou triste estou muito triste



tenho o corpo podre de pax





Eis um livro raro, bom como poucos. Nos dois lados, como num disco, ou moeda: o lado A é da guerra, o lado B é da morte. Livro já consagrado. Já clássico.






azenha


meninos do medo meninos sem linguagem



ninguém sabe que os gritos
libertam pérolas de um cativeiro
uma cidade de fogo esplendorosa
caindo a pique
uma infância à porta dos grandes gelos
um nome de inverno com dragões negros
uma palavra acesa nos lábios dos mendigos.

escrevem uma vontade
um navio carregado com os últimos carvões
o vento
a noite
o mar acordado
um pedaço de poesia azul forte. o tempo
acabará por dissolvê-los.

é um grito que gravo nas paredes do meu quarto
um grito de sílabas compactas
procura ainda o fogo
um horror que queima a página.

sopra um vento gelado
um vento insistente
um vento que procura alguém
meninos de pânico do medo
meninos sem linguagem

cantam.
cantam a música que envenena o sangue.

2004,dezembro,25,lisboa




flores afogadas em campas




o sangue excede a exactidão das rosas
mais de sessenta mil. ouro e pranto.
meu coração e eu
de água discreta. deles
florirão pedras,
mais de sessenta mil.

o tempo
dos números astronómicos.




maria azenha
2005,dezembro,29,lisboa



--------------------------------------------------------------------------------

novo canto

uma ave passa.
e começa um canto leve de ar e plumas
verga os seus ramos de ouro
estendendo-se por campos de ar e branco lume.
as estrelas profundamente estremecem
na tua boca
aniquilam-se uma a uma

é um campo cercado de água e pérolas
ardendo entre as folhas levíssimas
dos livros da chuva,
é o teu nome que começa.

o teu nome de inverno
coroado de águas e silêncio:
um nome colocado num tempo
de eternos números

é um nome nu.


degrau a degrau
subo as páginas do fogo
a escadaria das palavras que nascem do teu corpo

a meu lado
o sangue fervendo na combustão
das frias águas
do
mundo



maria azenha

2005,Janeiro,2,lisboa



PRESENÇA TOTAL

Minha mão é o mar em movimento.
O puro movimento
Sem mar sem mão
Adere ao infinito como adere ao oiro
Ao hálito do sopro
Ao côncavo da respiração

Neste instante,
Suponho,
Há um deus que escreve na glande da minha mão.


A TUA BOCA SOBRE MARTE
mãe — é dezembro
se morreste, porque fazes
tanta força contra os números?
porque fazes tanta força
na matéria?
as máquinas levaram tudo
— a tabuada a lua.
a febre dos satélites entrou pela casa dentro. Ouves?
sentes?... todos os frutos
ao contrário na tabua
da da neve.
e a tua boca sobre
marte. e eu sonhando.
sonhando o alfabeto como uma 'máquina lírica'.
sei agora ao contrário
como se chama o inverno. e as árvores
todas destelhadas pelos ventos
de mercúrio. Ë o teu nome dentro
com toda a força na paisagem:
as páginas as
casas
os peixes encarnados avançando
pelos números.
e a chuva toda lá fora ardendo,
pesada,
sobre a terra inteira como estátuas puras.
como se chama, mãe, a neve agora?
agora, mãe,
é janeiro
todo o tempo fora:
— as máquinas levaram tudo,
a tabuada a lua.


DESEJO DE INFINITO

e era uma vez um homem:
o peito muito aberto um grito
o desejo de Infinito
que para dizer tudo
ainda jovem
andou de um lado para outro
num rio negro e áspero de amargura

e como um grande mago rumo aos altos montes
escalou o Evereste
num grande passo cirúrgico

deitou no chão o quadro
atirou-o violentamente contra a Terra
abriu-lhe o ventre aos gritos
e como um grande louco
fechado em lucidez aos berros
pôde enfim serenamente
pintar
de
madrugada

a côr

do Infinito




(Leyla uma jovem iraniana dezanove anos
várias vezes negociada é condenada
à morte pelo tribunal de Arak decidindo
lapidá-la )
há um barco negro no teu corpo
neste mundo sombrio que escurece os dias
o vento leva-me contigo para longe
ouço a tua voz encostada aos meus ouvidos
é uma lâmina de febre uma sombra que cresce
pela baínha dos meus vestidos
não me conheces todavia estás tão perto
dás a volta ao mundo num presépio
com inúmeros espinhos uma ligadura infinita
uma extensa carta feita de pó do deserto

mais além o coração com golpes os destroços
os teus pequenos braços soterrados no vazio
por um punhado de moedas que te vendiam
tanto desgosto tanta solidão Leyla
és tu que estás no centro do presépio
este natal

tu nós e o teu filho



maria azenha
2004,dezembro,23,lisboa












ERA UMA VEZ UM CÃO DE NOME NÃO



era uma vez um cão que não existia
e por não existir chamava-se Não. Sim
que era o contrário dele no nome e no sexo
era uma espécie de branca de neve
que procurava o seu príncipe encantado
então um dia o seu eu superior
ofereceu-se para lhe mostrar
o que havia de fazer para o encontrar
disse-lhe: andarás sete vezes à volta
de uma árvore e farás chichi nela
a seguir repetirás: “quero encontrar-me contigo
estejas onde não estiveres”
levarás então um anel de brilhantes comigo
para lhe oferecer
e quando disseres I love you
I love you
ele responderá para o Bem e para o Mal: Não
porque esse é o seu nome verdadeiro

a branca de neve ficara muito feliz
e ainda inspirada pelo tal eu superior
fazendo pela oitava vez chichi
na árvore da vida disse voltando-se para o céu:
este é mesmo um encontro perfeito
um verdadeiro ritual

então o príncipe encantado
que se chamava Não
e que estava mesmo encantado
não disse sim e não pôde dizer não
voltou tudo ao princípio
a branca de neve traçou novamente uma circunferência
completa mas agora com o centro
no espírito santo virtual

foi assim que não nasceram
os seis cachorrinhos do costume
a branca de neve foi julgada em tribunal
por ter abortado
por se ter apaixonado e por ter dito Sim
mas era o seu nome
aqui em portugal

se tivesse nascido em espanha
hoje o seu príncipe encantado
que se chamava Não passaria
se calhar a chamar-se Azenerres
existiria para sempre na eternidade
ficaria a legislar sobre o aborto
na união europeia


HÁ PESSOAS SENSÍVEIS QUE NÃO COMEM CHERNE
(e a minha cabeça pende ligeiramente para o lado )






há pessoas sensíveis que não comem cherne

há chernes sensíveis que comem pessoas

um destes dias um cherne

comeu o antigo primeiro ministro

por causa das dívidas lá se foram as dúvidas

como diria o cesariny agora adaptado

peixes que nos guiam parecem reais

fiquei a saber que é este o nome

que lhe dão na intimidade

e também pelo segredo

que já não é segredo

que se deixam vender

esquerda direita

direita esquerda

direita direita

volver



por acaso o meu gato não gosta de cherne

nem de estradas

nem do demónio

coisas de gatos

que não lambem o pêlo a ninguém

ora ora se deus não tem unidade

como a terá o meu gato?



tudo isto tem a ver afinal

com um peixe que nadou tanto

que chegou a cherne

em portugal


cabul é um sítio triste
triste
triste

como um círio de prata
uma toalha preta
um lenço
branco
em
flor

meu coração
minha
língua
de
fogo

neve
ne-
ve

neve
e
bolor



Creio em Deus
na sua Imensidade Re- Velada
na sua Obra desconhecida
creio pela Ordem e pelo movimento do Ser
que todo o Bem é Beleza
e toda a Beleza é Bem

Creio que toda a Sabedoria e Verdade
são frutos da Árvore do alfa e do ómega.

Ó Senhor-Rei!
teu Nome incomensurável
que
não se pronuncia
Yod
He
Waw
He
Senhor de toda a Casa,
Yod
He
Waw
He
e de toda a Arquitectura,
Yod
He
Waw
He
minha alma é escada
minha alma é neve
na
partitura do Ámen.


Ó grande Mago!,
Perfeita inteligência
Supremo arcano,
Artista-Sábio
da Mater-Filosofia!,

Tu que trazes o Livro da Natureza
na página invisível do Infinito,
Teu nome é Rei,
Teu Nome é pão,
Hierofante- pétala do Movimento!.

Grande Iniciador e Iniciado
na substãncia do Mundo!




Pela Vontade suprema
Sabes
Queres

Ousas
e
Calas.

Teu Nome Inúmero
é
Rio do Absoluto!

Revela-nos a Grande Jerusalém!,
ó Santo,
ó In-Re-Velado,
ó Ideal supremo da Humanidade!

Revela-nos em todo o lado,
em Portugal
também,

Cálice do Rei,

a
Arte do Meio,

a

Arte Real !



SOBRE A MORTE





guardo a minha vida em livros de poemas
poemas que vou soletrando devagar
escritos em toalhas de sangue
indefesos às chuvas matinais,
é nos livros que vou negando
o vazio das grandes ausências,
sobre a morte nada direi.
é inverno frio. estou à porta.
o meu destino é este o preço
é escrever. porque eu meço
os mistérios da morte e do mundo.
guardo a minha parca bagagem
sem poderes a minha caligrafia
de medos e de campas dentro
do sangue dos pomares
e o teu nome que escrevo
contra o tédio dos livros, mãe.


sobre o meu corpo cresce uma rosa





(maria azenha)
1/2/2002

OVO NUCLEAR
este reencontro com o Silêncio
na procura de mim mesma
esta busca de Paz em cada ave
em cada movimento
como uma janela entreaberta

este centro que
evolui com a paisagem

esta Viagem ao país do meu rosto
a minha janela fotográfica
este cigarro que acendo
e
que procura
o
Ovo


PRESENÇA TOTAL

Minha mão é o mar em movimento.
O puro movimento
Sem mar sem mão
Adere ao infinito como adere ao oiro
Ao hálito do sopro
Ao côncavo da respiração

Neste instante,
Suponho,
Há um deus que escreve na glande da minha mão.


DESEJO DE INFINITO

e era uma vez um homem:
o peito muito aberto um grito
o desejo de Infinito
que para dizer tudo
ainda jovem
andou de um lado para outro
num rio negro e áspero de amargura

e como um grande mago rumo aos altos montes
escalou o Evereste
num grande passo cirúrgico

deitou no chão o quadro
atirou-o violentamente contra a Terra
abriu-lhe o ventre aos gritos
e como um grande louco
fechado em lucidez aos berros
pôde enfim serenamente
pintar
de
madrugada

a côr

do Infinito


COROAÇÃO







não sei como os poemas se fazem
nem os nomes das pedras nem dos ventos
nem como se transformam os amantes
dentro dos corais
sei que o teu sono breve e permanente
se fragmentou no tempo
como um luminoso rei
entregou-te a Morte os símbolos
que atordoam: o ceptro e a coroa
deles não te falarei
eu estava morta e não sabia



--------------------------------------------------------------------------------



MORTE - I

(AO SOLDADO MORTO)




o soldado morto
mais morto ao fim da tarde
ali no meio da praça
ali exposto
ali em estátua
ali colado ao vento
no seu posto
de espingarda ao ombro

desprende-se do seu rosto
uma lágrima de chuva
e
neve

morto.
absolutamente morto.
totalmente ausente.

ao longe uma ave leve

(maria azenha)
1/2/2002



--------------------------------------------------------------------------------

MORTE II






escrevo agora
escrevo agora
escrevo sempre para ti
porque amanhã
a neve
é o nosso novo nome
e permanente
endereço

(maria azenha)
1/2/2002



--------------------------------------------------------------------------------

MORTE III



nenhum país de lume
nenhum país de neve
nenhuma serra ali

a tua ausência é tão funda
que
não regressa a ti



(maria azenha)
1/2/2002




A DOIDA



Vai sozinha sentar-se frente ao mar

O seu corpo é uma Tarde, o pensá-la triste,

Sentidos de Sol-posto onde Deus está a chorar...

Sua mãe uma nau velha que já não existe

Endoideceu... Vejo-a passar... Parada, a passear...

Ao colo traz a filha que nunca adormeceu

Porque sumiu...e ela cheia de medos

Escondendo os dedos no luar

Deixou cair a filha ao mar...



Ninguém responde... Ninguém a viu...

Das fontes do jardim fugiu...

Cheia de sentidos pôs-se a chorar... Enlouqueceu...

Vê, com os seus modos, gestos de mendigos

Que mendigam um Palácio Confidente

Os beijos de uma rainha sempre Ausente...



E beija as mãos das árvores que cairam ao lago

Com modos antigos de Ser... Os seus gritos

São Cavaleiros com anéis nos dedos...

E na Ausência das velas na Distância

A Loucura é o seu pensar...Num tear de Eus...



É onde à Noite se ajoelha para partir espelhos...

São seus versos malignos a quebrar vidros...

Um Silêncio penitente, a olhá-los Deus



O seu modo de se ver em mim ao Espelho...






--------------------------------------------------------------------------------





ESTE POEMA COMEÇA COM O SILÊNCIO





este poema começa com o Silêncio

podia também começar com uma luva branca

dobrada sobre uma cama azul a esta hora

em que uma criança acaba de nascer

e a loucura é o seu nome múltiplo

o seu espelho inúmero



pétala a pétala a luz beijar-lhe-á os olhos

subirá pelas mãos no espaço de um segundo

enquanto do Silêncio restará apenas

uma pedra azul uma pedra enorme

do deserto

no centro dos seus olhos



choverá no entanto no oceano a esta hora

em que cairão lágrimas como peixes azuis

no fundo da Terra o seu nome empurra-as

para diante dançam aquaticamente

contra o grande uivo certos gritos certos gritos

são como recortes cintilantes dum jornal

que atravessam as trevas do papel

uma coroa de espinhos à volta das letras

com a sua loucura azul



esta criança passa para diante do futuro

distribuindo alimentos às portas do mundo

e os grandes nunca a receberão

apenas pelo nome que transporta

como uma lâmpada gigante

saberão que o seu nome é loucura



e tu e tu e tu também

se ainda podes ouvir o nome dela

na distância de ti no meio do turbilhão

levanta-a no centro da tua cabeça

leva-a a todas as partes da Terra

pois os grandes e os poderosos escondê-la-ão

que passam a vida cantando o vil metal

com letras imundas num pedestal



fomos nós que a gerámos ao pé de cada árvore

que ainda resta com a lua e o sol

como pode haver pecado na criação

todos nós os puros e os impuros



este poema que começou com o Silêncio

começa agora aqui se ainda podes ouvir

com os sons dos búzios da tua infância

tu e eu eu e tu

arrastamo-la para sempre

para o centro do mundo

de coração

a

coração








impossível saber-se até onde chegará este canto



mas eu contei-lhes esta história

que é uma história de um homem e de um peixe

porque há pessoas sensíveis

que não comem cherne

e chernes especiais dispostos a andar velozmente para trás

e o cherne que lhes contei

tem na boca um f e uma mosca verde


(maria azenha)


jazz cósmico
MARIA AZENHA
O Primeiro Poema



No princípio era o Som
E o Som formava todas as coisas
Todas as coisas mesmo antes de existirem
Não havia espaço nem tempo
Nem Sol nem anjos
Tudo era Noite
Permanecia o Um
E a palavra Amor era Som
E a luz era Som
E o Som era a única palavra que existia
E com ele Rá já se movia
Desceu então por ela mesma

Fez-se Dia o Poema


O sétimo dia






Quando tudo era Noite
Quando a Realidade era Som
Habitava o sonho o mistério
Para lá da Unidade cantante
E já o cosmos reverberava
Numa saudade sonora
E o cosmos criou-se cantando
E a dança celeste tomou os orbes
E o sétimo dia se formou




Eis o Oitavo dia

(E no sétimo dia Deus descansou
mas o Canto continua)






As palavras cantam
As palavras antes e depois de existirem
cantam
O meu sonho é a sombra de um átomo que canta

As árvores e os seres sob a forma de yang
apelam para a dialéctica celeste
Eis que yang e yin se desdobram
no espelho do Universo
e criam no triângulo cantante
a forma eterna
de
Deus


Eis o Oitavo dia




Eu sou senão Tu senão não sou


( Mas sua existência está fundada numa realidade, a substância-raiz de Binah, distinta e separada do aspecto consciência de Chocmah.)








Sou o Amor que canta
desde a 1ª revolução celeste
O Pai - Anjo é o meu som Yang
que apela pela Mãe - Yin
na câmara nupcial

E todas as coisas dançam
mediante
a melodia secreta
de
Chocmah e Binah
dois coros dois anjos
dois tronos
mediante o Um Real.


É isso o que cada um é.

E cada um é senão este diálogo
porque todo o ser é Som
e o Silêncio
também é Som
que nos vem deste Jazz cósmico





Na Câmara Verbal do Um




Cada poema é uma onda sonora
que se acende no Cosmos
O poema é diálogo digo
as suas ondas percorrem a música calada
da Saudade sonora
E o firmamento segreda
a cada instante
esse diálogo celeste







Dialéctica








Sou senão Tu ou não sou nada
Com o eu sou Tu na câmara verbal
do
Um




EM ABRIL DILACERADO





em abril dilacerado
era uma vez uma voz
que habitava uma casa
e dentro desta casa
habitava uma menina sem voz
e dentro da menina
uma cidade sem janelas
e dentro da cidade
uma guitarra enorme

era um país sem asas
um país sem norte
um país sem casas
um país sem voz

e tudo o que nos mata
a palavra cobre
e tudo o que nos move
a palavra ata

e todos os jardins
foram arrancados
por causa da memória
deste país tão pobre

era um país sem asas
um país sem norte
um país sem casas
um país sem voz

e as lágrimas da menina
engoliram a cidade
em abril dilacerado
com arames em volta



maria azenha
2003, março, 13, lisboa



IN MEMORIAM

(porque voaste dum 7º andar com o luar nas costas?)

sei que alguns meses nos separam
as pedras lá em baixo cantam
as árvores crescem com raízes nos ouvidos
não vieste nos jornais,
discreta como sempre ,
ó menina dos olhos pretos,

a tua ânsia de rigor e perfeição
era uma borboleta branca de asas ao Sol
uma chama caiu e incendiou a terra

andarás por aí ,
continuamente em ângulos rectos?


grito da janela até espantar as estrelas
faço gestos no café até ultrapassar a lua
permaneço sentada até que o telefone toque

... ... ... ... ...
está lá? está lá?
serás tu?
ó senhora da meia- noite
do telefone-verde!

agora com outra voz
com outro disfarce
serás mesmo tu?
ou é um novo modo de chamar por nós?

está lá? está lá?
boa noite.
Boa noite?
....................................................
Só o Amor ressuscita os mortos.




AS FLORES DO MAL
Maria Azenha



pelas montanhas oblíquas
desenham as mulheres
o rosto com os dedos
rostos sempre tapados
para o terror dos vivos
não sei se elas se mostram
o que ao mundo querem dizer
freiras absurdas do vento e do medo
murmuram: “irmão, não deves rir”
não sei se elas se mostram
não sei se elas vão ser
não sei se elas agora choram
se cantam um burburinho forte
ou se são fadas com gemidos
sempre sempre sempre a dormir

não sei se elas são estátuas
não sei se são de vidro
se podem cantando chorar
pelos filhos e pelo marido

que grito hão-de dizer?
que grito hão-de soltar
se no exílio têm ficado
cansadas de morrer?

e o vento sopra
há poeira no deserto
sobre as montanhas oblíquas
afinal quem muito sofre
é quem nunca diz sofrer

de que serve tudo isto
de que serve isto tudo
com este véu sinistro?
quem foi que as viu nascer?

pássaros mortos.
um dia apodrecem.

e alá expõe a sua terrível máscara
repleta de sangue e horror



HYNO A MAAT
(para ser dito em voz alta com vogais abertas e aspiradas)




Num ponto de Ra

Maat Hotep

Eu te saúdo

Amen Hotep

Nas três pétalas da Rosa Eterna

Em torno de Ankh!



Ahum Rah Maaah Ahum Rah

Ahum Ra Ahum Ra

Maat Hotep



Teu ser alado

anela

em torno de Ra,

Infinito Bem

projectado

pelo coração-chave de Ankh!



Maat Hotep

Maat Hotep







Teu Fogo

anela

em todos os Planos

vivificantes,

pela espiral

de

Rah!







Maat Hotep

Maat Hotep







Oh Serpente,

Oh Chave que abre a Eternidade!,

Tuas raízes

na Terra

dançam pela coluna de Ankh

para

o

Ponto

Central

Diamante!



Maat Hotep

Maat Hotep







Teus véus são lançados

para quem

é impuro para Ra



Maat Hotep

Maat Hotep





Men Kheper Ra

Men Kheper

Ra



Amen

Amen
A




MINHA ETERNA AMANTE




agora estou cercada de papéis
vários óleos pendurados na parede
alguns dos quais fui eu quem os pintei
fecho e abro as asas quando escrevo
aguardo que as palavras se tornem
em mais de mil sons
digo abertamente o nada
no tic-tac das palavras
até que tudo se revele
até que tudo se resolva
em vários comprimidos para a morte
como um seio que jorra leite à flor da pele

lá anotarei onde fica a mágoa
as ruas mágicas do sangue
que venho do sonho dos espelhos
das imagens da grande transfusão
do sono a minha sede de oceano

eis-me fotografando o sal
das ondas e das lágrimas
como o infinito
viajo com marlilyn monroe
a minha eterna amante


TEATRO DA MORTE




é com o Outono que se despem as árvores
e a Terra vai tomando outro corpo
enquanto não chega o Inverno
o teu amor esconde-se nas pedras
ou antes colho no jardim uma flor
que enterro no solitário do quarto
é assim que o amor se esconde
não me desculpo
de quando em quando respondo-te
com palavras deixadas ao descuido
hoje passeei toda a noite pela casa
com a precaução de não te acordar
estive nos bastidores do mundo
com os actores e o público
aterrorizei-me
eu estava contigo em moscovo
vi-te no apocalipse deste livro
estendido entre fantasmas
atravessando os espaços com máscaras
único repartido pelos átomos
em diferentes estados
na matéria eu e tu e outra vez tu
e os outros e os outros
todos no mesmo teatro do sono

que farei com os teus braços
assim deitado entre poltronas
morto todo morto imaculado
como um poeta no seu último verso
e eu sem poder falar para toda a Terra
digo-te estou desiludida
desiludiram-me os actores








por via satélite entrou no nosso quarto
o enorme teatro de moscovo
sirenes buzinas o sangue corria
é assim que vai o mundo
com as novas experiências do sono
só agora falo com o plural de nós
a tua morte a minha e a de centenas
desiludiram-me todos
sempre me disseste o contrário
que os relógios nunca existiram
e que a Terra era um campo verde de paz
quando me abraçavas colocavas-me
uma coroa de rosas à volta dos olhos
e o teu amor infinito espetava-me as pálpebras
e eu via pássaros agora o sei
que farei?
privada de ti e de mim até ao absoluto
o caminho é um limite insuportável
porque morri? porque morreste?
porque morreram todos?
Putin engoliu o nosso amor por via satélite
sento-me de frente e de lado
e as ruas são longos corredores do sono
só a flor no solitário permanece
assim deitado entre as pedras amor
tornaste-te invisível
como pois falarei para toda a Terra

sobre a poeira que te cobre agora o rosto
deixo-te o meu cartão permanente de visita

eis-me


25 outubro 2002
(maria azenha)







ABRIL ,




sempre me disseste
que os relógios nunca existiram
e que a Terra era um campo verde de paz
o teu amor então abria-me os olhos
e eu via pássaros e árvores no infinito
com as flores azuis da Liberdade



--------------------------------------------------------------------------------

ATÉ AO MEIO DO DESERTO ESCREVO ATÉ



até ao meio do deserto escrevo até
de parménides a horácio de horácio até aqui
para chegar ao templo dos desastres e poeiras
em suas cidades de comércios actuais
e seus oráculos antigos em delfos

e dizer o amontoado monte dos sinais
onde os bárbaros crescem nas estradas
com suas máquinas de selva
programadas

e aqui chegam aqui chegam
fiéis à mala de bruxelas
ou à antiga c.e.e.

procura-se urgentemente em portugal
a flor da liberdade
ou
um pássaro de abril



--------------------------------------------------------------------------------


maria azenha
2003,março,13,lisboa

vejo-te agora no apocalipse deste livro
neste poema de uma página
todo este teatro maldito
sirenes buzinas iorque
jardins mandados arrancar
aos ombros da europa
por este abril dentro
com palavras ainda por cantar

agora privada de ti o caminho
é um limite insuportável
e as ruas são cidades destruídas
atravessamos a noite descalços numa cela
onde os sinais dos tempos nos apunhalam
e chegam poetas e homens de mãos-dadas
que choram ombro a ombro





maria azenha
2003, março, 13, lisboa


CHORO CHORO CHORO



sou mulher e anti-mulher
deus quer
o homem sonha com uma colher na boca
o amor é uma metáfora

sem colher e anti-colher
deus não quer
há fome
estou atada de mãos e pés


sem anti-mundo
anti-mulher
anti-colher
não há deus


choro
choro
choro

o meu cão morreu




CANTO PARA TODOS OS HOMENS

Canto uma canção.
Canto a canção do homem livre.
Canto os seus sonhos e pesadelos.
Canto o irmão branco
e o irmão negro.
Canto o Oceano e o longo
poema do mar.
Canto e fortaleço-me no azul.
Canto ouvindo cantar.

Esta é a canção do homem livre.
E ninguém ousa calar-me.
Quantos mais quererão cantar comigo?
Quantos mais?
Mandai-me todos esses homens e mulheres
Que não têm abrigo,
e eu os cantarei.
Aqui nos portões do meu coração ferido
tenho muitas canções para os abrigar.
Ouçam,
eu só vim para cantar.
Outros que se ocupem de outras coisas.
Há muito trabalho em todos os lugares...
Não somos porventura mais que meia dúzia?
O meu nome dizem os rapazes
das montanhas
alcança a outra margem.
Vou a casa dos mendigos.
Eu sempre os cantarei.

Já disse.
Eu vim para cantar.
Outra coisa não sei fazer.
Cada som que sai de uma canção minha
vai a muitas milhas em redor.
Vai a todos os pontos cardeais.
Vai a casa dos poderosos,
e a casa dos humildes.
Entra pela janela dos humilhados,
canta pelos oprimidos.
Canta sempre em dó maior.

Já disse.
Eu só vim para cantar.
Outra coisa não sei fazer.
E cada um habitará a canção a seu modo.
Mas por nada deste mundo
peço perdão pelo que já fiz.

Eu canto para todos os homens
uma canção livre.

OVO NUCLEAR
este reencontro com o Silêncio
na procura de mim mesma
esta busca de Paz em cada ave
em cada movimento
como uma janela entreaberta

este centro que
evolui com a paisagem

esta Viagem ao país do meu rosto
a minha janela fotográfica
este cigarro que acendo
e
que procura
o
Ovo

PRESENÇA TOTAL

Minha mão é o mar em movimento.
O puro movimento
Sem mar sem mão
Adere ao infinito como adere ao oiro
Ao hálito do sopro
Ao côncavo da respiração

Neste instante,
Suponho,
Há um deus que escreve na glande da minha mão.


MAMÃ! MAMÃ FEDERAL!
mamã:
o meu corpo caiu na pia baptismal. Foi um percalço.
recebi a tua bênção com os óleos santos
em algodão de rama.
Mas que faço agora eu neste bordel das lágrimas,
com tantas orlas com tantos véus,
a fabricar poemas nas morgues do Céu?
Que faço agora eu artesã do sangue
com a minha mão profana que ficou grávida?
E a minha mão direita é ainda uma têmpora
num país distante com lágrimas de sal
mamã!:
envia um telegrama a todos os jornais, anuncia
com o meu coração em febre,
com todos os meus punhos cerrados como que a rezar,
que eu fumo cambodja, liamba,
hiroxima, armas nucleares,
que rendilho a ferros todos os meus cárceres
com as palavras brancas do medo
que saltam dos meus olhos.
Eu roubei a todos os arcanjos as palavras do ódio!
eu fumo cachimbos, goelas de bairros, narcóticos, drugstores democráticos; mato vinte e sete pessoas por cada prato faço massacres na américa central cravo balas nos vestidos amarelos das crianças estrangulo o tempo com o sexo dos eléctricos ilumino as fezes com feiuras sacro-santas faço ícones com toda esta tristeza humana.
mamã,
eu rasgo «cânceres» de papel, trabalho as sombras
com as lágrimas de plástico,
mexo na história com cadáveres brancos
estendo os meus braços em tecnicolor
como numa tela circular humana.
mamã,
eu encolho os ombros, espirro,
bebo cafés evangélicos, grito com os filhos.
mamã, vivemos juntos!, isto é o meu mau génio.
ah, mas o Vaticano,
esse grande gangster de robe,
que anuncia
a paz para os domingos, essa pia
baptismal onde eu também caí com fome
foi um percalço.
e o pavimento lustral da carniçada humana
pisando o sangue , os incensos
da guerra,
onde não cabe agora aí o trigo!
mamã,
e os uniformes azuis a dizer
tão bem com as velas,
e os pássaros
e as indochinas
e os vitrais da esperança com tanta luz.
a difundir as trevas com vapores de chumbo.
e os trigais maduros a vencer
o chão, a curvar a terra
aos anéis do mundo; e as lutas armadas
e as recitações de tréguas
e as missas solenes lidas à breviário,
cantadas por gorilas
com sapatos d'anjos.
e a guarda civil e as patrulhas
e os ofícios e as escolas
e as embaixadas anfíbias nas tuas nádegas
onde fica agora aí toda a tua força política.
e os tribunais de togas a julgar
os crimes a barricar as fomes
esquecendo as dívidas.
mamã,
onde fica o grande rio das palavras onde fica guatemala
onde fica a noite dos tam- tans onde fica a esperança
com os olhos de napalm?!
onde fica a vida mamã-sacrária?
mamã! mamã federal,
esta manhã eu mijei todas as rimas
todos os versos brancos,
nessa pia baptismal!


A TUA BOCA SOBRE MARTE
mãe — é dezembro
se morreste, porque fazes
tanta força contra os números?
porque fazes tanta força
na matéria?
as máquinas levaram tudo
— a tabuada a lua.
a febre dos satélites entrou pela casa dentro. Ouves?
sentes?... todos os frutos
ao contrário na tabua
da da neve.
e a tua boca sobre
marte. e eu sonhando.
sonhando o alfabeto como uma 'máquina lírica'.
sei agora ao contrário
como se chama o inverno. e as árvores
todas destelhadas pelos ventos
de mercúrio. Ë o teu nome dentro
com toda a força na paisagem:
as páginas as
casas
os peixes encarnados avançando
pelos números.
e a chuva toda lá fora ardendo,
pesada,
sobre a terra inteira como estátuas puras.
como se chama, mãe, a neve agora?
agora, mãe,
é janeiro
todo o tempo fora:
— as máquinas levaram tudo,
a tabuada a lua.


DESEJO DE INFINITO

e era uma vez um homem:
o peito muito aberto um grito
o desejo de Infinito
que para dizer tudo
ainda jovem
andou de um lado para outro
num rio negro e áspero de amargura

e como um grande mago rumo aos altos montes
escalou o Evereste
num grande passo cirúrgico

deitou no chão o quadro
atirou-o violentamente contra a Terra
abriu-lhe o ventre aos gritos
e como um grande louco
fechado em lucidez aos berros
pôde enfim serenamente
pintar
de
madrugada

a côr

do Infinito










ESTE É UM TEMPO DE TERROR







este é um tempo de terror
um tempo de máscaras
um tempo de Príncipes sem coroa


os navios partiram
nunca mais regressaram

hoje
ao som de guerras
os homens
esfomeados

comem no deserto ervas



de que valeram
todas estas gerações angélicas
para a construção da Alma?




vivemos sem dúvida
um tempo de horror
um tempo de máscaras

um tempo de bolor



A Terra,
um lugar desformatado,
feio
esférico

sem pessoas,



nem jardins para o Amor





CÁ ESTÁ ELA ESTA MINHA VIDA TERRENA






cá está ela esta minha vida terrena
mais do que terrena uma vida
de pés atados não exactamente
nos pés mas na cabeça
o meu amor não tem correspondência
nem para a linha verde nem
para a amarela.
é um peixe que me vem ter às mãos
que entra pela janela do meu coração.
por isso por vezes deito em casa as cartas
de tarô para espreitar por elas
as minhas lágrimas
sei que é um contra-senso
porque quem tem lágrimas
não pode ler tarô e quem
lê o tarô não tem lágrimas
(tem dinheiro nos bolsos
e a maior boa vontade do mundo)
são pois duas coisas impossíveis
além disso o meu futuro
ainda não chegou e o meu passado
já tem agrafos e tudo

hoje por exemplo vou à dona telma
para que ela me leia os peixes
do meu futuro não sei
se isto fará muito sentido
mas é com certeza um argumento
de peso pois contraria o inverno
e a água que corre pelo nilo.

os peixes do meu futuro
não podem ser todas as cartas de tarô
nem todas as minhas lágrimas.
se assim fosse haveria médicos - pescadores
escondidos debaixo das mesas
e uma grande bacia de água
para amparar toda a dor humana.
assim vou à dona telma de metro
pela linha amarela para depois
passar o resto da minha vida
a escrever livros de poemas
com os primeiros versos do mundo

mas eu só queria
que a minha vida terrena
fosse a minha vida
terrena

O QUE TÊM TODOS OS POEMAS EM COMUM








o que têm todos os poemas em comum?


a roupa
a humidade

a pele escura talvez,



um dedo eternamente apontado
para a liberdade

e todos os versos
in-
cli-
na-
dos




para a sua Alma azul



o rosto do deserto





o meu rosto procura o deserto
onde a nudez é cálida

uma forma solar de silêncio

que avança
para
o
centro

para o núcleo da página.


procura não em vão
a música
em que é preciso transformar-me

uma música ardente
no interior da lágrima




um diamante d'água





de que música vieste

de que dunas de que águas
de que pórtico vieste
de que momento
de que núpcias do vento?


de que astro amor
de que imagem saíste
de que rasura de tempo?



tua voz azul
cântico dum barco
sombra imaginada
é em minhas mãos planície incendiada


vens do futuro porque inventas.


teu rosto de perfil iluminado
ilumina de repente
plena claridade



traz o poema


maria azenha
2004,novembro,28,lisboa







de espelho em espelho
estou sentada à beira do deserto escrevo
a imagem reflectida de um sonho. antiga-
mente cada espelho era um vestido
de onde eu saía dele sobrevivente
uma pedra cantante no tempo
um abismo
como se saltasse da minha boca
uma pedra correndo de um lado
para o outro queimando
de espelho em espelho como se
escrevesse de um outro mundo o-
fício de um grito ou de um corpo
ouço o grito vermelho da solidão
perfeita terrorismo dentro dos
espelhos sou essa pedra no centro
enlouquecendo de infinito
uma criança

vou mudando de rosto
cada vez é maior o meu grito
caminho pelo poema na escuridão
da noite uma vida que eu inventei
víbora de meu peito. ouço

estou sempre a chegar a palavra
faz parte das águas espera-me um barco
é certo que o meu destino está
entre os espelhos sou uma pedra
sentada à beira de um outono
rochoso uma pedra escrita
com o teu nome branco ferida
na boca

do outro lado estou sempre a morrer
caem-me os dedos e as folhas da voz
durante a argila da noite


trago contudo alguns poemas
de sangue para enterrar
no escuro
há desses poemas que vivem
no fundo não têm paz nem
guerra em rigor o nosso amor
é um espelho de lepra
nem mapas nem paisagens

dizem mataram-nos

maria azenha
2004, novembro,22, lisboa





inefável voz dentro de Coimbra
quando nasci minha mãe
deu-me uma estrela.
uma estrela que ainda hoje brilha.
um imensíssimo azul. ilumina tudo.
está viva
até ao fim do mundo.

maria azenha

2004,novembro, 20, lisboa





poema sem palavras

não tenho palavras
estou tão perto do silêncio
aqui
não há voz falada
nem palavra onde
me sente

sou um segredo vivo
ao espelho
escrito muito antes de o escrever

uma pequena luz semeada ao vento
para enviar sinais para o outro
mundo

nada mais
tão natural é eu ter adormecido

olha
as estrelas acenderam-se

e eu respondo talvez



2004,nov.,7,lisboa




poema íngreme

as tuas palavras são um livro cintilante
o mistério atravessa-as com as suas macieiras d'água
o mar vem ao meu encontro
inalterável experiência o teu corpo
ausente invade o luxuoso campo das páginas

a tua boca de outubro de luz
inclinada às hastes das casas
sopra no clamor da noite
como uma estrela assombrada
lenta lenta
em sua pura adolescência
e fogo
por isso escrevo os silenciosos pássaros do nada
os registos que Deus não encontrou
as suas portas subterrâneas as ondas quebradas
nas árvores os espelhos do vento
os poentes
os pomares em chamas
enquanto uma pequena pedra espera
a minha última palavra
redonda

digo-te está longe o dia
em que Ele se tornará criador

brota do meu peito um candelabro
as lágrimas que nos trazem carecem
de uma gigantesca toalha

deve ser noite

2004, outubro, 31, lisboa




a morte está escrita nas paredes

a morte são as águas das ruas
está escrita nas paredes das escolas
e os rapazes com brincos nas orelhas e
chicotes de fumo nas carteiras
incendeiam lençóis brancos no quadro
as flores à semelhança das gaivotas
de lábios pintados com palavras de vidro
escrevem poemas de absinto
nas campas

em rigor uma gaivota desenhou uma caveira

o inverno prestes a chegar
com os seus frigoríficos de fogo
abriu as portas à eternidade
com toda a crueldade

a música
já sabemos
dá para o pátio escuro da memória

mas disto só o poeta sabe

2004,novembro,2,lisboa





o poema mais difícil de escrever

dedicado a Pablo Neruda

não sei como os poemas se fazem
nem como se transformam os amantes
dentro dos corais sei que os náufragos
escrevem palavras de náufragos
em papéis de náufragos em todas
as línguas como tu
trago comigo uma insuportável beleza
e a solidão de todas as palavras que só
os náufragos conhecem
foram escritas muito antes do mundo
com as pegadas da minha insónia
e as coisas em mim ocultas.
tive de as suportar antes do êxtase da escrita
por isso só a ti as revelo
este o poema mais difícil foi escrito
com as palavras desesperadas do sangue
e as mãos coroadas de ar
isso me cale
me reconheça no crepúsculo
entre a agulha do tempo
e a noite
azul
2004,outubro,13, lisboa






não me vejo mais a mim

Pudesse eu reter-te dentro de mim
como um templo entre colunas
assente agora no rumor das ruas
o teu silêncio secular
e habitar em jardins suspensos e antigos
e esta praia nua
e falar de ti como falo com o vento
buscando nele a sua face pura
pudesse eu com o meu passar
espalhar todo o teu perfume
onde só haja azul incenso e nuvens
na pureza desmedida de um só dia
e ser por todos entendida
sob o íman da lua
mas em vão falo comigo neste lugar
tão débil e tão frágil como eu
nem o mundo nem ninguém será capaz
de reter a luz que se perdeu
nem o canto da cidade já perdura
olhando para ti com tanta perfeição
os teus olhos tristes e nostálgicos
não me vejo mais a mim
vejo Buda
(1 de setembro de 2004)






pintei este quadro
para me ver melhor
e agora a minha alma
vê-se tão bem

como a minha face

e a minha solidão
num campo de nomes
aquáticos


2004, agosto, 13





há lugares onde chegam vogais de água
lugares novos espantados que assomam à memória
por redes vertiginosas

as suas entoações concentram-se em palavras fabulosas
palavras luminosas sur-
preendidas pelos castiçais dos ii

um projecto de água: digo:

transportar o sonho de um lado para outro
abrir com toda a força um buraco nos espelhos

2 comentários:

  1. Foi a partir deste inicio que tudo se desenvolveu a uma velocidade enorme... há quanto tempo!
    não esqueço os frutos de seu coração.
    O Amigo sempre me acolheu no SITE DO ESCRITOR com as duas mãos.
    Obrigada,
    fica escrito.

    Abraço,

    maria azenha

    ResponderExcluir
  2. Manifesta gratidão.
    Ao Rogel Samuel e à Maria Azenha, a ambos por tudo.
    E principalmente pelos vossos corações tão raros e tão únicos.

    Diáriamente cresco e aprendo convosvo.

    Obrigada.

    ResponderExcluir