domingo, 30 de maio de 2010
Ernst BIoch
Ernst Bloch
O Homem Como Possibilidade
Desenho originalmente aparecido com Neither Marx nor Moses (June 29, 1972)
Senhoras e Senhores, vamos começar moderadamente. Mas também com vigor e ousadia. Vamos começar com os sonhos.
Em sonhos se pensa geralmente de noite. Não sonhamos apenas de noite. Sonhamos também de dia, embora não se investigue com igual energia o sonho diurno. Chega-se mesmo a reduzi-lo a um simples prelúdio do sonho noturno. Entre ambos há distinções consideráveis. No sonho diurno o eu não desaparece. Mantém-se até bem vivo e sem exercer nenhuma censura. A ponto de os desejos tanto mais funcionarem. Serem mais visíveis, do que no sonho noturno. Apresentarem-se sem máscara nem vergonha. Livres de inibições. Corajosamente. De peito aberto. As ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos. Os mostruários das lojas tocam seus acordes. Um sapato elegante. Um vestido “toillette”. A nova máquina de lavar. Uma cadeira de balanço. E tudo o mais que se mostra. Em primeiro lugar, a casa sonhada a que tudo isso vai pertencer. Todo um mundo de vento em popa, multiplicando os castelos no ar, onde o custo de vida não é tão alto.
Acontece que muitos dos castelos de hoje, transformam-se amanhã em palácios e cidades, ou mesmo em sociedades. Esse fato possibilita a observação, até a constatação de que nada de grande surge na história sem ter sido primeiro esboçado, para depois da devida racionalização ser então planejado. Tipos de políticos realistas fundamentalmente diversos, como Bismarck aqui, Lenine lá, tiveram seus planos no ar. Apesar do caráter sóbrio, Lenine queixou-se certa vez de que o movimento havia perdido a capacidade de sonhar.
Delicados coexistem os pensamentos, ásperas se chocam as coisas no espaço. Mas também elas se entrechocam primeiro no espaço dos pensamentos do desejo. Assim por exemplo no papel, que não é só paciente mas o lugar onde manobra a fantasia geométrica. Se ásperas se atritam as coisas no espaço, como reage então o mundo ambiente ao sonho acordado, que já amadureceu e tomou consciência de sua responsabilidade? Na maioria dos casos estamos cercados de conflitos. Talvez que frente aos sonhos o mundo não se mostre apenas contrário mas contraditório, absolutamente irredutível. Sacode os ombros indiferentes ou nem mesmo isso, porque já seria bastante relação. O mundo ainda se acha por demais carregado das tensões de ontem e anteontem. O velho não quer passar. E o nôvo não quer chegar.
O Destino Normal do Sonho
Em tais condições o sonho se torna no mais infeliz sentido da palavra um simples sonho. Transforma-se no que pejorativamente se chama utópico, nada mais que utópico. Uma coisa é reconhecer êsse destino, outra, não procurar modificá-lo, curvar-se a êle. “A hesitação medrosa de pensamentos tímidos não muda a miséria, nem vos fará livres”.
É um convite a opor resistência ao mal. Ao mal que se impõe de fora. Ao mal impertinente e obsedante. Nunca deve acontecer que o fermento nem mesmo leve de direito mas só faça azedar. O que contrapomos ao mal, não deve ser uma loucura solitária.
A realidade não é uma grandeza fixa. O mundo não é acabado. É possível enfrentá-lo de outra maneira do que simplesmente murmurando ou ainda omitindo-se, servindo-se de oportunismo, instalando-se no quietismo. Tomar as coisas como são, não é uma fórmula empiricamente exata. Não é positivismo. É uma fórmula de vilania, de covardia, de mesquinharia. O que são as coisas - êsses momentos num processo que chamamos fatos? Estão fluindo. Foram feitos e por isso mesmo são suscetíveis de serem modificados. Persiste sempre a possibilidade de alteração. Isso pressupõe o domínio do acaso. Que haja espaço para a contingência - até à indeterminação física, até a indeterminação histórica, que é tanto mais importante.
Poder ser diferente, isso significa: também poder transformar-se em outra coisa: no mal a conter, no bem a promover.
Há muitos graus de realidade. Não há fôrça inelutável, que predomine independente de nós. A realidade não traz a justiça em si mesma. Está aberta sôbre o porvir, onde mais do que nunca há perspectiva e, caso não fracassemos, espaço para o progresso no bem como para o progresso na contenção do mal.
Senhoras e Senhores, a realidade é uma categoria sujeita à dúvida e destinada à transformação. Sua solidez e simplicidade é uma pura aparência. Considera-se realista, quem é prático. Quem está plantado com os dois pés na terra firme. Isso é uma caricatura, como a caricatura oposta do sonhador.
No dizer de Thomas Mann escritores são pessoas que escrevem com maior dificuldade do que as outras. Isso se pode estender. Também os filósofos são pessoas que pensam com maior dificuldade do que as outras (risadas). De fato, antes de se chegar a um simples conceito, que se pudesse pagar em dinheiro, teve-se de pensar tanto.
Visível é o que se apresenta numa clareza meridiana. E no entanto na história do pensamento foi precisamente daqui que nasceu a dúvida. Assim na primeira filosofia grega: o bastão mergulhado nágua parece quebrado, quando na verdade é inteiro. Com a dúvida nos sentidos começa o despertar da filosofia.
Quanto à clareza meridiana há uma frase de Anaxágoras que ainda não foi suficientemente pensada: coisas iguais não se percebem. O ôlho precisa ser escuro para perceber a luz. O corpo, frio para sentir o calor. Por isso se afirma que a tôda percepção se prende um sentimento de desprazer.
A Flecha que Voa
Com os eleatas, em Parmênides, surge exatamente o contrário. A luz clara não é o mundo dos sentidos e sim o pensamento. É o pensamento que garante a realidade. A ponto de, segundo os paradoxos de Zenão, não haver movimento, embora os sentidos no-lo atestem: na verdade a flecha, que voa, está parada.
Pensamento e ser possuem a mesma matéria, o espírito. Na evolução posterior isso não vale para qualquer pensamento. Um pensamento, oriundo de uma simples opinião, provém do êrro. É mito em sentido pejorativo. Para surgir a unidade de ser e pensar, tem-se de examinar o próprio pensamento. É o início da dúvida não já nos sentidos mas no próprio pensamento, nascida entre os sofistas e em Sócrates.
Só na filosofia, na visão das idéias, há verdade. Ser e pensar não apenas se tocam e cumprimentam, se confirmam mutuamente mas se correspondem numa série de diferentes graus de iluminação no pensamento e diferentes graus de realidade no ser.
Origina-se então uma graduação. A realidade se processa. O ser admite graus. Uma coisa pode ser menos do que outra. O ser se torna menos denso, quando fôr menor o grau de pensamento. O pensamento supremo não apenas não engana como é também a suprema realidade.
Com Kant se deslocou essa perspectiva: cem talentos reais não são mais do que cem talentos possíveis. O valor monetário dos talentos, a côr, a forma, teor de prata são propriedades. E o ser não é uma propriedade. Dêsse modo problemático o ser perdeu sua determinação lógica ou melhor já não é uma determinação lógica. E desde então se lhe ataca a possibilidade de comparação, embora ela se mantenha na linguagem e mesmo na filosofia: até Leibniz, Hegel e Marx.
A supraestrutura, o reflexo vaporoso no céu, se em Marx se tornou mais pálida do que a infraestrutura, as relações econômicas, que se espelham no direito, arte, religião, filosofia, não deixou de ser real, não se fêz um nada. A falsa consciência é de pleno sentido, apenas menos real do que a consciência verdadeira, menos real do que a infraestrutura. Aqui há ser-comparável, herança de Platão e da Escolástica.
Uma Coisa Quanto Mais é, Tanto Mais é
O argumento ontológico de Deus da Escolástica não é nem inteligível sem a identificação platônica entre ser e valor. Uma coisa tanto mais é, quanto mais é. Para Anselmo de Cantuária o Ens perfectissimum é um conceito de valor: o Summum bonum, já per seispsum, também o ens realissimum, um ser, quo maius cogitari non potest. É o que vale até Leibniz, cuja Grandeur de la réalitê coincide com Perjectton.
A inversão disso ocorreu muito tarde com Schopenhauer, cujo pessimismo se opõe ao otimismo de Platão, Anselmo, Leibniz e Hegel. A perspectiva agora é: quanto mais alguma coisa é, tanto menos é; tanto mais fraca se apresenta no mundo, ou mesmo não se apresenta de forma alguma. Em todo caso será perseguida, miserável, medíocre, insignificante. Ecce homo se diz da realidade. A ascensão não procede para o mais ser e sim para o nada, para o nirvana.
Sem dúvida temos aqui uma inversão. A proporção permanece a mesma: pensar e ser se correspondem reciprocamente; o mundo continua suscetível de transparência, de ser conhecido pelo pensamento, pois é carne de sua carne ou antes espírito de seu espírito.
A revisão critica provém de outra parte: de Descartes, também de Leibniz. O Ordo aeternus rerum, constituido para o mundo medieval, perde o caráter catedral. A realidade já não está construída para cima, em função do Summum bonum. É um fenômeno luminoso. Uma clarificação. As mônadas são cidadã do iluminismo do século 18. Pertencem à geração do que tende da escuridão para a claridade.
As pedras dormem, as plantas sonham, os animais se torcem em seus sonhos, como se quisessem despertar, e o homem desperta. Uma grande iluminação, um grande despertar atravessa o mundo. O tempo é introduzido nas catedrais. A superposição da realidade, que ainda continua intacta, ajunta-se uma sucessão.
Assim se processa uma subida, uma evolutio, que não é apenas e-volutio, desenvolvimento de um germe dado de dentro de seu invólucro. Acontece algo de Nôvo, enquanto luz penetra. Somente a suprema Mônada, chamada Deus, é completamente clara e luminosa.
Mais tarde também êsse racionalismo total é arrebentado - como se os sofistas houvessem voltado pela dúvida em tal modo de apreender a realidade. Na roupagem da realidade Locke e Hume operam um corte entre sujeito e objeto.
Que a realidade consta de eu e objeto, de subjetividade e objetividade, tôda a história do pensamento já vinha preparando e elaborando. Só agora é que o sujeito se torna o lugar exato das ilusões. Para Locke as qualidades primárias são pressão e impulso, tempo e espaço. Côr, tom, sabor, sentimento, só existem em nós. São qualidades secundárias. Hume chega à grande critica não só das côres, das percepções dos sentidos mas também de categorias como substância e causalidade: dúvidas quanto à aparência contraditória da substancialidade. Dúvidas contra a causalidade, que transforma o Post hoc num Propter hoc - com que direito?
Essas dúvidas não as afasta o Sócrates dêsse ceticismo, o grande Immanuel Kant. Ele as reduz apenas ao nível que lhes é consentâneo. A reflexão transcendental restitui à substancialidade e causalidade seu lugar devido: o mundo dos fenômenos, não a coisa em si. No mundo fenomenal há possibilidade de conhecimento e de conhecimento rigorosamente determinista. É o mundo das ciências naturais. O mundo real, em que vigora uma regularidade inelutável, sem o menor sinal de liberdade, imortalidade, Deus. Tais coisas não se podem encontrar no mundo da ciência, do conhecimento, da realidade em sentido rigoroso. A coisa em si permanece inacessível. Um simples conceito-limite.
A tudo Isso acresce uma cisão curiosa: Algo de inteiramente diverso, que, embora não seja realidade, também não é alucinação nem irreal. Há dentro de nós esse indestrutível e lneliminável. No mundo do tal condicionamento, em que não há lugar nem para uma cabeça humana, subsistem as Idéias do Incondicionado (que não se identifica com o Absoluto em sentido comum), idéias de não-determinado, portanto liberdade.
Realidade sem Realidade
São as idéias morais em nós, que não têm morada no mundo da realidade mecânica, o único cognoscível e sujeito à atividade da razão rigorosa. Há ainda o expediente de um mundo enigmático sem realidade. Um mundo, que não está determinado, ou ao menos não totalmente. Nele encontra lugar a liberdade e a esperança humana: não é real, não se pode conhecer mas se pode pensar. Põem-se postulados de maneira a se poder agir, consoante as perguntas das três Críticas: “O que posso saber? O que devo fazer? O que me é permitido esperar?”
As duas últimas perguntas não têm lugar no mundo da realidade. E não obstante não são desprovidas de sentido. Constituem o sentido supremo. A única coisa que tem sentido.
Com Hegel termina essa separação entre o mundo dos fenômenos e a essência. O mundo volta a ser Leibniziano. Toma-se de nôvo uma totalidade. O verdadeiro e o real são uma só estrutura. O sujeito não existe para interferir no processo do mundo e sim para corresponder-lhe segundo a marcha contínua e autêntica da realidade.
O verdadeiro, de acôrdo com o caráter de processo do real, se alarga agora muito mais do que em Leibniz. Na introdução à Fenomenoloqia do Espírito diz Hegel, servindo-se de uma frase do Nathan de Lessing: o verdadeiro e real não é uma moeda, que pudesse ser dada aos pedaços e assim embolsada. A verdade é um processo. É verdade como realidade.
Estamos novamente em Parmênides, que expôs a unidade de pensar e ser em proporções gigantescas, cósmicas, de acôrdo com a frase do Prefácio à Filosofia do Direito: o que é racional, é real e o que é real, é racional.
O Erro Estético da Razão
Algo se muda nessa inversão categórica. Se tudo que é real, é racional, então está estabelecida a ideologia da paz com a realidade. Então tudo está em ordem. Dizia-se aos estudantes de então, que se rebelaram contra a Santa Aliança: também ela é racional e vocês têm de compreender. A primeira frase, de que todo racional é real, é tão revolucionária quanto a segunda é reacionária. Também o que diz a razão, também o arrasoado, é real. Tem apenas o pequeno defeito estético de não aparecer ou de não aparecer ainda. Esse defeito deve ser corrigido.
Assim nessas frases de Hegel se encontram tanto a direita como a esquerda. O todo permanece todavia uma clarificação no sentido leibniziano: do ser-em-si se passa pelo ser-fora-de-si para o ser-em-si-e-por-si. Com uma limitação: a saber que o processo do real, que assim se celebra, é novamente uma aparência. Pois o que acontece, é simples evolução. Desenvolve-se apenas o que já é desde tôda a eternidade.
A evolução Hegeliana, aquela dialética, que é tão rica em história, tem muito em comum com o desenvolvimento de um teorema num quadro. Trata-se de pedagogia. Explica-se para a consciência humana ou, falando-se politicamente, para a inteligência limitada de súditos, como o mundo é admiràvelmente construido.
Por isso se encontra no Prefácio à Filosofia do Direito a frase: quando a filosofia pinta de cinzento as suas cãs, uma forma da vida já envelheceu. E com o cinzento ela não se rejuvenesce. Apenas se conhece. Só com o cair da tarde a Coruja de Minerva levanta o seu vôo.
O pensamento chega sempre tarde. Assim o movimento revolucionário do conceito - que Hegel tão admiràvelmente descreve como retirar para o Espírito as castanhas do fogo - se esgota novamente pelo feitiço da Anamnese, que de Platão chega até Hegel e mais adiante ainda: todo saber é uma recordação primordial de idéias que a alma contemplou antes de sua encorporação. Não há nada de nôvo debaixo dêsse sol problemático da Recordação. Explica-se somente o que já estava implicado. Não é possível nenhuma surprêsa. Nenhum futuro verdadeiro.
Hegel chega a falar muito mal do futuro. É palha e vento, névoa e vapor. Só não é nada de real. O mundo está pronto. O Espírito saltou de sua diligência e surge então como Professor Hegel num auditório da Universidade de Berlim (risos).
Ora, isso não se podia manter. É um pensamento que só pode ter lugar numa casa de loucos. A esquerda hegeliana e Marx, de início seu membro, levam novamente a sério a dialética. A realidade dialética é a realidade crítica. Nela acontece realmente algo de realmente novo. Não só o que nunca passou pela mente de homem mas também pela mente da realidade. A dialética é o método critico do próprio mundo. Não é o solilóquio do Espírito consigo mesmo, em que êle se recorda complacentemente de suas formações históricas.
Enquanto método critico das transformações, a dialética deve ser posta em pé. Em primeiro lugar para que algo aconteça e não apenas na cabeça debaixo da cabeleira. Em segundo lugar, para se saber o que acontece de contraditório. Para que a utopia, à caça do que ainda não foi, ganhe fundamentos debaixo dos pés. Tome-se concreta e se concilie com o mundo numa mediação.
Somente assim nesse indispensável processo auto-reflexivo de mediação há abertura para frente. Verdadeiro futuro, que não se senta apenas no ar. Somente assim se pode mudar concretamente. A Undécima Tese de Marx sobre Feuerbach diz: os filósofos interpretaram o mundo de modo diferente, quando se trata de transformá-lo.
As Coisas Necessitam de Nós
Para não cair no vazio de proesas apressadas ou de uma utopia abstrata, a dialética deve ser concreta, isto é, visceralmente histórica. Compreender o que foi, significa apreender alguma coisa não como foi, no seu ter sido. Significa apreendê-la como o tornar-se de um processo, que ainda não alcançou sua meta. Que com insatisfação subjetiva e contradição objetiva ainda procura seu destino. E principalmente tem necessidade do homem para realizar a causa conveniente no processo do mundo, isto, é a passagem do reino da necessidade para o reino da liberdade.
Na realidade se insere também o que tem então de ser realizado — seja que se conceba transcendentemente como Deus creator, ou panteisticamente como Espírito do mundo, ou como o próprio homem. Por isso diz Marx: “Prometeu é o maior santo e mártir do calendário filosófico”. O homem, como o fator ativo e subjetivo, tem de por-se em consonância com a marcha da realidade. Deve auscultar-lhe os passos quase em sentido musical, ouvindo, para onde se dirige a sua melodia.
Senhoras e Senhores, com isso pressuponho um mundo aberto. A existência de possibilidade objetivamente real e não apenas de necessidade fechada. Não somente de determinismo mecânico. Sem dúvida, também um tal pensamento marxiano se transforma em grande parte num fetichismo legal: primeiro pela desvalorização excessiva do homem individual; segundo por pensar que o processo do mundo segue o seu curso sem nosso concurso e nos arrasta por assim dizer pelos cabelos, quer queiramos quer não.
Também o marxismo não nos assegura o futuro verdadeiro, a verdadeira abertura. Engels escreveu o livro Die Entwicklung des Sozilialismus von der Utopie zur Wfssenschaft. É verdade, há o progresso da utopia abstrata para a ciência mediadora. Há também o progresso, algo por demais grande, da utopia para a ciência: quando se desloca todos os sonhos antecipantes, tôdas as esperanças, tôda existência pioneira, de que dispomos como homens, para a primeira frente do processo mundial.
A abertura para o futuro é uma grande categoria, embora tratada como sogra. Deve-se mergulhar por sôbre o horizonte. Naquela dimensão difícil da realidade, que não é nem o ser presente nem o ser em processo mas o ser que ainda não é. Na esfera do Novum, da mediação do agir, do receio e da esperança.
Prova sem ModêIo
Deve-se ver o mundo como tarefa, como molde, como prova sem um modêlo pre-existente. Para isso torna-se necessária a ciência. Uma ciência especulativa, metafísica. Que entenda de construção. Que saiba construir no azul. Todo o mundo está construído no azul. Sim, necessita-se de uma ciência, que não só entenda de azul, mas até mesmo de ultravioleta.
E tudo isso com a consciência de que o ser presente, que se costuma chamar realidade, está cercado por um mar muito maior de possibilidades objetivamente reais. Possibilidade não é palavrório. É um conceito, que se pode determinar exatamente: um condicionamento parcial. O mundo ainda não está inteiramente determinado. Ainda há possibilidades deixadas abertas, como o tempo de amanhã. Há condições que ainda não conhecemos ou que ainda não se apresentaram, e por isso amanhã poderá chover ou fazer sol. Vivemos circundados de possibilidade, não só de realidade. Na prisão da simples realidade, não nos poderíamos tocar. Nem mesmo respirar.
Chego agora à parte final. O ainda-não-ser se apresenta duplamente (de vez que ainda teremos por multo tempo a separação de sujeito e objeto): como ainda-não-consciente e como ainda-não-atualizado. O ainda-não-consciente em nós, o pre-consciente criador, representa o ainda-não-atualizado no objeto, enquanto contêm em si o verdadeiro futuro. Se não o contiver, trata-se de Wishful thinking, de palavrório.
O ainda-não-consciente também é - o que muito e curiosamente se desconhece - o não-mais-consciente. O que está em baixo, na adega da consciência, para onde desce aquilo que uma vez foi consciente, e lá umas vêzes apodrece ou outras volta à consciência.
Também na superfície da consciência há um ainda-não consciente. Algo que ainda não opera, mas nos está diante dos olhos: na juventude, na transição do tempo, na produtividade. São os três estados, em que é a mais alta a porcentagem do ainda-não-consciente. São estados de oxidação, em que o fogo mais queima.
A juventude está cheia de consciência do futuro: há algo em nós. Temos tôda uma vida pela frente. Isso é a juventude, ao menos seu o rosto não lhe escorreu para a nuca. A juventude autêntica tem tudo diante de si e põe mãos à obra. Ainda independente dos conteúdos do Nôvo, ela se lhe consagra.
A mudança do tempo: o velho não quer passar, o nôvo não quer chegar. E todavia acontece alguma coisa. O tempo está prenhe. A sociedade, grávida. Há de nascer uma criança. A antiguidade posterior, a Renascença, o “Sturm und Drang”, o século 18, o nosso tempo - são épocas de transição, carregadas de algo ainda-não-consciente.
Por fim a produtividade: a produção de uma obra, que ainda não havia, seja política, musical, poética ou religiosa, é sempre cercada do halo de um bruxolear para o futuro. Não do lusco-fusco de um crepúsculo. O estado de produtividade é o bruxolear da aurora. Aparece em toda clareza no jovem Goethe, no qual se apresentam ao mesmo tempo todos os três fenômenos: a juventude, a transição e a produtividade.
A utopia é o lugar em que se encontra o ainda-não-consciente. Até agora não só se concebeu de modo puramente negativo o conceito de utopia, como ademais se considerou circunscrito às lendas políticas, às utopias sociais. É a fonte de origem. Platão, Thomas Morus, Campanella, Fourier, Saint Simon, Robert Owen, etc. São grandiosas tentativas de se lançar no papel uma sociedade melhor - dreams of a better life. Mas não há só isso. Tentei encontrar o conceito de utopia em tôdas as outras partes. Dêle a vida humana, história e cultura, está cheia: a arquitetura, que nunca foi construída, onde passeia o utópico, para depois descer à realidade; os sonhos acordados da medicina; ou os sonhos da técnica, Science fiction, que aparece pela primeira vez em Bacon na Nova Atlantis, paisagens de desejo na pintura, música e poesia: o arcádico, o elisíaco, paradisíaco, até o momento em que se diz: “fica conosco, és tão belo”.
São as hervas maravilhosas, que nos foram dadas, contra a mais dura anti-utopia, contra a morte: sonhos de sobrevivência, de imortalidade pelas obras e tudo o mais. Utopias religiosas de baixo e de cima, sonhos do futuro, mistérios do desejo: quo modo deus homo - de que modo podem chegar até nós? Um salvador, mesmo no sentido da medicina, até o salvador nos outros sentidos. Antidotos contra a morte. Ressureição e vida eterna, em tôdas as grandes religiões; projetados sobre algo que ainda não é, sobre um possível. Tesouros que nem a traça nem o ferrugem corroem. Apesar de tôda hipocrisia, a despeito de todos os meios de escravidão, apesar de tôdas as consolações do Além, por entre a repartição injusta dos bens terrenos e a justa distribuição dos bens celestes — tudo pode acontecer aqui. Para tudo há lugar no reino gigantesco da consciência e necessidade utópicas. Trata-se apenas de não se permitir o abuso das Ideologias mas de se eliminar tudo de que se possa abusar, a fim de que a igreja, a religião e até o ateísmo seja possível.
O ainda-não-atualizado é algo pendente no processo do mundo. Num processo físico, médico, jurídico e teológico, que não se pode nem perder nem ganhar mas que permanece em suspenso. O substrato do real ferve em fogo dialético. A essência ainda tem de ser extraida, num mundo que não sabe, onde tem a cabeça e por isso precisa do homem.
Decisão Pelo Ainda não Decidido
O homem toma uma decisão por algo ainda não decidido. A ponto de Jahwe responder à pergunta de Moisés de como devia chamá-lo: Eu serei aquele que serei.
Trata-se de uma determinação da Essência ao mesmo tempo primitiva, mitológica e não mais mitológica. Correspondente ao estado real da realidade. Que não estabelece nem um Além nem um Lá Encima mas um possível diante de nós.
A matéria, diz Aristóteles, é o ser em possibilidade, como a cêra é a possibilidade para o sinete. A matéria, possibilidade passiva em Aristóteles, se foi tornando sempre mais ativa na esquerda aristotélica. Através dos filósofos árabes até a natura naturans, que vem ao encontro do homem e lhe dá uma orientação teleológica fundamentada. Com esta êle pode agir criadoramente de maneira concreta e com tôda a seriedade. Não com segurança, pois segurança se referiria a um mundo já acabado, mas com receio e esperança, que se referem ao que ainda não está decidido.
Senhoras e Senhores, eu penso - e é a última coisa que desejava dizer - nossas Universidades não poderão servir bastante à visível transição de nosso tempo e da sociedade para a abertura sôbre o futuro se quiserem preservar sua antiga tradição de Universitas. Devem acender a luz. De modo especial a Filosofia não deve, como diz Kant na Disputa das Faculdades, arrastar a calda mas levar à frente o farol.
O Socialismo e o Cristianismo têm muitas concordâncias e justamente em assuntos importantes. E é bom que seja assim. Tanto para conferir profundeza à confissão do Socialismo como para dar sinal de autenticidade à profissão do Cristianismo. De sorte que um nôvo Aeon surge no Cristianismo e brilha como luz de esperança. Um nôvo Aeon, em que o reino do Filho do Homem não aparece só como um Encima. Se a salvação se deve fazer carne na mensagem para nós ou para os pósteros, então não pode haver um simples Encima. Mas um para frente.
Muito obrigado!
Tradução de EMMANUEL CARNETRO LEAO
Tempo brasileiro, ano IV/fev.1966/numero8.
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