sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Humberto de Campos


DESTINO?


Humberto de Campos


(Mensagem Enviada ao Senador Indio do Brazil

por ocasião da morte de sua esposa Clarisse)


O maior segredo das victorias de Napoleão consistiu em deixar-se arrastar
pelos braços de ferro do seu Destino.
Elle sabia, como vizinho dos deuses, que nada valeriam esforço, trabalho,
tenacidade contra os designos que cada um traz, ao nascer, para as batalhas
tumultuosas da Vida. A sua obra, o seu imperio, os seus exercitos, eram
simples paizagens de um quadro que alguem imaginara antecipadamente e em que
elle apparecia como actor principal. No dia em que o emprezario se
enfastiasse da peça, o mais vil dos insectos bastaria para destruir o
theatro. "Je me sens poussé - dizia elle - vers um bout que je ne connais
pas. Quand je l'aurait atteint, un atome suffira pour mábattre".

Eu tenho, para mim, adoçando a minha triste concepção do universo, que
nós somos, todos, portadores de uma carta de Bellerophonte, que temos de
entregar, em certo logar, e em certa hora, a determinado destinatario.
Cada um, ao nascer, traz no coração ou nas mãos, a historia do seu destino.
Entrando na vida, cada um sáe, como um automato, um hypnotisado, a cumprir
a missão que lhe ordenaram, e de que nós, ao despertar, não nos lembramos,
como, em geral, aquelles que soffrem a acção mysteriosa do hypnotismo. E
ahi a explicação, talvez, de haver capitães que sahem indemnes dos combates
mais accesos, atravessando a mais cerrada fuzilaria, emquanto se dão mortes
como essa da semana passada, em que uma senhora illustre, sem uma
desaffeição, sem uma imprudencia e sem ter visto, jamais, uma arma de fogo ,
é entregue inopinadamente à morte, ferida, dentro do seu automóvel, por duas
balas de um individuo que nem, sequer, a conhecia!

Os árabes, na sua sabedoria millenaria, jamais calcularam o rumo do
corte pela direcção apparente da espada. Um dos contos das Mil e uma
noites, contado por Scherazada à insomnia do seu senhor, constitue,
exactamente, a immutabilidade dessas resoluções do Destino. Informado por
um astrologo de que seu filho único morreria assassinado em determinado dia,
um mercador de Alexandria embarcou-se com elle, indo ter a uma ilha deserta,
perdida em meio do mar. Chegando ahi, procurou um esconderijo seguro,
encontrando-o, enfim, em uma cova subterranea, onde metteu o jovem, sozinho,
cercado de tudo que lhe podia ser necessario naquelle exílio. Feitas as
despedidas, o mercador sahiu da furna ignorada, mandou que os seus marujos a
disfarçassem com areia, fazendo-se, em seguida, ao largo, para afastar
qualquer contacto com a terra. Passado o dia fatal, voltou, então, à ilha,
onde, abrindo a cova, encontrou o filho com a cabeça partida por um golpe de
espada. É que já havia, na ilha, à sua chegada, um náufrago, o qual,
escondido na furna, se fizera íntimo do mancebo, que matara, na véspera, por
simples casualidade!

A scena mais profunda e pathetica das tragedias de Voltaire é, com
alguns julgamentos, aquella em que, na morte de Cesar, Antonio, exhibindo ao
povo a tunica do grande cabo de guerra, crivada de golpes e ensopada de
sangue, exclama, retendo os soluços no coração:

Du plus grand des romains voilá ce qui nous reste!

Este verso contém, no seu vigor synthetico, toda a historia da miséria
dos homens. Orgulho, gloria, poderio, tudo isso se havia desfeito a um
golpe de punhal, que partiu do braço de um patrício como poderia ter sahido,
com as mesmas conseqüências, do punho de um escravo! E que maior exemplo
há, na terra, de fragilidade humana, e do joguete, que somos, nas mãos
volúveis do Destino, do que a vida e a morte de Pyrrho? Dos herdeiros de
Alexandre, nenhum foi mais audacioso, mais valente, mais digno do sceptro
Macedônio. Os impérios passavam pelas suas mãos como a água se nos escoa
entre os dedos. As suas victorias eram uma seqüência de vertigens.
Cavalleiro andante do mundo antigo, a sua lança brilhava, com reflexos de
ouro, a todos os sóes do seu hemispherio. A sua ambição que affligia o
oriente, possuía os limites que o seu capricho traçava. Da Italia, da Asia,
da Africa, os povos accorriam, supplices, pedindo a alliança da sua fortuna.
E voltava elle de destruir monarchias, subjugando reis, escravisando povos,
arrasando cidades, quando tombou. de repente, fulminado, em uma rua de
Argos. Matava-o, em uma lição eterna da Providencia, uma pobre velha,
coberta de andrajos, atirando-lhe à cabeça, do alto de um tecto, um
miseravel pedaço de telha!... Quando já houve, na terra, força mais
poderosa e incontrastável do que aquella que se concentrou nas armas do
Imperio Romano? Jamais. E que regimen marcou o apogeu desse prestigio! O
dos Cesares? Tito. E de que morreu Tito? De um mosquito, que lhe penetrou
nas narinas. Bastou, pois, um mosquito, o mais humilde e frágil dos seres
creados, para abalar nos seus fundamentos, a onipotência do Império Romano!

Um dos nossos poetas mais delicados, Adelmar Tavares, tem, entre as suas
Trovas soltas, este poema de quatro versos:

Todo rio na corrente
Busca um lago, um rio, um mar
Mas o destino da gente
Quem sabe onde vai parar?

Quem sabe, realmente, onde o leva a corrente do seu Destino? Quem pode
desviar o curso do rio, em que somos a folha, o detricto solto, o grão de
areia deslocado, se o leito por onde rolamos é cortado na rocha?
Os mouros da Hespanha possuíam uma phrase, uma hipérbole, que
consubstanciava toda a serenidade do seu fatalismo. “El cálamo corrió por lo
que habia mandado Allah" - diziam elles. E meditando sobre o fim, tão
trágico e inesperado, da senhora Indio do Brazil, tão boa, tão pura, tão
virtuosa, só se encontra uma explicação e um consolo. É que succedeu o que
tinha fatalmente de succeder.

O calamo da sua vida, que se acaba de partir de maneira tão brusca, tão
dolorosa, tinha de correr, infallivelmente, até ali, pelas linhas que lhe
havia indicado, na sua inflexibilidade bárbara, o dedo invariável do seu
destino...
Humberto de Campos

Nenhum comentário:

Postar um comentário