terça-feira, 24 de agosto de 2010

OTTO MARIA CARPEAUX






MEU DANTE




Otto Maria Carpeaux





Assim como Galileu, na mocidade, exercitou sua imaginação de matemático, calculando e medindo os espaços fantásticos do Inferno, assim um físico de hoje poderia calcular e medir a altura fantástica da montanha de livros e estudos que já se escreveram sobre a Divina Comédia: o número resultante seria mesmo astronômico. Chegamos tarde e só podemos suspirar como La Bruyére: Tout est dit, et 1 ‘on vient trop tard depuis plus de sept cent ans qu’il y a des hommes, et qui pensent. De nada adiantaria a ambição de acrescentar mais uma ou outra interpretação engenhosa de uma metáfora, de um verso. Mas temos, cada um, nossas experiências pessoais com a leitura de Dante; e servem, pelo menos, para testemunhar ao Poeta nossa gratidão e nossa reverência, no setecentésimo aniversário do seu nascimento.

Reverência, sobretudo, e ela provoca uma dúvida quanto àquele pronome possessivo. Meu Dante -
quem teria o direito de empregar esse pronome de uma quase intimidade pessoal? A figura de Dante é, como dizem os ingleses, awe inspiring. Ou, como se exprimem os estudiosos da psicologia das religiões, Dante é numinoso. E, em todos os séculos, o único leigo (e não canonizado como santo) ao qual foi dedicada uma encíclica de um Papa: em 1921, no seiscentésimo aniversário de sua morte. E, ao que se saiba, a única grande figura da história humana que nunca um desenhista ousou caricaturar. Quem poderia chamar “meu” a tão alto espírito?


Mesmo chamá-lo “nosso”, “nostro”, só é privilégio dos florentinos, e estes não podem pronunciar-lhe o nome sem lembrar-se das maldições que o exilado lhes mandou:

Godi, Fiorenza, poi che se’ so grande,
che per mare e per terra batti 1 ‘ali,
e por lo ‘nferno trio nome si spande!

Dante pode ter sido, em vida, um homem intratável, irrascível e orgulhoso, convencido do seu direito de ser lembrado e venerado por todos os séculos. Mas essa pretensão enorme se reduz, afinal,
à exigência de ser lido. Como poderíamos venerar condignamente as cinzas guardadas no túmulo de Ravena senão pela leitura do poema sacro, ai quale ha posto mano e cielo e terra? Essa exigência de Dante transparece nas palavras em que Brunetto Latini, o autor do Tesoro, se dirige a Dante no Inferno:

Sieti raccomandato ii mio Tesoro
nel qual io vivo ancora, e pii non chieggio.

“Não pede mais.” Mas é imensa essa nossa responsabilidade, nós a quem o tesouro inesgotável da Divina Comédia é raccomandato: para lê-la e relê-la.

Certa vez respondi a um repórter literário que quis saber das minhas leituras habituais: “Todos os anos costumo reler a Divina Comédia inteira”. É verdade.
Mas depois assaltaram-me as dúvidas. Não me lembro exatamente quem disse talvez fosse Tommaseo: Legger Dante è un dovere, rileggerlo è un bisogno. Ler Dante é um dever, sim, fosse mesmo só porque o próprio poeta diz - mostrò cio che potea la lingua nostra. Reler, também, mas por quê? E como?

Por que reler sempre a Comédia, se a memória é capaz de guardar mais ou menos fielmente os pontos mais altos, aqueles que se gravaram na consciência da humanidade? Não há quem ignore os famosos “grandes episódios”: Francesca da Rimini e Paolo que se perderam no amor sobre a leitura do livro alcoviteiro:

Quel giorno più non vi leggemo avante;

Pier delle Vigne, o suicida; Farinata, altivo, desafiando Deus, o mundo e os demônios
Com ‘avesse 1 ‘inferno in gran dispitto;

Ugolino e seu destino terrível; Ulisses que tentou os fins do mundo -
Infin che ‘1 mar fu sopra noi richi uso.

E não há quem não guarde na memória os muitos versos citáveis, a começar pelo intróito do Inferno que virou lugar-comum:

Lasciate ogni speranza, voi ch ‘entrate,

até sua antítese:

L ‘amor che move ii sole e 1 ‘altre stelle;

e esse outro verso que tantas vezes, durante a vida toda, me fortaleceu contra o tédio das controvérsias e contra a malecidência dos covardes e contra elogios e hostilidades efêmeras:

Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.

O próprio Dante parece ter previsto essa inextinguibilidade dos seus versos:

Tu lasci tal vestígio,
per quel eh ‘i ‘odo, in me e tanto chiaro,
ché Leté nol può torre né far higio.

Mas será esta a maneira certa de ler Dante? Conforme uma lenda antiga, o poeta teria escolhido o metro da terzina, com seu ferrenho esquema de rimas, para que ninguém pudesse tirar nem acrescentar um único verso. A Comédia é - em que pese a teoria do nosso mestre Benedetto Croce, que já tanto me perturbou - uma estrutura inteira, uma Ganzheit, como dizem os alemães, mas é preciso amadurecer até perceber, sentir, compreender isso e é preciso ler, reler e ler mais uma vez a obra até chegar a tanto e para isso até servem as leituras erradas dos primeiros anos e as leituras erráticas dos anos de vida ativa e as leituras distraídas das horas de ócio, até que em boa hora se nos abrem os olhos, nel mezzo dei cammin di nostra vita...

Meu primeiro Dante era uma edição para a mocidade, fartamente ilustrada por um artista medíocre qualquer, de quem não sei mais o nome, mas em compensação cuidadosamente expurgada. Passaram -se, desde então, tantos anos, não, tantos decênios, que só guardo recordação frágil daquela edição e, no entanto, por motivo especial que vou logo revelar, consegui já então verificar os expurgos feitos. No episódio deFrancesca da Rimini, no canto V do Inferno, os editores sacrificaram os dubbiosi disiri do verso 119 e o piacer si forte do verso 104; e o verso 136 - “La bocca mi baciò tutto tremante” caiu totalmente fora. Mas o expurgador também tremeu ao mutilar assim o poema; e para tranqüilizar sua consciência reuniu num apêndice os trechos suprimidos, para maior comodidade dos leitores juvenis. Se tivesse editado assim um Rabelais ou mesmo um Shakespeare, teria saído um dos livros mais pornográficos do mundo, e isto ad usum Delphini. Mas Dante é casto. Tanto mais aquele ilustrador soltou as rédeas de sua imaginação sádica. Lembro-me como se fosse hoje de suas gravuras, de mediocridade incrível: Francesca e Paolo, perseguidos pelo vendaval, estavam suspensos no ar como executados na forca; os Malebolge pareciam-se com ruas sinistras de subúrbio; os diabos, cozinheiros que com longas colheres remexiam os condenados em panelas ferventes; até os santos no Paraíso assustaram o leitor com barbas de tamanho sobrenatural. Quem me dera reaver agora esse livro feio, desaparecido junto com Robinson e Gulliver no naufrágio e esquecimento da infância. Talvez conseguisse ressuscitar um pouco da fé ingênua com que o leitor juvenil tomava tudo aquilo por absoluta verdade, as penas do Inferno, as nuvens que se desprendem do Purgatório e os esplendores divinos do Paraíso. Pois naquele tempo mais remoto hoje para mim que o tempo de Dante eu era realista, mais realista que a doutrina escolástica do poeta, e o outro mundo era mais verdadeiro que este que eu, feliz, ainda não conhecia. Era a realidade. Desaparecido aquele livro, surgiu outro Dante, o das edições da Divina Comédia, para o uso no ensino secundário, inexpurgado e sem ilustrações, mas com muitas notas explicativas ao pé de página, manuseadas por um estudante que já tinha lido Flaubert e um ou outro romance de Zola, e estava estupefato por reencontrar num poeta do século XIV o mais sugestivo realismo poético: o murmurar das águas frias do Adige (Inf, XII, 5) e aquela primeira metáfora de toda a literatura universal tirada do trabalho industrial, os fogos no arsenal dos venezianos.

Quale nell ‘arzanà de ‘Viniziani
boille l ‘inverso la tenace peca..

e naquele adjetivo que antecipa as correspondances de Baudelaire e todas as sinestesias da poesia moderna:

Lo giorno se n ‘andava, e 1 ‘aere bruno...

O outro mundo de Dante é todo real como este porque são propriamente idênticos; e o exercício de imaginação do jovem Galileu, calculando e medindo a altura de Lúcifer no mais baixo círculo do Inferno, foi boa preparação para o calcular e medir a velocidade dos corpos na queda e a distância da lua.

Não somente o Inferno de Dante é realidade. Realidade, embora um pouco antecipada, também é seu Paraíso, espécie de science-fiction da Idade Média; apenas muito mais perto da astronomia ptolemaica, então vigente, do que são científicos os science-fictions que ignoram soberanamente a astronomia de hoje; e, com todo o sabor da erudição teológica, mais humano. Pois as imaginações dos nossos dias são inspiradas pela técnica, mas a de Dante estava iluminada pela

Luce intellettual, piena d'amore.

Quem diz realismo, também diz humorismo. São inseparáveis - senão, a realidade chegaria a inspirar-nos o suicídio. Mas Dante, com toda sua simpatia pelo destino de Pier delle Vigne, estava acima da tentação, e em sua ira indignada contra todas as injustiças terrestres havia algo do gran dispitto do Farinata e algo da fúria vingativa dos demônios e sente-se uma simpatia propriamente humorística para com os diabos aos quais inventou nomes tão pitorescos: Malacoda e Scarmiglione, Alichino e Calabrina, Cagnazzo e Barbariccia, Draghignazzo e Ciriatto, Graffiacane, Rubicante e Farfarello. Parecem os sinistros-humorísticos servidores do Castelo de Kafka, desse Castelo cujo dono tem alguma semelhança com o da città di Dite. Também poderiam ser os nomes de malandros num racconto romano de Moravia. São humoristas sul generis, como os buffoni e os frades devassos e os vigaristas que povoaram as ruas de Florença de Boccaccio, formando o coro humorístico de acontecimentos grandiosos e trágicos que ensangüentaram as mesmas ruas; e foram essas ruas que me ensinaram o verdadeiro realismo de Dante Alighieri.

Encontrando-me em Florença, pela primeira vez, confesso que a mais forte impressão não foi a cúpula do Duomo, nem a fachada do Palazzo Pitti nem o Panteão de Santa Croce nem os quadros dos Uffizi
nem as esculturas do Bargello, mas talvez com exceção da Cappella Medici certos letreiros que
uma Administração municipal ilustrada tinha mandado colocar nas esquinas das ruas ou ao lado do portão de casas: pequenos ladrilhos de mármore, com dizeres relativos a acontecimentos ou personagens históricos relacionados com aquelas ruas e prédios; e os dizeres eram versos da Divina Comédia. Foram esses letreiros que me ensinaram o realismo histórico de Dante: a identidade do Inferno com a vida turbulenta, odiosa, vingativa do “Trecento” em Florença, a identidade da vida de Dante com o Purgatório e, em sua fé católica e filosofia escolástica, a realidade do Paraíso.

Numa das paredes laterais do Duomo de Florença existe um afresco - não é de alta qualidade artística e o pintor, Domenico di Michelino, não deixou nome imortal. Mas imortal é o assunto do quadro; à direita, a cidade de Florença, circunvalada de seus muros medievais dentro dos quais se reconhecem as silhuetas características do Duomo e do Palazzo Vecchio; à esquerda, embaixo, o abismo aberto do Inferno e, mais em cima, o monte do Purgatório e o paraíso terrestre: no alto, as esferas do céu; no meio, o altíssimo Poeta, com seu livro aberto na mão, olhando, serena mas severamente, para sua cidade e apontando-lhe com a outra mão a porta do Inferno. É um admirável resumo pictórico da Comédia e de sua significação atual, histórica. e não sei por que os guias, em Florença, não mostram esse quadro, antes de tudo, ao turista desejoso de compreender algo da incomparável grandeza dessa cidade em vez de persegui-lo por toda parte com seus alto-falantes idiotas, chamando very nice a Noite de Miguel Ángelo e invaluable os quadros do humilde Fra Angelico e perturbando a paz dos Giardini Boboli e de San Miniato. Só o barulho infernal que fazem lembra o “Trecento” e o Inferno.

Muitas vezes me demorei na quase vazia catedral de Savonarola, contemplando o quadro de Domenico di Michelino e acreditava ver o poeta abrir a boca e lançar a terrível maldição contra a volubilidade política da Florença “trecentesca”, as Constituições violadas e derrubadas, os golpes e revoltas, as inflações, as convulsões de doença da vida pública da cidade:

che foi tanto sottili
provvedimenti, eh ‘a mezzo novembre
non giugne quel che tu d’ottobre fili.
Quante volte, dei tempo che rimembre,
íegge, monda, officio e costume
hai tu mutato, e rinovato membre?
E se ben ti ricordi e vedi lume,
vedrai te sim igliante a quelía inferma
che no può Provar posa in su ie piume,
ma con dar volta suo dobre scherma

"...Dei tempo che rimembre!” O “Trecento” é uma remota recordação histórica, mas os versos dantescos são de uma perfeita e terrível atualidade. Quando eu, pela primeira vez, os recordei, no silêncio do Duomo de Florença, já tinha recomeçado lá fora a luta fraticida, apenas os Guelfos e Guibelinos do século XX ostentavam outros rótulos e tinham outras cores suas bandeiras. Foram os anos de 1930; violação de Constituições, golpes e revoltas, inflações, convulsões, e enfim, milhares e mais milhares foram atingidos pelo mesmo destino de Dante e de tantos outros italianos nobres: o exílio.

Também experimentei o exílio:

Nei mezzo dei cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
chè ia diritta via era smarrita.

No Evangelho, Jesus aconselha aos discípulos rezar “para que sua fuga não aconteça no inverno”. Pois bem, minha fuga aconteceu no inverno e tão impiedosa foi a perseguição que nem sequer consegui levar comigo o meu Dante, o exemplar tão usado que já estava em pedaços a encadernação barata. Mas já não precisava do livro para recordar certos versos gravados para sempre na memória, e entre esses versos aqueles que descrevem a sorte do exilado, o sabor amargo do pão no estrangeiro e a dura vergonha de bater, em vão, a portas fechadas
e descer as escadas, subidas com o último resto de esperança, assim como a Dante foi profetizado
o caminho do calvário do fuoruscito:

Tu proverai si tome sa di sale
lo pane altrui, e come è duro calle
lo scendere e 1 ‘sabir per 1 ‘altrui scale.

Mas achei a minha Verona. E não posso despedir-me dessas recordações sem lembrar que entre os amigos generosos, na hora do maior perigo, também havia generosos italianos. Enfim, encontrei o asilo na Bélgica e a nova pátria no Brasil, primeiro justamente aqui em São Paulo:

E quindi uscimmo a riveder le stelle.

Mas tenho para mim que sem essas experiências teria ficado incompleta minha experiência de Dante. Só passando pelas Malebolge desse mundo sem perder a vista para as stelle, se tem o Dante inteiro;
o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Só então se compreende o sentido vital da Divina Comédia, autobiografia espiritual do poeta e biografia permanente da existência humana.

O voi eh ‘avete e l ‘intelleti sani,
mirate la dottrina che s ‘asconde
solo ‘1 velame de li versi strani.

Foi essa compreensão que me livrou, enfim, da leitura episódica, como também do mero esteticismo que se esgota na admiração boquiaberta da perfeição formal do poema, do qual não se pode tirar um verso nem acrescentar um sem que o conjunto fique mutilado.É a compreensão existencial, mas já sem self-pity romântica, que é a base da interpretação estrutural dessa obra, a mais perfeita que jamais saiu de mente humana. E o reconhecimento do impiedoso realismo dantesco, mas sem esquecer que se trata de poesia, de “fantástico” no sentido de Croce: non fancy - que Coleridge condenava - mas imagination estruturada como se fosse realidade. Este já não é meu Dante, mas é meu Dante.

Olhando para trás, para o caminho percorrido, acredito perceber que as fases de minha leitura de Dante coincidem, embora em diferente ordem cronológica, com as fases que a critica dantesca percorreu. A leitura cheia de curiosidade de fatos reais, mas remotos e estranhos, corresponde à crítica factual dos positivistas; o relacionamento dos episódios e versos emocionantes à experiência própria da vida, corresponde à crítica dos românticos; e a compreensão do poema como um todo enquadrado em seu tempo e válido para todos os tempos corresponde à critica historicista. Haverá, amanhã, outras compreensões criticas e mais outras e mais outras, e meu Dante já terá deixado de ser meu porque ele sobrevive a todos nós. E quanto terei compreendido da dottrina che s ‘asconde sotto
‘1 velame de li versi strani?

O próprio Dante distinguiu quatro níveis de interpretação e compreensão do poema: o sentido literal e histórico, o sentido alegórico e tipológico, o sentido tropológico ou moral são outros nomes, escolásticos, daquelas fases de critica e, enfim, o sentido anagógico, ou místico. Mas será este último jamais acessível a nós mortais?
A questão é de ambição. Há quem escolha como lema de sua vida o verso mais famoso da Comédia:

E la sua volontate é nos tra pace.

Mas já que foi “Meu Dante” o tema que me foi proposto, peço licença para continuar na primeira pessoa do singular e confessar que minha ambição não voa tão alto. Como Petrarca, paire non trovo, a não ser que a encontre no último momento, quando a noite chamará para partir e quando, tendo visto tudo pela última vez, me lembrarei do meu Dante, com versos dele:

Ma la notte risurge e oramai
é da partir, ché tutto avem veduto.








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A lição de Canudos, sempre atual




Otto Maria Carpeaux



Todos, no Brasil, conhecemos Canudos. A rebelião dos sertanejos baianos, sob a chefia do sectário místico que se chamava Antônio Conselheiro, sacudiu fundamente os primeiros anos da vida republicana do País. É um dos episódios mais fascinantes da história brasileira e sobre este tema foi escrita uma das obras-primas da literatura nacional: Os Sertões, de Euclides da Cunha, que assistira às expedições militares contra aqueles fanáticos, notando como aqueles homens violentos, ignorantes, bárbaros chegaram a perturbar a pacata vida provinciana do Brasil de 1897, assustando os burgueses, os bacharéis, os poetas e até os oficiais do Exército.

Sobre os fatos de Canudos existem muitos livros e inúmeros estudos esparsos. Cada geração, das que se sucedem, encontra algo de novo naquela história impressionante. Nossa época atual também é capaz de encontrar algo de inusitado naquele acontecimento: um aspecto que antes não se tinha percebido. Canudos é, novamente, uma atualidade.

Euclides foi o primeiro que escreveu sobre Canudos. Era ex-oficial do Exército, grande escritor, homem culto e até erudito, mais tarde alto funcionário do Itamarati, professor do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Letras, enfim: pertencia às classes dirigentes do País. Mas a revolta de Canudos ensinou-lhe o fato de que a grande maioria dos brasileiros eram homens do campo, analfabetos, roídos pelas doenças, iludidos pelas superstições, um povo esmagado pela miséria. Esta era a realidade brasileira. Seguindo as lições da ciência de seu tempo, Euclides explicou essa realidade bárbara pelo clima adverso, pela esterilidade das terras e pela esterilidade mental das massas brasileiras, desses mulatos e mestiços que não têm capacidade para conquistar pelo trabalho um decente nível de vida. Explicou o acontecimento de Canudos em função da raça e do ambiente físico.

Mas a raça e o ambiente físico são fatores imutáveis. Ninguém é nem será jamais capaz de modificá-los. Então, sempre será assim como foi? Desgraças como a revolta selvagem dos miseráveis analfabetos de Canudos seriam capazes de repetir-se novamente? Mas então era preciso manter essas massas irresponsáveis sob o guante da disciplina severa dos governos fortes. Canudos parece ser, assim, justificativa perene para a existência e a manutenção das ditaduras.

Entretanto, assim não o é. Euclides da Cunha tinha estudado os aspectos geográficos e raciais de Canudos. Um estudioso de nossos dias, Rui Facó, examinou os aspectos sociais de Canudos: os fatores que não são imutáveis, mas que a história criou no passado e que, por isso, a história do futuro poderá modificar ou mesmo abolir. Quais foram esses fatores sociais de Canudos?

Os historiadores brasileiros costumam zombar da incrível ignorância desse chamado Antônio Conselheiro, desse sectário que chefiava os sertanejos de Canudos: pois em 1897, oito anos depois da proclamação da República, o homem ainda não queria tomar conhecimento dela e teimava em professar sua lealdade ao para ele ainda Imperador D. Pedro II. Mas, se olharmos mais de perto para a realidade de então, perceberemos que o homem tinha razão: a República não tinha, para os sertanejos, mudado nada, e o Brasil, sob um presidente da República, era o mesmo Brasil do Imperador, continuando os sertanejos dominados pelos mesmos latifundiários. O Brasil oficial negava, indignado, esse fato. Só um analfabeto poderia pensar assim. Acontece que os latifundiários, eles próprios, também pensavam assim. Pois quando os sertanejos de Canudos começaram a reunir-se em torno de seu chefe de seita, o major proprietário de terras da região, um típico barão-feudal, retirou dali sua família e seus pertences. O barão já parecia ter percebido o que Rui Facó nos ensina hoje: que o misticismo sectário de Canudos era a expressão da esperança de acabar com a miséria que há séculos oprimia os camponeses brasileiros e que continua a oprimí-los. Homens ignorantes e supersticiosos como aqueles, não sabiam nada de reivindicações sociais. Esperavam da Igreja a redenção, e quando os bispos e vigários, ligados às classes dominantes, não ouviram o grito de desespero, os sertanejos de Canudos separaram-se da Igreja, tornando-se sectários. O verdadeiro motivo dos movimentos rebeldes nos campos brasileiros é a estrutura da sociedade brasileira. Essa estrutura não é um fato da Natureza ou da Raça, que seria imutável. Foi criada pelos homens no passado e poderá ser modificada pelos homens, no futuro. Basta que se queira. Mas se queira de maneira adequada.

Como modificar a estrutura da sociedade brasileira, se ela é protegida e garantida pela política, pelas forças armadas, pelos grupos conservadores e por todos os Poderes Públicos?

Isso também nos ensinou Antônio Conselheiro. Mas só hoje começamos a compreender sua lição. É uma faceta de Canudos que até os dias que correm nunca foi devidamente apreciada: o aspecto tático-militar.

Como começaram as coisas? Os sertanejos de Canudos estavam, por volta de 1895, pacatamente reunidos em seu reduto, apenas trabalhando para seu sustento e o dos seus. Mas é isso que homens como o então Barão de Jeremoabo não toleram: pois querem que os camponeses trabalhem para o sustento dos barões, como hoje os grandes proprietários de terras querem que os camponeses trabalhem para o seu sustento. Surgiram, então, boatos de violências perpetradas pelos sertanejos e boatos da natureza perigosa das superstições que eles professavam; assim como ainda hoje surgem a toda hora, boatos de rebeldia, de "atos de terrorismo", e da periculosidade de "ideologias exóticas". Então, as autoridades resolveram agir.

Em novembro de 1896, o governo do Estado da Bahia mandou para

Canudos um batalhão da polícia estadual, bem armado, sob o comando do Tenente Pires Ferreira. Os sertanejos, atacados, defenderam-se com espingardas de caça, facões de mato e cacetes de madeira - e na escaramuça de Uauá obrigaram os policiais a fugir.

Em janeiro de 1897, o governo da Bahia voltou ao ataque, contando com o apoio do governo federal. Mandou para Canudos tropas estaduais e federais, sob o comando do Major Febrônio de Brito - que sofreu nova derrota.

Em fins de fevereiro de 1897, seguiu para Canudos verdadeiro destacamento misto, composto das três armas: infantaria, cavalaria e artilharia, sob o comando do Coronel Moreira César, temido pela sua energia e ferocidade e as tropas foram novamente derrotadas pelos sertanejos precariamente armados, que conheciam melhor o terreno e se tinham espalhado pela retaguarda das tropas. O próprio Coronel Moreira César foi, no campo de batalha, morto pelos rebeldes.

Enfim, só em junho de 1897, acabou tudo, mas, para tanto, foi necessário reunir três brigadas de infantaria, acompanhadas da artilharia, sob o comando do General Artur Oscar, que conquistou Canudos e mandou fuzilar milhares de sertanejos, cujos corpos foram barbaramente mutilados. Eis como não foi fácil vencer Canudos.

Sobre esse aspecto tático militar de Canudos não se falou nada, até hoje. Não se fala nada, aliás, sobre muitas coisas. Homenageia-se Euclides da Cunha, o historiador de Canudos, como grande figura das letras nacionais e do Exército Brasileiro e da Academia, mas não se conta ao povo que esse mesmo Euclides, em novembro de 1888, ousou jogar seu sabre de oficial aos pés do ministro da Guerra, para protestar contra uma lei iníqua. E não se conta que o mesmo Euclides organizou em São José do Rio Pardo, em 1.° de maio de 1901, a primeira festa de 1º de Maio socialista em solo brasileiro. Não querem saber de tais atos de rebelião social de um oficial do Exército Brasileiro. Pois sabem que fatores sociais explicam a fraqueza de qualquer exército do mundo, ante a revolta organizada dos oprimidos.

O Exército Brasileiro de 1897 podia ser, em comparação com os exércitos das grandes potências, materialmente obsoleto e taticamente fraco. Mas, em comparação com os sertanejos de Canudos, era tática e materialmente superior. Entretanto, mostrou-se vulnerável à tática das guerrilhas.

O Exército Brasileiro de hoje continua a não poder se comparar com os exércitos das grandes potências, seja em número, seja em apetrechos bélicos. Mas, os exércitos das grandes potências tampouco podem contra as guerrilhas. Antônio Conselheiro é o precursor de Mao-Tsé-Tung na China, de Boumedienne na Argélia e dos Vietcongues no Vietnã. Canudos foi a semente da China Brasileira, da Argélia Brasileira, do Vietcongue Brasileiro.

Mas - dirão vocês! - apesar de tudo os sertanejos de Canudos foram enfim derrotados! Sim, porque eram guerrilheiros improvisados e não conheciam bem os princípios da guerrilha: concentraram-se num reduto em vez de se espalharem pela região. Foi um erro.

Mas também os erros constituem ensinamento. O Canudos da segunda metade do século XX não será um reduto, um foco só, uma base só, mas o País inteiro. Será? Mas quando? Podemos esperar. E esperar indefinidamente? Não. Não é preciso esperar tanto.

Quando, em novembro de 1888, o então cadete Euclides da Cunha, em presença de todo o corpo de generais brasileiros, jogou seu sabre aos pés do ministro da Guerra do imperador, ninguém poderia saber que só um ano depois, em novembro de 1889, a monarquia, com todos os seus generais e ministros, já estaria desaparecida muito depressa: só um ano! Hoje, que as coisas andam muito mais depressa, é lícito acreditar que não precisaremos esperar muito, sobretudo se seguirmos os ensinamentos da lição de Canudos.

[Artigo datilografado, não assinado, que se encontra entre os papéis de Otto Maria Carpeaux, depositados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Uma correção autógrafa, na penúltima linha, a palavra depressa, autoriza a atribuição.]

© 1997 Revista Cultura Vozes






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RETRATO DO VIRTUOSE


Os grandes violinistas, quando chamados pelo público depois do fim do concerto, deixam-se ainda arrancar algumas peças extras, umas danças ou capriccios inofensivos, valoriza-dos por dificuldades técnicas artificialmente acumuladas que deslumbram a platéia. Às vezes, entre esses extras aparecem peças algo diferentes, de dificuldade extraordinária, mas também de força elementar, quase demoníaca: a um grande poeta já sugeriram imagens das mais esquisitas — um minuto em salão aristocrático do Rococó, um assassínio por ciúmes, corais fúne-bres, ou remorsos violentos do criminoso, o grito de triunfo do diabo, até uma forte arcada de desespero interromper as visões fantásticas. Essas peças são de Paganini.
Biógrafos, libretistas e cineastas maltrataram-no bastante:
às vezes aparece como gênio sobre-humano, outras vezes como charlatão ridículo. Talvez fosse isto e aquilo ao mesmo tempo?
A vida de Nicolo Paganni foi mesmo sensacional como um filme, rápido e de fim abrupto. Nascera em Gênova como filho de um estivador que reconheceu cedo o talento musical do menino; o pai viveria explorando-o. Impôs ao pobre garoto exercícios intermináveis, dez, doze, catorze horas por dia, man-tendo-o trancado num quarto escuro. Mais tarde, Paganini con-servará esse “método”: como amante das Elisa Bacciochi e Paulina Borghese, princesas de estilo rococó na época napoleô-nica, trancou-se nas abandonadas vilas de caça de Parma e Lucca, ensaiando a execução de peças dificílimas em duas cor-das só, enfim em uma corda só. Também se aproveitou da so-lidão para estudar perante o espelho poses fantásticas, diabóli-cas, que assustaram depois os cortesãos. Rapidamente o sonho das cortes napoleônicas se desvaneceu. Para gostar daquelas poses só ficou o judeu inglês George Hanys, homem muito esperto, o primeiro grande empresário da vida musical do século XIX. Foi ele que levou o mestre, que contava então já com mais de 40 anos, para Viena. Em 1828, Paganini deu o primeiro con-certo, empolgando, subjugando o público da cidade de Beetho-ven. Em 1829 e 1831 repetiram-se em Berlim e Paris os êxitos sensacionais, devidos à virtuosidade extraordinária do violinista - e à sua apresentação não menos extraordinária. No palco apa-receu um sujeito alto, palidíssimo, magérrimo, vestindo fraque lamentável, curvando-se perante o público em reverências enor-mes, ridículas, sinistras, diabólicas. Contudo o recital começou com obras de feição clássica que o próprio Paganini compusera no estilo nobre do século XVIII; o seu concerto La Campanella é uma obra-prima à maneira de Corelli e Tartini, dos grandes mestres do passado. Depois, o salão aristocrático transforma-se em sala dos bailes fantásticos do Carnaval de Veneza, em lugar de reunião noturna das Bruxas, é assim como se chamam aque-las pequenas peças de Paganini - a mão esquerda do violinista toca acordes inéditos de três, de quatro tons, a velocidade cresce rapidamente, pizzicati infernais alternam com acordes sonoros de que o violino parecia incapaz, o virtuose já toca em uma corda só verdadeiras sinfonias, até uma forte arcada fazer desa-parecer, de repente, a visão diabólica. Assim Heine descreveu, num folhetim famoso, o concerto de Paganini. Depois, nova-mente as reverências meio cômicas, meio sinistras: com um sorriso sarcástico despede-se o mestre, carregando para o hotel um dinheirão tal como nunca um músico ganhara. Desaparece no dia seguinte, viajando ou antes fugindo para outra cidade. Dizia-se que deixam um cheiro de enxofre.
Já em Viena, na ocasião do primeiro concerto, os supers-ticiosos explicaram as artes extraordinárias do virtuose, por um pacto que teria concluído com o diabo; alegaram ter visto um homenzinho corcunda, muito suspeito em sua companhia. Em Paris — onde Heine o ouviu - acusaram-no de um assassínio misterioso; em Londres, do rapto de uma menina. Em Bruxelas, os católicos chegaram a vaiar o novo Fausto. De repente, Paga-nini desapareceu. Já amontoara bastante dinheiro? Ou então, o
próprio diabo o levara? Na verdade, morreu na Riviera, de tu-berculose da laringe. As autoridades eclesiásticas recusaram o enterro ritual. Deixou... Vinte e cinco milhões de francos, um Guarnierio preciosíssimo (guardado hoje no museu de Gênova) e sete Stradivarius, dos quais o melhor desapareceu sem vestí-gios. Assim como se perderam as armas do violinista Paganini. Da sua vida fantástica apenas ficou vaga reminiscência, como uma sombra na parede, como se fosse reminiscência de cinema.
Nunca mais um virtuose conseguiu tanto êxito, nem um Liszt, nem um Sarasate. Os virtuoses de hoje, então, são pobres diabos em comparação com Paganini, que o mais severo dos seus críticos contemporâneos, Fétis, comparara a Napoleão. Aí se vislumbra a explicação do fenômeno. A Europa de 1830 era, depois das tempestades da Revolução e das Guerras Napoleôni-cas, essencialmente apolítica. Governos patriarcais e polícias vi-gilantes nem permitiam a ocupação com os negócios públicos. Notícias de teatro e concerto encheram os jornais. Eram os dias áureos do pianista Liszt, da cantora Henriette Sountag, da bai-larina Taglioni. Em vez de a gente se bater nas barricadas, lu-tava-se nas ruas para tirar os cavalos do coche da cantora, para levar nos ombros o pianista. Paganini foi o maior entre esses Napoleão da sala de concerto. E aqueles dias idílicos e fantás-ticos não voltam mais. No entanto a explicação fica incompleta.
As nossas salas de concerto, hoje, são muito maiores do que naqueles tempos. Enche-as uma massa muito mais numerosa, capaz de tempestades de entusiasmo, violentas e contagiosas. Recursos inéditos de publicidade e da técnica conquistam o mundo aos cantores, aos pianistas, aos violinistas, que carregam cheques e mais cheques. Em comparação, Paganini foi um pobre-diabo. Também o seria na sala de concerto, porque aquelas artes inéditas que deslumbraram Viena e Paris são hoje domínio de todos os mestres do instrumento: todos sabem tocar acordes, bater pizzicati, usar uma corda só, fingindo polifonias, aumentar a velocidade até o público perder o fôlego. Muitos entre eles dis-põem de uma cultura musical pelo menos tão sólida como fora Paganini, embora lhes faltem as suas ligações com a grande
tradição dos Corelli e Tartini. Mas o que certamente lhes falta é a personalidade demoníaca; existe, conforme Nietzsche, um dir--se-ia genial. E no gênio, elemento mistificador que se aproxima do charlatanismo. Gênio e charlatão ao mesmo tempo, Paganini foi a expressão máxima, embora fugitiva, da música romântica.
No tempo de Paganini nasceu o culto romântico do génio; Carlyle é quase contemporâneo seu. Contemporâneo seu é, exa-tamente, Balzac, que foi, conforme Sainte-Beuve, o primeiro grão-mestre da “literatura industrializada”. Os que pagaram com preços fantásticos os camarotes nos concertos de Paganini foram os banqueiros do juste-milieu, os primeiros empresários de es-tradas de ferro. O culto romântico do gênio é uma espécie de reação desesperada da arte contra a época da industrialização. Os próprios concertos de música industrializaram-se, sendo transfe-ridos dos salões aristocráticos para as grandes salas públicas. A intimidade entre artista e conhecedor foi substituída pelo sensa-cionalismo. Até um Byron foi sensacionalista, encenando peran-te o público a sua própria pessoa. Paganini, homem de outros tempos, venceu porque também sabia encenar-se.
Com efeito, veio de outros tempos: filho do século XVIII, herdeiro da tradição sólida dos Corelli e Tartini, os seus concer-tos, como La Campanella, dão testemunho disso. Até os 40 anos de idade não pensou em tocar para o grande público. Para ele, mesmo depois da Revolução Francesa, a cultura musical do Rococó sobreviveu nas pequenas cortes napoleônicas da Itália. Mas em 1815 começou o século XIX. Do salão, Paganini pulou para o palco; foi um salto-mortal diabólico, transformando-o em feiticeiro do violino, em mistura curiosa de charlatão e prima-dona. A esse virtuosismo Paganini subordinou sua técnica iné-dita do instrumento. A essa técnica serviram recursos inéditos da publicidade, os artigos pagos nos jornais, os escândalos arranja-dos, os boatos diabólicos habilmente espalhados. E o diabo que realizou esses milagres infernais, e suspeito homenzinho corcun-da, foi Mr. George Hartys, o primeiro grande empresário. Fala-va-se muito, então, da avareza de Paganini, acumulando mi-lhões. Mas esse homem foi capaz de dar 25 mil francos de uma
vez para ajudar o gênio Berlioz, então desconhecido, pobre e ridicularizado. Na verdade, Paganini foi, nos tempos de adoles-cência do capitalismo, o primeiro artista que não quis dar de presente a sua arte, exigindo honorários decentes da parte de banqueiros e empresários de estradas de ferro. Foi mesmo o primeiro artista-capitalista. Na sala de concertos, sabia improvi-sar às maravilhas, assim como aqueles improvisaram especula-ções na Bolsa. Mas a sua técnica, nos seus negócios, era mais sólida. Foi possivelmente a única vez que se realizou a síntese completa e perfeita de grande arte e grande charlatanaria, reuni-das numa grande personalidade demoníaca.
Depois, a personalidade foi derrotada pela publicidade. A organização venceu a arte. A técnica tomou-se independente. O violino mecanizou-se. Os violinistas de hoje sabem fazer tudo o que Paganini sabia fazer, e mais. A propaganda é todo-poderosa:
até é capaz de inventar gênios, sendo já ninguém capaz de dis-tingui-los dos charlatães. Alguns contemporâneos vienenses de Paganini entristeceram-se porque a sua sombra diabólica fez esquecer a grande sombra de Beethoven, morto um ano antes do primeiro concerto do virtuose. Um século mais tarde, Paganini está esquecido, mas um Spengler prevê o dia em que Beethoven lhe acompanhará o destino: quando uma humanidade tecnica-mente civilizadíssima não verá mais nada numa partitura do mestre do que um farrapo de papel. Então, da nossa civilização inteira não ficaria nada do que uma sombra fantástica na parede, como se fosse reminiscência de cinema.







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SOBRE A TÉCNICA DE CONRAD



No prefácio de um dos seus romances, Joseph Conrad definiu a tarefa do romancista da maneira seguinte: “E a minha tarefa fazer ouvir as coisas ao leitor pelo poder da palavra escrita, fazê-lo ouvir, sentir e principalmente ver. Isto, e mais nada, mas é tudo”. Parece a profissão de fé de um poeta descritivo, pour qui le monde visible existe. Fazer ouvir, sentir, ver, sugerir-nos que teríamos assistido a um acontecimento inventado, não é pouca coisa. Contudo, a técnica que consegue esse fim, parece-nos antes o ponto de partida do que a finalidade da arte novelística. E esta técnica (“mais nada”) seria tudo? E o enredo, os personagens, a psicologia, os problemas? Aquela definição afigura-se-nos muito modesta. Não se compreende, então, o esforço enorme que Conrad dedicou às suas obras: as noites de insónia, as discussões intermináveis, os acessos de desespero e auto-acusações de incapacidade, tudo isso de que a correspondência de Conrad dá testemunho comovente. Toda aquela profunda preocupação artística e moral, só para “fazer ver”?
O que foi afinal aquilo que criou tantas dificuldades até se tomar visível? Sabe-se que Conrad explorou materiais autobiográficos; pretendeu “fixar” as reminiscências dos seus tempos de oficial da marinha mercante:, tempestades e calmas perigosas, portos exóticos, contrabandistas e amotinados, crimes abomináveis no interior da Malásia e do Congo, incêndios, traições e salvações no alto-mar - enfim o arsenal inteiro do romance de aventuras. O símbolo da obra de Conrad seria um navio, sulcando o mar noturno com destino desconhecido, um navio carregando cadáveres de assassinados mas iluminado pela inspiração heróica de cumprir o dever. England expects every officer and man to do his duty this day e sempre; a preocupação do romancista de ligar os seus ideais às tradições da bandeira inglesa seria capaz de comover oficiais reformados da marinha daquele país que passam o ócio lendo romances - mas nem para todos a bandeira inglesa significa liberdade; e isso não facilita a tarefa de nos identificar pela simpatia com os personagens e acontecimentos até os “ver”. Contudo a crítica literária reconhece unanimemente a grandeza de Conrad na sua preocupação com os “valores” que “mantêm a terra e suspendem o céu” de uma humanidade “abandonada por Deus”. Mas aí nos ocorre que os portadores dos ideais conradianos - dever, fidelidade, sacrifício - são gente da marinha mercante, agentes de casas comerciais em países exóticos e outros assalariados. Em tempo de paz, até os soldados de Sua Majestade Britânica são mercenários. Cadê o heroísmo?
Não é fácil tornar acreditável uma documentação desta espécie. O romance de aventuras comum nem tem essa pretensão; basta provocar no leitor um interesse momentâneo, subcutâneo, o “suspense”, que desaparece logo depois da leitura. Conrad pretende, porém, infiltrar-se na nossa consciência. Aos valores permanentes que a sua arte representa corresponde a verdade permanente dos seus enredos e caracteres. Força é acreditarmos realmente na verdade do que o romancista nos conta, assim como acreditamos na realidade de acontecimentos aos quais temos assistido. Para esse fim é preciso torná-los visíveis.
Como conseguir isso? Os realistas-naturalistas, de Balzac a Zola, pretenderam produzir aquela impressão, descrevendo tudo, acumulando pormenores. Flaubert, que também cometeu o Bonnet de Bovary, abraçou pelo menos na teoria outro ideal, o do mot juste. Ensinou ao seu discípulo Maupassant a “ver uma árvore, em vez de descrever a árvore inteira, com todos os pormenores, observá-la longamente até descobrir um pormenor, um único, que ninguém ainda observara; depois, exprimir esse pormenor significativo pelo mot juste - e a árvore estará visível. Conrad adorava essa teoria; mas não chegou a imitá-la. Sabia observar como poucos; mas o seu reduzido domínio da língua inglesa impediu-lhe encontrar o mot juste. Em compensação, compreendeu profundamente a natureza do precioso conselho flaubertiano: o máximo da visibilidade é conseguido pela limitação voluntária do raio de observação. E ótimo método para descrever objetos. Mas a tarefa do romancista consiste em movimentar os seus objetos. Então Conrad aproveitou-se de maneira engenhosíssima do método da “limitação voluntária do raio de observação”.
Os romancistas de todos os tempos contaram diretamente os destinos dos seus personagens. Sabiam (quer dizer, inventaram) tudo deles, comunicando ao leitor o que convinha para provocar interesse, explicar motivos, tomar compreensíveis o começo, o meio e o fim. Os romancistas eram, em relação aos seus enredos, oniscientes. Conrad, sabendo limitado o raio de ação da sua memória, renunciou à onisciência. Eis a raiz da sua técnica.
O personagem principal da novela The Heart of Darkness é Kurtz, agente de uma empresa no interior do Congo, sujeito terrivelmente pervertido pelo calor, pelo sadismo, pelo ambiente selvagem, acabando em meio dos indígenas. Conrad, viajando pelo Congo, conheceu pessoalmente esse personagem sinistro; mas soube da história dele só pelos boatos que percorreram a colônia. Então, o novelista não se sentiu capaz de contar diretamente os acontecimentos. Inventou o personagem de um capitão Marlow, este também insuficientemente informado, que volta para a Inglaterra, encarregado de dizer a verdade à noiva de Kurtz. Durante a viagem talvez não tenha pensado nas dificuldades da sua missão. O aspecto do Tâmisa nas névoas evoca-lhe as trevas do continente africano. Pouco a pouco surgem-lhe, como através de um véu, as lembranças. Enfim, não terá a coragem de dizer a verdade à moça. O leitor tampouco saberá tudo da história de Kurtz; mas sabe o que basta para nunca o esquecer jamais, porque o viu.
A história, indiretamente narrada, de Kurtz foi uma primeira tentativa. Mas Conrad não largará mais seu precioso informador Marlow. Este reapareceu em Lord Jim, história de um jovem oficial de marinha mercante que abandonou covardemente o navio sinistrado e os passageiros, passando depois a vida no
ostracismo em perdidos portos exóticos, esperando a oportunidade para restabelecer sua honra por um ato de sacrifício. Após rápida introdução sobre os antecedentes de Jim, Marlow toma a palavra: ele, que assistiu ao processo contra Jim perante o tribunal marítimo, conta o que soube aos seus amigos, depois de um jantar em Londres. E muito, muito depois, um dos amigos que jantaram com Marlow naquela noite recebeu do capitão uma carta, relatando o heroísmo final de Jim. Aí Marlow já aparece com duas vozes diferentes: os acontecimentos trágicos no alto-mar e perante o tribunal refletem-se numa conversa com café e charutos; o fim heróico de Jim é lido à luz duma lâmpada noturna, na capital do Império, que precisa de homens assim.
Marlow volta na obra-prima de Conrad, The Chance, seu romance mais complexo. Aí, o capitão sabe, o que sabe, só de segunda e terceira mão: pelo tenente Powell, testemunha fiel, ingénua e incompreensiva; por Mrs. Fyne, mulher hostil à heroína Flora, e pelo próprio Fyne - mas o que estes sabem sobre a vida de Flora, só sabem mesmo pela própria Flora, que pretende ocultar sua vida tempestuosa, só pouco a pouco revelada pelos acontecimentos que a redimirão. E nestes três “espelhos” narrativos reflete-se o espírito de Marlow, que pretende decifrar o enigma da “chance”: da oportunidade que a vida nos oferece para vencermos o fado.
Apenas em Victory Conrad não empregou o intermediário Marlow: aí, o mal aparece abertamente na pessoa do fantástico Davy Jones (nome que os marujos ingleses dão à morte) e o ideal na pessoa da perdida Lena, salvando, pelo sacrifício da própria vida, o cético Heyst, que não acreditava em sacrifícios. Aí a presença de Marlow não foi precisa para tomar acreditável o fim. É a vitória de Conrad sobre a sua própria técnica.
São “histórias marítimas”, “romances exóticos”. Mas não é o exotismo que importa; foi a técnica novelística de Conrad que lhe custou noites de insónia, revolucionando a arte do romance.
No romance, a técnica de Conrad significa uma revolução. Mas na realidade, não. Pois na vida ninguém nos conta sua biografia inteira quando o conhecemos. E só em pedaços, pouco a pouco, e de maneira sempre incompleta que se nos desvendam as vidas dos outros - e as nossas próprias vidas. Experimentamos a vida assim como lemos os romances de Conrad: daí, a sua técnica é um supremo recurso para “imitar” a realidade, para fazer-nos ver e acreditar. Foi difícil; mas não porque os enredos de Conrad eram exóticos, e sim porque a vida é assim, complicada e difícil. A vida, a minha, a vossa, a da humanidade inteira, também se parece com uma viagem pelo mar noturno, destino desconhecido, talvez para a victory, talvez para o desastre. Esperam-se os crimes e covardias; é difícil acreditar no sacrifício, no heroísmo, no simples cumprimento do dever. Nem se pode pensar nisso: vivemos simplesmente para ganhar a vida, assim como os mercenários a soldo de Sua Majestade Britânica. Mas estes já deram, mais do que uma vez, o exemplo de perder a vida assalariada para salvar, “mediante pagamento”, a liberdade de todos e a “suma do que dá valor à vida”, merecendo o epitáfio que Alfred Edward Housman, pensando nos heróis de Conrad, lhes dedicou:

These, in the day when heaven was falling,
The hour when earth’ s foundations fled,
Follow’ d their mercenary calling
And took their wages and are dead.

Their shoulders held the sky suspended.
They stood, and earth’s foudations stay,
‘What God abandon’d these defended,
And saved the sum of things for pag.





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SOBRE A TÉCNICA DE CONRAD



No prefácio de um dos seus romances, Joseph Conrad definiu a tarefa do romancista da maneira seguinte: “E a minha tarefa fazer ouvir as coisas ao leitor pelo poder da palavra escrita, fazê-lo ouvir, sentir e principalmente ver. Isto, e mais nada, mas é tudo”. Parece a profissão de fé de um poeta descritivo, pour qui le monde visible existe. Fazer ouvir, sentir, ver, sugerir-nos que teríamos assistido a um acontecimento inventado, não é pouca coisa. Contudo, a técnica que consegue esse fim, parece-nos antes o ponto de partida do que a finalidade da arte novelística. E esta técnica (“mais nada”) seria tudo? E o enredo, os personagens, a psicologia, os problemas? Aquela definição afigura-se-nos muito modesta. Não se compreende, então, o esforço enorme que Conrad dedicou às suas obras: as noites de insónia, as discussões intermináveis, os acessos de desespero e auto-acusações de incapacidade, tudo isso de que a correspondência de Conrad dá testemunho comovente. Toda aquela profunda preocupação artística e moral, só para “fazer ver”?
O que foi afinal aquilo que criou tantas dificuldades até se tomar visível? Sabe-se que Conrad explorou materiais autobiográficos; pretendeu “fixar” as reminiscências dos seus tempos de oficial da marinha mercante:, tempestades e calmas perigosas, portos exóticos, contrabandistas e amotinados, crimes abomináveis no interior da Malásia e do Congo, incêndios, traições e salvações no alto-mar - enfim o arsenal inteiro do romance de aventuras. O símbolo da obra de Conrad seria um navio, sulcando o mar noturno com destino desconhecido, um navio carregando cadáveres de assassinados mas iluminado pela inspiração heróica de cumprir o dever. England expects every officer and man to do his duty this day e sempre; a preocupação do romancista de ligar os seus ideais às tradições da bandeira inglesa seria capaz de comover oficiais reformados da marinha daquele país que passam o ócio lendo romances - mas nem para todos a bandeira inglesa significa liberdade; e isso não facilita a tarefa de nos identificar pela simpatia com os personagens e acontecimentos até os “ver”. Contudo a crítica literária reconhece unanimemente a grandeza de Conrad na sua preocupação com os “valores” que “mantêm a terra e suspendem o céu” de uma humanidade “abandonada por Deus”. Mas aí nos ocorre que os portadores dos ideais conradianos - dever, fidelidade, sacrifício - são gente da marinha mercante, agentes de casas comerciais em países exóticos e outros assalariados. Em tempo de paz, até os soldados de Sua Majestade Britânica são mercenários. Cadê o heroísmo?
Não é fácil tornar acreditável uma documentação desta espécie. O romance de aventuras comum nem tem essa pretensão; basta provocar no leitor um interesse momentâneo, subcutâneo, o “suspense”, que desaparece logo depois da leitura. Conrad pretende, porém, infiltrar-se na nossa consciência. Aos valores permanentes que a sua arte representa corresponde a verdade permanente dos seus enredos e caracteres. Força é acreditarmos realmente na verdade do que o romancista nos conta, assim como acreditamos na realidade de acontecimentos aos quais temos assistido. Para esse fim é preciso torná-los visíveis.
Como conseguir isso? Os realistas-naturalistas, de Balzac a Zola, pretenderam produzir aquela impressão, descrevendo tudo, acumulando pormenores. Flaubert, que também cometeu o Bonnet de Bovary, abraçou pelo menos na teoria outro ideal, o do mot juste. Ensinou ao seu discípulo Maupassant a “ver uma árvore, em vez de descrever a árvore inteira, com todos os pormenores, observá-la longamente até descobrir um pormenor, um único, que ninguém ainda observara; depois, exprimir esse pormenor significativo pelo mot juste - e a árvore estará visível. Conrad adorava essa teoria; mas não chegou a imitá-la. Sabia observar como poucos; mas o seu reduzido domínio da língua inglesa impediu-lhe encontrar o mot juste. Em compensação, compreendeu profundamente a natureza do precioso conselho flaubertiano: o máximo da visibilidade é conseguido pela limitação voluntária do raio de observação. E ótimo método para descrever objetos. Mas a tarefa do romancista consiste em movimentar os seus objetos. Então Conrad aproveitou-se de maneira engenhosíssima do método da “limitação voluntária do raio de observação”.
Os romancistas de todos os tempos contaram diretamente os destinos dos seus personagens. Sabiam (quer dizer, inventaram) tudo deles, comunicando ao leitor o que convinha para provocar interesse, explicar motivos, tomar compreensíveis o começo, o meio e o fim. Os romancistas eram, em relação aos seus enredos, oniscientes. Conrad, sabendo limitado o raio de ação da sua memória, renunciou à onisciência. Eis a raiz da sua técnica.
O personagem principal da novela The Heart of Darkness é Kurtz, agente de uma empresa no interior do Congo, sujeito terrivelmente pervertido pelo calor, pelo sadismo, pelo ambiente selvagem, acabando em meio dos indígenas. Conrad, viajando pelo Congo, conheceu pessoalmente esse personagem sinistro; mas soube da história dele só pelos boatos que percorreram a colônia. Então, o novelista não se sentiu capaz de contar diretamente os acontecimentos. Inventou o personagem de um capitão Marlow, este também insuficientemente informado, que volta para a Inglaterra, encarregado de dizer a verdade à noiva de Kurtz. Durante a viagem talvez não tenha pensado nas dificuldades da sua missão. O aspecto do Tâmisa nas névoas evoca-lhe as trevas do continente africano. Pouco a pouco surgem-lhe, como através de um véu, as lembranças. Enfim, não terá a coragem de dizer a verdade à moça. O leitor tampouco saberá tudo da história de Kurtz; mas sabe o que basta para nunca o esquecer jamais, porque o viu.
A história, indiretamente narrada, de Kurtz foi uma primeira tentativa. Mas Conrad não largará mais seu precioso informador Marlow. Este reapareceu em Lord Jim, história de um jovem oficial de marinha mercante que abandonou covardemente o navio sinistrado e os passageiros, passando depois a vida no
ostracismo em perdidos portos exóticos, esperando a oportunidade para restabelecer sua honra por um ato de sacrifício. Após rápida introdução sobre os antecedentes de Jim, Marlow toma a palavra: ele, que assistiu ao processo contra Jim perante o tribunal marítimo, conta o que soube aos seus amigos, depois de um jantar em Londres. E muito, muito depois, um dos amigos que jantaram com Marlow naquela noite recebeu do capitão uma carta, relatando o heroísmo final de Jim. Aí Marlow já aparece com duas vozes diferentes: os acontecimentos trágicos no alto-mar e perante o tribunal refletem-se numa conversa com café e charutos; o fim heróico de Jim é lido à luz duma lâmpada noturna, na capital do Império, que precisa de homens assim.
Marlow volta na obra-prima de Conrad, The Chance, seu romance mais complexo. Aí, o capitão sabe, o que sabe, só de segunda e terceira mão: pelo tenente Powell, testemunha fiel, ingénua e incompreensiva; por Mrs. Fyne, mulher hostil à heroína Flora, e pelo próprio Fyne - mas o que estes sabem sobre a vida de Flora, só sabem mesmo pela própria Flora, que pretende ocultar sua vida tempestuosa, só pouco a pouco revelada pelos acontecimentos que a redimirão. E nestes três “espelhos” narrativos reflete-se o espírito de Marlow, que pretende decifrar o enigma da “chance”: da oportunidade que a vida nos oferece para vencermos o fado.
Apenas em Victory Conrad não empregou o intermediário Marlow: aí, o mal aparece abertamente na pessoa do fantástico Davy Jones (nome que os marujos ingleses dão à morte) e o ideal na pessoa da perdida Lena, salvando, pelo sacrifício da própria vida, o cético Heyst, que não acreditava em sacrifícios. Aí a presença de Marlow não foi precisa para tomar acreditável o fim. É a vitória de Conrad sobre a sua própria técnica.
São “histórias marítimas”, “romances exóticos”. Mas não é o exotismo que importa; foi a técnica novelística de Conrad que lhe custou noites de insónia, revolucionando a arte do romance.
No romance, a técnica de Conrad significa uma revolução. Mas na realidade, não. Pois na vida ninguém nos conta sua biografia inteira quando o conhecemos. E só em pedaços, pouco a pouco, e de maneira sempre incompleta que se nos desvendam as vidas dos outros - e as nossas próprias vidas. Experimentamos a vida assim como lemos os romances de Conrad: daí, a sua técnica é um supremo recurso para “imitar” a realidade, para fazer-nos ver e acreditar. Foi difícil; mas não porque os enredos de Conrad eram exóticos, e sim porque a vida é assim, complicada e difícil. A vida, a minha, a vossa, a da humanidade inteira, também se parece com uma viagem pelo mar noturno, destino desconhecido, talvez para a victory, talvez para o desastre. Esperam-se os crimes e covardias; é difícil acreditar no sacrifício, no heroísmo, no simples cumprimento do dever. Nem se pode pensar nisso: vivemos simplesmente para ganhar a vida, assim como os mercenários a soldo de Sua Majestade Britânica. Mas estes já deram, mais do que uma vez, o exemplo de perder a vida assalariada para salvar, “mediante pagamento”, a liberdade de todos e a “suma do que dá valor à vida”, merecendo o epitáfio que Alfred Edward Housman, pensando nos heróis de Conrad, lhes dedicou:

These, in the day when heaven was falling,
The hour when earth’ s foundations fled,
Follow’ d their mercenary calling
And took their wages and are dead.

Their shoulders held the sky suspended.
They stood, and earth’s foudations stay,
‘What God abandon’d these defended,
And saved the sum of things for pag.








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