Espumas Flutuantes
Castro Alves
Fonte:
ALVES, Castro. Espumas flutuantes. in Poesias Completas. São Paulo : Ediouro, s.d. (Prestígio).
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
Prólogo
ERA POR UMA dessas tardes em que o azul do céu oriental — é pálido e saudoso, em que o rumor do vento nas vergas — e monótono e cadente, e o quebro da vaga na amurada do navio— e queixoso e tétrico.
Das bandas do ocidente o sol se atufava nos mares ''como um brigue em chamas..." e daquele vasto incêndio do crepúsculo alastrava-se a cabeça loura das ondas.
Além... os cerros de granito dessa formosa terra de Guanabara, vacilantes, a lutarem com a onda invasora de azul, que descia das alturas... recortavam-se indecisos na penumbra do horizonte.
Longe, inda mais longe... os cimos fantásticos da serra dos Órgãos embebiam-se na distância sumiam-se, abismavam-se numa espécie de naufrágio celeste.
Só e triste, encostado à borda do navio, eu seguia com os olhos aquele esvaecimento indefinido e minha alma apegava-se à forma vacilante das montanhas — derradeiras atalaias dos meus arraiais da mocidade.
E que lá, dessas terras do sul, para onde eu levara o fogo de todos os entusiasmos, o viço de todas as ilusões, os meus vinte anos de seiva e de mocidade, as minhas esperanças de glória e de futuro;. . . é que dessas terras do sul, onde eu penetrara "como o moço Rafael subindo as escadas do Vaticano";... volvia agora silencioso e alquebrado... trazendo por única ambição—a esperança de repouso em minha pátria.
Foi então que, em face destas duas tristezas — a noite que descia dos céus,—a solidão que subia do oceano—, recordei-me de vós, ó meus amigos!
E tive pena de lembrar que em breve nada restaria do peregrino na terra hospitaleira, onde vagara; nem sequer a lembrança desta alma, que convosco e por vós vivera e sentira, gemera e cantara. . .
Ó espíritos errantes sobre a terra! Ó velas enfunadas sobre os mares!.. . Vós bem sabeis quanto sais efêmeros... —passageiros que vos absorveis no espaço escuro, ou no escuro esquecimento.
E quando—comediantes do infinito— vos obumbrais nos bastidores do abismo, o que resta de vós?
— Uma esteira de espumas.. — flores perdidas na vasta indiferença do oceano.— Um punhado de versos... —espumas flutuantes no dorso fero da vida!...
E o que são na verdade estes meus cantos?...
Como as espumas, que nascem do mar e do céu, da vaga e do vento, eles são filhos da musa—este sopro do alto: do coração _ este pélago da alma.
E como as espumas são, às vezes, a flora sombria da tempestade, eles por vezes rebentaram ao estalar fatídico do látego da desgraça
E como também o aljofre dourado das espumas reflete as opalas, rutilantes do arco-íris, eles por acaso refletiram o prisma fantástico da ventura ou do entusiasmo— estes signos brilhantes da aliança de Deus com a juventude!
Mas, como as espumas flutuantes levam, boiando nas solidões marinhas, a lágrima saudosa do marujo... possam eles, ó meus amigos!—efêmeros filhos de minh'ahna—levar uma lembrança de mim às vossas plagas!
CASTRO ALVES
Espumas Flutuantes
À MEMÓRIA
DE
MEU PAI, DE MINHA MÃE E DE MEU IRMÃO
O. D. C.
Dedicatória
Apomba d'aliança o vôo espraia
Na superfície azul do mar imenso,
Rente... rente da espuma já desmaia
Medindo a curva do horizonte extenso...
Mas um disco se avista ao longe... A praia
Rasga nitente o nevoeiro denso!...
O pouso! ó monte! ó ramo de oliveira!
Ninho amigo da pomba forasteira!...
Assim, meu pobre livro as asas larga
Neste oceano sem fim, sombrio, eterno...
O mar atira-lhe a saliva amarga,
O céu lhe atira o temporal de inverno...
O triste verga à tão pesada carga!
Quem abre ao triste um coração paterno?...
É tão bom ter por árvore—uns carinhos!
É tão bom de uns afetos — fazer ninhos!
Pobre órfão! Vagando nos espaços
Embalde às solidões mandas um grito!
Que importa? De uma cruz ao longe os braços
Vejo abrirem-se ao mísero precito...
Os túmulos dos teus dão-te regaços!
Ama-te a sombra do salgueiro aflito...
Vai, pois, meu livro! e como louro agreste
Traz-me no bico um ramo de... cipreste!
O Livro e a América
AO GRÊMIO LITERÁRIO
Talhado para as grandezas,
P'ra crescer, criar, subir,
O Novo Mundo nos músculos
Sente a seiva do porvir.
—Estatuário de colossos —
Cansado doutros esboços
Disse um dia Jeová:
"Vai, Colombo, abre a cortina
"Da minha eterna oficina...
"Tira a América de lá".
Molhado inda do dilúvio,
Qual Tritão descomunal,
O continente desperta
No concerto universal.
Dos oceanos em tropa
Um—traz-lhe as artes da Europa,
Outro — as bagas de Ceilão...
E os Andes putrificados,
Como braços levantados,
Lhe apontam para a amplidão.
Olhando em torno então brada:
"Tudo marcha!... O grande Deus!
As cataratas — p'ra terra,
As estrelas—para os céus
Lá, do pólo sobre as plagas,
O seu rebanho de vagas
Vai o mar apascentar...
Eu quero marchar com os ventos,
Com os mundos... co'os firmamentos!!!
E Deus responde — "Marchar!"
"Marchar!... Mas como?... Da Grécia
Nos dóricos Partenons
A mil deuses levantando
Mil marmóreos Panteons?...
Marchar cota espada de Roma
—Leoa de raiva coma
De presa enorme no chão,
Saciando o ódio profundo...
—Com as garras nas mãos do mundo,
—Com os dentes no coração?...
"Marchar!... Mas como a Alemanha
Na tirania feudal,
Levantando uma montanha
Em cada uma catedral?...
Não!... Nem templos feitos de ossos,
Nem gládios a cavar fossos
São degraus do progredir...
Lá brada César morrendo:
"No pugilato tremendo
"Quem sempre vence é o porvir!'
Filhos do sec'lo das luzes!
Filhos da Grande nação!
Quando ante Deus vos mostrardes,
Tereis um livro na mão:
O livro — esse audaz guerreiro
Que conquista o mundo inteiro
Sem nunca ter Waterloo...
Eólo de pensamentos,
Que abrira a gruta dos ventos
Donde a Igualdade voou!...
Por uma fatalidade
Dessas que descem de além,
O sec'lo, que viu Colombo,
Viu Guttenberg também.
Quando no tosco estaleiro
Da Alemanha o velho obreiro
A ave da imprensa gerou...
O Genovês salta os mares...
Busca um ninho entre os palmares
E a pátria da imprensa achou...
Por isso na impaciência
Desta sede de saber,
Como as aves do deserto —
As almas buscam beber...
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe—que faz a palma,
É chuva—que faz o mar.
Vós, que o templo das idéias
Largo — abris às multidões,
P'ra o batismo luminoso
Das grandes revoluções,
Agora que o trem de ferro
Acorda o tigre no cerro
E espanta os caboclos nus,
Fazei desse "rei dos ventos"
—Ginete dos pensamentos,
—Arauto da grande luz!...
Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...
Num poema amortalhada
Nunca morre uma nação.
Como Goethe moribundo
Brada "Luz!" o Novo Mundo
Num brado de Briaréu...
Luz! pois, no vale e na serra...
Que, se a luz rola na terra,
Deus colhe gênios no céu! . . .
Hebréia
Flos campi et lilium convallium
(Cântico dos Cânticos)
Pomba d'esp'rança sobre um mar d'escolhos!
Lírio do vale oriental, brilhante!
Estrela vésper do pastor errante!
Ramo de murta a recender cheirosa!. ..
Tu és, ó filha de Israel formosa...
Tu és, ó linda, sedutora Hebréia...
Pálida rosa da infeliz Judéia
Sem ter o orvalho, que do céu deriva!
Por que descoras, quando a tarde esquiva
Mira-se triste sobre o azul das vagas?
Serão saudades das infindas plagas,
Onde a oliveira no Jordão se inclina?
Sonhas acaso, quando o sol declina,
A terra santa do Oriente imenso?
E as caravanas no deserto extenso?
E os pegureiros da palmeira à sombra?!...
Sim, fora belo na relvosa alfombra,
Junto da fonte, onde Raquel gemera,
Viver contigo qual Jacó vivera
Guiando escravo teu feliz rebanho..
Depois nas águas de cheiroso banho
—Como Susana a estremecer de frio—
Fitar-te, ó flor do babilônio rio,
Fitar-te a medo no salgueiro oculto...
Vem pois!... Contigo no deserto inculto,
Fugindo às iras de Saul embora,
Davi eu fora,—se Micol tu foras,
Vibrando na harpa do profeta o canto...
Não vês?... Do seio me goteja o pranto
Qual da torrente do Cédron deserto!...
Como lutara o patriarca incerto
Lutei, meu anjo, mas caí vencido.
Eu sou o lótus para o chão pendido.
Vem ser o orvalho oriental, brilhante!.
Ai! guia o passo ao viajor perdido,
Estrela vésper do pastor errante!...
Quem dá aos pobres,
empresta a Deus.
Eu, Que a pobreza de meus pobres cantos
Dei aos heróis—aos miseráveis grandes—,
Eu, que sou cego, —mas só peço luzes...
Que sou pequeno, — mas só fito os Andes....
Canto nest'hora, como o bardo antigo
Das priscas eras, que bem longe vão,
O grande nada dos heróis, que dormem
Do vasto pampa no funéreo chão...
Duas grandezas neste instante cruzam-se!
Duas realezas hoje aqui se abraçam!...
Uma—é um livro laureado em luzes...
Outra— uma espada, onde os lauréis se enlaçam.
Nem cora o livro de ombrear coto sabre...
Nem cora o sabre de chamá-lo irmão...
Quando em loureiros se biparte o gládio
Do vasto pampa no funéreo chão.
E foram grandes teus heróis, ó pátria,
—Mulher fecunda, que não cria escravos —,
Que ao trom da guerra soluçaste aos filhos:
"Parti — soldados, mas voltei-me — bravos!
E qual Moema desgrenhada, altiva,
Eis tua prole, que se arroja então,
De um mar de glórias apartando as vagas
Do vasto pampa no funéreo chão.
E esses Leandros do Helesponto novo
Se resvalaram — foi no chão da história...
Se tropeçaram — foi na eternidade...
Se naufragaram—foi no mar da glória...
E hoje o que resta dos heróis gigantes?...
Aqui — os filhos que vos pedem pão...
Além — a ossada, que branqueia a lua,
Do vasto pampa no funéreo chão.
Ai! quantas vezes a criança loura
Seu pai procura pequenina e nua,
E vai, brincando co'o vetusto sabre,
Sentar-se à espera no portal da rua...
Mísera mãe, sobre teu peito aquece
Esta avezinha, que não tem mais pão!...
Seu pai descansa — fulminado cedro —
Do vasto pampa no funéreo chão.
Mas, já que as águias lá no sul tombaram
E os filhos d'águias o Poder esquece...
"'E grande, é nobre, é gigantesco, é santo!...
Lançai— a esmola, e colhereis—a prece!.
Oh! dai a esmola... que do infante lindo
Por entre os dedos da pequena mão,
Ela transborda... e vai cair nas tumbas
Do vasto pampa no funéreo chão.
Há duas cousas neste mundo santas:
—O rir do infante, —o descansar do morto..
O berço—é a barca, que encalhou na vida,
A cova —é a barca do sidéreo porto...
E vós dissestes para o berço—Avante!—
Enquanto os nautas, que ao Eterno vão,
Os ossos deixam, qual na praia as ancoras,
Do vasto pampa no funéreo chão.
É santo o laço, em qu'hoje aqui s'estreitam
De heróicos troncos—os rebentos novos—!
É que são gêmeos dos heróis os filhos,
Inda que filhos de diversos povos!
Sim! me parece que nest'hora augusta
Os mortos saltam da feral mansão...
E um "bravo!" altivo de além-mar partindo
Rola do pampa no funéreo chão!...
O Laço de Fita
Não sabes crianças? 'Stou louco de amores...
Prendi meus afetos, formosa Pepita.
Mas onde? No templo, no espaço, nas névoas?!
Não rias, prendi-me
Num laço de fita.
Na selva sombria de tuas madeixas,
Nos negros cabelos da moça bonita,
Fingindo a serpente qu'enlaça a folhagem,
Formoso enroscava-se
O laço de fita.
Meu ser, que voava nas luzes da festa,
Qual pássaro bravo, que os ares agita,
Eu vi de repente cativo, submisso
Rolar prisioneiro
Num laço de fita.
E agora enleada na tênue cadeia
Debalde minh'alma se embate, se irrita...
O braço, que rompe cadeias de ferro,
Não quebra teus elos,
Ó laço de fita!
Meu Deus! As falenas têm asas de opala,
Os astros se libram na plaga infinita.
Os anjos repousam nas penas brilhantes...
Mas tu... tens por asas
Um laço de fita.
Há pouco voavas na célere valsa,
Na valsa que anseia, que estua e palpita.
Por que é que tremeste? Não eram meus lábios...
Beijava-te apenas...
Teu laço de fita.
Mas ai! findo o baile, despindo os adornos
N'alcova onde a vela ciosa... crepita,
Talvez da cadeia libertes as tranças
Mas eu... fico preso
No laço de fita.
Pois bem! Quando um dia na sombra do vale
Abrirem-me a cova... formosa Pepita!
Ao menos arranca meus louros da fronte,
E dá-me por c'roa...
Teu laço de fita.
Ahasverus e o Gênio
AO POETA E AMIGO J. FELIZARDO JÚNIOR
Sabes quem foi Ahasverus?. .. —o precito,
O mísero Judeu, que tinha escrito
Na fronte o selo atroz!
Eterno viajor de eterna senda...
Espantado a fugir de tenda em tenda,
Fugindo embalde à vingadora voz!
Misérrimo! Correu o mundo inteiro,
E no mundo tão grande... o forasteiro
Não teve onde... pousar.
Co'a mão vazia—viu a terra cheia.
O deserto negou-lhe —o grão de areia.
A gota d'água —rejeitou-lhe o mar.
D'Asia as florestas—lhe negaram sombra
A savana sem fim—negou-lhe alfombra.
O chão negou-lhe o pó!...
Tabas, serralhos, tendas e solares...
Ninguém lhe abriu a porta de seus lares
E o triste seguiu só.
Viu povos de mil climas, viu mil raças,
E não pôde entre tantas populaças
Beijar uma só mão...
Desde a virgem do Norte à de Sevilhas,
Desde a inglesa à crioula das Antilhas
Não teve um coração!...
E caminhou!... E as tribos se afastavam
E as mulheres tremendo murmuravam
Com respeito e pavor.
Ai! Fazia tremer do vale à serra. ..
Ele que só pedia sobre a terra
— Silêncio, paz e amor! —
No entanto à noite, se o Hebreu passava,
Um murmúrio de inveja se elevava,
Desde a flor da campina ao colibri.
"Ele não morre", a multidão dizia...
E o precito consigo respondia:
— "Ai! mas nunca vivi!" —
_______________
O Gênio é como Ahasverus... solitário
A marchar, a marchar no itinerário
Sem termo do existir.
Invejado! a invejar os invejosos.
Vendo a sombra dos álamos frondosos...
E sempre a caminhar... sempre a seguir...
Pede u'a mão de amigo—dão-lhe palmas:
Pede um beijo de amor— e as outras almas
Fogem pasmas de si.
E o mísero de glória em glória corre...
Mas quando a terra diz: — "Ele não morre"
Responde o desgraçado:—"Eu não vivi!. . ."
Mocidade e Morte
E porto avisto o porto
Imermo, nebuloso, o sempre noite
Cahmado—Eternidade. —
Laurindo.
Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate.
Dante.
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minh'alma adejar pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
Árabe errante, vou dormir à tarde
A sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma vez responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea fria.
Morrer... quando este mundo é um paraíso,
E a alma um cisne de douradas plumas:
Não! o seio da amante é um lago virgem...
Quero boiar à tona das espumas.
Vem! formosa mulher—camélia pálida,
Que banharam de pranto as alvoradas.
Minh'alma é a borboleta, que espaneja
O pó das asas lúcidas, douradas...
E a mesma vez repete-me terrível,
Com gargalhar sarcástico: —impossível!
Eu sinto em mim o borbulhar do gênio.
Vejo além um futuro radiante:
Avante! —brada-me o talento n'alma
E o eco ao longe me repete—avante!—
O futuro... o futuro... no seu seio...
Entre louros e bênçãos dorme a glórial
Após—um nome do universo n'alma,
Um nome escrito no Panteon da história.
E a mesma voz repete funerária: —
Teu Panteon—a pedra mortuária!
Morrer—é ver extinto dentre as névoas
O fanal, que nas guia na tormenta:
Condenado — escutar dobres de sino,
—Voz da morte, que a morte lhe lamenta—
Ai! morrer —é trocar astros por círios,
Leito macio por esquife imundo,
Trocar os beijos da mulher — no visco
Da larva errante no sepulcro fundo.
Ver tudo findo... só na lousa um nome,
Que o viandante a perpassar consome
E eu sei que vou morrer... dentro em meu peito
Um mal terrível me devora a vida:
Triste Ahasverus, que no fim da estrada,
Só tem por braços uma cruz erguida.
Sou o cipreste, qu'inda mesmo flórido,
Sombra de morte no ramal encerra!
Vivo— que vaga sobre o chão da morte,
Morto—entre os vivos a vagar na terra.
Do sepulcro escutando triste grito
Sempre, sempre bradando-me: maldito! —
E eu morro, ó Deus! na aurora da existência,
Quando a sede e o desejo em nós palpita...
Levei aos lábios o dourado pomo,
Mordi no fruto podre do Asfaltita.
No triclínio da vida— novo Tântalo —
O vinho do viver ante mim passa...
Sou dos convivas da legenda Hebraica,
O 'stilete de Deus quebra-me a taça.
É que até minha sombra é inexorável,
Morrer! morrer! soluça-me implacável.
Adeus, pálida amante dos meus sonhos!
Adeus, vida! Adeus, glória! amor! anelos!
Escuta, minha irmã, cuidosa enxuga
Os prantos de meu pai nos teus cabelos.
Fora louco esperar! fria rajada
Sinto que do viver me extingue a lampa...
Resta-me agora por futuro — a terra,
Por glória—nada, por amor—a campa.
Adeus! arrasta-me uma voz sombria
Já me foge a razão na noite fria!..
Ao Dous de Julho
(Recitada no Teatro S. João)
É a hora das epopéias,
Das Ilíadas reais.
Ruge o vento—do passado
Pelos mares sepulcrais.
É a hora, em que a Eternidade
Dialoga a Imortalidade...
Fala o herói com Jeová!...
E Deus — nas celestes plagas —
Colhe da glória nas vagas
Os mortos de Pirajá.
Há destes dias augustos
Na tumba dos Briaréus.
Como que Deus baixa à terra
Sem mesmo descer dos céus.
É que essas lousas rasteiras
São — gigantes cordilheiras
Do Senhor aos olhos nus.
É que essas brancas ossadas
São—colunas arrojadas
Dos infinitos azuis.
Sim! Quando o tempo entre os dedos
Quebra um séc'lo, uma nação...
Encontra nomes tão grandes,
Que não lhe cabem na mão!...
Heróis! Como o cedro augusto
Campeia rijo e vetusto
Dos séc'los ao perpassar,
Vós sois os cedros da História,
A cuja sombra de glória
Vai-se o Brasil abrigar.
E nós, que somos faíscas
Da luz desses arrebóis,
Nós, que somos borboletas
—Das crisálidas de avós,
Nós, que entre as bagas dos cantos,
Por entre as gotas dos prantos
Inda os sabemos chorar,
Podemos dizer: "Das campas
Sacudi as frias tampas!
Vinde a Pátria abençoar!..."
Erguei-vos, santos fantasmas!
Vós não tendes que corar...
(Porque eu sei que o filho torpe
Faz o morto soluçar. . . )
Gemem as sombras dos Gracos,
Dos Catões, dos Espartacos
Vendo seus filhos tão vis...
Dize-o tu, soberbo Mário!
Tu, que ensopas o sudário
Vendo Roma—meretriz!...
Ai! Que lágrimas candentes
Choram órbitas sem luz! —
Que idéia terá Leônidas
Vendo Esparta nos pauis?!...
Alta noite, quando pena
Sobre Árcole, sobre Iena,
Bonaparte—o rei dos reis—,
Que dor d'alma lhe rebenta.
Ao ver su'águia sangrenta
No sabre de Juarez!?...
Porém aqui não há grito,
Nem pranto, nem ai, nem dor...
O presente não desmente
Do seu ninho de condor...
Mãos, que, outrora de crianças
A rir— dentaram as lanças
Dos velhos de Pirajá....
De homens hoje, as empunhando,
Nas batalhas afiando,
Vão caminho de Humaitá!...
Basta!... Curvai-vos, ó povo!...
Ei-los os vultos sem par,
Só de joelhos podemos
Nest'hora augusta fitar
Riachuelo e Cabrito,
Que sobem para o infinito
Como jungidos leões,
Puxando os carros dourados
Dos meteoros largados
Sobre a noite das nações.
Os Três Amores
I
Minh'alma é como a fronte sonhadora
Do louco bardo, que Ferrara chora...
Sou Tasso!... a primavera de teus risos
De minha vida as solidões enflora...
Longe de ti eu bebo os teus perfumes,
Sigo na terra de teu passo os lumes. ..
— Tu és Eleonora...
II
Meu coração desmaia pensativo,
Cismando em tua rosa predileta.
Sou teu pálido amante vaporoso,
Sou teu Romeu... teu lânguido poeta!...
Sonho-te às vezes virgem... seminua...
Roubo-te um casto beijo à luz da lua...
— E tu és Julieta...
III
Na volúpia das noites andaluzas
O sangue ardente em minhas veias rola...
Sou D. Juan!... Donzelas amorosas,
Vós conheceis-me os trenos na viola!
Sobre o leito do amor teu seio brilha...
Eu morro, se desfaço-te a mantilha...
Tu és—Júlia, a Espanhola!. . .
O Fantasma e a Canção
Orgulho! desce os olhos dos céus
sobre ti mesmo, e vê como os nomes
mais poderosos vão se refugiar numa
canção.
BYRON.
— Quem bate? —"A noite é sombrio!"
—Quem bate?—"É rijo o tufão!...
Não ouvis? a ventania
Ladra à lua como um cão.
" —Quem bate?—"O nome qu'importa?
Chamo-me dor... abre a porta!
Chamo-me frio... abre o lar!
Dá-me pão... chamo-me fome!
Necessidade é o meu nome!"
— Mendigo! podes passar!
"Mulher, se eu falar, prometes
A porta abrir-me?"—Talvez.
—"Olha... Nas cãs deste velho
Verás fanados lauréis
Há no meu crânio enrugado
O fundo sulco traçado
Pela c'roa imperial.
Foragido, errante espectro,
Meu cajado —já foi cetro!
Meus trapos — manto real!"
—Senhor, minha casa é pobre...
Ide bater a um solar!
—"De lá venho... O Rei-fantasma
Baniram do próprio lar.
Nas largas escadarias,
Nas vetustas galerias,
Os pajens e as cortesãs
Cantavam!... Reinava a orgia!...
Festa' Festa! E ninguém via
O Rei coberto de cãs!"
—Fantasmas! Aos grandes, que tombam,
É palácio o mausoléu!
—"Silêncio! De longe eu venho. . .
Também meu túmulo morreu.
O séc'lo—traça que medra
Nos livros feitos de pedra —
Rói o mármore, cruel.
O tempo—Atila terrível
Quebra cota pata invisível
Sarcófago e capitel.
"Desgraça então para o espectro,
Quer seja Homero ou Solon,
Se, medindo a treva imensa
Vai bater ao Panteon...
O motim —Nero profano—
No ventre da cova insano
Mergulha os dedos cruéis.
Da guerra nos paroxismos
Se abismam mesmo os abismos
E o morto morre outra vez!
'Então, nas sombras infindas,
S'esbarram em confusão
Os fantasmas sem abrigo
Nem no espaço, nem no chão...
As almas angustiadas,
Como águias desaninhadas,
Gemendo voam no ar.
E enchem de vagos lamentos
As vagas negras dos ventos,
Os ventos do negro mar!
"Bati a todas as portas
Nem uma só me acolheu!...
—"Entra!—: Uma voz argentina
Dentro do lar respondeu.
—"Entra, pois! Sombra exilada,
Entra! O verso—é uma pousada
Aos reis que perdidos vão.
A estrofe —é a púrpura extrema,
Último trono—é o poema!
Último asilo— a Canção!. . . "
O Gondoleiro do Amor
BARCAROLA
DAMA-NEGRA
Teus olhos são negros, negros,
Como as noites sem luar...
São ardentes, são profundos,
Como o negrume do mar;
Sobre o barco dos amores,
Da vida boiando à flor,
Douram teus olhos a fronte
Do Gondoleiro do amor.
Tua voz é cavatina
Dos palácios de Sorrento,
Quando a praia beija a vaga,
Quando a vaga beija o vento.
E como em noites de Itália
Ama um canto o pescador,
Bebe a harmonia em teus cantos
O Gondoleiro do amor.
Teu sorriso é uma aurora
Que o horizante enrubesceu ,
—Rosa aberta com o biquinho
Das aves rubras do céu;
Nas tempestades da vida
Das rajadas no furor,
Foi-se a noite, tem auroras
O Gondoleiro do amor.
Teu seio é vaga dourada
Ao tíbio clarão da lua,
Que, ao murmúrio das volúpias,
Arqueja, palpita nua;
Como é doce, em pensamento,
Do teu colo no languor
Vogar, naufragar, perder-se
O Gondoleiro do amor!?
Teu amor na treva é—um astro,
No silêncio uma canção,
É brisa—nas calmarias,
É abrigo—no tufão;
Por isso eu te amo, querida,
Quer no prazer, quer na dor... Rosa!
Canto! Sombra! Estrela!
Do Gondoleiro do amor.
Sub Tegmine Fagi
A MELO MORAIS
Dieu parle dans le calme plus haur que dans la tempête.
MICKIEWIKCZ
Deus nobis haec otia fecit.
VÍRGILIO
Amigo! O campo é o ninho do poeta...
Deus fala, quando a turba está quieta,
As campinas em flor.
— Noivo — Ele espera que os convivas saiam...
E n'alcova onde as lâmpadas desmaiam
Então murmura — amor —
Vem comigo cismar risonho e grave...
A poesia—é uma luz... e a alma—uma ave...
Querem — trevas e ar.
A andorinha, que é a alma — pede o campo.
A poesia quer sombra—é o pirilampo...
P'ra voar... p'ra brilhar.
Meu Deus! Quanta beleza nessas trilhas...
Que perfume nas doces maravilhas,
Onde o vento gemeu!...
Que flores d'ouro pelas veigas belas!
...Foi um anjo co'a mão cheia de estrelas
Que na terra as perdeu.
Aqui o éter puro se adelgaça...
Não sobe esta blasfêmia de fumaça
Das cidades p'ra o céu
E a Terra é como o inseto friorento
Dentro da flor azul do firmamento.
Cujo cálix pendeu!..
Qual no fluxo e refluxo, o mar em vagas
Leva a concha dourada... e traz das plagas
Corais em turbilhão,
A mente leva a prece a Deus—por pérolas
E traz, volvendo após das praias cérulas,
— Um brilhante — o perdão!
A alma fica melhor no descampado...
O pensamento indômito, arrojado
Galopa no sertão,
Qual nos estepes o corcel fogoso
Relincha e parte turbulento, estoso,
Solta a crina ao tufão.
Vem! Nós iremos na floresta densa,
Onde na arcada gótica e suspensa
Reza o vento fetal.
Enorme sombra cai da enorme rama...
É o Pagode fantástico de Brama
Ou velha catedral.
Irei contigo pelos ermos—lento —
Cismando, ao pôr do sol, num pensamento
Do nosso velho Hugo.
—Mestre do mundo! Sol da eternidade!...
Para ter por planeta a humanidade,
Deus num cerro o fixou.
Ao longe, na quebrada da colina,
Enlaça a trepadeira purpurina
O negro mangueira!! . . .
Como no Dante a pálida Francesca
Mostra o sorriso rubro e a face fresca
Na estrofe sepulcral.
O povo das formosas amarílis
Embala-se nas balsas, como as Willis
Que o Norte imaginou.
O antro—fala... o ninho s'estremece...
A dríade entre as folhas aparece...
Pã na flauta soprou!...
Mundo estranho e bizarro da quimera,
A fantasia desvairada gera
Um paganismo aqui.
Melhor eu compreendo então Virgílio...
E vendo os Faunos lhe dançar no idílio,
Murmuro crente: —eu vi! —
Quando penetro na floresta triste,
Qual pela ogiva gótica o antiste,
Que procura o Senhor,
Como bebem as aves peregrinas
Nas ânforas de orvalho das boninas,
Eu bebo crença e amor!...
E à tarde, quando o sol — condor sangrento —
No ocidente se aninha sonolento,
Como a abelha na flor...
E a luz da estrela trêmula se irmana
Co'a fogueira noturna da cabana,
Que acendera o pastor,
A lua — traz um raio para os mares...
A abelha—traz o mel... um treno aos lares
Traz a rola a carpir...
Também deixa o poeta a selva escura
E traz alguma estrofe, que fulgura,
P'ra legar ao porvir!...
Vem! Do mundo leremos o problema
Nas folhas da floresta, ou do poema,
Nas trevas ou na luz...
Não vês?... Do céu a cúpula azulada,
Como uma taça sobre nós voltada,
Lança a poesia a flux!...
As Três Irmãs do Poeta
(Traduzido de E. BERTHOUD)
É Noite! as sombras correm nebulosas.
Vão três pálidas virgens silenciosas
Através da procela irrequieta.
Vão três pálidas virgens... vão sombrias
Rindo colar num beijo as bocas frias...
Na fronte cismadora do—Poeta —
"Saúde, irmão! Eu sou a Indiferença.
Sou eu quem te sepulta a idéia imensa,
Quem no teu nome a escuridão projeta...
Fui eu que te vesti do meu sudário...
Que vais fazer tão triste e solitário?..."
— "Eu lutarei!"—responde-lhe o Poeta.
"Saúde, meu irmão! Eu sou a Fome.
Sou eu quem o teu negro pão consome...
O teu mísero pão, mísero atleta!
Hoje, amanhã, depois... depois (qu'importa?)
Virei sempre sentar-me à tua porta..."
—"Eu sofrerei"—responde-lhe o Poeta.
"Saúde, meu irmão! Eu sou a Morte.
Suspende em meio o hino augusto e forte.
Marquei-te a fronte, mísero profeta!
Volve ao nada! Não sentes neste enleio
Teu cântico gelar-se no meu seio?!"
—"Eu cantarei no céu" — diz-lhe o Poeta!
O Vôo do Gênio
A ATRIZ EUGÊNIA CÂMARA
Um dia em que na terra a sós vagava
Pela estrada sombria da existência,
Sem rosas—nos vergéis da adolescência,
Sem luz d'estrela—pelo céu do amor;
Senti as asas de um arcanjo errante
Roçar-me brandamente pela fronte,
Como o cisne, que adeja sobre a fonte,
As vezes toca a solitária flor.
E disse então: "Quem és, pálido arcanjo!
Tu, que o poeta vens erguer do pego?
Eras acaso tu, que Milton cego
Ouvia em sua noite erma de sol?
Quem és tu? Quem és tu?"—"Eu sou o gênio",
Disse-me o anjo "vem seguir-me o passo,
Quero contigo me arrojar no espaço,
Onde tenho por c'roas o arrebol".
"Onde me levas, pois?..."—"Longe te levo
Ao país do ideal, terra das flores,
Onde a brisa do céu tem mais amores
E a fantasia—lagos mais azuis..."
E fui... e fui... ergui-me no infinito,
Lá onde o vôo d'águia não se eleva...
Abaixo—via a terra—abismo em treva!
Acima—o firmamento— abismo em luz!
"Arcanjo! arcanjo! que ridente sonho!"
— "Não, poeta, é o vedado paraíso,
Onde os lírios mimosos do sorriso
Eu abro em todo o seio, que chorou,
Onde a loura comédia canta alegre,
Onde eu tenho o condão de um gênio infindo,
Que a sombra de Molière vem sorrindo
Beijar na fronte, que o Senhor beijou..."
"Onde me levas mais, anjo divino?"
— "Vem ouvir, sobre as harpas inspiradas,
O canto das esferas namoradas,
Quando eu encho de amor o azul dos céus.
Quero levar-te das paixões nos mares.
Quero levar-te a dédalos profundos,
Onde refervem sóis... e céus... e mundos...
Mais sóis... mais mundos, e onde tudo é meu...
"Mulher! mulher! Aqui tudo é volúpia:
A brisa morna, a sombra do arvoredo,
A linfa clara, que murmura a medo,
A luz que abraça a flor e o céu ao mar.
Ó princesa, a razão já se me perde,
És a sereia da encantada Sila.
Anjo, que transformaste-te em Dalila,
Sansão de novo te quisera amar!
"Porém não paras neste vôo errante!
A que outros mundos elevar-me tentas?
Já não sinto o soprar de auras sedentas,
Nem bebo a taça de um fogoso amor.
Sinto que rolo em báratros profundos...
Já não tens asas, águia da Tessália,
Maldições sobre ti... tu és Onfália,
Ninguém te ergue das trevas e do horror.
"Porém silêncio! No maldito abismo,
Onde caí contigo criminosa,
Canta uma voz, sentida e maviosa,
Que arrependida sobe a Jeová!
Perdão! Perdão! Senhor, p'ra quem soluça,
Talvez seja algum anjo peregrino…
Mas não! inda eras tu, gênio divino,
Também sabes chorar, como Eloá?
"Não mais, ó serafim! suspende as asas!
Que, através das estrelas arrastado,
Meu ser arqueja louco, deslumbrado.
Sobre as constelações e os céus azuis.
Arcanjo! Arcanjo! basta... já contigo
Mergulhei das paixões nas vagas cérulas...
Mas nos meus dedos — já não cabem —
Mas na minh'alma — já não cabe — luz!.
Um comentário:
A verdade é que eu gostei dessas palavras, espero que, em algum ponto de ser capaz de escrever algo como, espero ter algum tempo livre para fazê-lo aqui em Moema
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