quinta-feira, 17 de março de 2011

Charles Baudelaire















SPLEEN

Trad. Jamil Almansur Haddad






Eu sou tal qual um rei de algum país chuvoso,
Rico, mas impotente, e moço, embora idoso,
Que do aio desprezando. as mesuras rituais•,
Se enfada com os cães e os outros animais.
Nada o diverte enfim, nem caça nem falcão,
Nem o povo a morrer em frente do balcão.
A grosseira canção do jogral mais fiel
A fronte não distrai deste doente cruel;
Muda-se em tumba o seu leito flor-de-lisado,
E as damas para quem todo príncipe é amado,
Certo nunca irão pôr vestidos que comovem
Por seu sensual decote este esqueleto jovem.
O sábio que lhe faz ouro é desvalimento,
De vez que não lhe extirpa o corrupto elemento,
E estes banhos de sangue e que o romano ensina
E que ocorrem aos reis quando a idade declina,
Jamais aquecerão este cadáver langue
Que a água do Lotes tem fluindo em vez de sangue.






O RELÓGIO



Relógio! deus sinistro, assustador e calvo
E cujo dedo ameaça a nos dizer: Recorda!
A vibradora Dor, que, no medo transborda,
Será em teu coração fixa como num alvo;

O Prazer é uma bruma a buscar a amplidão
Tal sílfide que morre além da onda mais fria;
Cada instante destrói um pouco da alegria
Que a cada homem se deu para toda a estação.

Por hora mais de três mil vezes, o Segundo
Murmura: Lembra então! Com sua voz sonora
De inseto, Agora diz: Olha que eu sou Outrora,
Bombeou a minha tromba a tua vida, ó imundo!

Remember! Lembra então! Esto memor! em coro
(Não ignora um idioma a goela de metal)
O minuto é uma ganga, ó frívolo mortal,
De que não deixarás de extrair todo o ouro!

Lembra então que este Tempo é jogador: porfia
Numa lei de ganhar, perene e sem trapaça.
Lembra então como a noite aumenta e o dia passa,
Tem sempre sede o abismo, e a clepsidra é vazia.

Mas o divino Acaso, ou bem cedo ou mais tarde,
Ou a Virtude augusta, esposa virginal,
Ou o Remorso mesmo (Oh! o abrigo final!)
Ou tudo te dirá; “Morre, é noite, covarde!”






O ALBATROZ



Às vezes, por folgar, os homens da equipagem
Pegam de um albatroz, enorme ave do mar,
Que segue companheiro indolente de viagem -
O navio no abismo amargo a deslizar.

E por sobre o convés, mal estendido apenas,
O imperador do azul, canhestro e envergonhado,
Asas que enchem de dó, grandes e de alvas penas,
Eis que deixa arrastar como remos ao lado.

O alado viajor tomba como num limbo!
Hoje é cômico e feio, ontem tanto agradava!
Um ao seu bico leva o irritante cachimbo,
Outro imita a coxear o enfermo que voava!

O poeta é semelhante ao príncipe do céu
Que do arqueiro se ri e da tormenta no ar;
Exilado na terra e em meio do escarcéu,
As asas de gigante impedem-no de andar.



Trad. Jamil Almansur Haddad




ELEVAÇÃO

Por sôbre os pantanais, por sôbre os descampados,
Por sôbre o éter e o mar, por sôbre o bosque e o monte,
E muito além do sol, muito além do horizonte,
Para além dos confins dos longes estrelados,

Meu espírito, vais, todos os céus te movem,
Como um bom nadador cais em delíquio na onda,
Sulcas alegremente a imensidão redonda,
Levado por volúpia indizível e jovem.

Bem longe deves voar dêstes miasmas tão baços;
Vai te purificar por um ar superior,
E bebe, como um puro e divino licor,
O claro fogo que enche os límpidos espaços.

E por trás do pesar e dos tédios terrenos
Que gravam de seu pêso a existência brumosa,
Feliz êste que pode e de asa vigorosa
Lançar-se para os céus lúcidos e serenos!

Êste cujo pensar, como a andorinha, muda
Para o céu da manha num vôo ascensional,
Que plana sôbre a vida, a entender afinal
A linguagem da flor e da matéria muda!




CORRESPONDÊNCIAS

A natureza é um templo onde vivos pilares
Podem deixar ouvir confusas vozes; e estas
Fazem o homem passar através de florestas
De símbolos que o vêem mas de olhos familiares.

Como os ecos além confundem seus rumores,
Na mais profunda e mais tenebrosa unidade,
Tão vasta como a noite e como a claridade,
Harmonizam-se os sons, os perfumes e as côres.

Perfumes frescos há como carnes e ate
Verdes como a campina e doces como o oboé,
E outros ricos, triunfais, no entanto corrompidos,

E que têm a expansão do universo sem fim,
Como o almíscar e o incenso, o sândalo e o benjoim
Que cantam a embriaguez do ser e dos sentidos.




[sem título]

Amo a recordação daqueles dias nus
Em que Febo inundava as estátuas de luz.
Mulher e homem então, na sua agilidade,
Folgavam sem mentira e longe da ansiedade.
A afagar-lhes a espinha, um sol pleno de amor,
Da máquina mais nobre excitava o vigor.
Cibele, que era então de seio generoso,
Nos seus filhos não via algum pêso oneroso.
Mas lôba, o coração no amor comum imerso,
Com seu ubre moreno aleitava o universo.
Ao homem elegante e forte dava a lei
O direito de ser dessas belezas rei:
Frutos puros de ultraje e livres de feridas,
De carne lisa e firme insinuando mordidas!

O poeta, que esta aurora intenta conceber,
Se hoje busca um lugar em que possa entrever
A nudez da mulher como a do homem, tão calma,
Sente um frio sombrio a estender-se em sua alma,
A êste negro painel que o pavor atormenta.
Oh monstros a chorar a sua vestimenta!

Troncos dignos de rir, feitos para os entrudos,
Corpos em lassidão, ou magros ou ventrudos,
Que o deus burguês, o mais sereno e sem cansaço,
Logo à infância envolveu em tristes cueiros de aço!
Vós, mulheres, que sois quais círios funerais,
Que o deboche corrói, vós, virgens que levais
Do vício maternal a hereditariedade
E todos os horrores da fecundidade!

Nós temos, é verdade, ó nações corrompidas,
Dos povos ancestrais belezas não sabidas:
Rostos a se esfazer por um cancro interior
E o que chamamos nós beleza de languor;
Porém as invenções destas musas tardias
Jamais impedirão as raças mais doentias
De à juventude enfim render sua homenagem,
À juventude sã, terna e simples imagem,
De olhar, límpido e claro como a água corrente,
E que vai a verter por tudo indiferente
Tal como o azul do céu, os pássaros e as flôres,
Perfumes e canções e tépidos calores!


A MUSA ENFÊRMA



Que tens esta manha, Musa de olhar magoado?
Teus olhos ocos são todos visões noturnas,
Vejo que a tua tez ora tem alternado
Loucura com horror, as sombras taciturnas.

Sôbre ti, róseo duende e súcubo esverdeado
Derramaram o mêdo e o amor de suas urnas?
O pesadelo, o punho despótico e irado,
No fundo te afogou de mítico Minturnas?

Quisera que, exalando o aroma da saúde,
Teu seio fôsse só a fôrça e a juventude
Que o teu sangue cristão fôsse fluxos marítimos

Como o inúmero som dêstes antigos ritmos,
Em que alternam seu reino o inventor da cantiga
Febo e o divino Pã, o senhor da áurea espiga.



O INIMIGO



Foi minha juventude um vendaval aziago,
Em que os brilhantes sóis surgiam raramente;
Nela a chuva e o trovão fizeram tal estrago,
Que neste meu jardim raro é o fruto rubente.

Eis-me enfim a arribar no outono das idéias
E é preciso empregar pá e ancinho e os acúmulos
De terra unir de novo, uma vez que, entre aléias,
A água poças abriu, enormes como túmulos.

E quem sabe se a flor por que esta alma desmaia
Há de achar neste chão lavado como a praia
O alimento de fé que avigorar-nos sói?

Devora o Tempo a Vida, ó suprema agonia!
E o inimigo fatal que o peito nos corrói
Cresce por se nutrir desta nossa anemia!



SPLEEN



E quando pesa o céu, tal tampa grave e baça,
No espírito a gemer e em que só o tédio existe,
E do horizonte enfim todo o círculo abraça,
Vertendo um dia negro e mais que as noites triste;

E quando a terra muda em úmida enxovia,
Em que a Esperança é assim como um morcêgo aos muros,
Onde sua asa vibra em medrosa agonia,
Roçando a testa por forros os mais impuros;

E quando a chuva alonga estas linhas tamanhas,
As grades a imitar de uma vasta prisão,
E o calado tropel das infames aranhas
Estende a sua teia em nosso coração,

Os sinos se dispõem com loucura a saltar,
Lançando para o céu o seu vagido horrente,
Espírito que vai errante, sem ter lar,
E começa a gemer tão obstinadamente.

E os carros funerais, sem música ou tambor,
Vão desfilando em mim e a esperança dest’arte
Vencida, chora; e a angústia, a estorcer-se de dor,
Sôbre o meu crânio implanta o seu negro estandarte.



OBSESSÃO

Bosques, qual catedral encheis-me de pavor,
Como os órgãos rugis; e em corações malditos,
Quartos de eterno luto e de antigo estertor,
Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos.

Eu te odeio oceano! e com os teus tumultos,
Já que és igual a mim! Pois êste riso amargo
Do homem a soluçar, todo sombras e insultos,
Eu o escuto no riso enorme do mar largo.

Noite, eu amo o teu céu, porém não o estrelado
Que os astros falam sempre claro em sua luz!
Busco o infinito negro e os precipícios nus!

Porém as trevas são o mais extenso oleado,
Em que surgem, a vir de meu ôlho, aos milhares,
Sêres que já morreram, de íntimos olhares.



A Morte dos Pobres



É a morte que consola e que nos faz viver!
É o motivo da vida, é a única esperança.
Elixir que nos inebria, nos encanta
e nos dá forças para ver o anoitecer.

Através da tormenta, da neve, do frio,
é a clareza vibrante no horizonte escuro.
É o albergue famoso inscrito no livro,
em que vamos comer, dormir e estar seguros.

É um Anjo que tem em seus dedos magnéticos
o dom do sono, o dom dos sonhos extasiados,
e refaz a cama dos pobres desnudados.

É o resplendor dos Deuses, é o celeiro místico,
é o recinto dos pobres e seu berço antigo,
pórtico aberto sobre os céus desconhecidos!

Charles Baudelaire
Tradução: Márcia Sanchez Luz








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