sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 4

Porque ali estava Val.
Na soberba força de sua juventude, força que nunca deixaria de ter e, vigorosamente bela desde o primeiro dia, desde aquele primeiro instante arrancava do ambiente de sua aparição todos os pontos e ângulos competitivos para só nela se concentrarem, os cabelos ocultos num chapéu de palha que a travestiam num rapaz, num príncipe, ou na representação de amazona, que eu imaginava (tanto amava o cinema norte-americano, e me perdoem o exagero e o deslize) que ali tivesse descido dos espelhos das telas dos cinemas de Hollywood uma menina Marilyn Monroe morena, portanto um pouco queimada de sol, os cabelos e olhos negros e que ia atormentar-me o desejo.

A segunda mensagem de seu olhar que nada tinha de proibidas promessas, mas um traço explicito: "vou possuir-te!", e ali se revelava em mim toda a sua vocação, e ali se revelava nela toda sua propensão para a atividade, um macho dentro da delicadeza fêmea, na minha concepção machista de que, pegando ela o parceiro na cama, autoritária e com lascívia, sem entrega, sem baixeza, densa nas artes do amor, era ela quem dominava quem, sedento de seus amores, de seu sexo, se via nos sugadouros de seus prazeres ativos e sobrepostos, impressão tão duradoura quanto, ao arrepio de seus parâmetros, ela convidava como se dissesse: "vem, que vais experimentar o que eu poço fazer" (e que sei eu, depois disso?), o magnetismo oculto, depois provocante e incompreensivel. Só dela. Mas ela sempre dominou o parceiro.



Em novembro de 47, num almoço em casa de Amaro de Souza, Chefe de Polícia do Estado de Pernambuco, Antônio Rodrigues, pai de Rôni, conheceu aquele ex-sargento, chamado Manuel Pacheco, pai de Val, tido como excelente homem, preso e torturado em 35, quando teve todos os dentes posteriores arrancados com alicate; preso e torturado em outubro de 47, escapando de ser crestado com maçarico, ex-membro da LCI, a Liga Comunista Internacional, criado e protegido da família de Amaro, "senhores de engenho liberais", mas que, não sendo pessoalmente um homem perigoso, Amaro, conhecendo-o desde menino, que foram criados juntos, o tirara da prisão direto para sua casa, até que, em 49, quando a caça aos comunistas recrudesceu, Amaro pediu ao Doutor Antônio, pai de Rôni, que o levasse para a Ilha, para sua fazenda Paraná, pois o Chefe de Policia não queria que pensassem que ele dava proteção a comunista.

Manuel Pacheco, machista e ateu, era homem duro, gênio inflexível, irônico e perspicaz, dir-se-ia inteligente se tivesse alguma leitura. Baixo, grosso, forte, agressivo, olho de tigre: violência indiscriminada que às vezes atingindo os alvos errados de sua mulher Fernanda e suas filhas, Valquíria e Lia.

Mas Pacheco gostara de seu novo patrão, e este dele, da sua força física e moral, sua habilidade múltipla foram providenciais na fazenda, o patrão era um ausente, as coisas com Antônio não andavam, e o pulso de ferro de Manuel Pacheco se fez logo sentir.
Val, porém, era prisioneira em casa, não podia ir sozinha à escola do litoral, seu pai nada permitia, e censurava tudo. Ela era obrigada a passar as tardes costurando, como uma velha inválida, ou ouvindo o rádio, como numa prisão, a televisão ainda não tinha chegado.
A ilha era grande, mas ali não era. A casa de Val parecia uma ilha dentro da Ilha Atlanta. As outras meninas, soltas, indo e vindo de bicicleta, livres, nunca virgens.
Mas Val reage.
Desde cedo seu poder de resistência enfrenta o pai e ameaça fugir. O pai a agride, e Val o odeia. Quando o pai chega, ela sente uma pressão no peito, que a sufoca. O pai tendo um modo de a olhar que para ela era uma ofensa, pois à medida que ela ia tornando-se mulher o pai a observava como se a examinasse, ou como um fiscal, como algo, uma coisa, uma censura.
Ela se sentia só, a irmã e a mãe submissas ao pai. As colegas a subestimavam, julgando-a esnobe, metida a rica (seu pai tinha prestigio e poder na ilha). Val não participava da vida que elas viviam.
Val não tinha namorado, quieta e calada, magoada e bela. Toda a sua violência explodia em casa. Val não tinha medo. Desde cedo viverá na família um clima de guerra. Val declara guerra ao Pai. Val aprende a não temer a morte. O pai dizia: "esta menina é maluca". Ela o enfrenta. O pai dizendo sempre: "aqui não tem ambiente para uma menina decente". Ela pensando: "meu Deus, por que tenho de viver trancada, como uma doente? Que direito tem ele sobre minha liberdade?" O pai, que quisera um filho homem, de certo modo despreza as duas filhas.
"Mulher só dá trabalho", diz. E ele se horroriza com o fato de que, inexoravelmente, ela vinha transformando-se numa mulher desejável, sensual.
Ele sabia, e temia, todos os homens da ilha estavam desejando sua filha. A todo momento o corpo daquela menina dizia para ele: "preciso de um homem"'. Por que ela não era o ideal de mulher submissa que Pacheco esperava (uma camponesa forte e assexuada). Val era já mulher com substância, e Pacheco, apesar de suas doutrinas políticas, tinha um conservadorismo histérico quanto à sexualidade em geral, as piores palavras para ele sendo "puta" e "veado", e não "imperialista" ou "burguês".

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Abro a porta e sinto o murmúrio eclesiástico que tomava a casa no dia em que o pai morreu.
Ali jazia. Atmosfera mortal. Val me olha, e era como se dissesse: "O Rei está morto".
- É isso. Isso! - disse-me Val.
- Não sei o que dizer, fala Rôni, quase sussurrante, sentindo que ela permaneceria calada e que ele a esperaria, sozinho, naquela mesma noite, sentado no banco de pedra.
- As... - As outras... - Rôni segurava ansioso o braço de Val, e os dois pararam à porta do horizonte de um fato inevitável. No silêncio que se seguiu à morte do pai.
De repente, só os dois existiam, e ouvia-se o sombrio mar de rijo vento e a noite na expressão angustiada. Era uma transformação.
- Você tem coragem... - começou a dizer Val. Parecia que as suas palavras eram articuladas para sempre restarem incompletas, inúteis. Havia um esforço no dizer, um propósito em esconder o verdadeiro significado das mínimas silabas, e seu olhar assume um: "De que você me acusa?" Pois ela se voltou com violenta expressão, não tinha dito o que deveria ficar escondido, aquilo que principiava, o que devia iniciar-se, aquilo que era sagrado, a grande gafe, sua libertação! Olhou para frente, e era como se dissesse: "Você não me está vendo?"
Bastava.
- Não!
Rôni poderia perguntar: "Você o matou?" Rôni disfarça a indignação. E ela poderia responder: "Sim. Há muitos anos".



O vento.
- E então? disse Rôni.
- Que quer que eu diga? disse Val.
- Você o amava? pergunta Rôni.
Ela não respondeu. Chorava com o impacto da pergunta.
A presença é um grande afastamento. Um cadáver ocupa muito espaço. Um cadáver não tem forma, tem presença.
Val não dizia o que realmente deveria ser dito. Sua simulação não mentia. Poderia pensar: "Não digo o que sinto, o que é tão contrário. Só sei que ele acabou de morrer".
A viúva emergia, trágica. Rôni dispôs-se a sair.
- Não me vai dar os pêsames? pergunta Val, irônica.
- Lastimo, disse Rôni.
Realmente ele tinha lágrimas nos olhos.
- Sei disso, disse Val. E calou-se.
Quando Rôni subiu a rua, seu vulto escuro era uma sombra em que se envolvia a densa noite.

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