sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 5

Quando cheguei ao Rio, e no decorrer dos quatro anos seguintes, considerei definitivo o meu afastamento da Ilha e dos seus dons de juventude que ali nos habilitava a manipular e a manifestar, sem constrangimento, o magnífico patrimônio autárquico e anárquico dos humores das nossas relações.

E Val comigo.

Que de lá também saíra. Aquilo que só se observa com justeza estava comigo. Mas o fio obscuro daquele lugar primitivo afinal se rompia.

Foi quando minha avó, com sua súbita morte, me abandona talvez para que eu me tornasse independente dela e me considerasse a mim mesmo finalmente um homem.

Ela havia abrigado em sua chácara o que sobrava da carcaça morta em que meu pai se transformara, arrendou a fazenda e me fez, através de seu banco, uma mesada que daria para o sustento de uma pequena família de classe média. Minha avó queria assim que eu me tornasse senhor de meu próprio destino e aprendesse a viver só, dono de meu nariz, como ela sempre fora.

Estaria eu na Europa estudando se não tivesse Val a meu lado. Se obedecesse aos desígnios de minha avó. Altiva e orgulhosa, tinha ela do homem superior uma idéia toda sua. Sua mesada poderia, na sua concepção, e à minha revelia, me converter num respeitável, importante e distinto cavalheiro - "ser alguém", dizia ela, o que para minha avó significava ser de boa família e ter acatamento público - bastava ter o curso superior concluído e algum dinheiro para que alguém ganhasse sua deferência e apreço.

Queria que eu fosse advogado. Talvez para não ser nada, ou nada fazer. Ser advogado era, para ela, uma mera honorabilidade. Inútil, portanto nobre. E, embora não fosse de seu feitio preocupar-se com nada desse mundo, creio que ela já suspeitava de mim que eu seria como meu pai um incapaz, irresoluto sem dúvida débil e insubsistente, e decidiu nada fazer por mim, experimentar-me e ver se eu tomava jeito na vida - quando "nada fazer", na sua modalidade, incluía dar-me uma pensão - "de estudante", dizia ela (embora eu já estivesse com 26 anos) - e não, como se pensaria ou se esperava, deixar-me morrer à mingua, de miséria e fome.

Ela queria que eu competisse por mim - seu sonho seria saber-me famoso na política ou "nos negócios" - e nada disso eu ainda decidira, e creio que, no fim, isso certamente a magoava, embora não revelasse os seus sentimentos a ninguém, e parecesse esperar que eu estivesse apenas afiando o gume para uma posterior arrancada triunfal nalguma profissão conveniente, ou burocrática, mas de geral e grande repercussão.

Nas associações de suas idéias ela me comparava e se lembrava dos nossos antepassados, dois que foram Ministros de Estado, um Juiz de Direito, bem sucedidos negociantes, tios, irmãos e primos dela, mas todos de sua época.

- Tivemos dois bispos na família, dizia ela.

A nova geração, filhos, netos e sobrinhos, tinha-se revelado a seus olhos lastimável e incompreensível fracasso, na vulgaridade e no anonimato de uma família decadente que dissolvida em sufocantes e inaceitáveis princípios de idéias modernas que ela desprezava com um muxoxo, um abanar do leque ou da cabeça, e um erguer das sobrancelhas arqueadas em lástima e resignação, desde a maneira de trajar (homens sem paletó, em mangas de camisa; mulheres mal-vestidas), até a fala coloquial, inculta, rotineira da conversação, democrática mas vulgar, que sem citações elegantes soava a seus afinados ouvidos cultos como baixeza e obscenidade.

- Falávamos francês à mesa, lembrava ela.

Sua mesada substituiu-me, na consciência, o fantasma infantil de uma provedora mãe que me acompanhava e que nunca perdi.

Eu trocava minha mãe pela boca indiferente de uma caixa bancária.

Minha mãe era agora o seu talão de cheques.

Não lastimo, pois sempre fui "livre" (ou desamparado) desde menino, e o fato de não ter tido nunca reais dificuldades financeiras (nem luxo, simplesmente) funcionava em mim como se eu fosse sempre perseguido pelo abandono daquele fantasma de minha mãe, impalpável mas providencial, como um espírito invisível sempre me negando sua face e nunca me negando concretamente o seu regaço acolhedor.

Eu entrava tardiamente na Universidade, atrasado pelos anos que me demorei e me deixei ficar na Ilha sem estudar. E com o dinheiro de minha avó aluguei um apartamento no Flamengo, onde depois comprei, não excessivamente longe de sua casa, aonde eu ia a pé, mas de onde, eu sabia, ela jamais teria a indiscrição de espionar-me ou controlar-me dentro de minha própria casa. Não minha avó. Só liberta quem é livre. Ela mesma independente. Orgulhava-se disso, indômita desde menina, nunca procurou ninguém, nunca visitando ninguém sem ser convidada antes e mandar avisar por um menino (que não usava o telefone para isso: o telefone era considerado por ela um instrumento mexeriqueiro, inconfidente e leviano).

Insubmissa: aos 75 anos viajou sozinha por toda a Europa durante quase três meses.

Sempre gostava de viajar só, e quando acompanhada, enquanto suas amigas iam às compras, ela seguia para o museu de Antropologia.

Minha avó Madalena era o marco da independência (burguesa, é claro, pois só a sua independência financeira lhe poderia moldar o caráter), marco em que eu sempre me agarrei para não soçobrar nos momentos de depressão, como a um símbolo, ou para neutralizar e combater em mim a minha natural tendência à dissipação e dissolução psicológica em que, se mergulhasse ali, eu sei que me teria feito em pedaços.

Naquele apartamento vivi com Val sem que minha avó soubesse, ou sem que eu soubesse que ela sabia, e era como se estivéssemos casados.

Foi um período que me deu alguma significação, e ainda hoje vivo os grandes, pesados e insubstituíveis momentos recordados ali, que ali se deu a minha primeira imersão naquilo que se poderia chamar de experiência da felicidade amorosa e sexual, nunca esgotada, que ainda hoje me acena com suas cicatrizes e determinações.

Coincidiram com os anos da Faculdade de Letras da Universidade do Brasil, de que eu hoje sempre recordo e imagino de maneira desigual e diferente, período mutável na minha criação como um caleidoscópio ao sabor de cada emoção passageira, ou como se não fosse senão algo móvel e nunca sedimentado, e lacrimoso, obsceno, removível na sua efemeridade abjeta, tempo que depois se transformou em tragédia, na ditadura militar, tempo em que se atravessa de viés, na minha vida e em tudo aquilo que se passou e que para mim ficou, de repente, velho e secreto.

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