sexta-feira, 26 de dezembro de 2008
ALVARO VIEIRA PINTO
FUNDAMENTOS SOCIAIS DA CONSCIÊNCIA DO PESQUISADOR
ALVARO VIEIRA PINTO
UM dos progressos substanciais nas idéias atuais a respeito da pesquisa científica encontra-se no reconhecimento unânime de sua natureza social. De há muito se sabe que o pesquisador solitário, que trabalhava num improvisado laboratório, com o instrumental primitivo por ele mesmo construído, é uma figura histórica correspondente à fase pioneira na edificação das ciências naturais. A evolução do saber científico obriga-o hoje a ser um empreendimento coletivo, em que sem dúvida o pensamento individual continua sendo a fonte das idéias, das finalidades e dos projetos, bem como das interpretações dos resultados, porém essa atividade não se exerce mais no isolamento do laboratório ou do gabinete de estudo, e sim no meio de uma equipe de colaboradores, que operam em conjunto, segundo um plano que a todos liga em vista de um fim comum, embora havendo divisão, às vezes extremamente minuciosa, das funções de cada integrante do corpo de pesquisadores.
Há realmente uma situação nova, caracterizando a pesquisa atual. Importa-nos assinalar, entretanto, para conservar o fio do pensamento crítico, não devermos julgar que foi somente agora, por se haver tornado um trabalho de equipe, que a pesquisa científica adquiriu caráter social. Seria uma ingenuidade e uma infidelidade ao historicismo do pensar dialético. A pesquisa científica é e sempre foi social, porque possui esse atributo não por acidente, por circunstâncias de época, mas por essência, por natureza, e portanto já o manifestava, embora por aspectos diferentes dos atuais, mesmo quando se exercia em forma de trabalho ou de meditação solitária de um sábio, que se consagrava a indagar o segredo das propriedades dos corpos e a descobrir as leis que ligavam os fenômenos então conhecidos. Não é pelo fato de exigir agora um grupo de auxiliares e colaboradores, a distribuição de funções, a convergência de especialistas em diversos campos do saber para resolver qualquer problema definido,. que a pesquisa se veio a tomar social. Isto corresponde ao lado acidental, contemporâneo, de que se reveste atualmente a sua sociabilidade intrínseca, que sempre existiu, e se define não pela organização ou institucionalização do trabalho efetivo, mas pela fundamentação e motivações que a determinam.
A pesquisa é social porque o pesquisador, isolado ou em grupo, a empreende em razão de uma exigência; sem dúvida sentida subjetivamente, mas de origem e justificação objetivas, ou seja procedente de uma necessidade social. Deve distinguir-se entre o lado subjetivo, aquele que aparece à consciência do pesquisador com o caráter de motivação imediata, e o lado objetivo, que, embora quase sempre não sendo claramente apreendido, estabelece de fato a razão última que explica a dedicação do sábio ao trabalho, à especialidade a que se consagra, e mesmo o tipo de problema particular que lhe desperta a atenção. Não percebe de ordinário a insinuação, diríamos melhor, a imposição social, porque a sofre tão natural e insensivelmente que não chega a ter noção dela. A sociedade constitui o que se poderia, imitando a terminologia de certas filosofias idealistas, chamar de "sujeito transcendental" da pesquisa, na acepção de que envolve a pessoa do pesquisador e lhe propõe os temas do pensamento, que o estimulam a armar-se e partir para a aventura da investigação. Possivelmente o caráter permanentemente social da pesquisa só agora se tome evidente aos olhos de certos estudiosos em virtude da necessidade de organizar operações em escala tão ampla que não pode mais ser executadas por indivíduos isolados e sem colaboradores qualificados e igualmente especializados. O fundamento da pesquisa é necessariamente social por ser de base histórica. Em qualquer momento a exploração da realidade só se efetua com apoio nos conhecimentos verdadeiros existentes na época. A existência de tais conhecimentos, inclusive já compendiados em corpos de doutrina ou em ciências, com o desenvolvimento que a fase vivida no momento permite, sua conservação, o acesso a eles por parte do candidato a pesquisador, tudo isto são fatos sociais. A sociedade, enquanto sujeito histórico coletivo, perdurando ao longo do tempo, carrega em si os conhecimentos adquiridos em sucessivas épocas, vai constituindo-os em saber científico, racionalmente compendiados, e os transmite como herança cultural de uma geração a outra. O pesquisador de cada momento histórico, mesmo daqueles em que só era possível a ação individual, não faz mais do que incorporar-se a este movimento cultural, incorporando a si o conjunto das idéias que a sociedade do tempo lhe oferece.
A historicidade do saber tem por corolário a sociabilidade da pesquisa, no sentido em que o pesquisador deve à sociedade as possibilidades de tornar-se um descobridor de novos dados do saber. Mas deve-lhe isto não apenas porque conserva para ele o tesouro dos conhecimentos comprovados e sim também porque é ela a fonte das exigências, dos problemas objetivos que despertarão o interesse do estudioso e a que se dedicará. A sociedade funciona pois duplamente no papel de agente supra-individual da pesquisa científica: enquanto depositária do saber acumulado, que possibilita o estudo do assunto em dado momento; na qualidade de determinante do interesse na resolução de tal ou qual problema em uma situação definida. Este segundo conceito merece particular atenção. A pesquisa científica não constitui, segundo pensava Dewey, uma "situação", em virtude apenas do conjunto de dados e relações que configuram o problema em causa. Parte de uma "situação" em sentido muito mais amplo, desconhecido e inalcançável pelo modo de pensar pragmatista, sendo o oposto deste. A "situação" tem de entender-se aqui em sentido dialético, isto é, enquanto totalidade da realidade num momento histórico definido, envolvendo tanto um aspecto do mundo objetivo, que se revela origem de um obstáculo existencial, por isso conduzindo ao projeto humano de suprimi-lo ou saltá-lo, quanto a inclusão do próprio observador em tal mundo, pelas condições de caráter social que afetam a vida da comunidade, de que ele, como cientista, se sente chamado a ocupar-se. A sociologia do saber só encontra os verdadeiros alicerces, só escapa de cair nas insuficiências do pragmatismo, do subjetivismo ou do formalismo especulativo sob qualquer de suas variedades positivistas atuais, quando assenta em princípios dialéticos. Dois desses são fundamentais, e, diríamos, - traçam a linha de partida de todda reflexão progressista neste terreno: o da contradição original, definidora da realidade do homem, a que o opõe à natureza; e, em segundo lugar, o da interdependência entre o indivíduo e a comunidade. A importância deste último consiste em que explica o aspecto histórico do processo de acumulação do saber, e sua utilização a cada momento como base para a pesquisa científica possível na situação então presente.
Estes dois conceitos são de caráter principal, pois compõem o ângulo supremo de compreensão em que devemos abranger a teoria da sociologia. do saber. A respeito do primeiro aspecto em várias passagens anteriores tecemos considerações epistemológicas. Vale a pena acentuar agora a importância do segundo. Sabemos ser um traço existencial do ser humano o achar-se sempre em "situação". Com este conceito tem sido entendido o fato de só existir em certo lugar e em certo período do tempo. Mas, parece-nos não se reduzirem apenas a estas as coordenadas que lhe outorgam existencialmente uma "situação". Não se trata unicamente de dimensões de tempo e de espaço, mas de parâmetros históricos, isto é, a localização do homem no espaço e no tempo afeta-o principalmente pelo aspecto qualitativo. As qualidades de lugar e tempo que se manifestam mais sensivelmente pela noção de fase do desenvolvimento da comunidade nacional em que o homem existe, sintetizam-se no conceito de processo social, e encontram o traço distintivo na noção de historicidade. Dizer que o homem se define como um ser "em situação" significa dizer concretamente que é um ser "em situação social". Pertence a determinada comunidade nacional e dentro dela, a uma região particular, nela ocupa lugar definido na estrutura da sociedade, que o carrega de correlações concretas com os demais membros do grupo, de que resultam condicionamentos de conduta prática e de concepções ideológicas, das quais não pode deixar de tomar conhecimento. Esse lugar na comunidade, por outra parte é estabelecido igualmente em função do tempo histórico, pois o grupo a que pertence o indivíduo não forma um todo invariável, mas um processo, de modo que a mesma comunidade tem uma realidade em certo momento e outra em época diferente. O homem existe sempre em situação, mas esta é cambiante, o condicionamento entre o indivíduo e o ambiente varia constantemente em qualidade e intensidade. Faz-se mister acentuar o caráter de processo de que se reveste êsse condicionamento, e em particular a natureza da ação recíproca entre o indivíduo e o grupo, pois esta desempenha papel capital na correta teoria sociológica da pesquisa científica. O cientista é um trabalhador especializado, estando submetido às condições gerais que afetam o trabalho na sua comunidade. Nesse âmbito configura-se aquilo que será para êle a sua "situação". Como todo trabalhador, está em relação de reciprocidade com o grupo. Com efeito, de um lado pode ser apreciado enquanto elemento no qual o grupo atua, impondo-se a ele, funcionando por este aspecto como determinante do indivíduo; mas, por outro lado, em virtude do projeto da pesquisa científica e a conseqüente criação do saber terem de partir de uma consciência que só existe concretamente em condição individual, a ação do grupo se transmuta na reação livre partida da consciência pessoal, que recebe as influências da comunidade, não passiva mas ativa e criadoramente. Por este aspecto o indivíduo aparece como o fator determinante e o grupo o paciente. A situação compõe-se assim dessa contradição, desse jogo de pressões e influências opostas, a do indivíduo, que pode ser apreciado do ponto de vista da direção pelo meio social, porque nenhuma tarefa científica que concebesse teria cabimento nem racionalidade se não fosse recebida e sancionada pelo meio; e a do meio, que, inversamente, pode ser considerado influído pelo indivíduo, sobretudo pelo criador científico de alta competência que lhe oferece o projeto de ações transformadoras da realidade, que a consciência social, consubstanciada na elite que tem o comando dos interesses econômicos e políticos do grupo, julga meritória e oportuna. Uma sociologia do saber que não se funde na correlação recíproca entre o indivíduo e a coletividade, levando sempre em conta, no caso de sociedades como as nossas, o estado de divisão destas, será necessariamente formalista e ingênua. Terá de privilegiar um dos elementos opostos, o que conduz ao julgamento equivocado do papel de ambos. Somente a concepção dialética estabelece base sólida de compreensão, porque mostra a ação recíproca e a unidade desses termos opostos, e ademais interpreta tal correlação como processo histórico.
Há realmente uma situação nova, caracterizando a pesquisa atual. Importa-nos assinalar, entretanto, para conservar o fio do pensamento crítico, não devemos julgar que foi somente agora, por se haver tomado um trabalho de equipe, que a pesquisa científica adquiriu caráter social. Seria uma ingenuidade e uma infidelidade ao historicismo do pensar dialético. A pesquisa científica é e sempre foi social, porque possui esse atributo não por acidente, por circunstâncias de época, mas por essência, por natureza, e portanto já o manifestava, embora por aspectos diferentes dos atuais, mesmo quando se exercia em forma de trabalho ou de meditação solitária de um sábio, que se consagrava a indagar o segredo das propriedades dos corpos e a descobrir as leis que ligavam os fenômenos então conhecidos. Não é pelo fato de exigir agora um grupo de auxiliares e colaboradores, a distribuição de funções, a convergência de especialistas em diversos campos do saber para resolver qualquer problema definido,. que a pesquisa se veio a tomar social. Isto corresponde ao lado acidental, contemporâneo, de que se reveste atualmente a sua sociabilidade intrínseca, que sempre existiu, e se define não pela organização ou institucionalização do trabalho efetivo, mas pela fundamentação e motivações que a determinam.
A pesquisa é social porque o pesquisador, isolado ou em grupo, a empreende em razão de uma exigência; sem dúvida sentida subjetivamente, mas de origem e justificação objetivas, ou seja procedente de umà necessidade social. Deve distinguir-se entre o lado subjetivo, aquele que aparece à consciência do pesquisador com o caráter de motivação imediata, e o lado objetivo, que, embora quase sempre não sendo claramente apreendido, estabelece de fato a razão última que explica a dedicação do sábio ao trabalho, à especialidade a que se consagra, e mesmo o tipo de problema particular que lhe desperta a atenção. Não percebe de ordinário a insi. nuação, diríamos melhor, a imposição social, porque a sofre tão natural e insensivelmente que não chega a ter noção dela. A sociedade constitui o que se poderia, imitando a terminologia de certas filosofias idealistas, chamar de "sujeito transcendental" da pesquisa, na acepção de que envolve a pessoa do pesquisador e lhe propõe os temas do pensamento, que o estimulam a armar-se e partir para a aventura da investigação. Possivelmente o caráter permanentemente social da pesquisa só agora se tome evidente aos olhos de certos estudiosos em virtude da necessidade de organizar operações em escala tão ampla que não podem mais ser executadas por indivíduos isolados e sem colaboradores qualificados e igualmente especializados. O fundamento da pesquisa é necessariamente social por ser de base histórica. Em qualquer momento a exploração da realidade só se efetua com apoio nos conhecimentos verdadeiros existentes na época. A existência de tais conhecimentos, inclusive já compendiados em corpos de doutrina ou em ciências, com o desenvolvimento que a fase vivida no momento permite, sua conservação, o acesso a eles por parte do candidato a pesquisador, tudo isto são fatos sociais. A sociedade, enquanto sujeito histórico coletivo, perdurando ao longo do tempo, carrega em si os conhecimentos adquiridos em sucessivas épocas, vai constituindo-os em saber científico, racionalmente compendiados, e os transmite como herança cultural de uma geração a outra. O pesquisador de cada momento histórico, mesmo daqueles em que só era possível a ação individual, não faz mais do que incorporar-se a este movimento cultural, incorporando a si o conjunto das idéias que a sociedade do tempo lhe oferece.
A historicidade do saber tem por corolário a sociabilidade da pesquisa, no sentido em que o pesquisador deve à sociedade as possibilidades de tornar-se um descobridor de novos dados do saber. Mas deve-lhe isto não apenas porque conserva para ele o tesouro dos conhecimentos comprovados e sim também porque é ela a fonte das exigências, dos problemas objetivos que despertarão o interesse do estudioso e a que se dedicará. A sociedade funciona pois duplamente no papel de agente supra-individual da pesquisa científica: enquanto depositária do saber acumulado, que possibilita o estudo do assunto em dado momento; na qualidade de determinante do interesse na resolução de tal ou qual problema em uma situação definida. Este segundo conceito merece particular atenção. A pesquisa científica não constitui, segundo pensava Dewey, uma "situação", em virtude apenas do conjunto de dados e relações que configuram o problema em causa. Parte de uma "situação" em sentido muito mais amplo, desconhecido e inalcançável pelo modo de pensar pragmatista, sendo o oposto deste. A "situação" tem de entender-se aqui em sentido dialético, isto é, enquanto totalidade da realidade num momento histórico definido, envolvendo tanto um aspecto do mundo objetivo, que se revela origem de um obstáculo existencial, por isso conduzindo ao projeto humano de suprimi-lo ou saltá-lo, quanto a inclusão do próprio observador em tal mundo, pelas condições de caráter social que afetam a vida da comunidade, de que ele, como cientista, se sente (...) e sem colaboradores qualificados e igualmente especializados. O fundamento da pesquisa é necessariamente social por ser de base histórica. Em qualquer momento a exploração da realidade só se efetua com apoio nos conhecimentos verdadeiros existentes na época. A existência de tais conhecimentos, inclusive já compendiados em corpos de doutrina ou em ciências, com o desenvolvimento que a fase vivida no momento permite, sua conservação, o acesso a eles por parte do candidato a pesquisador, tudo isto são fatos sociais. A sociedade, enquanto sujeito histórico coletivo, perdurando ao longo do tempo, carrega em si os conhecimentos adquiridos em sucessivas épocas, vai constituindo-os em saber científico, racionalmente compendiados, e os transmite como herança cultural de uma geração a outra. O pesquisador de cada momento histórico, mesmo daqueles em que só era possível a ação individual, não faz mais do que incorporar-se a este movimento cultural, incorporando a si o conjunto das idéias que a sociedade do tempo lhe oferece.
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CONCEITO DE EDUCAÇÃO
Que é a educação?
Deixaremos de lado as numerosas definições eruditas, que não vamos
mencionar, nem podemos discutir e consideraremos a educação em seus
dois significados: restrito e amplo.
Em significado restrito, o da pedagogia clássica, convencional,
sistematizada, refere-se a educação às fases infantil e juvenil da vida do
ser humano. Não se deve, no entanto, reduzi-la a esses limites. Seria um
erro lógico, filosófico e sociológico.
Em sentido amplo (e autêntico) a educação diz respeito à existência
humana em toda a sua duração e em todos os seus aspectos. Desta maneira
deve-se justificar lógica e sociologicamente o problema da educação de
adultos. Daqui sai a verdadeira definição de educação.
A educação é o processo pelo qual a sociedade forma seus membros à sua
imagem e em função de seus interesses.
Por conseqüência, educação é formação (Bildung) do homem pela
sociedade, ou seja, o processo pelo qual a sociedade atua constantemente
sobre o desenvolvimento do ser humano no intento de integrá-lo no modo
de ser social vigente e de conduzi-lo a aceitar e buscar os fins coletivos.
Caráter histórico-antropológico da educação
Partindo da definição exposta, podemos explicitar os caracteres da
educação:
a) A educação é um processo, portanto é o decorrer de um fenômeno (a
formação do homem) no tempo, ou seja, é um fato histórico. Todavia,
é histórico em duplo sentido: primeiro, no sentido de que representa a
própria história individual de cada ser humano; segundo, no sentido de que
está vinculada à fase vivida pela comunidade em sua contínua evolução.
Sendo um processo, desde logo se vê que não pode ser racionalmente
interpretada com os instrumentos da lógica formal, mas somente com as
categorias da lógica dialética.
b) A educação é um fato existencial. Refere-se ao modo como (por si
mesmo e pelas ações exteriores que sofre) o homem se faz ser homem. A
educação configura o homem em toda sua realidade. Pode-se dizer (em
outra versão da definição) que é o processo pelo qual o homem adquire
sua essência (real, social, não metafísica). É o processo constitutivo do ser
humano.
c) A educação é um fato social. Refere-se à sociedade como um todo. É
determinada pelo interesse que move a comunidade a integrar todos os
seus membros â forma social vigente (relações econômicas, instituições,
usos, ciências, atividades, etc.). É o procedimento pelo qual a sociedade
se reproduz a si mesma ao longo de sua duração temporal. Contudo, neste
processo de auto-reprodução está contida, desde logo, uma contradição:
a sociedade desejaria fazer-se no tempo futuro o mais igual possível a si
mesma; porém, a dinâmica da educação atua em sentido oposto, uma vez
que engendra necessariamente o progresso social, isto é, a diferenciação
do futuro em relação ao presente. Daí deriva o duplo aspecto do fato social
da educação: incorporação dos indivíduos ao estado existente (a intenção
de perpetuidade, de conservação, de invariabilidade, inércia pedagógica,
estabilidade educacional) e progresso, isto é, necessidade de ruptura do
equilíbrio presente, de adiantamento, de criação do novo. Esta contradição
pertence à própria essência da educação dada sua natureza histórico-
antropológica. Por ser contraditória é que a educação é instrumental (no
sentido em que a consciência crítica emprega este qualificativo). Quando
se verifica a simultaneidade consciente de incorporação e progresso,
tem-se a educação em sua forma integrada, isto é, a plena realização da
natureza humana.
d) A educação é um fenômeno cultural. Não somente os conhecimentos,
experiências, usos, crenças, valores, etc. a transmitir ao indivíduo, mas
também os métodos utilizados pela totalidade social para exercer sua ação
educativa são parte do fundo cultural da comunidade e dependem do grau
de seu desenvolvimento. Em outras palavras, a educação é a transmissão
integrada da cultura em todos os seus aspectos, segundo os moldes e pelos
meios que a própria cultura existente possibilita. O método pedagógico
é função da cultura existente. O saber é o conjunto dos dados da cultura
que se têm tornado socialmente conscientes e que a sociedade é capaz
de expressar pela linguagem. Nas sociedades iletradas não existe saber
graficamente conservado pela escrita, contudo, há transmissão do saber
pela prática social, pela via oral e, portanto, há educação.
e) Nas sociedades altamente desenvolvidas, com divisões internas em
classes opostas, a educação não pode conectar na formação uniforme
de todos os seus membros, porque: por um lado, é excessivo o número
de dados a transmitir; e, por outro, não há interesse nem possibilidade
e formar indivíduos iguais, mas se busca manter a desigualdade social
presente. Por isso, em tais sociedades, a educação pelo saber letrado é
sempre privilégio de um grupo ou dá-se, no sentido que se segue:
— somente este grupo tem assegurado o direito (real, concreto) de saber
(p. ex., alfabetização);
— somente membros desse grupo se especializam na tarefa de educar;
— somente e se o grupo tem o direito e o poder de legislar sobre a
educação, ou seja, de definir aquilo em que deva consistir a educação
institucionalizada, escolarizada. É conseqüência, essa minoria unicamente
reconhecerá com educação a deste último tipo. Todo o restante do saber
não letrado, e as demais formas de cultura que a sociedade transmite a
seus outros membros, é considerado incultura e ausência de educação.
f) A educação se desenvolve sobre o fundamento do processo
econômico da sociedade. Porque é ele que:
— determina as possibilidades e as condições de cada fase cultural;
— determina a distribuição das probabilidades educacionais na
sociedade, em virtude do papel que atribui a cada indivíduo dentro da
comunidade;
— proporciona os meios materiais para a execução do trabalho
educacional, sua extensão e sua profundidade;
— dita os fins gerais da educação, que determina em uma dada
comunidade serão formados indivíduos de níveis culturais distintos, de
acordo com sua posição no trabalho comum (na sociedade fechada,
dividida) ou se todos devem ter as mesmas oportunidades e possibilidades
de aprender (sociedades democráticas).
g) A educação é uma atividade teleológica. A formação do indivíduo
sempre visa a um fim. Está sempre "dirigida para". No sentido geral
esse fim é a conversão do educando em membro útil da comunidade. No
sentido restrito, formar, escolar, é a preparação de diferentes tipos de
indivíduos para executar as tarefas específicas da vida comunitária (daí a
divisão da instrução em graus, em carreiras, etc.). O que determina os fins
da educação são os interesses do grupo que detêm o comando social.
h) A educação é uma modalidade de trabalho social. Para compreendê-la
é necessário utilizar as categorias histórico-antropológicas dialéticas, que
definem o conceito de "trabalho". A educação é parte do trabalho social
porque:
- trata de formar os membros da comunidade para o desempenho de uma
função de trabalho no âmbito da atividade total;
- o educador é um trabalhador (reconhecido como tal);
- no caso especial da educação de adultos, dirige-se a outro trabalhador, a
quem tenciona transmitir conhecimentos que lhe permitam elevar-se em
sua condição de trabalhador.
i) A educação é um fato de ordem consciente. É determinada pelo grau
alcançado pela consciência social e objetiva suscitar no educando a
consciência de si e do mundo. É a formação da autoconsciência social
ao longo do tempo em todos os indivíduos que compõem a comunidade.
Parte da inconsciência cultural (educação primitiva, iletrada) e atravessa
múltiplas etapas de consciência crescente de si e da realidade objetiva
(mediante o saber adquirido, a cultura, a ciência, etc.) até chegar à plena
autoconsciência. Esta será a etapa em que todos os indivíduos alcançam
igualmente o máximo de consciência crítica de si e de seu mundo
permitida pelo estado de adiantamento do processo da realidade (máxima
consciência historicamente possível).
j) A educação é um processo exponencial, isto é, multiplica-se por si
mesma com sua própria realização. Quanto mais educado, mais necessita
o homem educar-se e, portanto exige mais educação. Como esta não está
jamais acabada, uma vez adquirido o conhecimento existente (educação
transmissiva) ingressa-se na fase criadora do saber (educação inventiva).
k) A educação é por essência concreta. Pode ser concebida a priori,
mas o que a define é sua realização objetiva, concreta. Esta realização
depende das situações históricas objetivas, das forças sociais presentes,
de seu conflito, dos interesses em causa, da extensão das massas privadas
de conhecimento, etc. Por isso, toda discussão abstrata sobre educação
é inútil e prejudicial, trazendo em seu bojo sempre um estratagema da
consciência dominante para justificar-se e deixar de cumprir seus deveres
culturais para com o povo.
I) A educação é por natureza contraditória, pois implica simultaneamente
conservação (dos dados do saber adquirido) e criação, ou seja, crítica,
negação e substituição do saber existente. Somente desta maneira é
profícua, pois do contrário seria a repetição eterna do saber considerado
definitivo e a anulação de toda possibilidade de criação do novo e do
progresso da cultura.
in SETE LIÇÕES SOBRE EDUCAÇÃO DE ADULTOS (consulta na Internet)
ENTREVISTA
Dermeval Saviani São Paulo, abril de 1982
Segue, pois, a transcrição da entrevista que se desenrolou de maneira informal, sem questões prévias ou roteiro preestabelecido. Não se pretendeu discutir as idéias do autor; o objetivo foi reconstituir, na medida do possível, a sua trajetória intelectual.
Dermeval Saviani - O senhor poderia falar um pouco sobre sua vida, sua formação intelectual?
Álvaro Vieira Pinto - Minha origem é de um rapaz de classe média pobre, que teve necessidade de trabalhar logo cedo. Fui aluno do colégio dos jesuítas, o Santo Inácio no Rio de Janeiro. Naquele tempo, os exames eram feitos no Pedro II, para passar de um ano para outro no colégio. Quando terminei os estudos no Colégio Santo Inácio fiquei um ano disponível, sem poder entrar na faculdade, pois era muito jovem. Tinha decidido estudar medicina. Minha família morou algum tempo em São Paulo onde fiquei um ano, mas sem estudar nada de ciências. Foi um ano importante, porque foi um ano de formação literária e filosófica. Muito moço, com 14 anos, foi quando vim para o Rio de Janeiro, fazer o concurso vestibular para a Faculdade Nacional de Medicina. Passei em penúltimo lugar na turma e depois fui ser um dos primeiros alunos, porque eu não tinha formação nenhuma preparatória para aquele concurso: em São Paulo estudei muito e fiz relações com alguns intelectuais que naquele tempo estavam saindo da agitação do período da Semana de Arte Moderna. Eu já os peguei quando eles se reuniam todas as semanas, todas as noites, todos os dias quase, no café do Largo do Ouvidor, se não me engano, em São Paulo. Segui a carreira médica com muita dificuldade, porque logo depois meu pai teve um fracasso econômico e fiquei sem apoio, tendo que trabalhar para sustentar a família. Perdi minha mãe nesse período e ficamos quatro irmãos. Ficamos sem apoio e sem condições de fazer alguma coisa. Comecei a dar aulas num colégio de freiras, aulas de filosofia, de física, curso primário. Apesar disso ia fazendo aos poucos os meus estudos de medicina muito mal, para terminar o 5º. e 6º. anos e me formar. Quando me formei, tentei fazer Clínica, justamente em São Paulo, em Aparecida, mas não tive sucesso nenhum e não havia a menor condição para isso. Meu consultório era num quarto de hotel. Voltei para o Rio e aqui, com apoio de um amigo que me apresentou ao Álvaro Osório de Almeida, que naquele tempo estava com grande fama, porque estava fazendo pesquisas sobre o câncer, e trabalhos submetendo pacientes a pressões atmosféricas elevadas, com câmaras especiais. Fiquei trabalhando nisso, mas os resultados foram nulos. Assim trabalhei 16 anos, mas já nesse tempo com a minha inclinação filosófica, eu estava dando aulas também na Faculdade de Filosofia, que tinha sido fundada no Distrito Federal naquele tempo, mas logo depois essa faculdade fechou e criou-se a Faculdade Nacional de Filosofia, para onde eu passei na qualidade de professor adjunto. Comecei a dar cursos sobre lógica matemática, mas um ano depois veio a guerra, houve a vaga na cadeira de História da Filosofia por causa de uma mudança de professores que saíram porque eram alemães e eu era o único assistente na cadeira de Filosofia, sendo então nomeado professor substituto em História da Filosofia.
Saviani — Mas o senhor não tinha feito curso de Filosofia...
Vieira Pinto - Não tinha feito nenhum curso de Filosofia, tinha apenas estudado muito, em livros todos eles de orientação tomista evidentemente, porque fiz o curso que havia no Colégio Santo Inácio, com a duração de um ano de Filosofia, coisa que era uma novidade naquela época. Depois de quatro anos na Faculdade Nacional de Filosofia, pude então ir à Europa onde fui estudar na Sorbonne, o tempo suficiente para ver e sentir o ambiente filosófico de Paris.
Saviani — Isso foi em que época?
Vieira Pinto Isso foi em 1949.
Saviani — O senhor ficou quantos anos na França?
Vieira Pinto — Na França fiquei quase um ano estudando; aí eu já tinha em mente o tema da minha tese, para defesa da cátedra na Faculdade de Filosofia na volta. Foi a tese sobre a cosmologia de Platão. Dei duas conferências sobre essa tese lá em Paris que foi discutida, muito comentada. Recolhi material e com isso fiz o meu trabalho aqui no Brasil para apresentá-lo na Faculdade. Afinal, fui aprovado e nomeado para a Faculdade de Filosofia. Logo depois terminou o meu trabalho no laboratório de Biologia, porque o laboratório foi transformado em instituição privada, com o que não concordei. Fiquei então na Faculdade como professor, mas aí não mais de Lógica e sim de História da Filosofia, onde permaneci vários anos.
Saviani - O seu estudo na Europa foi só na França ou em algum outro país mais?
Vieira Pinto Não. Visitei outros países: Itália, Espanha, Portugal, mas estudo só na França.
Saviani — E os seus conhecimentos de línguas?
Vieira Pinto - Bom, isso aí foi um pouco inclinação natural que eu tive sempre pelas línguas e fui aprendendo com a leitura, não tive professor particular, fui aprendendo quase que sozinho, decorando palavras e aprendendo textos, exceto o grego que aprendi com um rapaz ex-seminarista que sabia muito bem o grego e que me deu aulas, uma vez por semana, durante 2 anos.
Saviani - No Colégio Santo Inácio o senhor não estudava línguas?
Vieira Pinto - Só inglês e francês e foi mesmo a única base que tive, porque eu estudava seriamente e a prova está que só com aquele estudo pude me preparar para o trabalho de leitura e conversação em inglês e francês. O alemão foi por acaso. Estudei sozinho lendo gramáticas e livros de textos. O russo, eu tive por professor um começo de ensino com um velho oficial de marinha, refugiado, que me dava aulas gratuitamente e depois sozinho com dicionários e textos fui aos poucos me desenvolvendo.
Saviani — Mais uma coisa sobre as línguas. E o latim o senhor estudou no Colégio Santo Inácio?
Vieira Pinto — Sim, o latim estudei no Colégio Santo Inácio. Era um bom estudo.
Saviani — O senhor então domina o latim, o grego, o francês, o inglês, o alemão, o russo, o espanhol e o italiano?
Vieira Pinto — Sim. Tenho conhecimentos suficientes desses idiomas. Mais tarde aprendi um pouco de sérvio-croata, quando estive no exílio na Iugoslávia, mas isso foi uma coisa efêmera, pois sabia que não precisava mais daquele estudo. Estudei para ler o jornal daquele país para saber as, notícias da nossa terra.
Saviani — O senhor fez curso de Matemática?
Vieira Pinto - Sim. Fiz o curso de matemática superior, porque tinha um amigo, que depois foi meu colega de faculdade, hoje falecido, que me incentivou para fazer o curso de matemática. Era professor de mecânica superior. Fiz o curso na Universidade do Distrito Federal, que então existia. Mas o curso tinha dois alunos só, eu e um repetente. No meio do ano encerrou-se o curso, pois a escola fechou. As aulas eram dadas em um café. Mas com professores da melhor qualidade, homens de grande valor, 2 ou 3 só. Fiquei num dilema, pois precisava da matemática para entender o problema do raio-X. Como eu usava muito o raio-X no tratamento de doentes e de animais, eu precisava conhecer bem a física corpuscular e daí a necessidade que tive de me fazer competente também nessas questões.
Saviani - E a Física, o senhor chegou a fazer algum curso regular dentro da própria Medicina?
Vieira Pinto - Dentro da Medicina não. O curso de Física foi feito juntamente com o curso de Matemática.
Saviani — Então o senhor estudou Matemática e Física na época em que o senhor trabalhava no laboratório?
Vieira Pinto — Sim, no laboratório de Biologia.
Saviani — O laboratório pertencia ao hospital?
Vieira Pinto — Não, não pertencia ao hospital, apenas funcionava lá.
Saviani — O senhor era assistente no laboratório e também médico no hospital?
Vieira Pinto - O laboratório também era um hospital, porque tínhamos uma parte de pesquisa e outra de enfermaria.
Saviani - Paramos quando o senhor, voltando da Europa, assumiu a cadeira de História da Filosofia.
Vieira Pinto — Eu já era professor adjunto na Faculdade quando saí com uma licença especial para ir à Europa estudar. Fui, fiquei um tempo, voltei e reassumi a cadeira de História da Filosofia.
Saviani — Isto já era 1951?
Vieira Pinto — Sim, pois foi em 1951 que fiz o concurso e fui aprovado e nomeado professor catedrático.
Saviani — Como professor de História da Filosofia qual era a orientação filosófica que o senhor desenvolvia nos cursos?
Vieira Pinto — Era uma orientação exclusivamente pragmática, quer dizer, eu dava o curso seguindo os manuais da filosofia comum, idealista, mas sempre num nível superior e elevado, desenvolvia cronologicamente o pensamento. Porque eram 3 anos de filosofia grega, medieval, moderna e contemporânea. Isso tinha que ser dado em condições precárias, eu não tinha assistente algum. Mais tarde um ex-aluno tornou-se meu assistente, José Américo Pessanha, que dividiu comigo um pouco as atividades. Depois entra outro período, que é o do aparecimento do ISEB, e o convite casual que recebi de Roland Corbisier, para ser professor de Filosofia no ISEB. Isto em 1955. Com a entrada para o ISEB fui mudando aos poucos de orientação, fui tomando uma orientação mais objetivista, menos idealista e deixando de lado toda aquela forma clássica de ensinar História da Filosofia, que era puramente repetir o que o outro disse. Passei a fazer uma exposição sobre o autor e depois a crítica, o que me dava oportunidade de alargar mais o meu campo de pensamento, embora sem jamais ter chegado a impor a ninguém qualquer idéia extremista, ou qualquer idéia que julgava tal, que fosse considerada indevida num currículo de Filosofia. Na Faculdade de Filosofia jamais saí da linha puramente ortodoxa do ensino da Filosofia; o que fazia era seguir os autores, naturalmente que se o autor dissesse alguma coisa com a qual eu não concordava tinha que dizer o mesmo, porque a minha obrigação era ensinar, não o que eu pensava, mas o que os outros pensavam. Então eu tinha que repetir, resumir, repetir e depois fazer alguma crítica, mas muito pouco elaborada, porque senão eu perderia muito tempo na crítica e acabava não podendo adiantar a matéria.
Saviani — O senhor assumiu a perspectiva existencialista?
Vieira Pinto - Realmente, nessa época, como estava numa transição rápida, eu assumi muitas das posições existencialistas que não conhecia até então, e assim tive oportunidade de sentir o que havia de verdade nelas, não apenas no sistema que apresentavam, mas nos conceitos que se podiam aproveitar e procurava formular por mim novas maneiras de expor certas idéias de ordem humanista, de ordem historicista e nacionalista; e acabou sendo o oposto do próprio existencialismo, mas que tinha tirado do existencialismo, no sentido de que via a realidade do homem passando por aquela situação e chegando a outras conclusões. Depois, quando fecharam o ISEB, fui para o exílio.
Saviani - Sobre o ISEB, o senhor chegou a tomar conhecimento de alguns estudos posteriores a respeito do ISEB quando estava no exílio?
Vieira Pinto - Não, não cheguei.
Saviani - Nem do Nelson Werneck Sodré?
Vieira Pinto — Não.
Saviani — E o exílio na Iugoslávia?
Vieira Pinto — Fui para a Iugoslávia e lá fiquei um ano totalmente inativo, sem poder dar aula, pois conhecia muito mal a língua. Depois de um ano fui para o Chile, por sugestão de Paulo Freire. Ele conseguiu arranjar alguma coisa que eu pudesse fazer e de fato recebi convite para fazer conferências, organizadas por professores do Ministério da Educação juntamente com o Paulo Freire.
Saviani - Esse curso de conferências que o senhor preparou sobre educação em 1966, o senhor se lembra dos itens?
Vieira Pinto - Educação, origem, base, finalidade, significado, técnicas, recursos, meios, como a realidade é modificada pela educação, todo problema geral da educação para adultos, para professores que educavam adultos, analfabetos, homens do campo geralmente. Dei conferências também para professores. Eram cursos extras de verão.
Saviani — O senhor ficou quanto tempo no Chile?
Vieira Pinto — Fiquei quase três anos no Chile, em fins de 68 voltei.
Saviani — O trabalho principal que o senhor fez no Chile, foram esses cursos?
Vieira Pinto — Esses cursos e ao mesmo tempo também tinha conseguido que um amigo brasileiro que trabalhava no CELADE (Centro Latino-Americano de Demografia) me apresentasse à Diretora que me deu trabalho de tradução de alguns pequenos panfletos. Depois a Diretora resolveu me contratar a fim de escrever um livro sobre Demografia para o CELADE. Eu não sabia o que fazer porque não sabia nada sobre Demografia, mas acabei estudando e escrevi um livro sobre o pensamento crítico em Demografia, que dois anos depois o CELADE mandou editar, mas que não teve entrada no Brasil. Está difundido na América toda, menos no Brasil.
Saviani — Foi editado só em espanhol?
Vieira Pinto — Sim, só em espanhol.
Saviani — E o senhor não tem exemplares desse livro?
Vieira Pinto — Tenho ainda dois exemplares. Você já viu o livro?
Saviani — Ainda não vi.
Vieira Pinto — Escrevi o livro em 8 meses. Considero um livro de grande importância para o meu pensamento; é um livro de grande significação.
Saviani - Gostaria de ler esse livro.
Vieira Pinto — Tenho apenas 2 exemplares. No CELADE talvez haja ainda outros, deve haver. No México foi muito lido, teve muita repercussão, foi muito procurado. Quando acabei esse livro, no ano seguinte a Diretora do CELADE me deu outro contrato para fazer outro livro. Aí é que eu escrevi o livro sobre Ciência e existência que não interessava ao CELADE publicar. Publiquei-o quando voltei ao Brasil, pela Editora Paz & Terra. E agora fico só com o que tenho guardado para publicar, mas é muita coisa! Tenho um livro sobre Tecnologia, que é muito grande, vários volumes para abranger a matéria toda. Tenho pronto um livro sobre a Filosofia Primeira; outro com o título A educação para um país oprimido. Tenho outro sobre os roteiros do curso de Educação de Adultos feito no Chile. Considerações éticas para um povo oprimido, livro sobre a ética que considero de grande valor no meu pensamento, porque não se dá à ética a importância que ela tem e centralizo um grande número de questões em torno de problemas éticos. Daí, desenvolvi um livro que trata exatamente da ética, mas da ética concreta, da ética real, de um País como o nosso, não é ética abstrata dos valores, das teorias, ou noções abstratas do dever, obediência, finalidade, nada disso. A ética real que funciona no mundo. A sociologia do povo subdesenvolvido é outro livro que tenho pronto. Cada livro tem 3 ou 4 volumes. A crítica da existência é outro livro que está guardado, um volume só, incompleto, pois não pude continuar escrevendo o que desejava porque estava cansado.
Saviani — Esse foi o último livro?
Vieira Pinto — É o último e talvez o primeiro, porque eu comecei escrevendo o texto quando estava na Iugoslávia. Nada de maior a dizer, nada de maior a esperar a não ser que não se percam, que vocês jovens professores cuidem de procurar um dia talvez publicar essas coisas se merecerem.
Saviani — Uma questão ainda que desperta alguma curiosidade é sobre aquele seu livro a respeito da Questão da Universidade.
Vieira Pinto — Sei, aquele livro foi uma conferência que fiz em Belo Horizonte e depois a diretoria da antiga UNE me pediu para publicar.
Como se vê, trata-se de um intelectual que se caracteriza, praticamente, pelo autodidatismo. Não nos apressemos, entretanto, a ver nesse fato um indicador de uma suposta pouca importância da escola na formação dos intelectuais. Lembremo-nos, conforme está registrado na entrevista, que V. Pinto estudou no Colégio Santo Inácio, dos jesuítas, que era, à época, um dos melhores do Rio de Janeiro, além de ter feito os exames no Colégio Pedro II. É, pois, pelo menos plausível a suposição de que o autodidatismo produziu bons frutos porque se desenvolveu sobre a base de uma sólida formação geral propiciada pela escolarização fundamental. De qualquer forma, não é possível ignorar a importância educacional de Álvaro Vieira Pinto. De um lado, porque é um testemunho do modo como eram formados os intelectuais brasileiros até início dos anos 50. De outro lado, porque exerceu importante influência na formação e no trabalho de outros intelectuais. Entretanto, é preciso registrar, além disso, que o professor Álvaro Vieira Pinto se preocupou explicitamente com a questão pedagógica. Essa preocupação fica evidenciada no depoimento obtido pela professora Betty Oliveira, em 13/03/82, cuja transcrição é reproduzida a seguir.
Betty — O senhor poderia resumir a sua visão sobre educação?
Vieira Pinto — O caminho que o professor escolheu para aprender foi ensinar. No ato do ensino ele se defronta com as verdadeiras dificuldades, obstáculos reais, concretos, que precisa superar. Nessa situação ele aprende. No meu livro sobre tecnologia trato da teoria da comunicação que contribui para a análise desse processo. Fiz a crítica da cibernética encontrando algumas noções que, se não são originais, precisam ser consideradas fundamentais. Por exemplo: é indispensável o caráter de encontro de consciências no ato da aprendizagem, porque a educação é uma transmissão de uma consciência a outra, de alguma coisa que um já possui e o outro ainda não. A teoria dialética do conhecimento é fundamentalmente cibernética, no sentido dialético da palavra. Não a cibernética empírica que é essa aí que se faz. Não se trata da entrega de um embrulho de uma pessoa para outra, mas de possibilitar uma modificação no modo como essa outra pessoa, que é o aluno, está capacitado para receber embrulhos. Na pedagogia, o princípio é a teoria da recepção do sabido, porque é preciso que se modifique a outra consciência. Isso tem muita importância porque permite estudar a educação do ponto de vista cibernético, não material, como se costuma fazer (quer dizer, só com dados estatísticos, com método e técnicas, etc.), mas avaliando o resultado pela transformação que a educação imprime à consciência do aluno. Se ela não fizer isso, de nada adianta seu esforço. Um dos graves erros na pedagogia alienada é esse. É avaliar o resultado da prática educacional pela devolução do embrulho, sem compreender que isso não é educação. A educação implica uma modificação de personalidade e é por isso que é difícil de se aprender, porque ela modifica a personalidade do educador ao mesmo tempo que vai modificando a do aluno. Desse modo, a educação é eminentemente ameaçadora. Ela consiste em abalar a segurança, a firmeza do professor, sua consciência professoral (que teme perder o estabelecido, que é o seu forte no plano da prática empírica) para se flexionar de acordo com as circunstâncias. A resistência do aluno ao aprendizado é um fator de modificação da consciência do educador, e não uma obstinação, uma incompetência. Mostrar e trazer a educação para o domínio da cibernética é uma imposição causada por duas ordens de fatores: 1) as massas educadas cada vez maiores; 2) e ao mesmo tempo a mecanização dos processos pedagógicos. Se o educador não se preparar, não terá condições para introduzir o verdadeiro fator, decisivo, no ato educativo, que é o papel da consciência. Fica prisioneiro do que a cibernética chama de hard-ware (todo o material, toda a parte mecânica, instrumental). É evidente que o professor não pode transmitir flexibilidade ao seu ensino se não a possui ele próprio na sua formação e na sua prática. Não escrevi nenhum livro de pedagogia, embora tenha muitas observações a fazer sobre ela.
Betty - Em outra ocasião o senhor falou sobre "pedagogia filosófica". Em que consiste?
Vieira Pinto — Para construção de uma pedagogia filosófica é preciso reunir dados ou elementos provenientes de quatro setores do saber: 1) da teoria do pensamento (dialética); 2) da organização dos atos do conhecimento em seus diversos pontos; 3) do estudo fisiológico ideal da psicologia; 4) da teoria do desenvolvimento humano, essencialmente histórico, marcado pelas diferentes culturas e civilizações. Esses aspectos que abordei fazem parte do material para um livro sobre pedagogia que pensei em escrever. A política, a técnica, a ciência, têm que ser consideradas na pedagogia, na teoria da pedagogia, para poder unificar e ao mesmo tempo inspirar a verdade pedagógica nos diversos campos em que ela se desdobra. O grande defeito que encontro nos educadores é principalmente o de procurar uma pedagogia pronta, quando não existe essa pedagogia pronta. E se existisse seria imprestável. A pedagogia nasce (aí teria que se dizer em grego paidos agogos, que é o ato, o verbo paida-gogen, isto é, como é preciso saber, como conduzir a criança à escola) no tempo da escravidão antiga, onde o escravo era o educador que tinha que ser educado com o próprio ato de tratar as crianças que lhe eram confiadas. Atualmente, de uma certa maneira, isso tem que ser feito, pelo educador, mas com uma consciência científica. É isso que falta compreender. A educação é um ato intransitive quer dizer, o educador não pode transformar a outrem que não esteja se transformando no próprio trabalho de ensinar. Por isso é que ele, ao ensinar, ele aprende.
Betty – O senhor poderia explicitar melhor a sua frase: "A resistência do aluno ao aprendizado é um fator de modificação da consciência do educador e não uma obstinação, uma incompetência"?
Vieira Pinto — O que quero dizer é que não há uma rigidez, não há um a priori em educação. É o caso de repetir com Leibniz, quando corrigiu Aristóteles, "exceto a própria educação". Este é o único a priori que existe. Isso serve de aforismo. (Isso corresponde a pequenos enunciados de verdade que o educador emite a propósito de um determinado ponto que serve para condensar o pensamento exposto, de maneira mais geral, na aula ou no livro. O aforismo é sempre uma verdade condensada. Ao mesmo tempo é simbólica. De modo que há o risco das interpretações errôneas. Isto é preciso evitar.)
A prática pedagógica é contraditória. É duplamente contraditória porque ela supõe que quem ensina sabe, quando não sabe e quem aprende não sabe, quando, na verdade, sabe. Essa é a contradição da pedagogia. Os erros que o educador comete só criticamente podem ser chamados de erros, e tem que se verificar até que ponto é ele o autor desses erros, É preciso entrar aí toda a teoria de Bacon sobre os eidola (tribus, specus, fori e teatri). Os ídolos são os erros que os homens fazem. Todas essas condições interferem no ato da educação. Têm que ser depuradas. Mas só a dialética consegue. É o que Bacon não podia fazer. Toda a minha idéia consiste em criar uma teoria da educação que não seja teórica, no sentido em que fica desfigurada como teoria, e sim corrigida pela prática da aula, pelo próprio ato de ensinar. E por outro lado que seja uma prática que não se confunda com um mero exercício, porque tem que valer como compreensão teórica. Dessa forma a teoria responde às dúvidas da prática. Sem essas dúvidas não haveria teoria. A teoria seria uma coisa sem maior significado, estéril. Essa relação entre teoria e prática é outro aforismo muito importante. O professor deve praticar a organização crítica de sua aula, em todos os aspectos. Por conseguinte, precisa buscar os fundamentos, os pressupostos para cada coisa que faz e também respostas para todas as objeções. É uma justificativa, um ato de buscar os fundamentos, continuamente, do seu fazer. Aí é que entra o papel da teoria da abstração. Um aluno traz consigo todos os problemas que só são dele (enquanto educando) porque ele está se formando. Quero mostrar aqui a identidade de educação e formação. Como ele está se formando, tem aqueles problemas que são dele; porque está se formando para ser ele mesmo e não outra pessoa. Logo, na fase de educação é que se dá a fase de formação. É um crescimento que tem dois aspectos: o aluno cresce como aluno porque aprende e com isso se forma. Quer dizer, o adulto educando é aquele que aprendeu o conjunto de conhecimentos que o formaram. É a noção de formação ligada à de educação.
Seria importante agora tratar do aforismo sobre o papel da escola que é uma coisa fundamental, muito complexa, para o qual a filosofia tem muito a contribuir. A escola é o meio que o aluno vai viver como aluno. É preciso aí estudar a relação entre os aspectos peculiares desse meio — a escola — com os demais. A escola representa a sociedade do aluno para o educador crítico, para o qual a sociedade representa a escola do educador. Quer dizer, a escola é um ambiente e, ao mesmo tempo, um processo. E como tal precisa ser entendida dinamicamente.
O ato de ensinar apresenta muitos obstáculos. Tudo vai depender de como se considera esses obstáculos. Podem ser de natureza material (falta de dinheiro, por exemplo) ou de outro tipo de natureza, como uma incompreensão de um colega para outro. Isso também são formas de obstáculos. Pode-se dizer que a pedagogia reproduz a sociologia; que não há problema pedagógico que não seja sociológico, e vice-versa. Toda transformação sociológica é fonte de modificações pedagógicas. Eu gostaria de tratar desse assunto unindo ao máximo a sociologia dialética com a pedagogia. É necessário levar também em conta a evolução do conteúdo da ciência.
A pedagogia não se torna científica por vontade do pesquisador ou do educador, mas quando as condições da prática social permitem uma determinada explicação do ensino tornar-se científica. A ciência tem sua evolução própria e a pedagogia tem que se adaptar a essa evolução, mas de uma perspectiva crítica que permita estabelecer o jogo de contradições.
Existe a ciência que também é uma forma de consciência e tem influência decisiva para construir a representação do objeto ou da atividade. É preciso também dar o máximo valor à noção de finalidade. Não há teoria da educação sem teoria da finalidade da educação.
É preciso que o êxito de uma determinada atitude pedagógica não se transforme em obstáculo ao prosseguimento do curso da própria educação. Os métodos bem sucedidos, como o do Paulo Freire, podem acabar se tornando um quisto, uma coisa que impede o prosseguimento do seu próprio desenvolvimento.
Penso que a afirmação de Vieira Pinto "não escrevi nenhum livro de pedagogia, embora tenha muitas observações a fazer sobre ela", decorre do fato de que as Sete lições sobre educação de adultos foram aulas-conferências que ele proferiu no Chile em 1966. Os textos que escreveu então, ele os redigiu como roteiros das aulas que ministrou. No seu entender, um livro exigiria maior desenvolvimento e aprofundamento. Entretanto, Betty e eu o convencemos a publicar os referidos roteiros na forma original. E isto não apenas pelas importantes contribuições que este pequeno livro contém, e que reputamos ser de grande utilidade para os educadores brasileiros de hoje, mas também como testemunho de um trabalho que vem se desenvolvendo já há muitos anos e que permanece vivo e atuante.
Hoje, quando diversos estudos já surgiram reconstituindo o momento histórico em que A. V. Pinto se configurou como um intelectual militante, pode-se fazer reparos a conceitos por ele emitidos e, mesmo, ao conjunto do seu pensamento filosófico. É impossível, porém, não reconhecer a sua importância e a envergadura intelectual de um trabalho desenvolvido em condições bastante adversas.
Após as considerações feitas, penso ter ficado claro o sentido da afirmação que fiz no início desta Introdução, quando disse que as vicissitudes da obra Ciência e existência espelham as vicissitudes pelas quais passou seu autor. Com efeito, assim como a referida obra correu o risco de cair no esquecimento, mas se impôs, tornando obrigatória a sua reedição, assim também seu autor, que parecia já ter-se retirado do cenário cultural brasileiro, resistiu e retorna agora através da presente obra.
A publicação deste livro é, pois, ao mesmo tempo uma contribuição à cultura brasileira e uma homenagem a um dos intelectuais que mais se empenhou na consolidação da referida cultura.
A presente Introdução pretendeu trazer alguns subsídios que facilitassem ao leitor situar as Sete lições sobre educação de adultos no contexto da vida e da obra do autor. Espero ter atingido esse objetivo.
Dermeval Saviani São Paulo, abril de 1982
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