sábado, 28 de fevereiro de 2009

BERNARDINA DE OLIVEIRA

MÃOS AO ALTÍSSIMO






"Uma menina síria de quatro anos teria levantado as mãos para o alto como se estivesse se rendendo ao confundir uma câmera fotográfica como uma arma. A imagem comovente foi compartilhada pela fotojornalista Nadia Abu Shaban no Twitter."

Mãos ao Altíssimo!

BERNARDINA DE OLIVEIRA


"Menina síria!
Olhar que derruba mundo em partes desiguais.
Olhar sábio de cores ingênuas.
Lábios afinados de tristeza,
Mãos sobre cabeça,punhos de anjo forte.
Emolduram homem que foge,
Choro contido
Sangra noite enluarada.

Holofote de longas franjas constrange,
Sopro no curso dos mares,
Desvio no ventre dos rios.
Burburinho nas cidades!

Faces coradas e belas,
Extrema-unção de estrelas ,
Agasalhada  discrição,
Ponto cego no voo da águia ,
Contorcida árvore aprisiona cenário:
Tijolos, saibro e céus.

Insígnia  cravada neste milênio de amarras.
Muito quente! Muito quente! Gritara a vietnamita!

Olhares são flechas,
Olhares são rosas sem espinhos,
Espinhos são olhares dentro de nós,
Estilhaços de cobre e chumbo.

Acendam verdes semáforos!
Curvem-se todos:
- Essa menina precisa passar!"

Bernardina de Oliveira






Bernardina de Oliveira, Mineira. Residente no Rio de Janeiro desde 1960. Professora (Português-Literaturas); Mestre em Comunicação (ECO-UFRJ). Pesquisadora do Patrimônio Imaterial- RJ -(SEC-RJ). Prêmios: Vencedora do V concurso Roquette-Pinto: roteiro para TV; ABL e Folha Dirigida: Tema: “Devemos ver com os olhos livres”(2º lugar). Poemas publicados nas coletâneas “Terça ConVerso no Café”. Livros: Poemas: "Mulher de Pedra" (1998); “Cada um com cada qual” (2000); "Tempo de Ninguém" (2006).

espelho-d'água


homem contemporâneo
deus de alguma coisa
vitrines e aglomerados
íntegro homem de agora
não pergunta nada
não quer saber de mais nada
esgotou-se na fonte
espelho d'água

COROAÇÃO

Bernardina de Oliveira

sinal amarelo
entre via láctea
e buraco negro

furo na orelha
farpa nas mãos
hena nos pés

batman bate tambores
e naja se ergue
das subterrâneas águas
cinza do dragão
que bate asas ao léu
mosca na sopa de cogumelos
nem fria nem morna ou quente




nem Einstein nem Santos Dumont
nem bandeira nem cachimbo da paz
grito solto nos lagos , rios e mares
tudo que se arrasta, voa e nada
do Pacífico ao Atlântico Sul

semáforo queimado e girassóis ao vento
solto legado da nossa miséria
tapa de mãos enluvadas
beijos no beco vadio

portas escancaradas
candelabros alumiando
como vagalumes urbanos

do Pão de Açúcar
bromélias florecem
e escorregam régias
sobre sóbria face
do ancião
( Rio de Janeiro, 14 de março de 2020)


PRIMEIRA CHUVA DE VERÃO




História desfolhada,

tosca luz na sombra,

primeira chuva de verão.



Corpo esculpido na pedra,

talhados traços.



Cidade desperta

volta às cavernas,
corte nas mãos,

ângulos da mesma vela.






JOGO


Querer o quê?
Olhar entre séculos?

Caminhadas serviram aos reis,
catedrais serviram aos reis,
mausoléus serviram aos reis
e o metrô nem chega ao meu reino!
Ainda me guio pelas estrelas.
Passos não se perdem.

Em verdade há ausência de flores
na praça onde o saxofonista toca a vida,
equilibrado momento de notas e arranjos.

Querer o quê?
Mulher faz o jogo,
homem faz o jogo.

Jaz um hiato
no gramado simétrico
do amor.



TEMPO DE NINGUÉM


Tempo de ninguém,

competente tempo.

Rumo desperto

cruzamento à parte,

volta incompleta.



Amor se desdobra,

hospedeiro amor

das horas todas.



Linha do corpo,

tecida batalha.

aprendiz olha

paisagem de fundo.

Músicas transitam

e o canto das águas

se rende à paixão.



Nem vida nem morte,

coração aos pulos,

tempo de ninguém.








CADA UM COM CADA QUAL


Cada um com cada qual!

Silêncio dos quartos,

três cômodos e quatro solidões...

Saudades se insinuam,

risos quebram silêncio da rua arborizada

corrompendo pedras portuguesas

desalojadas dos mosaicos.

Anjos perambulando entre mortais.

O que há de errado?

Selvagens farejam questões sublimes!

Salvas de prata

recolhem raízes

e vôo de pardais.



Cada um com cada qual

onde o mundo adormece,

acordando sonho das águas,

ócio das insônias!



Cada um com cada qual!












VÔO RASO



Palavra solta

à cata do mundo.

Lasca vermelha da florada.

Desfaz-se parte por parte,

ponto por ponto.



Palavra armada,

incandescente corpo em vôo

nas ruas do Rio



DÁDIVA



Cidade, dama das almas,

mil sonhos e um só parecer.



Trajeto caçador de sombras,

canção fragmentada do amor.



E o olhar não se perde, acostuma.

e a solidão não se finda, associa.



Cidade, dama das vidas:

tudo que quero cabe na concha da sua mão.









AMANTES DA CHUVA



Paisagem

deságua silêncios.

Cheiro de barro nas mãos do artista.

Delicados contornos

quebram rigor da tempestade.

Tudo é neblina!

Nobreza é água livre dos seus cursos.

Espaço clama por plantadores de flores silvestres.

Braços se desfazem das muralhas

no alinhamento das pedras.

Exata dimensão

dos amantes,

dos amantes da chuva.






PELE DE BRIM



Em saber

que também canta

indiferente,

também canta,

canta, canta, canta...

Olhar finito exposto

para essa nova

das janelas

de pássaros de barro

acolhidos sob pele de brim...



Devota rotina

se destaca do luar.

vaidade assim talhada,

arrogante entre azuis

da noite

constrangida

surpreendentemente

entreaberta

ao corpo urbano

do amor.


Canto da baleia




Final de inverno,

Pia  Cotovia,

Canto esquerdo do quarto,

Bate fora bem-te-vi.

Vivalma faz coro!

 

Trem ancorado

E sino de bronze

Tange  velho século,

Em sepulcro de agora.

Rostos flácidos se ocultam,

Saibro no mapa da plataforma.

 

Pôster de família

Flutua solto da dourada moldura,

Breve espaço no retângulo borrado,

Colares e gravatas  se equilibram

Na palma da mão.

 

Olhar no olho do amigo

Em adiantado estado de solidão,

Sorrindo do outro lado do mundo,

Hostel  aberto  à visitação.

Hora ou outra  vez, quiçá...

 

Paciente –  tocata do trem,

Pés agitados no ritmo das rodas,

Linhas aquecidas pela exposição,

Condutor se ausenta,

De ponta a ponta,

Cede lugar ao estrangeiro!

 

Tempestade na montanha,

Nômade  se curva como hera!

Carpideiras  libertam-se das tocas,

Precipitam-se das cascatas,

Enredadas  em viscosas bolhas!

 

Da poltrona embolorada

Zarpam-se  risos trêmulos.

Sol enviesado  nos estilhaços da vidraça,

Ensurdecedora freada dos vagões.

Moedas soltas nos trilhos...

 

Ao longe,  ondas  preguiçosas

Balouçam-se  para ninar  baleia  com recém-nascido às costas

E o leite jorra mar adentro.

 

Véu da cristalina fonte,

Molhados lábios sedentos.

Olhos congelados no retrovisor!

- Atentem-se às malas e agasalhos,

É a  jornada.      (Bernardina de Oliveira)

 

 

 

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