terça-feira, 10 de março de 2009
MANUEL MAURICIO DE ALBUQUERQUE
A ESCRAVIDÃO AFRICANA
POR MANUEL MAURICIO DE ALBUQUERQUE
O escravo africano chegava ao Brasil como mercadoria e, como tal, sujeito à conseqüente seleção que o tornava mão-de-obra mais qualificada e, portanto, de maior valor. Sendo portadores de técnicas mais desenvolvidas do que os indígenas, os que resistiam ao alto índice de mortalidade durante as viagens ofereciam condições de sobrevivência física e de rentabilidade muito lucrativas para a classe escravista. Na África, já existiam estruturas sociais onde as forças produtivas haviam alcançado um nível de desenvolvimento capaz de produzir excedentes. Essas organizações sociais onde já se detectavam relações de classe dispunham de força de trabalho mais capacitada a enfrentar o desgaste do trabalho escravo.
A obtenção do escravo na África se fazia, comumente, pela troca com as formações sociais escravistas como os Reinos de Mali e do Congo. Este escravo que resultava de processos repressivos diversos para sua obtenção era transformado em valor de troca como efeito da intervenção comercial e político-militar européia nas formações sociais africanas aliada aos setores dominantes nestas sociedades. No caso das formações sociais que se organizavam feudalmente, como o Daomé e nas de tipo asiático, como o Império de Gana, o intercâmbio com o setor mercantil negreiro estimulou práticas escravistas complementares. A busca de escravos não estava articulada às necessidades produtivas locais, mas sim às relações de intercâmbio. Portanto, os contatos com os comerciantes de escravos e com os agentes político-militares que defendiam os interesses colonialistas determinou uma dominação escravista que favorecia a acumulação de riqueza nos setores dominantes dos sistema feudal e asiático. A posse de escravos disponíveis como mercadoria condicionava a aquisição de produtos estrangeiros, notadamente os tecidos, as miçangas, as armas, as jóias, além do ouro, cobre, algodão, tabaco, cachaça e zinbo ou búzio. Este último, abundante nas praias da Bahia, era exportado para a África onde servia como moeda e objeto religioso.
Também ocorria na África o apresamento direto como o que se praticava no Brasil. Esse processo era mais empregado nos ataques às comunidades primitivas africanas. No entanto, os escravos assim obtidos não eram mercadoria imediatamente exportável, porque a sua rentabilidade apresentava as mesmas desvantagens que a classe proprietária enfrentava na exploração do escravo indígena.
A necessidade de garantir o abastecimento contínuo de força de trabalho escrava principalmente destinada à América, produziu práticas de alianças políticas entre os representantes dos interesses coloniais e os diversos Estados africanos. Esta política africana foi iniciada pelo Reino de Portugal a partir do século XV e tinha como suporte principal a celebração de acordos comerciais e políticos. Estes ajustes, em geral, previam a regularização das trocas mercantis, a permissão para o estabelecimento de feitorias e fortalezas e a liberdade de ação para os missionários catequistas. Um bom exemplo desta política foram as relações estabelecidas com o Reino do Congo e que determinaram sobre esta unidade política africana um amplo processo de dominação colonial. Ainda que, em última instância, os contatos com a África se realizassem sob o controle do Estado Português, a importância crescente da economia brasileira como consumidora de escravos e de outros produtos africanos não tardou a se fazer sentir. O tráfico direto entre os portos negreiros africanos e os receptadores brasileiros passou a assumir uma importância crescente. Mais de uma embaixada vinda da África buscou entendimentos diretos com autoridades sediadas no Brasil, uma delas, a que o Rei do Congo enviou ao Conde de Nassau-Siegen em 1643. Nos séculos segiuntes (1750, 1795 e 1805) chegaram à Bahia com destino a Portugal emissários de soberanos do Daomé, outra importante área escravista.
Aos poucos o monopólio português no tráfico negreiro começou a ser limitado pelas investidas concorrenciais de outros Estados Europeus, notadamente pelos representantes das burguesias comerciais holandesa, inglesa e francesa. A partir do século XVII, as áreas fornecedoras de escravos controladas pela burguesia portuguesa foram se tornando cada vez mais reduzidas, principalmente depois que o asiento negreiro foi concedido pelo Estado Espanhol aos holandeses e mais tarde aos ingleses. Somente Angola e Moçambique permaneceram como centros fornecedores de escravos dominados colonialmente pelo Estado Português.
O recurso à exploração do escravo africano não suscitou as mesmas dúvidas quanto à sua legitimidade como ocorreu em relação às populações indígenas da América. Quando da chegada a Portugal dos primeiros africanos capturados, o Infante D. Henrique reclamou os cativos que lhe cabiam na qualidade de Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Na medida em que a importância do trabalhador direto escravo crescia, de início articulado à estrutura econômica das Ilhas do Atlântico e posteriormente à do Brasil, o problema do seu cativeiro legal tornou-se ponto pacífico. Em geral, argumentava- se que era mercadoria estrangeira, adquirida legitimamente a autoridades bárbaras e pagãs que a vendiam em obediência a normas jurídicas próprias. Por isso, o Bispo Azeredo Coutinho, além de invocar as leis portuguesas e as bulas pontifícias, pôde escrever em sua obra, Análise sobre a jurisdição do comércio de resgate. da Costa da África (1808): "OS escravos que se compram na costa da África são homens pretos, nascidos no meio de nações bárbaras e idólatras, condenados pelas leis do seu país à escravidão perpétua e onde as leis não protegem nem mesmo a vida dos inocentes... "
A partir do descobrimento da América aumentou enormemente a busca de escravos africanos, determinando que as diversas burguesias européias procurassem garantir a sua dominância sobre as áreas fornecedoras. Os efeitos dessa dominância sobre as formações sociais africanas cresceram na razão direta em que se processava a sua subordinação a partir da dependência comercial. A demanda contínua de escravos ultrapassou rapidamente a capacidade decisória das autoridades locais cujo campo de autonomia transformou- se, ao se confinar aos limites ditados pelas exigências do tráfico negreiro. A guerra, como solução escravizadora, dimensionou as antigas rivalidades locais imprimindo-lhes uma amplitude destrutiva e acelerada dos contingentes demográficos africanos. Calcula-se que, entre os séculos XVI e XIX, somente para a América viera vinte milhões de escravos constituindo- se essa transferência forçada no exemplo mais importante de emigração compulsória que se conhece. Regiões houve, como em certas áreas de Angola no século XVII, que ficaram reduzidas a virtuais desertos. Ao mesmo tempo, por exemplo, as práticas jurídico-políticas, próprias dessa sociedade articuladas ao comércio de escravos, passaram a ser ajustadas à nova conjuntura, cominando-se a pena de perda da liberdade em grau muito mais extenso do que era previsto pelo direito tradicional antes vigente.
No Brasil, o escravo africano e seus descendentes foram utilizados prioritariamente não apenas nas atividades realizadoras de produtos destinados à exportação, como na agro-manufatura do açúcar, no plantio do algodão, do café, no extrativismo mineral. Foi também a força de trabalho explorada no artesanato, nas manufaturas, na prestação de serviços e, em menor escala, na pecuária. Pode-se, assim, afirmar que o trabalhador escravo de origem africana foi a força de trabalho fundamental até a segunda metade do século XIX, quando se iniciou a transição do Escravismo para o Capitalismo. Diferentemente do que ocorreu com o Indígena, o escravo africano não mereceu a mesma defesa da Igreja. Esta última não apenas o explorou como trabalhador, semelhantemente aos proprietários escravistas leigos, como ainda participou das rendas do comércio negreiro na África. A esse respeito é muito útil a leitura de Relações Raciais no Império Português de Charles Boxer, bem como as informações contidas em Os Jesuítas no Grão-Pará e a História de Antônio Vieira, ambos de João Lúcio de Azevedo. Este pesquisador português oferece material empírico principalmente para a análise da posição dos inacianos em relação à escravidão de africanos.
A esse respeito, o 14.0 Sermão do Rosário, pronunciado por Antônio Vieira, é bem elucidativo. Depois de comparar a atividade dos escravos na produção do açúcar aos padecimentos do Cristo e de equiparar o engenho ao próprio inferno, ele conclui, no entanto, que: "Deveis dar infinitas graças a Deus, por vos haver dado conhecimento de si e por vos haver tirado de vossas terras. onde vossos pais e vós vivíeis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé vi vais como cristãos e vos salveis". Essa mesma peça de oratória nos informa sobre o critério de discriminação racial que presidia a formação das agremiações religiosas. Vieira censura os mulatos por se reunirem na Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, desprezando a do Rosário organizada por negros.
Devido à importância da exploração do produtor direto escravo, foram raras as manifestações em sua defesa durante a etapa dominada pelas práticas mercantilistas. Um dos poucos exemplos foi o do Pe. Manuel da Rocha, autor do livro Etíope resgatado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, publicado em 1757. Os de terminantes econômicos impuseram também, ~m última instância, o abandono das práticas de organização familiar da massa escrava, na medida em que a exigência de um casamento cristão dificultava as operações de compra e venda de que era objeto a propriedade escrava. Mesmo Antonil, um defensor da ordem escravista, censurava a pouca instrução religiosa dos trabalhadores escravos que se limitava a práticas ritualísticas maquinais. O mesmo Autor alude, imprecisamente, à feitiçaria como recurso vindicativo do escravo, informação essa que se constitui em uma das referências mais antigas à manutenção no Brasil de procedimentos religiosos africanos.
Para o Brasil vieram representantes de dois grandes grupos lingüísticos: o sudanês e o banto e, em menor quantidade, os que empregavam o idioma árabe. Dentre as formações sociais sudanesas encontravam- se as que se organizavam nos Estados de Gana e do Mali, ambos fortemente articulados ao intercâmbio transaariano com o Magreb, como fornecedores de ouro, cobre, marfim e escravos. A partir do século XV abriu-se nova rota comercial que unia os diversos Estados-sudaneses à Tunísia e à Líbia atuais. Entre os povos classificados como sudaneses vieram para o Brasil representantes dos contingentes iorubás, gêges, hauçás e minas; dos bantos, foram introduzidos os angolas e cabindas.
Os principais centros receptores e distribuidores de escravos foram Salvador, Recife e Rio de Janeiro. No século XVIII, nada menos de dez mil escravos importados eram considerados indispensáveis às atividades mineradora, agromanufatureira do açúcar e principalmente do cultivo do algodão. O tráfico negreiro recrutava pelo menos vinte embarcações de nacionalidade portuguesa que demandavam, anualmente, aqueles portos brasileiros, em particular o de Salvador. Nessa última cidade desenvolviam- se estaleiros, havia condições técnicas para providenciar reparos aos navios e as plantações do Recôncavo forneciam o tabaco que era valor de troca extremamente valorizado na África.
O Rio de Janeiro teve importância menor, embora desde o século XVII já exportasse escravos para a América Espanhola através de Buenos Aires. No século XVIII, com o ascenso da atividade extrativa mineradora, cresceu a importância regional do Rio de Janeiro que passou a receber e a distribuir escravos para abastecer as necessidades econômicas locais e as que se processavam em Minas Gerais, Goiás e Mato-Grosso.
Originários, em sua maior parte, dos centros fornecedores do litoral africano, os escravos eram negociados por armadores e comerciantes especializados, os pombeiros e taganhões em estreita articulação com os agentes da Fazenda Real localizados em diversos pontos do litoral africano como São João Batista de Ajudá, São Tomé, São Filipe de Benguela, São Paulo de Luanda e outros. No século XVI, domina.ram as remessas de escravos fornecidas pelo chamado ciclo de Guiné, superado nos dois séculos seguintes pelos ciclos de Angola e Congo e o da Costa da Mina, respectivamente. Esse intercâmbio representava uma massa considerável de capital que ao se deslocar favorecia o enriquecimento da burguesia comercial traficante de escravos. Dessa forma, esse setor de classe reforçava a sua dominância sobre os proprietários eScravistas do Brasil, dentro dos objetivos repressivos do Sistema Colonial. Isso produziu reclamações constantes dos prejudicados que muitas vezes chegaram à franca rebeldia como ocorreu com os senhores de engenho do Maranhão ao promoverem a Revolta de Beckman (1684-1685).
A importância do tráfico de escravos africanos constituiu a principal fonte de reprodução dessa força de trabalho.
Com efeito, o período de vida útil do escravo produtor direto era bastante baixo, oscilando em entre se e dez anos,
Segundo Simosem. Certas atividades eram particularmente letais, entre elas o extrativismo do ouro e do diamante, o trabalho nas salinas, nas armações de pesca e de beneficiamento da baleia e nas fases de produção intensiva de açúcar. A alta mortalidade dos escravos diretamente ocupados nas atividades produtivas era ainda aumentada pelo excesso de trabalho, a má alimentação, enfermidades, castigos e outros elementos congêneres. Por outro lado, não havia estímulo ao crescimento vegetativo da população escrava na medida em que tal iniciativa implicava em uma diminuição da exploração do trabalhador direto escravo. Devido às condições em que se desenvolveu a estrutura econômica escravista colonial, o investimento na escrava grávida e na criança escrava era considerado antieconômico em função dos interesses da classe proprietária. Diferente, no entanto, era a situação do escravo prestador de serviços, em particular os que estavam adstritos às lides domésticas e os pretos de ganho, geralmente' trabalhadores urbanos e especializados e cuja atividade era alugada pelos seus proprietários.
O tráfico negreiro constituiu importante fonte de renda para o Estado Absolutista. De início, o comércio de escravos era livre, sujeito apenas a um tributo variável cobrado por cabeça de escravo exportado para o Brasil. Em certos períodos, o Estado monopolizou diretamente o tráfico, como ocorreu a partir da publicação da Carta Régia de 1697, que oficializava essa atividade. Certas companhias de comércio privilegiadas - a do Estado do Maranhão, no século XVII, a do Estado do Grao-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba no século seguinte - receberam o monopólio do comércio de escravos, limitado a áreas determinadas do Brasil.
Os comerciantes também pagavam impostos ao adquirirem à Fazenda Real escravos desembarcados, o mesmo ocorrendo quando se tratava de trabalhadores transferidos de uma região para outra. Isso aconteceu principalmente na
etapa dominada pelo extrativismo mineral cujas exigências promoveram deslocamentos constantes de escravos do Nordeste e da Bahia para zonas mineradoras. A capitação era o imposto unitário cobrado aos proprietários de acordo com o número de escravos ocupados nas minas de ouro e na extração de diamantes.
O intercâmbio com a África, além de enriquecer a burguesia comercial, promoveu a abertura de mercados para a
produção brasileira ou a que era reexportada através do Brasil. Com isso diminuía a dependência da classe dominante colonial em relação ao principal mercado de consumo que era o europeu.
Quanto à quantidade de escravos importados durante a Etapa Colonial, o que existem são cálculos aproximados,
sujeitos a reservas. A necessidade de escravos era contínua, sobretudo porque o período de vida útil desse trabalhador era inferior às necessidades econômicas, o que implicava numa demanda constante de reposição da força de trabalho. De acordo com Afonso Taunay os números prováveis de escravos africanos, desembarcados na etapa anterior à instalação do Estado Português no Brasil (1808), foram os seguintes:
Século XVI ............ ... 100.000
Século XVII ............ ... 600.000
Século XVIII ............ ... 1.300.000
As duas primeiras cifras correspondem ao desenvolvimento da atividade produtora de açúcar, a que se juntaram, no século XVIII, o extrativismo mineral e o cultivo do algodão, principalmente.
Na Etapa Colonial, a exploração do escravo africano e de seus descendentes nascidos no Brasil, os chamados crioulos, não deixou de desenvolver práticas racistas que discriminavam os negros e os mestiços, mesmo que fossem juridicamente livres. É verdade, no entanto, que a ideologia racista aqui foi menos violenta do que em outras áreas escravistas da América. A mestiçagem se desenvolveu expressivamente e não havia impedimentos legais à compra de liberdade ou alforria, embora essas práticas fossem de iniciativa da classe proprietária.
Negros e mulatos organizavam- se em separado, tanto nas atividades econômicas, como em práticas jurídico-políticas e mesmo nas ideológicas. Essas informações podem ser ilustradas pelo Regimento dos Henriques e pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e outras.
Embora legalizasse as práticas escravistas, o Estado Absolutista Português mais de uma vez legislou no sentido de coibir os maus tratos de que eram vítimas os escravos. Um dos exemplos foi a Carta-Régia de D. Pedro II de Portugal, em 1700, se bem que se possa afirmar que essas medidas tinham alcance e prática muito limitados. As Ordenações Filipinas atribuíam as penas de morte ou de mutilação ao escravo que atacasse o seu proprietário e autorizavam o emprego do açoite como recurso para obter declarações sobre a localização de escravos fugidos.
Durante toda a Etapa Colonial pode-se observar várias práticas de resistência dos escravos. Esses conflitos em geral assumiam formas de solução individual, tais como fugas, suicídio ou assassínio de feitores e de proprietários. Mais importantes foram as revoltas e as fugas coletivas para a formação de quilombos como os do Rio de Janeiro, o da Bahia, o de Palmares, em Alagoas e Pernambuco atuais, todos organizados no século XVII. No século seguinte, entre outros, formaram-se os do Rio das Mortes, em Minas Gerais, e o da Carlota, em Mato Grosso, sendo que a maioria deles foi destruí da por expedições oficiais financiadas direta ou indiretamente pela classe proprietária. Já no início do século XIX, além da formação de novos quilombos, começaram a se registrar rebeliões urbanas, das quais, uma das mais importantes foi a de escravos hauçás que uniu escravos de Salvador e do Recôncavo em 1807.
O chamado sincretismo religioso, conjunto de práticas ideológicas afro-católicas também se constituiu em um recurso de preservação de identidade social, inicialmente limitado aos escravos e depois a seus descendentes inclusive os juridicamente livres. A dominação do Catolicismo que se impunha à população escrava foi por ela reinterpretada numa aparente conversão na qual puderam ser conservados valores e comportamentos originalmente africanos. Nesse sentido, as práticas rituais afro-brasileiras foram um aspecto particular da luta social, de vez que a situação de escravo o impedia de ter condições de resistência legal aos níveis econômico e político. A concentração da resistência ao nível das práticas ideológico-religiosa s adquiriu, assim, enorme importância. O universo ideológico passou a se constituir e a produzir os elementos quase que exclusivos de uma coesão social possível.
A dominância do pensamento religioso pelo seu próprio associacionismo intrínseco facilitava, em certa medida, a superação da permanência das rivalidades que dividiam a população escrava.
Por ser uma forma de resistência limitada e, portanto, menos perigosa para a classe proprietária, as reuniões religiosas sofreram perseguições menos ostensivas, sem deixar por isso de se desenvolverem em semiclandestinidade . O Estado apoiou a Igreja na repressão a essas práticas não-católicas e estimulou a formação de irmandades que incorporavam a população de cor, escrava ou livre, aos quadros sociais controlados oficialmente. Nessas irmandades não somente se mantinham as separações por critérios de cor (negros, mulatos), como por situação jurídica (trabalhadores livres e escravos) e mesmo por lugar de origem na África. Aliás, esse último recurso foi largamente empregado pelas autoridades para impedir sublevações de escravos. A este respeito, o testemunho de Luís dos Santos Vilhena na sua Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas, datada de 1802, é bastante eloqüente:
"Por outro principio não parece ser muito acerto em política. o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade (do Salvador)
façam multidões de negros de um e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toques de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas e isto, com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de conseqüências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Bahia. corpo ração temível e digna de bastante atenção, a não intervir a rivalidade que há entre crioulos e os que não o são; assim como entre as diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África."
A advertência de Vilhena foi, posteriormente, bem atendida pela comunicação do 80 Conde dos Arcos, o último Vice-Rei do Estado do Brasil e depois Governador e Capitão-General da Bahia, onde organizou a repressão ao movimento revolucionário pernambucano de 1817:
« o governo... olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e maquinalmente, de oito em oito dias, a renovar as idéias de aversão recíproca que lhes eram naturais e que todavia vão se apagando, pouco a pouco, com a desgraça comum...»
Embora limitadamente, a ideologia liberal-burguesa também contribuiu para a organização da resistência de grupos sociais nos quais se incluíam trabalhadores negros e mestiços, muitos deles escravos. Sua participação pode ser assinalada especialmente na Conspiração Baiana de 1798, cujo caráter mais popular oferece contraste flagrante com as Conspirações Mineira e do Rio de Janeiro e com o movimento revolucionário nordestino de 1817.
Ainda que no projeto contestatório de 1798 dominem as reivindicações que conduzissem à autonomia política da Colônia ou, mais imediatamente, de uma de suas partes, a Capitania da Bahia, já existe a proposta de uma forma efetiva de cidadania. Assim é que se defendem o livre acesso aos empregos, a extinção dos preconceitos raciais e, sem tanta
unidade, a abolição da escravatura. Depondo perante o Tribunal da Relação da Bahia, um dos acusados, Manuel Faustino dos Santos, alcunhado o Lira, declarou que os conspiradores pretendiam instalar:
" . .. um governo de igualdade, entrando nele brancos, pretos e pardos; sem distinção de cores, somente de capacidade para mandar e governar". O mesmo conspirador havia confidenciado a um escravo, Luís da França Pires, também aliciado como conjurado:
«. . que estava projetado um levante nesta Cidade, o qual se executava daí a um ou dois meses, a fim de serem libertos todos os pretos e pardos cativos'. I
Ao lavrar a sentença condenatória, aliás bastante severa no tocante aos escravos, artesãos e soldados, os juízes capitulavam como agravantes:
«. .. as imaginosas vantagens de uma República Democrática, ' onde todos serão iguais, onde os acessos e lugares representativos serão comuns, sem diferença de cor, nem de condição'.»
(in PEQUENA HISTORIA DA FORMACAO SOCIAL BRASILEIRA)
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