quarta-feira, 23 de setembro de 2009

AFONSO DE CARVALHO



















AFONSO DE CARVALHO





Dias e noites


Os dias e noites são de uma tepidez mortal, e dias assim não convidam a pensar. Há uma exaUstão de ferro candente sobre as coisas do mundo, sobre a terra e sobre as águas, e os nossos corações sofrem as angústias de todos os tormentos das horas perdidas, as horas que não pudemos viver. É Novembro que se aproxima, amor. Bem sabes, querida, que este pode-ria ser um mês de alegrias, em que cantássemos aleluias de ressurreição, um mês em cujo inicio eu estaria te ofertando poemas de amor, em surdina, somente para as teus sentidos ou-virem, apenas para o teu coração comover. Não será assim, todavia, anjo meu. Para mim, o mês que se aproxima é uma quadra de recordações, e eis que me perco a meditar, não pen-sando nas glórias da existência, que não as quero, mas em ti, amor imortal, em ti somente. Que será de nós, amanhã? Pensamentos, palavras, emoções, tudo gira em torno de tua mara-vilhosa pessoa, tu, que és única, que és insubstituível, que estás presente em todas as minhas horas vazias, como uma obsessão e como uma loucura de que não me quero curar, para a qual não há remédio. Farei versos a ti. Novembro se aproxima, e com ele, e durante ele, meu velho coração não terá outro destino: só tu o ouvirás, só contigo ele estará. Ninguém mais.


MEDITAÇÃO DE NOVEMBRO

A tua não será uma vida em berço de rosas e sempre haverá pequenos obstáculos através da estrada que se abrirá a teus pés de peregrina impenitente. Será pouco o arrimo com que contarás, e teus amigos serão ainda menos, porque foste escolhido sob o signo desditoso das traições. Tem cuidado com eles, portanto. A tua será uma luta solitária e deves confiar apenas no valor de tua moral, na altivez de tua consciência, na pujança dos teus próprios méritos pessoais, se algum tiveres a teu favor — foi assim que Ela me disse quando eu nasci. E assim tem sido, ó companheiro que me segue, ó corcéis do tempo que passam, velozes, carregados de essências cósmicas no rumo inacabável das noites sem fim. Sim, a vida é bela, ó companheiro, mas os lagos azuis estão encapelados e ouço um rumor de torrente através das idades, que nascem e desaparecem como espumas, e só duas vozes amigas eu encontrei: a tua voz, minha mãe, e a tua,- querido amor do coração. Terei, talvez, um destino luminoso? Ou serei o último dos facínoras? Ou o mais execrável e repelente dos monstros? Creio que o meu será o destino que quiseres, ó espírito humilde de minha mãe, ó coração bondoso do meu amor. Lançarei meu rosto sobre a poeira das estradas, calcarei um ferro em braza sobre o coração dolorido e por certo morrerei, amor, morrerei por ti. Que importa a dor suprema do holocausto? Ainda haverá pelo mundo uma valsa de Strauss, uma Apassionata de Beethoven, uma Serenata de Shubert e o riso cristalino das crianças, que estes nunca morrerão, querida amiga, nunca morrrerão.
Minha mãe, e tu. meu amor, tão próximo e tão longe de mim. Chegou Novembro, o nono mês das meditações. O meu desejo e minha necessidade é apenas de preces. Estarei contente.

ULISSES, REIZINHO E BRUCUTU

Bem sabes que esta crônica que estou escrevendo, para o dia 4 que iremos viver, bem sabes que é uma divagação sobre a minha própria pessoa, mas toda ela está impregnada de ti, de tua lembrança imorredoura, e nesta crônica haverá muita música, porque agora, estou ouvindo a tua voz e por isso contarei uma história do que eu desejaria ser no dia 4. hoje que vai passar. Conto essa história, sim, porque sei que ela enternece os teus ouvidos, e porque essa é uma história que noutros tempos eu vivi. Lembrei-me repentinamente daquele Ulisses de Saroyan, sabes? E assim como me lembrei de Ulisses, poderia, também, me lembrar do ingênuo Reizinho das histórias de Soglów, ou do Capitão América ou mesmo do simplório e rude Brucutú, que estes são cavalheiros muito importantes, segundo eu penso. É que somos crianças, apesar de tudo, doce coração. Para que pensar em bombas atômicas? Para que pensar em delírios mortais de angústias humanas? ou em gemidos do sub-solo que, se os ouvíssemos agora, nos cortariam o coração? Para que? Não, voz amiga do terno sentimento. Ulisses pelo menos ficará aguardando a passagem da vida, metido nas suas calcinhas rotas de menino vagabundo, e estará contente quando o trem soltar o apito saudoso na curva da estrada, deixando o seu penacho de fumo bailando no ar. Então Ulisses irá embora, assobiando e tropeçando nau pedras do caminho, porque para ele a vida acabou, a vida é somente a paisagem do trem. Pois, assim mesmo doce coração, é a emoção que sinto por ti, neste 4 de novembro que iremos viver. Não haverá festas nem flores.
Tudo será silêncio e indiferença. Estarei no exílio e não falarei com ninguém. De que me serve falar com alguém que não sejas tu? E de que poderia eu falar, se tenho a certeza de que ninguém ia. compreenderia, a não ser tu, Coração terno e querido? Também não desejarei ouvir palavras estranhas, assim como o Ulisees de Saroyan se despedia da vida à passagem do trem pela. curva da estrada. Em momentos como este é quando tudo perde a cor, e nada interessa, amada minha. Sem ti nada existe. A vida se transforma num vácuo os violinos permanecerão mudos, o sol esconder-se-á na paisagem silenciosa das sombras.
O sorriso das crianças ó terna, ó infantil bondade de Ulisses, orai por nós....


SÓ, COM OS AMIGOS

Depois das horas melancólicas- do dia maior, ainda há passos perdidos pelo caminho das sombras e os ultimas Cantos da jornada agreste perdem-se na vastidao infinita dos mundos mortos e depois será o silencio sobre tudo, a mansidão, a quietude... Aqui ficarei, Coração, à sombra desta arvore amiga e acolhedora. Trouxe comigo os meus trágicos amigos da estepe e deles nao me afastarei, por hoje. Sim, porque só com eles me sentirei bem, me sentirei à vontade, nestas horas de recolhimento e saudade, quando há em mim uma ansia feroz de viver, mas quando o meu amigo me diz nao tente a penetração dos umbrais do pais do sonho, porque esta é a situação mais real, mais viva e mais permanente. Hoje nao desejarei a companhia amavel de, por exemplo, Elizabeth Barret, Keats ou Lord Byron, porque nao me sinto com disposiçao de planar nas alturas do sonho, nao terei forças, talvez, para atravessar a nevoa densa que me envolve o espirito e só tenho tentaçao pelos espaços limitados, onde haja sombra, onde haja silêncio, e nao rumores de vozes para me incomodar. Se é certo que a única voz que eu desejo, se é certo que ela nao vem, entao que a vida me deixe em paz, com meus tragicos e torturados amigos da estepe. Esse Raskolnikoff encherá o dia de um homem que pensa e sei que viverei bem com ele, era como se estivesse tambem amargurado, sentindo, como ele, o veneno de mil viboras sobre a consciencia atormentada, e no fim recebesse o castigo que eu acho que tambem mereço. Sim, o castigo, que para mim seria o sepultamento das esperanças que me restam. Estou tao obscuro, Coração, que nem poderei pensar nas tranças dos teus cabelos, que eu adoro, nem na magia de tua voz, pela qual enlouqueço. Arvore amiga que me dá sombra, passaros que cantam, vento que acaricia e sol que me da luz, para ver e para sentir, por que me abandonais? !

Porem, ainda resta uma ilusão, ainda ha uma esperança. Nao morrerei ainda, Coraçao. Podem cantar, passaros de minha vida.

Ventos assassinos, passai ao longe. .. Ha uma voz que me segue.



MANHÃS DE SOMBRAS





...Manhãs sombra.. Serena tranquitidade no ar. O ceu está carregado de amena e fluida caligem que reconforta o corpo cansado e bandos álacres passarinhos vieram pousar no meu telhado de pobre e eu penso que hoje teremos um dia feliz. Deus queira, irmão. Num dia como este, numa manha assim, seria impossivel a uma pessoa odiar. Eu, pelo menos, não poderia. Sinto desejos de abraçar a todos aqueles que me detestam, e penso que nao me custaria muito estalar um beijo enternecido na face dos Judas, e seria mesmo capaz de oferecer minha ultima camisa ao homem que me espera ali, na esquina, para me apunhalar. Hoje eu serei deste geito, irmao. Estou para perdoar todas as ofensas e te juro que serei o mais humilde dos mortais da terra. Acabou-se a negrura da alma, o coração adormeceu, comovido, e hoje este coração tem tempo para sonhar. Sonhos alegres, sonhos sem rancores, sonhos amaveis, carinhosos, ingenuos, sonhos assim como me pedes, Amor. Bem, a causa de eu estar possuido de tanta ternura, ja sabes qual é, Coração. Tu me infundiste confiança, tu me deste consolo, tu me fizeste convicto, de que sou um homem feliz, talvez o mais feliz de todos eles, porque nenhum é tao amado e tao querido e tao desejado como eu, por ti; nenhum é mais senhor de tua vida e de tuas emoçoes, e nao quero para mim mais do que isto, não quero, eu te juro. 0 resto são ilusões que se desfazem, sao cristais partidos, como dizia Balzac. Estou pensando agora numa alma de criança, ouviste? Quem sabe se não existe hoje, nesta manhã fluidica que reconforta, o espirito de uma delas, dentro de mim? Quem sabe se não é Ulisses, que me veio visitar? Estou pensando que sim, Coração, e se deste modo eu penso é porque não vejo e não ouço as vozes do orgulho e do preconceito, tudo é placides e bemaventurança, e sinto-me num mundo diferente, e há uma estrela e há um farol que me guia, e tudo isso es tu, doce Coração do meu amor. Quisera que todos os dias fossem como o de hoje, porque o meu deeejo é ser bom, ó Senhora das Graças. - Amem ...


ROTEIRO DA TAPAJÓS


Se voce der uma espiada na praça de Sao Sebastiao, principalmente acontecendo isto em noite de lua, voce poderá ver que ela deve ter sido uma praça bonita, no tempo em que esta era uma cidade risonha. Nao vamos falar aqui a respeito da noite, porque Manaus, toda ela, e uma cidade horrivel quando o sol se vai e é possivel que voce nem possa encontrar as praças e as ruas que nela existem, porque estao escuras, sujas, maltratadas, feias. A ausência da luz é sentida nessas ocasioes, a boa lua dos namorados, a lua dos que teimam em ser notivagos, e dos poetas, que ainda existem. Sao Sebastiao, deve ser dito, é uma praça amada. Ostenta o lindo monumento de bronze, as calçadas carijós e a igreja do santo, que foi capitao e foi martir, porque preferiu flcar do lado dos perseguidos, traindo a Cesar, de quem recebia soldo. Mas aqui, como o assunto nao é bem a praça, e quero me referir a rua que nasce dela, falarei nao só da igreja como tambem da mercearia de seu Manuel, que fica na outra esquina, para depois contar o caso em miudos, como é meu desejo assim fazer. A igreja de Sao Sebastiao, que é a nossa paróquia, ao que sei dela, foi construida por um frei Jesualdo Machetti. Na entrada, do lado direito, voce vera que tem uma placa de marmore e nessa placa, alem do nome do frei, há uma data em algarismos romanos: MDCCCLXXVIII, que uma pessoa entendida me contou que, traduzida para o nosso conhecimento, quer dizer 1878. A igreja pertence aos capuchinhos e todos os domingos la estamos, ouvindo a missa, quando frei Jose faz uma pregaçaozinha que ninguem entende, va1endo pela intençao. Tem pelas paredes murais de De Angelis e penso que São Sebastiao nao sera a única igreja da terra que possue vitrais. Frei Jose é um grande trabalhador e nesta condiçao deve ter visto o nascimento da rua dos Tapajos, que, como disse, nasce na igreja dele. Sou um tapajó, sabeis. Falo hoje dos tapajós e do que existe de bom na taba deles. Seu Manuel, no canto, vende sorvetes e aperitivos, trabalhando, ele me disse, 18 horas por dia. Um portugues simpatico, de cara alegre.Se ficar rico, que ninguem se admire. Sua mercearia é frequentada e seu Manuel sabe ser comerciante. Diz gracinhas para as domesticas das cadernetas, possue um jipe da marca Wills, e assim vai levando. Seu Manuel é homem respeitado na rua Tapajos, sua mercearia tem fama na redondeza, o que é merecido, sem duvida. Aqui, no fundo da igreja é a residencia dos capuchinhos e mais adiante, se voce for subindo, encontrara a Delegacia de Saude Federa1, confrontando a outra mercearia, que tem como dono um outro portugues, o sr. Monteiro. Deste lado esta o Luso, que apesar de ser "Sporting Clube" exibe apenas Pastorinhas e promove bailes retumbantes em datas certas do ano. As Pastorinhas do Luso sao famosas e dos bailes nem é bom falar. Animadíssimos, os soalho treme e a orquestra pode nao ser um primor, mas que ajuda, ajuda. No numero 154 moro eu, um dos tapajós mais antigos da taba. Com portas para a rua, de noite as cadeiras vão para a calçada e fica-se vendo as proesas da Tereca (é a gata).






(Vozes azuis. Manaus, Sérgio Cardoso, 1956).





Anjos e porcos




Faz tempo não vou ao cemitério no dia dos Finados e eu gosto de cemitérios. São lugares tranqüilos, têm ciprestes, reina paz e silêncio e todos que moram ali estão deitados, dormindo, como no verso de Bandeira, os corações parados, as bocas fechadas, ninguém incomodando ninguém. Este é o mundo dos mortos, leitor, pessoas que já existiram em cima da terra - foram bons? foram ruins? - mas aqui não se pergunta o que eles praticaram em vida, se eram pretos ou brancos, se tiveram dinheiro ou eram pobres, se religiosos ou ateus, porque a morada é comum, a terra é a mesma e lá no fundo, depois da última batida, dizem que os mistérios são muitos, o corpo fica e apodrece porém a alma tem um destino, que, até hoje, não conhecemos. Se aquelas pessoas todas que ali compareceram no dia dos Finados pensassem um pouquinho, estou certo de que o aspecto do local, nesse dia, seria bem diferente: não transformariam o campo santo, pelo menos, em salão de palestras, não levariam seus mercados para ali funcionar, haveria ordem, respeito, que os espíritos estão olhando e eles sabem o que vai no coração e nos sentimentos de cada um. Os irreverentes pagarão caro, é o que dizem, e brevemente vai descer um carro de fogo resplandecente, igual ao de Elias, e o carro só levará aqueles que, entre outras causas, souberam se portar bem nas visitas aos cemitérios - e ai dos debochados, dos cínicos, dos mal intencionados. Estes ficarão na terra, virarão bichos disformes ou tochas vivas e isto se dará quando o novo Sol penetrar em nosso sistema planetário, verticalizando o eixo da Terra, e os bons passarão a morar noutros mundos, alguns serão possivelmente anjos, que assim está escrito, irmãos, e a era se aproxima, preparem-se. Qualquer dia não se assustem se esses fatos forem confirmados em sua mais completa exatidão. Estamos na lua, hoje, mesmo sem morte. Mais uns dias e estaremos em Marte, ou talvez Vênus, que é mais perto. Anjos, dizem os teósofos. Mas você não irá, irmão, você roubou no peso, escondeu o leite das crianças, furtou o espólio da viúva, será bicho disforme, portanto, um porco. Sirva-se. O bom chiqueiro, a terra, é seu. Pode grunhir. Você não quis assim?
[A lua é dos pobres. Manaus, Sergio Cardoso, 1960.]



Casebres



NA semana passado a coluna de Ibrahim Sued publicou matéria interessante para os amazonenses. Alguém não gosta do Ibrahim, e deve ter seus motivos; não digo que gosto, leitor, mas confesso que, jornalisticamente falando, a coluna que ele escreve é boa; por isso leio o Ibrahim e considero-o mesmo uma dos grandes atrações do O GLOBO. Mas, eu dizia, Ibrahim Sued tocou no Amazonas e, tocando, a coluna de Sued certamente nos interessa. Marcel Camus andou por aqui, ele disse, e sabemos que andou, e Camus é aquele cineasta francês que fez um filme cujos artistas principais são os escurinhos brasileiros e o filme de Camus foi um bruto sucesso, ganhou palma de ouro e palma de mil mãos, foi o primeiro classificado numa festa mundial de cinema e por essa razão Camus voltou, pensando talvez em repetir a invejada glória, fazendo outra fita, para ganhar outro prêmio. Que Marcel a faça, são meus votos. Ele ficou maravilhado com o Amazonas, declara Sued na sua coluna. Passou todo um dia, “desde o nascer até o pôr do sol, na praia, a estudar os ângulos de filmagem”. Diz Sued que a imaginação de Camus ficou encantada com verdadeira cidade flutuante nos arredores da capital” e foi aí que alguém atrapalhou a história. Não se sabe quem foi esse alguém, que o Sued não diz. Era um homem da terra, um amazonense. “Se o senhor vai em outubro, desisto, afirmou-lhe o homem. Não haverá nenhuma cidade flutuante para o senhor filmar. Só um monte de casebres sujos, enterrados na lama”, - uma pinóia, quis o informante dizer. Imagino qual tenho sido a reação do francês, ouvindo semelhante espirito-de-porquismo do tal homem da terra. E’ possível que, pensando bem, o poeta do Orfeu preto tenha desistido daquilo que ele esperava ser a sua segunda glorificação, em outra festa de filmes. Se for indivíduo de muita firmeza, pode ser que não desista e venha, porem... Meus caros amigos, eu fui repórter muito tempo e meu campo de luta, meu posto, era exatamente aquilo que pode ser uma pinóia para o informante de Camus, mas acontece que um poeta vê tudo com olhos diferentes, a lama brilha, o fedor tem cheiro de jasmim e tudo aquilo, no fundo, é um palco iluminado e no caso o francês Camus seria um Orestes Barbosa redivivo, porque ele tem imaginação, e sonha, vê coisas que você não vê, sente o que você não sente — não é cego, não é burro, Compreende? Aqueles casebres na lama não são apenas um filme, são uma epopéia, maior que Guerra e Paz, mais comovente que Ben-Hur. Breve vou escrever esse livro, leitor; não, acho que não posso.
[A lua é dos pobres. Manaus, Sergio Cardoso, 1960.]





O temporal






A mais bonita descrição de um temporal amazônico, quem a fez foi o escritor Ferreira de Castro no seu livro “A Selva”. Li esse livro há bastante tempo, leitor, porém eu mesmo nunca assistira a um desses temporais, apesar das tantos anos que aqui resido, metido nesta cidade, sem coragem de avançar pelo mato, pois lá eu sei, é onde estão os acontecimentos que empolgam, lá é onde a natureza se manifesta em toda a sua grandeza e suas variadas dimensões. Viver em cidade é erro, saibam, e gostei de ver o entusiasmo do nosso amigo Bartolo, acabado de chegar de Brasília e eu sei que lá não existe mais selva, no entanto a natureza brasileira é ainda impregnada daquilo que aqui nós temos em abundância, aquele gosto de terra, aquele cheiro de chão - mas voltemos, leitor, a falar dos nossoss temporais. Foi ante-ontem que aconteceu um, e bem forte. Estava eu no terceiro andor de um prédio, olhando nuvens escuras que corriam e se aproximavam, derramando água na selva bruta, fazendo turbulência incrível para os lados do sudoeste, e de repente a área toda, onde eu estava, foi envolvida pelo turbilhão, água e vento às pamparras. Fechei a janela, e fiquei a espiar a fúria dos elementos através de uma frincha. Maravilha das maravilhas. A madeira rangia, parecendo o gemido de almas penados em desespero, e a água, caindo em bátegas violentos sobre as vidraças, dava-me a impressão de um novo dilúvio universal que se abatesse sobre minha cabeça, tão forte, tão rugidor, e em certos instantes até o medo queria se aproximar, dominando-me, não fosse eu pensar que ali estava um nordestino, e um nordestino não tem direito a ter medo da água do céu, que ela é Deus quem monda e dela depende nossa inteira existência. O rio Negro levantava ondas colossais, com suas embarcações em louco redemoinho, batendo aqui e ali, e até pensei que o roadway fosse arrancado do seu lugar, jogado do outro lado da baía, porém isso não aconteceu, leitor, e bem alegres devem ter ficado os peixinhos - peixinhos e peixões - que aquele foi um Carnaval que eles muito devem ter apreciado, tal era o reboliço e a confusão no local. Se a gente pudesse se aproximar, é possível ouvisse as cuícas e os tamborins dos peixinhos em festa. A grande baía nunca esteve tão animada, como na tarde daquele temporal. Os peixes velhos é que não devem ter gostado. Um pescador me disse que os peixes velhos são como pessoas velhas: aposentam-se, fazem a cama, deitam-se e só comem aquilo que lhes cai em cima, restos que alguém atira no água e dá ao fundo, sem que outros peixes mais vivos aproveitem na sua descida. E fico eu a pensar na semelhança dos peixes com os criaturas. Eu, por exemplo, não suporto mais o Carnaval. Barulhos e turbulências me incomodam. O silêncio, sim, é que é bom. E no fundo do rio o silêncio deve ser ainda mais agradável. Os peixes velhos, leitor, que o digam.
[A lua é dos pobres. Manaus, Sergio Cardoso, 1960.]





Cosme e Damião: Bons Amigos (*)

Crônica de Afonso de Carvalho

DOU NOTÍCIAS ao leitor do funcionamento dos Cosme-e-Damião nesta cidade. Mais de uma vintena dos simpáticos policiais já se acham em função em nossas ruas e praças, as mãos para trás, sérios, compenetrados do seu papel, com a missão precípua de manter a boa ordem, proteger os velhos, as crianças e as árvores, satisfazendo, assim, um justo anseio da boa gente manauense, que há tempos implorava segurança e tranquilidade, sem que ninguém a ouvisse nem de tal tomasse conhecimento.
Os Cosme-e-Damião já chegaram, porém, e chegaram em boa hora. Eles devem conhecer, nas maiores minúcias, as responsabilidades do seu posto, responsabilidades que são grandes, de todas as horas, de todos os minutos. Manaus vinha sendo, lamentavelmente, uma cidade sem proteção, uma cidade, por assim dizer, entregue aos maus elementos, que lhe destruíam as belezas ainda restantes, seus monumentos, seus jardins, suas árvores, suas instalações elétricas e telefônicas e até a propriedade particular se sentia abandonada, porque as autoridades não davam nenhuma atenção a um problema tão importante, como é esse, assistindo, a tudo, impassíveis e indiferentes como se não fosse sua obrigação zelar por aquilo que foi construído com o dinheiro do povo, arrancado, Deus sabe, a tão duras penas. 

Dupla de Cosme e Damião
Tínhamos uma Guarda Civil e tínhamos (ou temos) uma Guarda de Parques e Jardins, esta última sob a responsabilidade da Prefeitura Municipal — mas infelizmente esses órgãos não preenchiam suas finalidades por motivos bem fáceis de imaginar. Agora vem de ser criada a organização dos Cosme-e-Damião nos moldes da que existe na capital da República e outros centros adiantados do País. Os Cosme-e-Damião são cavalheiros que de nós merecem toda a consideração. 
Devemos prestigiá-los, estimulando-os na sua ação, pois eles vieram para, como dissemos, manter a ordem na cidade, corrigindo os malfeitos (que são muitos entre nós), pondo freio igualmente à molecagem destruidora e vieram também para proteger os pequeninos, os fracos e os indefesos — que são, no caso, as crianças, os velhos, as árvores, os passarinhos, que enfeitam e dão vida aos nossos pobres jardins. 
Dizem que, por enquanto, os simpáticos policiais de mãos-atrás-das-costas só estão agindo nas horas silenciosas da noite. Seu número ainda é pequeno e isso se explica pelo fato do trabalho de seleção dos seus membros ser bastante rigoroso. Cosme ou Damião só pode ser quem tenha um caráter à prova de fogo, quem possua bons sentimentos no coração, quem conheça deveres cívicos e possua, outro tanto, boa fortaleza física, calma, ponderação e coragem. Esses são os homens, leitor, que agora nos estão protegendo. Faço votos para que eles obtenham prestígio no seio da população da cidade. 
Que cada um de nós, de hoje por diante, tenha um sono mais tranquilo e uma existência mais segura, só em pensar que ali na esquina existe um homem fardado que lhe garanta a vida, a propriedade, o bom silêncio, a tranquilidade tão necessária que todos almejam. 
Cosme-e-Damião são policiais de elite, todos fiquem certos dessa verdade. São homens educados, cavalheiros, com uma missão consciente e uma vontade firme a executar. Deixo a eles, aqui, a minha mensagem de solidariedade e o meu pedido bem compreensível e modesto: não esqueçam a minha rua, a rua Tapajós. Ela é uma rua como as outras, abandonada, triste, terrivelmente escura e necessita da proteção de vocês, bons amigos que chegaram. Nas noites escuras gostarei de ouvir seus trinados e suas passadas cadenciadas pelo calçamento em frente à minha casa. Dormirei assim mais contente, terei mais confiança no dia de amanhã. 
Salve, pois, os Cosme-e-Damião.

(*) A Crítica, 28 de agosto de 1956

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