quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Walmir Ayala




Walmir Ayala


ESTAÇÃO

Na geladeira as frutas
escurecem de mortas
as peras são secretas
usinas de água doce,
um mamão decepado
mostra a íntima carne
e as goiabas oloram
seu verão serenado.

Mas são mortas e lentas
neste ofertório as frutas.
Um vapor congelado
contorna seu mistério.
E elas posam no ardor
do branco cemitério
de seu grave pomar.
E a geladeira inventa
surdo primaverar.

(Antologia poética, Ed. Leitura, Rio, I 965)
   


ARTE POÉTICA






Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.

Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.

Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.

Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.

Walmir Ayala 


                                     AQUÁRIO ACESO


Os peixes submersos dormem
Nadando um sonho enorme
- o aquário é breve e claro,
com selvas silenciosas
que o todo-poderoso
nutre de grão e larva.


No entanto os peixes dormem.
Qualquer tremor das águas
e nadam aclarados
sonhando-se acordados
sonhando-se acordados.






POMAR ABERTO


Teu doloroso cheiro de laranjas
inventa este pomar que me embriaga
há vespas inflamadas e um luar
enclausura em teu peito a rosa amarga
deste gemido em que és como o desenho
de um rosto antigo, de um sorriso em pedra
(eterno e solitário). Este sorriso
que de repente no silêncio medra
e corta os fios da noite em que viajo
para os sempres de mim, tão decididos:
então nos laranjais escuto o adágio,
e o coração que ocultas é sonoro
como a ilha do amor em que me perco
e onde me salvo, e para sempre choro.










A Maria Helena Cardoso


O REINO


A José Olimpio Vasconcelos

Época de goiabas — no meu quarto
o aroma delas se incrustou no gesso
do cavalo troiano que o lagarto
cavalga; e estas goiabas de comêço
de estação sobrenadain o hausto farto
do olfato — o meu cavalo escarva o avêsso
do branco onde se funde e em cujo parto
goiabas e lagartos têm seu preço.

Assim meu quarto esta estação de aroma
envolve - e das goiabas me apercebo
que é tudo hora frutal que em tudo assoma;

e tenho para reino os meses quatro
do aroma de goiaba, e é minha carne
o gesso em que cavalgam, tais lagartos.


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Domingo


O domingo é um refúgio,
uma grande sala com candelabros bizarros
mas sem conforto.

É um relógio sem medo, uma cadeira sem encosto.


O azeite da vida começa sempre amanhã.
Olhamos o domingo como se fosse a máscara
dissimulada – atrás dela o punhal ou o mel.


Passeamos nos domingos como as feras em suas jaulas.
Tentamos perceber o grande acontecimento que não chega,
porque até os mortos, geralmente, deitam-se ontem
em seus leitos acolchoados.


O domingo é um touro sozinho numa arena.




METAL DE OURO

Metal de ouro e não ouro — bronze (ninho
do som) — falsa retórica. Metal
dado a azinhavre e pátina e ferrugem,
sino de antecedência dos que mugem:

bois; e vêem dois, os sinos combatendo
nos arcos de pescoços amorosos,
bronze alado e de feno, mais que o treno
das aves nos estercos vegetais.

Ardendo na pupila o ouro da tarde,
e o triturado trigo impregnando
de ouro os cascos e as crinas. Animais

rompendo ares bucólicos, as carnes
luzindo, os chifres áureos digladiando,
e a hora sôbre os corpos auriamando.




FILIAÇÃO

Ando buscando minha mãe e a hora
sêca me dá seu ventre sem memória.
Reclamo o leite e me assedia a asa
de uma galera por meu mar em fora.

Depois penso escutar: palavra ou rasa
cintilação de praia. Os olhos cerro,
suspiro fundo e aqueço o frio corpo
que elegi para mãe no meu destêrro.


E assim constato que só posso o alheio
dispor organizando e que me faltam.
tradições: o arco mínimo de um seio.

E sinto o quanto Deus cm mim se apóia,
sou êle próprio e rasgo os véus de cinza
sou treva e sou espírito que bóia.



O AEROMOÇO

Dos cintos que se cinge, dos aéreos
subornos que respira;
das rotas que viaja, voajando,
(e voa a vida) — os alvos em que mira

Sendo a um tempo da flexa o sangue brando
e seu rotor e guia, o que percorre
o restrito arcabouço, o louro o moço
que no temor da mãe, freqüente, morre.

O dono da maçã desorientada
a um transporte nos étereos — o dono
de rebanhos, rebanhos e rebanhos...

Pastor, o que as ovelhas abandonam,
só, nos aços das asas isolado
entre cajados mudos e tamanhos.



CANTO DO REI

Rico de ouro não sou, porém. fabrico
o sol cada manhã, estendo penas
(pássaro matinal) e atinjo antenas
de desespêro no meu vôo ubiquo.

Se tu, pálio de párias, me condenas
à rude mendicância onde claudico,

abro a minha canção no espaço oblíquo
das tuas superadas açucenas.
Jardineiro não sou. Feitor dos astros,
recrio minha aurora de aderências
na prematura submersão dos mastros.

Nas quilhas dêstes barcos que me sobram,
é que o sol dos meus ouros se conforma,
e as luas do meu reino se desdobram.



É TEMPO

É tempo das auroras de tão gastas
rasgarem seus cabelos nos arames,
que andam touros rondando a graça livre
dos arautos de Deus nascidos homens.

É tempo das calçadas desservidas
de austero passo desejarem gládios
e que sejam de rótulas e nervos
as asas da arca para outra viagem.

E que coisas dirão que de tardias
terão sêlo de morte em cada espinho
(rosa?) melhor dizer: gente banida

(que de tal material se formam clãs);
e os que na Arca estão de si não sabem
mais do que o morto quando junta as mãos.



O ESPELHO

Efêmero, não sei se neste espelho
terei repetição do meu contôrno,
ou se já erguida a mão se esboça o tôrno
onde serei refeito. Amplo conselho

talvez disseque meu findar-se morno,
e o Artífice me aguarda, ileso e velho,
pondo-me paternal sôbre o joelho
à espera do devido e exato forno.

Depois, Pai tão maior, de amor ferido,
de um barro tão mais rubro há de engendrar-me
para dar-me feliz ao chão do olvido,

Mas sempre num espelho irei achar-me,
noutro chão, noutra vida, em barro ou vidro
onde me outorguem tempo de sonhar-me.



HOJE ME DÓI A VIDA COMO UM CRAVO

Hoje me dói a vida como um cravo
e morro de desejo de morrer,
sinto pelo meu sangue se acender
a aurora de infortúnio em que me lavo.

Que vale desta forma receber
o dom da luz, o lídimo conchavo
de cada dia, se a carpir me agravo
no sítio onde devera florescer?

Hoje me dói o sol na córnea gasta
de tanto pranto não vertido, e adeja
a asa da solidão em minha carne.

Percorro como um louco iconoclasta
o adro de mim, o grito, sem que veja
instrumento melhor para quebrar-me.



A ROSA E O RIO

Ó tu de couro, de ouro e de granito
mas sempre rosa, sempre colunada
fronte de solidão, tristeza alada
e prêsa entre dois portos do infinito,


Cativa que do caule ao rude grito
a nada mais consente a côr velada,
raiz de espinho, face deplorada
pelo vento inconstante em rumo aflito.


Mas não te deixam olhos tão fugazes
pois nos meus ficas, transitórias e eterna,
e em meus rios de versos te desfazes;

mas não de todo, pois na minha mágoa
resta a inédita forma livre e interna:
rosa de seixo, areia, espuma e água.



POSTAL

O mar, postal, é verde, ou não, cerúleo —
o mar é mar de crinas, potro e lastro
onde têxteis côres dão a aguda
forma de suas barracas: árvore e astro.

Arvore pela sombra, astro no muito
de universo que lado a lado formam...
O mar, postal, não vê que cada mastro
ao longe é êle que cumpre seu circuito.

Mas tanto muda que se desampara
e crava, e da janela vou tangendo
nêle meu coração de asas e espuma.

O mar, postal, é orgia que carrego
por outros mares de aço, de concreto
e de tôrres, sem lágrima nenhuma,



O MANEQUIM

Tua cera é precoce, em que abelha, em que rosa
em que filtro, em que sêca e empedernida forma,
em que sôpro êstes lábios, e o nariz em que olfato
nutriu cova e mucosa — em que tuba esta orelha?

E esta bôca fingida e a destroçada abelha
de asas despedaçadas por dedos de meninos,
de alfinetes no ventre e zumbindo, e zumbindo
lamentos pequeninos.

E êste silêncio morto e êstes braços portáteis
com ensaios de abraço, e êstes tecidos breves
armados no estertor da mudez prematura.

E êstes cactos nos pés, nos desertos artelhos,
êste tórax fugaz onde brota o legume
de um segrêdo floral e apiário ciúme

[O edifício e o verbo. Rio de Janeiro, São José, 1961]


A MINHA MORTE SÃO AS COISAS

A minha morte são as coisas

e não poder retê-las,

é a matéria que existe

e resiste

à minha sorte,

como as estrelas.



A minha morte é a manhã

que se estende claríssima

sem temor, é este amor

de só desesperança,

como um clamor.



A minha morte é esta voz

por que a garganta enseia

e não sabe,

ela cabe

inteira nos meus olhos

que a lágrima incendeia.



Sobretudo é

esta vontade

de chorar e ir chorando

como uma única pergunta

sem remédio:

até quando?



CRER

Creio em mim. Creio em ti. Deus, onde mora?

Na vontade de crer que me consente

humano e ardente.

No meu repouso em ti, que me alimenta.

No que vejo e recebo, nesta vara

florida num deserto, em meu maná

de agora e de jamais. Saber-me hoje

tão digno do tempo que me mata

é arder-me em Deus, e este saber me basta.



ISTO É TUDO

As urnas estão fechadas,

os corações estão mudos,

mas o amor paira e condena —

isto é tudo.



As mãos vão entrelaçadas,

o olhar é sereno e agudo,

e o amor é mais do que as almas —

isto é tudo.



A lágrima quase aponta,

O desejo é um breve escudo,

e o amor é quase nada —

isto é tudo.


PENHOR

Quanto pode valer um pássaro

de canto puro e goela solta

que gosta de carícia e se espreguiça

como qualquer amado amante?



O dono levou-o à penhora

por trinta e oito mil

cruzeiros. Diz

que vale o dobro.



Avaliado, não dá mais do que mil e quinhentos

diz o causídico do banco, e chama de brincadeira

esta causa de tão pessoal alcance.



Falando por seu advogado

o dono do pássaro diz

que o assunto é muito sério

e pede mesmo que o pássaro

seja tratado com carinho

pois cantando e recebendo amor

é que se prova valioso.



Neste poema, atentem, a palavra é tão banal,

mas o miolo é pura

poesia.

Difícil é contar como canta o pássaro.

Aí é que seríamos sublimes.





ARTE POÉTICA



Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.

Poemas que não envelhecessem.

Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,

jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.

Eu queria a estação permanente dos fatos,

aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos

em reflexos cíclicos

de uma realidade essência.

Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,

pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.



Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,

eu sei que, como todas as civilizações,

a nossa tem um fim,

e já durou demais.

Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,

adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.

Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.

Porisso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária

duração,

esta idade virtual com pés de efêmero tato.

Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver

à sua legítima história,

mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam

a vida.



Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,

quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração

oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.



Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.





Extraídos do livro Estado de Choque; a poesia de Walmir Ayala. São Paulo: Galeria Parnaso; Massao Ohno Editores, 1980. s.p.;






De

ÁGUAS COMO ESPADAS

São Paulo: LR Editores, 1983





A CAÇA



Os caçadores de homens varam a noite com seus olhos de punhal.

Levam os punhos cerrados cerrados e um desejo ardente de agressão.

Irmãos dos delinqüentes eles vasculham os ninhos poluídos

e esmagam com os saltos das botas as ninhadas perplexas.



Os caçadores e sua caça estão sobrepostos como camadas contíguas

de uma mesma era de terror.





ROTA



Quem elabora estas inúteis palavras

com que as coisas se ataviam,

e são indagações, gritos, silêncios

reticentes?



Quem,

me pergunta agora sobre a hora

que eu não quis habitar de qualquer signo,

infladas do nada do vento?

Direção

cujo gosto apenas eu percebo:

silenciosamente recortado,

recrio o labirinto.





PASSEIO



Passeio com meu filho pelo mundo

e é pouco para amá-lo este percurso.

Toco seus olhos de cristal escuro

e ele me vê robô, cavalo, urso.

Ele me vê raiz, me desafia,

briga e ama num elo conseqüente

com tudo os que é real, e me anuncia.



Passeio com meu filho à luz do dia,

e a luz fecunda a noite que nos une

num sonho latejante de silêncio.

Concentro-me de amá-lo com a uma

guarda a alucinação de seu perfume,

e penso, piso a terra, restituo

em dom de amar a amarga antecedência

do filho que eu não fui e que construo.







De
CANTANTA

Poemas
Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.




O CORPO



Girasol com manga rosa

pequeno corpo acendido

no corpo imenso do mundo

cornamusa sonorosa.



Manga rosa, manga rosa,

rosa do clamor profundo

rosa, de fruto e de flor.



Eu de pedra, tu de incenso.

Tu de lume, eu de amargor.



Girasol com manga rosa,

muletas de mudo amor,

cada espádua madurando

sumos — e a rosa cravando

no sono arestas do rosa

na doce manga aflorando.



Girasol com manga rosa,

repousa, que repousando

vão os andores da santa

rosa, e que te vão levando

pela doçura da manga,

pequena rosa que gira,

sol a pino, gira, rosa

mortal te dilapidando.



Girasol com manga rosa,

qual o verão? Onde? Quando?.





PROTESTO



Não é no teu corpo que se imola

para a ceia dos meus sentidos

a vítima núbil, a áurea mola

que cinge o amor recente aos idos.



Mas é também no teu corpo que corre

o sangue que o meu sangue socorre.



Não é no teu corpo que se ergue

a guerra fria dos meus nervos.



nem nasceram tuas transparências

para a cegueira dos meus dedos.



Mas é também no teu corpo insano

que perscruto meu desconforto humano.



Não é no teu corpo, nos teus olhos

de fauno, que colho as minhas ditas,

nem o jasmim de tua boca flore

para a visão que me solicita.



Mas é também no teu corpo único

que o amor à forma do Amor reúno.



Não é no teu corpo que concentro

minha sede (esta sede ferina

que morre de seu farto alimento

e vive de quanto se elimina)



Mas é também teu corpo a medida

destas águas sobre a minha ferida.



Não é no teu corpo, mas é tanto

no teu corpo meu último refúgio,

que amoroso e em pânico me insurjo

contra a fonte que és: júbilo e pranto.



Mas é também no teu corpo o tudo

da solidão em que me aclaro e escudo.

Em teu corpo, canal que brande e acalma
minha alma, este pássaro árduo e mudo
na estranha migração da tua alma.





De
O EDIFÍCIO E O VERBO
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961



O COMEDOR



Não sei que posição tomar sentado à mesa.

O cadáver aberto à minha frente, a salsa, o azeite

e o olhar de quem me chamará de hiena.



O cadáver de meu irmão, olhos vazados,

posição hirta, e eu como trincar

assim, todo enredado de piedade?



Garfo e faca. A lâmina se estira

e nem ruído fará na polpa. Ah, bom tempero,

sei de teu gosto intacto nas mandíbulas

minhas, já tão cansadas desta fome.



A parte mais amorfa me contenta

a que eu não saiba coxa, orelha, lombo...
Mas chamarão de hiena, eu sei, a gente

que te come voraz, vendo que hesito

e gritarão quando cravar

dente em teu corpo macio, irmã Vitela..



Saio daqui, da mesa, onde te expões

nadando o molho do teu próprio sangue.

Eu me recuso, pois teu osso como um cetro

esmagará meu crânio deglutido,

e eu, teu devorador, sendo engolido

pelo acéfalo tempo, mais banquetes

manterei nestas mesas imaturas.





O REINO


A José Olímpio Vasconcelos


Época de goiabas — no meu quarto
o aroma delas se incrustou no gesso
do cavalo troiano que o lagarto
cavalga; e estas goiabas de começo



de estação sobrenadam o hausto farto
do olfato — o meu cavalo escarva o avesso
do branco onde se funde e em cujo parto
goiabas e lagartos têm seu preço.



Assim meu quarto esta estação de aroma
envolve — e das goiabas me apercebo
que é tudo hora frutal que em tudo assoma;



e tenho para reino os meses quatro
do aroma de goiaba, e é minha carne
o gesso em que cavalgam tais lagarto





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TEXTOS EM ESPAÑOL



WALMIR AYALA

Trad. Pilar Gómez Bedate





MI MUERTE SON LAS COSAS

Mi muerte son las cosas

y no poder asirlas,

la materia que existe

y resiste

a mi suerte,

como las estrellas.



Mi muerte es la mañana

que se extiende clarísima

sin temor, y este amor

de mi desesperanza

sola, como un clamor.



Mi muerte es esta voz

que la garganta ansía

y no cabe,

entera cabe

en estos ojos míos

que la lágrima incendia.



Sobre todo es

este deseo

de llorar e ir llorando

con una única pregunta:

¿hasta cuándo?



CREER

Creo en mí. Creo en ti. Dios, ¿dónde vive?

En el afán de fe que me consiente

humano y ardiente.

En mi reposo en ti, que me alimenta,

en lo que veo y tomo, en esta vara

florida en un desierto, en mi maná

de ahora y de por siempre. Este hoy saberme

merecedor del tiempo que me mata

es abrasarme en Dios, y esta saber me basta.



ESTO ES TODO

Las urnas están cerradas,

los corazones están mudos,

peor el amor paira y condena:

esto es todo.



Las manos van entrelazadas,

la mirada es serena y aguda,

y el amor es más que las almas:

esto es todo.



La lágrima casi apunta,

el deseo es un breve escudo,

y el amor es casi nada:

esto es todo.



Extraídos de la REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA, Tomo IV, septiembre 1965, número 4, p. 312-321. Edición de la Embajada de Brasil en Madrid, España.

POEMA À MÁQUINA DE MOER CARNE

O perfil da máquina
tem muito de gótico,
mói por dentro a carne,
por fora é um pórtico
onda a alma da carne
lava seu delito.
Numa cruz geométrica
justapõe-se a máquina:
nem canta nem pensa,
mais que nunca espera
que a mão saturada
lhe dê movimento,
e um corpo de sangue,
de músculo e vento
vai sendo crivado
de dentes secretos,
de ocultas agulhas,
de engrenagens surdas,
e se transformando
em carne moída.
Assim como a vida.


##############


O supermercado




Eu estava selecionando uns pés de couve-flor quando meu marido me disse: "Espere um momento que vou cumprimentar Heloisa". Não levantei os olhos do balcão das verduras nem sequer pensei que só poderia ser aquela Heloisa, uma mulher forte e invulnerável cuja estabilidade doméstica tinha sido até motivo de inveja para mim algumas vezes. Meus dedos correram por sobre as alfaces, remexi os tomates, pesei uma quantidade de cenouras, e nem ergui os olhos para ver para onde ele se dirigira, para ver onde estaria Heloisa. Andei puxando o carrinho que ele deixara ao meu lado, com a mercadoria meticulosamente arrumada, à sua maneira. As salsichas junto com a manteiga, os iogurtes e os queijos suportando a caixa de ovos, os pacotes de arroz e feijão acolchoando a leveza dos biscoitos. Andei pelos corredores de gêneros variados mas já não escolhi nada. Nem sequer passei os olhos pela lista que a empregada me entregara ao sair de casa. Prestei muita atenção em todas as coisas, aquelas naturezas mortas, oferecendo-se. A vitrine das carnes, os buchos e fígados, a nobreza dos filés, rubores suspensos iluminados de uma claridade valorativa de suas nuances de sangue. As laranjas, as batatas, os abacaxis, os grandes balcões de salgados, carnes secas, toucinhos, despojos de seres mortos e conservados num requinte de temperos. As caixinhas de gelatina, com as frutas impressas em cores inesquecíveis, disfarçando os sabores artificiais que a empregada atenuaria com frutas e cremes de baunilha e morango, com claras batidas e outros recursos de enriquecer aquelas doçuras transparentes e monótonas.

Não procurei meu marido, embora imaginasse que num momento esbarraria com ele e Heloisa, sabendo que estariam falando do jardim, das plantas exóticas que Heloisa tinha o dom de descobrir em chácaras distantes. Ou então de uma raça de galinhas poedeiras, cujos ovos de grande valor nutritivo não poderiam ser comparados àqueles de gema vermelha, que eu tinha escolhido mecanicamente no correr da tarde. Não é que Heloisa quisesse comparativamente me subestimar, mas ela era assim, e eu é que me subestimava junto dela. Se é que a Heloisa que meu marido fora saudar era aquela que eu supunha.

Passei duas horas andando com aquele carrinho, sem acrescentar um grão ao já escolhido. Parei na lanchonete e comi uma coxinha de galinha. A fome pousada em meu lábio não determinou o menor luxo seletivo. Comi a coxinha de galinha como podia ter comido o cachorro quente ou o rizzoli, só para sobreviver. Pensei num momento em procurar meu marido mas desisti "ele deve estar falando com Heloisa". Olhei o pátio do supermercado e vi nosso carro. Ele está com a chave. Vasculhei a bolsa de dinheiro e verifiquei que a chave estava comigo. Eu não dirigia há tanto tempo. Ele voltaria? Que importância tinha isso, eu precisava ir embora. Foi o guarda que me alertou "vai fechar". Eu era a última freguesa a andar por aqueles corredores e notei que as moças das caixas me olhavam com ar cansado e irritado. Estavam tão tristes que eu tive vontade de chorar, de lamentar seu destino vendido tão barato, horas e horas apertando botões de máquinas registradoras em troca do dinheiro da passagem e da comida. Vi-as todas muito humilhadas, mas ainda pela necessidade de aceitarem o jogo daquela maneira enquanto invisíveis e gordos os donos das alcachofras e dos presuntos rolavam entre os lábios charutos de Havana.

Paguei e saí. Onde estaria meu marido? E Heloisa? Coloquei as compras no carro e rodei pelo bairro, tentando reconhecer um ou outro. Depois decidi ir para casa.

A empregada me recebeu como se nada tivesse acontecido, sequer me perguntando pelo adiantado da hora. Recolheu as compras e preparou-me o banho. Mergulhei na banheira de água quente. Quase adormeci. A água, ao esfriar, fez-me voltar à realidade. Fui para cama. O telefone não tocou. No dia seguinte muito cedo voltei ao supermercado sem ter contado a ninguém o acontecido. Tive medo de estar sendo ridícula, ou louca. Que me dissessem de repente "Que marido?". Ou, o que era pior, "olha ele ali". Fiquei todo o tempo rodando entre aqueles corredores, como se fosse coisa dali, uma das moças das caixas, ou mesmo uma das máquinas registradoras. Saí, no fim do expediente, sem ter comprado nada.

No terceiro dia é que eu descobri que o supermercado tinha andares diversos, escadas rolantes. Andei de cima para baixo, de baixo para cima, e parecia que os lugares eram sempre outros, como num labirinto. Fiquei feliz de andar por caminhos novos, onde poderia esbarrar com meu marido e ouvir ele dizer "— Que sorte você chegar já ia ao seu encontro". Eu sabia que isso não ia acontecer porque meu marido e Heloisa deveriam estar como eu, perdidos naquele labirinto, com espelhos multiplicando as caixas das douradas uvas, e os pêssegos e nêsperas tocadas de raras abelhas. Comecei a sentir que me desprendia dos valores antigos, e que só me interessava trilhar aquele caminho sem fim, no qual ele estaria sempre adiante, e eu atrás, sem ponto de encontro, sem retorno. Eu teria sonhado a minha vida? Ou estaria agora entrando num sonho maior? Senti-me tonta, percebi que minha roupa estava suja e que a urina corria pelas minhas pernas abaixo. Senti o grande peso da solidão, pela primeira vez. Indaguei a mim mesma qual o caminho a seguir, mas antes de me responder vi que me amparavam e levavam para determinado lugar, um lugar muito branco, com uma mesa muito branca onde eu comecei a adormecer. Deixei que cuidassem de mim, com um sorriso de infantil prazer me corrigindo os lábios. Quando voltei a mim já não reconheci o mundo que me davam. Estava cada vez mais longe dele, mais longe. Buscando encontrá-lo e me distanciando, de tal maneira que se o visse agora talvez nem reconhecesse.


Walmir Félix Solano Ayala, poeta, romancista, crítico de arte, contista, memorialista e autor de literatura infantil, nasceu em Porto Alegre (RS) no dia 04/01/1933. Seu primeiro livro, "Face dispersa", foi publicado em 1955. Em 1956 mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro. Dentre suas mais de cem obras, destacamos: "Diário I (Difícil é o Reino)"; "A Beira do Corpo" (romance); "Chico Rei e a Salamanca do Jarau" (teatro); "A Toca da Coruja" (literatura infantil, Prêmio Nacional de Literatura Infantil do INL)"; "Ponte Sobre o Rio Escuro" (contos, Prêmio Nacional de Ficção do INL) e "A fuga do Arcanjo" (diário íntimo). O intelectual ora enfocado faleceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 28/08/1991.


O texto acima foi extraído da antologia "Ficção - Histórias para o prazer da leitura", Editora Leitura - 2007, pág. 266, organização de Miguel Sanches Neto.



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