sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 6

Na primeira vez que a recebi no Flamengo o contato de nossos corpos e o fato de estarmos juntos novamente descobriu na nossa relação um desconhecido ódio que explodiu com tal intensidade que me pergunto se Val não transferia para o espaço da cama as dimensões da sua luta de classes.
Eu tinha ido à casa de seus tios em Caxias, naquele anexo ao Bairro 25 de Agosto que era quase uma favela, lá onde me tornei amigo daquele jovem que depois se tornou em perigoso traficante, e onde, como eu insistisse e necessitasse muito, fomos primeiro a um cinema na Praça do Pacificador, e de lá para a deliciosa experiência sexual num hotel. Completamos nossa aventura saindo do hotel para o Flamengo, ao que ela inicialmente se opôs e onde ela terminou morando, a princípio indo lá algumas vezes, quando permanecia ali somente algumas horas, para depois pernoitar comigo, tomando juntos o nosso café da manhã com leite condensado e pão fresco, até chegar à época dos seus fins à praia de Copacabana e à tarde vermos o pôr-do-sol no Arpoador, e daí em diante, como eu a prendesse cada vez mais, convertendo-me em indispensável por um processo de sedução consciente e por artimanhas de que a fiz economicamente subordinada a mim, como a toda a sua família, seu pai não lhes deixara a mísera pensão, exonerado, perseguido e torturado que foi pelo sistema de repressão estatal, e ela viera para o Rio em companhia de sua mãe e sua irmã, ela não mais se libertou de meus laços e da sutil tessitura com que a envolvi totalmente. Eu precisava dela. Fi-la dependente economicamente de mim.

Logo no caminho da primeira vez que com ela vinha ao Flamengo, eu começando a me sentir completo com Val a meu lado, sem o medo devoluto de meu amor próprio acerca de tudo o que sou e tenho, contra tudo o que ela era e lutava, porque agora no Rio de Janeiro a nossa separação, urgente, aguda, vulnerável, vindicativa, seria humilhante: Val pela primeira vez se sentia, queimando-lhe a pele, na experiência concreta da sua classe, com cinco pessoas morava numa casa de quarto e sala num subúrbio cujo melhor e mais eufêmico adjetivo seria sujo (pois ao lado de sua casa começava uma grande depressão no terreno e uma área baldia que culminava num lago formado pelas chuvas e num posterior monturo de lixo, as pessoas despejavam o lixo de suas casas pela ribanceira onde muitos anos mais tarde surgiu uma Universidade), e o dinheiro começava a fazer falta a ela, que nunca, apesar da vida atribulada que vivera com seu pai perseguido, passara as privações da grande cidade, e via-se agora sem poder fazer, nalguns dias, todas as refeições, modestas que fossem, e se deu conta finalmente de que entre mim e ela havia uma separação bem delimitada de classe social, ela oriunda de uma classe média pobre que se proletarizara ainda mais, e eu vindo da alta burguesia decadente desde as fazendas de café de meu avô no Estado do Rio até a semiparalisia de meu pai, nós dois tínhamos empobrecido, mas eu ainda continuava membro de um respeitável sobrenome, que era da burguesia antiga, do campo, que resistia, classe residual e nunca totalmente extinta neste pais.
Por isso aquele amor lírico e louco que nos unia desde o fundo de nossas vozes juvenis, cantos, frases soltas e idílicas, deixava de existir e caíamos na nova realidade e com esforço eu ia ter de juntar os seus pedaços para ligá-los de novo, e o de que eu participava perto de Val eram dos estampidos noturnos dos tiros que se ouviam de sua casa quando quadrilhas disputavam o espaço de Caxias a palmo.

Meu esforço para que não se rompesse a declaração, tão bela, até então, de meu amor por Val se esbarrava nas experiências mais comezinhas, para mim inéditas; para ela fundamentais (como a de eu ter de dar o dinheiro para a sua subsistência e de sua mãe e irmã, que era como se eu a tivesse pagando, como a uma prostituta), fatos descosidos de que só sei o meu lado, que Val se encontrava naquele tempo no mais crítico estado de necessidade e oh, nunca pulei o muro e o rio de sangue, e de Val só sabia o que ela me outorgou o direito de saber, Val minha princesa, dona de meu corpo, ela deveria passar imediatamente para minhas definitivas mãos, ou eu corria o risco de a perder e de que ela se tornasse minha inimiga irrecuperável.

Pois ela, aparentemente frágil, bela, fácil mas diferente, na cândida aparência de menina humilhada, magoada, na feminina figura de uma Marilyn dos trópicos, começava a militar em não sei qual ala de um partido clandestino de esquerda que tinha, no Nordeste, na multiplicidade das Ligas Camponesas, a sua mais altiva voz, e quando ficávamos a sós nada revelava do que fazia no outro lado oculto da sua vida e abandonada, isolada, descontrolada se fechava em silêncio sem remédio acerca daquele seu lado obscuro, a tal ponto que, por certas manchas roxas em sua coxa um dia, eu comecei a desconfiar, e disso tenho quase certeza hoje, a tal ponto a conheço agora, de que ela em certas noites que não estava comigo ia fazer trabalho como prostituta profissional, perto de um hotel na Avenida Brasil, cuja freqüência deveria ser das mais perigosas, tudo isso para se ver livre de mim e de minhas custas.

Finalmente, como se não bastasse, e para aumento de minhas suspeitas e dúvidas, um dia, depois de comigo fazer amor, tendo ela ido para o banho e como eu procurasse um cigarro na sua bolsa, ali encontrei, negro, pesado, municiado, um 38 de cano curto que fiquei detidamente examinando, como a um monstro, sentado na beira da cama enquanto ouvia correr a água do chuveiro que caía da sua ducha fria sobre a cerâmica do piso.

Com apenas 23 anos, ou por causa disso, Val lutava pela mobilização das lutas operárias que explodiam no Nordeste. Sua vida não combinava com a de um Rôni então amante de motocicletas, de rock, enquanto concluía com certo brilhantismo o curso de Letras Clássicas e mergulhava na primeira redação das primeiras páginas de seu primeiro livro.
Mas, apesar das discordâncias e diferenças, acabamos nos entendendo, ela como ídolo vivo no ar vazio de minha imprecisa vida, como ideóloga de meu amor, pois eu era mais frágil do que reacionário. Ela me humilhou? Nunca me humilhou ideologicamente, mas eu sabia que, se quisesse, poderia me ferir. Me dominava, como durante o ato de amar. Eu a temia. Não. Não consigo me libertar da liberdade dela.

Ela era livre demais para mim. Mas sempre voltava. Como para um lugar sossegado após a tempestade. Ela me mantinha na ilusão de que eu não estava só. Mas em algo que não sei explicar com clareza, ela se parecia com minha avó Madalena.

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