sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 7

Val trabalhou comigo durante cinco meses na segunda redação de minha novela. Ditava modificações no texto e no enredo, atuava na simplificação do meu estilo (sempre tendendo a ser empolado), me indicava pontos fracos.
Devo tudo a ela.
Graças a ela meu primeiro livro ficou razoavelmente bom.
Ela passou toda a sua experiência feminina para meu texto.
Por fim datilografou as duzentas e vinte e cinco páginas e o livro se transformou numa novela epistolar, em que o telefonema substituiu a carta, podendo-se dizer que era uma estória telefônica, e ali dois jovens se correspondiam, prometendo amor eterno, encontrando-se às escondidas para fazer amor. Todas as incertezas dos jovens estão ali. O diálogo está muito solto, belo, real, extraído de nossas próprias conversações.

Mas foi difícil de vender.
A Editora Prometeu, de São Paulo, o publicou às minhas custas, sem muito alarde, mas com aquela capa colorida em que um jovem motociclista tomava nos braços a exuberante e sensual loura. O rapaz parecia dizer algo que ela quase já não ouvia, inebriada.
A primeira edição custou, mas se esgotou. Era pequena. Não foi um sucesso, mas uma única referência critica que ganhei valeu uma consagração: a do Mestre Alceu Amoroso Lima, meu professor de Literatura Brasileira, amigo de minha avó, que escreveu pequena carta sobre as relações entre o amor divino e o amor profano, provocado pela leitura de meu livro, que ele elogiava em duas breves linhas como um "romance sentimental bem escrito". O pequeno texto dele era uma de suas obras-primas. Aquelas duas linhas, publicadas quando a primeira edição do livro já estava quase esgotando, para mim, eram como se me lançassem no panorama das letras nacionais como um jovem promissor.
Depois, publiquei alguns contos no Correio da Manhã.
A grande intelectualidade, porém, não me reconhecia. Nem poderia. O meu trabalho literário saía numa época em que, alem do Concretismo, havia escritores como Cabral e João Guimarães Rosa (com quem longamente conversei, acerca de "Grande sertão: veredas", na porta da Academia). Havia um apogeu cultural até hoje insuperável. De certo modo eu era escritor desconhecido e sem sucesso de crítica e de venda.
Assim comecei a vida literária e me tornei um profissional dessa rara profissão, ainda que vivesse mesmo dos aluguéis dos imóveis que vinha avó me deixou.

Formei-me em Letras Clássicas e sonhava casar-me com Valquíria numa igreja engrinaldada, saindo no dia seguinte para Cabo Frio. Eu era feliz.

Mesmo a essa altura ainda me sinto desnorteado para encontrar a via segura que me contará os passos dessa história. Val se transforma cada vez que a penso.


No inicio da década de 60 ela começou a estudar inglês, a ler muito, a fazer psico-análise. Cuidava tardiamente de sua educação, com 29 anos. Acabou dominando razoavelmente o idioma, passou depois para a terapia grupal, escreveu poemas, lia os principais jornais e dois livros por semana. Ia ao cinema, ao teatro, mas continuava reticente quanto à música erudita, de que eu gostava. Dizia que eu era colonizado culturalmente e desligado do real. Quando estávamos juntos púnhamos no toca-disco a bossa-nova, Baden Powell, Tom.
Seus prediletos.


Mas nossos problemas sempre recomeçavam, nunca resolvidos, indenes.
Houve um período, entretanto, em que ela se demorou seguidamente, quase um mês, em minha casa: estava eu escrevendo o roteiro do meu próximo livro.
Val ideal, cuidando da casa, conforme meus padrões machistas, cuidando de mim, eu não me sentia só, era tratado e amado por ela. Foi uma época sem grandes ciúmes, Val me empurrando. Na carreira de escritor.

Numa noite de dezembro de 63 Val chegou tarde excessivamente agitada. Gritava, incompreensível e apavorada. Tinha os cabelos amarrados na nuca, como uma camponesa, e vinha de uma reunião política.

Eu estivera relendo "Crime e castigo" e já começava a adormecer quando ela me acordou, chegando.
- Que aconteceu? perguntei, vendo o seu estado.
- Tive um atrito, provoquei um tumulto, mandei todos à merda. Mas eles não me levam a sério porque sou mulher...



E foi falando, falando, enquanto tirava a roupa, procurava um cigarro, dirigindo-se para o banho. Não encontrava um copo, bebia com a garrafa na mão.
- O quê? perguntei, acompanhando-a.
- Uns merda! Rôni, uns merdas. E burros! - gritava, como se quisesse acordar todo o bairro.
- Quem? perguntei.
- Todos! Todos eles!... Não vêem o que está na cara de todos! Pensam que reforma de base é revolução socialista, forçam a barra, tumultuam o país e vão provocar uma reação armada da direita. Uns merdas! Tumultuam o país para provocar uma reação de direita!
- Mas você não é a favor das reformas de Jango? perguntei.
- Sim, Roninho, respondeu ela com a paciência inesperada com que falaria a uma criança: Mas é preciso compreender as reformas de base. O país é enorme, e as bases estão longe de serem amadurecidas... Há poucos anos, na época de Getúlio, ainda vivíamos nas cavernas... O povo é muito conservador, a sua consciência ainda está em formação, tanto a massa proletária, quanto a classe média. Não é fazendo greve todo dia que se vai amadurecer a consciência nacional, a consciência de classe. O pais está à beira do abismo, do caos, mas não da revolução, entenda, mas não da revolução!
Ela gritava:
- Filhos da puta! A esquerda está empurrando o pais para o caos. A direita vai jantar! As reformas de base, tal como propostas por Jango, de cima para baixo, servem apenas para neutralizar a revolução, uma proposta social-democrata.
- Mas não desenvolvem o país? perguntei.
- Sim, disse ela, já nua, já dentro da ducha do banheiro. Mas o pessoal tá fazendo greve contra o próprio Jango. Tomaram dele a liderança das reformas de base, da pseudo-revolução, querem radicalizar. Jango perdeu o controle, está forçado a reagir, empurram-no para o lado conservador. Jango é um palerma, está acuado, terá de renunciar, vai cair, e eu "sei" que não virá um governo popular, porque não pode vir, porque não temos nenhuma base política no país. A esquerda e a direita se encarregarão de derrubá-lo. A serviço de quem, meu Deus? A quem interessa? As reformas de base fazem parte de uma conjuntura ocidental para evitar outra revolução cubana no Terceiro Mundo. Esse pessoal é louco, querem agora forçar o presidente a uma reforma agrária, quando o próprio presidente é um latifundiário. Pensam que Jango vai lutar contra seus interesses.
- E o que você acha que se devia fazer?
- Aproveitar o que for possível das reformas de base sem tumultuar o cenário, fortalecer o governo de Jango, apoiá-lo para conseguir o que for possível, pacificamente. E tocar o bonde! Não podemos forçar o governo à uma reação contra as reformas, a dar um passo atrás, empurrá-lo para os braços da reação. Estão querendo demais dele. Ele não tem essa força política, Rôni. Não tem! Essa estória de mobilização popular é um perigo, não se fabrica uma revolução num país como o nosso, há mais líderes de esquerda à serviço da direita do que você pensa... Eu vou cair fora! Filhos da puta! Eles não me levam a sério porque sou mulher!
- Não entendo uma coisa... - comecei a dizer. Mas ela me interrompeu:
- Você vai ver, Rôni. Jango vai cair, as forças que o apóiam se radicalizaram e estão desvairadas, se afastaram dele, o deixaram nu e acossado. Suas reformas são vistas como uma revolução pelos Estados Unidos, ele não pode ficar mais à esquerda do que já está. Ele está só. Não pode radicalizar, pois é apenas um reformista... Há um erro, Rôni, um grande erro... Esse pessoal não segue nem o Manifesto de Marx. Estão a serviço da direita? Hem? Responda-me?
Seus olhos fuzilavam.
- Acalme-se, disse-lhe eu. Beba.
Eu lhe passava um copo de uísque para dentro do boxe. Val estendeu a mão cheia de espuma. Bebeu um grande gole.
- Obrigada, disse-me.

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