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terça-feira, 25 de maio de 2021
quarta-feira, 14 de abril de 2021
AURI SILVA BRAGA
Circulado em Jornal do Commercio, 25 abril 1958 |
Sempre ouvira falar da felicidade
Qual meiga fada para mim desconhecida.
Então parti a procurá-la pela vida
Com ardente desejo, com imensa vontade.
Busquei-a nos brilhantes píncaros da glória,
No deslumbrar das riquezas a ela não vi,
Nas ilusões fugazes busquei com frenesi,
Ainda nos triunfos não logrei vitória.
Onde está a felicidade que procuro?
Em vão meu peito fraco e inseguro,
Clamou por ela sem poder a encontrar.
Por fim, cansada voltei desiludida
E na humildade do meu ponto de partida,
A felicidade veio-me abraçar.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
sábado, 6 de fevereiro de 2021
domingo, 9 de setembro de 2018
ANTONIO NOBRE: Antologia
ANTONIO NOBRE: Antologia
Antônio Nobre
ANTÔNIO NOBRE nasceu em 1867. Estudou um ano de Direito na Universidade de Coimbra, indo depois para Paris, onde cursou ciências políticas, e onde se familiarizou com as novas tendências da poesia. Voltando para Portugal, tomou parte num concurso para cônsul, mas não conseguiu obter a primeira classificação. Depois disso, começou a viajar com freqüência, procurando climas melhores para sua saúde. Publicou apenas um livro de poesias, "Só", cuja primeira edição apareceu em Paris, em 1892, mas a 2a, de 1898, é que é a definitiva. Depois de sua morte foram publicados mais dois volumes de versos: "Despedidas" e "Primeiros Versos". Morreu em 1900.
Ó virgens que passai, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.
Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!
Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruína do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas
Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!
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MEMÓRIA
Ora isto, Senhores, deu-se em Trás-os-Montes,
Em terras de Borba, com tôrres e pontes.
Português antigo, do tempo da guerra,
Levou-o o Destino pra longe da terra.
Passaram os anos, a Borba voltou,
Que linda menina que, um dia, encontrou!
Que linhas fidalgas e que olhos castanhos!
E, um dia, na Igreja correram os banhos.
Mais tarde, debaixo dum signo mofino,
Pela lua-nova, nasceu um menino.
Ó mães dos Poetas! sorrindo em seu quarto,
Que são virgens antes e depois do parto!
Num berço de prata, dormia deitado,
Três moiras vieram dizer-lhe o seu fado.
(E abria o menino seus olhos tão doces) :
"Serás um Príncipe! mas antes. . . não fôsses."
Sucede, no entanto, que o Outono veio
E, um dia, ela resolve dar um passeio.
Calçou as sandálias, toucou-se de flôres,
Vestiu-se de Nossa Senhora das Dores:
"Vou ali adiante, à Cova, em berlinda,
Antônio, e já volto. . . " E não voltou ainda!
Vai o Espôso, vendo que ela não voltava,
Vai lá ter com ela, por lá se quedava.
Ó homem egrégio! de estirpe divina,
De alma de bronze e coração de menina!
Em vão corri mundos, não vos encontrei
Por vales que fôra, por êles voltei.
E assim se criou um anjo, o Diabo, o lua;
Ai corre o seu fado! a culpa não é sua!
Sempre é agradável ter um filho Virgílio,
Ouvi êstes carmes que eu compus no exílio,
Ouvi-os vós todos, meus bons Portuguêses!
Pelo cair das fôlhas, o melhor dos meses,
Mas, tende cautela, não vos faça mal. . .
Que é o livro mais triste que há em Portugal!
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ANTÔNIO
Que noite de inverno! Que frio, que frio!
Gelou meu carvão:
Mas boto-o à lareira, tal qual pelo estio,
Faz sol de verão!
Nasci, num reino d 'Oiro e amôres,
A beira-mar.
Ó velha Carlota! tivesse-te ao lado,
Contavas-me histórias:
Assim. . . desenterro, do Val do Passado,
As minhas Memórias.
Sou neto de Navegadores,
Heróis, Lôbos-d'água, Senhores
Da índia, d'Aquém e d'Além-mar!
Moreno coveiro, tocando viola,
A rir e a cantar!
Empresta, bom homem, a tua sachola,
Eu quero cavar:
E o Vento mia! e o Vento mia!
Que irá no Mar!
Erguei-vos, defuntas! da tumba que alveja
Qual Lua, a distância!
Visões enterradas no adro da Igreja
Branquinha, da Infância.
Que noite! ó minha Irmã Maria
Acende um círio à Virgem Pia,
Pelos que andam no alto Mar. . .
Lá vem a Carlota que embala uma aurora
Nos braços, e diz:
"Meu lindo Menino, que Nossa Senhora
O faça feliz!"
Ao Mundo vim, em têrça-feira
Um sino ouvia-se dobrar!
E Antônio crescendo, sãozinho
Feliz que vivia!
(E a Dor, que morava com êle no peito,
Com êle crescia. . . )
Vim a subir pela ladeira
E, numa certa têrça-feira,
Estive já pra me matar. . .
Mas foi a uma festa, vestido de anjinho,
Que fado cruel!
E a Antônio calhou-lhe levar coitadinho!
A Esponja do Fel...
Ides gelar, água das fontes
Ides gelar!
A tia Delfina, velhinha tão pura,
Dormia a meu lado
E sempre rezava por minha ventura. . .
E sou desgraçado!
Águas do rio! Águas dos montes!
Cantigas d'água pelos montes,
Que sois como amas a cantar.. .
E eu ia às novenas, em tardes de Maio,
Pedir ao Senhor:
E, ouvindo êsses cantos, tremia em desmaio,
Mudava de côr!
Passam na rua os estudantes
A vadrulhar...
E a Mãe-Madrinha, do tempo da guerra
A mailos Franceses,
Quando ia ao confesso, à ermida da serra,
Levava-me, às vêzes.
Assim como êles era eu dantes!
Meus camaradas! estudantes!
Deixai o Poeta trabalhar.
Santinho como ia, santinho voltava:
Pecados? Nem um!
E a instância do padre dizia (e chorava):
"Não tenho nenhum. .."
O Já, coberto de gangrenas,
Meu avatar!
As noites rezava, (e rezo inda agora)
Ao pé da lareira.
(A chuva gemente caía lá fora,
Fervia a chaleira. . .)
Conservo as mesmas tuas penas,
Mais tuas chagas e gangrenas,
Que não me farto de coçar!
- Que Deus se amercie das almas do Inferno!
- Amém! Oxalá...
E o moço rosnava, transido de inverno:
- Que bom lá está!
E a neve cai, como farinha,
Lá dêsse moinho a moer, no Ar.
O sino da Igreja tocava, à tardinha:
Que tristes seus dobres!
Era a hora em que eu ia provar, à cozinha,
O caldo dos Pobres. . .
O bom Moleiro, cautelinha!
Não desperdices a farinha
Que tanto custa a germinar. . .
Ó velhas criadas! na roca fiando,
Nos lentos serões:
Corujas piando, Farrusca ladrando
Com medo aos ladrões!
Andais, à neve, sem sapatos.
Vás que não tendes que calçar!
~
O Zé do Telhado morava, ali perto:
A triste Viúva
A nossa casa ia pedir, era certo,
Em noites de chuva. . .
Corpos ao léu, vesti meus fatos!
Pés nus! levai êsses sapatos...
Basta-me um par.
Ó feira das uvas! em tardes de calma.. .
(O tempo voou!)
Pediam-me os Pobres" esmola pela alma
Que Deus lhe levou!"
Quando eu morrer, hirto de mágoa,
Deitem-me ao Mar!
E havia-os com gôta, e havia-os herpéticos,
Mostrando a gangrena!
E mais, e ceguinhos, mas era dos éticos
Que eu tinha mais pena. . .
Irei indo de frágua em frágua,
Até que, enfim, desfeito em água,
Hei de fazer parte do Mar!
Chegou uma carta tarjada: a estampilha
Bastou-me enxergar...
Coitados daqueles que perdem a filha,
Sôbre águas do Mar!
No Panthéon, trágico, o sino
Dá meia-noite, devagar:
Ó tardes de outono, com fontes carpindo
Entre erva sedenta!
Os cravos a abrirem, a Lua aspergindo
Luar, água-benta...
É o Vítor, outra vez menino,
A compor um alexandrino,
Pelos seus dedos a contar!
Ao dar meia-noite no cuco da sala,
Batiam: "Truz! truz!"
E o Avô que dormia, quietinho na
Entrava, Jesus!
Que olhos tristes tem meu
Vê-me a comer e põe-se a ougar:
Nas sachas de Junho, ninguém se batia
Com o nosso caseiro:
Que espanto, pudera! se da freguesia
Êle era o coveiro. . .
Sobe ao meu quarto, bom velhinho!
Que eu dou-te um copo dêste vinho
E metade do meu jantar.
Morria o mais velho dos nossos criados,
Que pena! que dó!
Pedi-lhe, tremendo, fizesse recados
À alminha da Avó...
Bairro Latino! dorme um pouco;
Faze, meu Deus, por sossegar!
Ó banzas dos rios, gemendo descantes
E fados do Mundo!
Ó águas falantes! ó rios andantes,
Com eiras no fundo!
Cala-te, Georges! estás já rouco!
Deixa-me em paz! Cala-te, louco,
Ó boulevard!
Trepava às figueiras cheiinhas de figos
Como astros no Céu:
E em baixo, aparando-os, erguiam mendigos
O rôto chapéu.. .
Boas almas, vinde ao meu seio!
Espíritos errantes no Ar!
Ó Lua encantada no fundo do poço,
Moirinha da Mágoa!
O balde descia, quimeras de Moço!
Trazia só água. . .
Sou médio: evoco-os, noite em
Vós não acreditais, eu sei-o. . .
Deixá-lo não acreditar.
meio!
Meus versos primeiros estão no adro, ainda,
Escritos na cal:
Cantavam Aquela que é a rosa mais linda
Que tem Portugal!
Se eu vos pudesse dar a vista,
Ceguinhos que ides a tactear...
A Lua é ceifeira que, às noites, ensaia
Bailados na Terra!
Luar é celeiro que, pálido, caia
Ermidas na serra. . .
Quando essa sorte me contrista!
Mas ah! mais vale não ter vista
Que um mundo dêstes ter de olhar. . .
O Conde da Lixa sabia o Horácio,
Tintim por tintim!
E dava-me, à noite, passeando em palácio,
Lição de latim.
A Morte, agora, é a minha Ama
Que bem que sabe acalentar!
E entrei para a escola, meu Deus! quem me dera
Nessa hora da Vida!
Usava uma blusa, que linda que era!
E trança comprida...
À noite, quando estou na cama:
"Nana, nana, que a tua Ama
Vem já, não tarda! foi cavar. . . "
Os outros rapazes furtavam os ninhos
Com ovos a abrir;
Mas eu mercava-lhes os bons passarinhos,
Deixava-os fugir. . .
Camões! Ó Poeta do Mar-bravo!
Vem-me ajudar...
Os Presos, às grades da triste cadeia,
Olhavam-me em face!
E eu ia à pousada do guarda da aldeia
Pedir que os soltasse. . .
Tenho o nome do teu escravo:
Em nome dêle e do Mar-bravo
Vem-me ajudar!
E quando um malvado moía a chibata
Um filho, ou assim,
Corria a seus braços, gritando: "Não Bata!
Bata antes em mim. . . "
E o Vento geme! e o Vento geme!
Que irá no Mar!
E quando dobrava na terra algum sino
Por velho, ou donzela,
A meu Pai rogavam "deixasse o Menino
Pegar a uma vela..."
Lôbos-d'água, que ides ao leme
Tende cuidado! A lancha treme.
Orçar! orçar!
Enterros de anjinhos! O dores que trazem
Aos tristes casais!
Há doces, há vinho, senhores que fazem
Saúdes aos pais. . .
Meu velho Cão, meu grande amigo,
Por que me estás assim a olhar!
A Prima doidinha por montes andava,
A Lua, em vigília!
Olhai-me, Doutôres! Há doidos, há lava,
Na minha Família...
Quando eu choro, choras comigo
Meu velho Cão! és meu amigo. . .
Tu nunca me hás de abandonar.
E os anos correram, e os anos cresceram,
Com êles cresci:
Os sonhos que tinha, meus sonhos. . . morreram,
Só eu não morri. . .
Frades do Monte de Crestelo !
Abri-me as portas! quero entrar...
Fui vendo que as almas não eram no Mundo
Singelas e francas:
A minha, que o era, ficou num segundo
Cheiinha de brancas!
Cortai-me as barbas e o cabelo,
Vesti-me êsse hábito singelo. . .
Deixai-me entrar!
Fiquei pobrezinho, fiquei sem quimeras,
Tal qual Pedro-Sem,
Que teve fragatas, que teve galeras,
Que teve e não tem. . .
Moço Lusíada? criança!
Por que estás triste, a meditar'
Vieram as rugas, nevou-me o cabelo
Qual musgo na rocha. . .
Fiquei para sempre sequinho, amarelo,
Que nem uma tocha!
Vês teu país sem esperança
Que tudo alui, à semelhança
Dos castelos que ergueste no Ar'
E a velha Carlota, revendo-me agora
Tão pálido, diz:
Meu pobre Menino! que Nossa Senhora
Fêz tão infeliz. . ."
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SONETOS
1
Longe de ti, na cela do meu quarto,
Meu corpo cheio de agoirentas fezes,
Sinto que rezas do Outro-mundo, harto,
Pelo teu filho, Minha Mãe, não rezes!
Para falar, assim, vê tu! já farto,
Para me ouvires blasfemar, às vêzes,
Sofres por mim as dores cruéis do parto
E trazes-me no ventre nove meses!
Nunca me houvesses dado à luz, Senhora!
Nunca eu mamasse o leite aureolado
Que me fêz homem, mágica bebida!
Fôra melhor não ter nascido, fôra,
Do que andar, como eu ando, degredado
Por esta Costa d' África da Vida.
2
Altos pinheiros septuagenários
E ainda impertigados sôbre a serra!
Sois os Enviados-extraordinários,
E embaixadores del-Rei Pã, na Terra.
A noite, sob aquêles lampadários,
Conferenciais com êle... Há paz? Há guerra ?
E tomam notas vossos secretários,
Que o Livro Verde secular encerra.
Hirtos e altos, Tayllerands dos montes!
Tendes a linha, não vergais as frontes
Na exigência da Côrte, ou beija-mão!
Voltais aos Homens com desdém a face. . .
Ai oxalá! que Pã me despachasse
Adido à vossa estranha Legação!
3
Não repararam nunca? Pela aldeia,
Nos fios telegráficos da estrada,
Cantam as aves, desde que o Sol nada,
E, à noite, se faz sol a Lua-Cheia.
No entanto, pelo arame que as tenteia,
Quanta tortura vai, numa ânsia alada!
O Ministro que joga uma cartada,
Alma que, às vêzes, d' Além-Mar anseia:
- Revolução! - Inútil. - Cem feridos,
Setenta mortos;. - Beijo-te! - Perdidos!
- Enfim, feliz!?! - Desesperado. - Vem.
E as boas aves, bem se importam elas!
Continuam cantando, tagarelas:
Assim, Antônio, deves ser também.
ANTONIO NOBRE
A LISBOA DAS NAUS, CHEIA DE GLóRIA
Lisboa à beira-mar, cheia de vistas,
Ó Lisboa das meigas Procissões!
Ó Lisboa de Irmãs e de fadistas!
Ó Lisboa dos líricos pregões. . .
Lisboa com o Tejo das Conquistas,
Mais os ossos prováveis de Camões!
Ó Lisboa de mármore, Lisboa!
Quem nunca te viu, não viu coisa boa. ..
Ai canta, canta ao luar, minha guitarra,
A Lisboa dos Poetas Cavaleiros!
Galeras doidas por soltar a amarra,
Cidades de morenos marinheiros,
Com navios entrando e saindo a barra
De proa para países estrangeiros!
Uns pra França, acenando Adeus! Adeus!
Outros pras índias, outros.. . sabe-o Deus!
Ó Lisboa das ruas misteriosas!
Da Triste Feia, de João de Deus,
Beco da Índia, Rua das Fermosas,
Beco do Fala-Só (os versos meus...)
E outra rua que eu sei de duas Rosas,
Beco do Imaginário, dos Judeus,
Travessa (julgo eu) das Isabéis,
E outras mais que eu ignoro e vós sabeis.
Luar de Lisboa! aonde o há igual no Mundo?
Lembra leite a escorrer de têtas nuas!
Luar assim tão meigo, tão profundo,
Como a cair dum céu cheio de luas!
Não deixo de o beber nem um segundo,
Maio vejo apontar por essas ruas. . .
Pregoeiro gentil lá grita a espaços:
"Vai alta a lua!" de Soares de Passos.
Formosa Sintra,onde, alto, as águias pairam,
Sintra das solidões! beijo da terra!
Sintra dos noivos, que ao luar desvairam,
Que vão fazer o seu ninho na serra.
Sintra do Mar! Sintra de Lord Byron,
Meu nobre camarada de Inglaterra!
Sintra dos Moiros, com os seus adarves,
E, ao longe, em frente, o Rei dos Algarves!
Ó Lisboa vermelha das toiradas!
Nadam no Ar amôres e alegrias,
Vêde os Capinhas, os gentis Espadas,
Cavaleiros, fazendo cortesias.. .
Que graça ingênua! farpas enfeitadas!
O Povo, ao Sol, cheirando às maresias !
Vêde a alegria que lhe vai nas almas!
Vêde a branca Rainha, dando palmas!
Ó suaves mulheres do meu desejo,
Com mãos tãos brancas feitas pra carícias!
Ondinas dos Galeões! Ninfas do Tejo!
Animaizinhos cheios de delícias.. .
Vosso passado quão longínquo o vejo!
Vós sois Árabes, Celtas e Fenícias!
Lisboa das Varinas e Marquesas. . .
Que bonitas que são as Portuguêsas !
Senhoras! ainda sou menino e moço,
Mas amôres não tenho nem carinhos!
Vida tão triste suportar não posso.
Vós que ides à novena, aos Inglesinhos,
Senhoras, rezai por mim um Padre-Nosso,
Nessa voz que tem beijos e é de arminhos.
Rezai por mim. . . Vereis . . . Vossos pecados
(Se acaso os tendes) vos serão perdoados.
Rezai, rezai, Senhoras, por aquêle
Que no Mundo sofreu tôdas as dores!
Ódios, traições, torturas, - que sabe êle!
Perigos de água, e ferro e fogo, horrores!
E que, hoje, aqui está, só osso e pele,
A espera que o enterrem entre as flôres . . .
Ouvi: estão os sinos a tocar.
Senhoras de Lisboa! ide rezar.
SONÊTO No 25
Meu pobre amigo! Sempre silencioso!
Assim eu fui. Cismava, lia, lia. . .
Mudei no entanto de Filosofia,
Não creio em nada! e fui tão religioso!
Tomei parte no Exército glorioso
Que foi bater-se por Israel, um dia!
Cri no Amor, no Bem, na Virgem Maria,
Não creio em nada! tudo é mentiroso!
Não vale a pena amar e ser amado,
Nem ter filhos dum seio de mulher
Que ainda nos vem fazer mais desgraçado!
Não vale a pena um grande poeta ser,
Não vale a pena ser rei nem soldado,
E venha a Morte, quando Deus quiser!
AFIRMAÇÕES RELIGIOSAS
Ó meus queridos! Ó meus Stos. limoeiros!
Ó bons e simples padroeiros!
Santos de minha muita devoção!
Padres choupos! ó castanheiros!
Basta de livros, basta de livreiros!
Sinto-me farto de civilização!
Rezai por mim, ó minhas boas freiras,
Rezai por mim, escuras oliveiras
De Coimbra, em Sto. Antônio de Olivais;
Tornai-me simples como eu era d 'antes,
Sol de Junho, queima as minhas estantes,
Poupa-me a Bíblia, Antero... e pouco mais!
No mar da vida cheia de perigos
Mais monstros há, diziam os antigos,
Que lá nas águas dêsse outro mar.
O que pensais vós a respeito disto,
Ó navegantes dêsse mar de Cristo!
Heróis, que tanto tendes de contar
Chorai por mim, ó prantos dos salgueiros,
Pois entre os tristes eu sou dos primeiros!
Lamentos ao luar, dos pinheirais,
E vós, ó sombra triste das figueiras!
Chorai por mim, ó flor das amendoeiras
Chorai também, ó verdes canaviais!
E quando enfim, já tarde de sofrer
Eu um dia me fôr adormecer
Para onde há paz, maior que num convento,
Cobri-me de vestes, ó fôlhas d 'outono,
Ai não me deixeis no meu abandono!
Chorai-me ciprestes, batidos do vento...
O REGRESSO DE ANRIQUE A PORTUGAL
Vem entrando a barra a galera " Maria' ,
Que vem de tão longe, e tão linda que vem!
Toca em terra o sino pra missa do dia,
Em frente, em Santa Maria de Belém!
Mareantes trigueiros, no alto dos mastros,
Ai dobram as velas; não são mais precisas!
Ai que lindas eram, às luas e aos astros!
Que doidas, aos ventos! que meigas, às brisas!
Desdobra as amarras! apresta a fateixa!
Pois todos em breve a nau vão deixar;
Ó terra! que saudade a de quem te deixa,
Ó terra! pela aventura do alto mar!
Entra o pilôto e abraçam-se êstes e aquêles,
Abraçam-se e riem tanto à vontade. . .
Abraços que levam almas dentro dêles,
Sorrisos de bôcas que falam verdade!
Só as entende (capitães, não as sentis)
Quem, algum dia, passou as águas salgadas,
Quem, um dia, as passou numa hora infeliz,
Quem, um dia, as passou, com as frontes curvadas.
E "Maria" vai indo pelo Tejo acima,
E cisma Anrique: - Que lindo Portugal!
Vêm as Ninfas... Vai uma dá-lhe uma rima,
Vai outra (gostam dêle) e vai faz-lhe um sinal.
E Anrique cisma: - Quem te não viu ainda!
Ó minha Lisboa de mármore! Lisboa
De ruínas e de glórias! Tu és linda
Entre as cidades mais lindas, ó Lisboa!
Ó minha Lisboa, com oiros tão constantes
Pelas serras e céus e pelo rio! Com seus
Jerônimos dos Poetas e Mareantes!
Lisboa branca de João de Deus!
LISBOA DOS DESTINOS IMPERIAIS
(fragmento)
Côr do céu, a bandeira, e côr de neve,
Não a vejo na Tôrre a flutuar!
Senhor! Vós bem sabeis que o Rei não deve
Outras armas que a Vossa apresentar...
Se assim deixais que outro Povo a leve,
Por que a destes ao nosso pra guardar
Não é êle o mesmo que, em Ourique,
A aclamou nas mãos do teu Henrique?
Anda tudo tão triste em Portugal!
Que é dos sonhos de glória e de ambição?
Quantas flôres do nosso laranjal
Eu irei ver caídas pelo chão!
Meus irmãos Portuguêses, fazeis mal
De ter ainda no peito um coração.
Talvez só eu (Amor, ai, tu me entendes!)
Possa ainda ter a paz que já não tendes.
Esperai, esperai, ó Portuguêses!
Que êle há de vir, um dia. Esperai.
Para os mortos os séculos são meses,
Ou menos que isso, nem um dia, ai.
Tende paciência, findarão reveses;
E até lá, Portuguêses, trabalhai.
Que El-Rei Menino não tarda a surgir,
Que êle há de vir, "há de vir, há de vir!
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DA INFLUÊNCIA DA LUA
Outono. O Sol, qual brigue em chamas, morre
Nos longes d'água... Ó tardes de novena!
Tardes de sono em que a poesia escorre
E os bardos, a cismar, molham a pena!
Ao longe, os rios de águas prateadas,
Por entre os verdes canaviais, esguios,
São como estradas líquidas, e as estradas,
Ao luar, parecem verdadeiros rios!
Os choupos nus, tremendo, arrepiadinhos,
O xale pedem a quem vai passando...
E nos seus leitos nupciais, os ninhos,
As lavandiscas noivam, piando, piando!
O orvalho cai do Céu, como um unguento.
Abrem as bôcas, aparando-o, os goivos;
E a laranjeira, aos repelões do Vento,
Deixa cair por terra a flor dos noivos,
E o orvalho cai... E, à falta d'água, rega
O vale sem fruto, a terra árida e nua!
E o Padre-Oceano, lá de longe prega
O seu Sermão de Lágrimas, à Lua!
A Lua! Ela não tarda aí, espera!
O mágico poder que ela possui!
Sôbre as sementes, sôbre o Oceano impera,
Sôbre as mulheres grávidas influi...
Ai os meus nervos, quando a Lua é cheia!
Da Arte novas concepções descubro,
Todo me aflijo, fazem lá idéia!
Ai a ascensão da Lua, pelo Outubro!
Tardes de Outubro! ó tardes de novena!
Outono! Mês de Maio, na lareira!
Tardes.. Lá vem a Lua, gratiae plena,
Do convento dos Céus, a eterna freira!
LUSITÁNIA NO BAIRRO LATINO
.............................SÓ
Ai do Lusíada, coitado,
Que vem de tão longe, coberto de pó,
Que não ama, nem é amado,
Lúgubre Outono, no mês d' Abril !
Que triste foi o seu fado!
Antes fôsse pra soldado,
Antes fôsse pro Brasil. . .
Menino e moço, tive uma Tôrre de leite,
Tôrre sem par!
Oliveiras que davam azeite,
Searas que davam linho de fiar,
Moinhos de velas, como latinas,
Que São Lourenço fazia andar. . .
Formosas cabras, ainda pequeninas,
E loiras vacas de maternas ancas
Que me davam o leite de manhã,
Lindo rebanho de ovelhas brancas;
Meus bibes eram da sua lã.
Antônio era o Pastor dêsse rebanho:
Com elas ia para os Montes, a pastar.
E tinha pouco mais ou menos seu tamanho,
E o pasto delas era o meu jantar.. .
E a serra a toalha, o covilhete e a sala.
Passava a noite, passava o dia
Naquela doce companhia.
Eram minhas Irmãs e tôdas puras
E só lhes minguava a fala
Para serem perfeitas criaturas. . .
E quando na Igreja das Alvas Saudades
(Que era da minha Tôrre a freguesia)
Batiam as Trindades,
Com os seus olhos cristianíssimos olhavam-me,
Eu persignava-me, rezava Ave-Maria. . .
E as doces ovelhinhas imitavam-me.
Menino e moço, tive uma Tôrre de leite,
Tôrre sem par!
Oliveiras que davam azeite. . .
Um dia, os castelos caíram do Ar!
As oliveiras secaram,
Morreram as vacas, perdi as ovelhas,
Saíram-me os Ladrões, só me deixaram
As velas do moinho. . . mas rôtas e velhas!
Que triste fado!
Antes fôsse aleijadinho,
Antes doido, antes cego. . .
Ai do Lusíada, coitado!
Veio da terra, mailo seu moinho:
Lá, faziam-no andar as águas do Mondego,
Hoje, fazem-no andar águas do Sena . . .
É negra a sua farinha!
Orai por êle! Tende pena!
Pobre Moleiro da Saudade.. .
Ó minha
Terra encantada. cheia de Sol,
Ó campanários, ó Luas Cheias,
Lavadeira que lavas o lençol,
Ermidas, sinos das aldeias,
Ó ceifeira que segas cantando,
Ó moleiro das estradas,
Carros de bois, chiando. . .
Flôres dos campos, beiços de fadas,
Poentes de Julho, poentes minerais,
Ó choupos, ó luar, ó regas de verão!
Que é feito de vocês? Onde estais, onde estais?
Ó padeirinhas a amassar o pão,
Velhinhas na roca a fiar,
Cabelo todo em caracóis!
Pescadores a pescar
Com a linha cheia de anzóis!
Zumbidos das vespas, ferrões das abelhas,
Ó bandeiras! ó Sol! foguetes! ó tourada!
Ó boi negro entre as capas vermelhas!
Ó pregões d'água fresca e limonada!
Ó romaria do Senhor do Viandante!
Procissões com música e anjinhos!
Srs. Abades d'Amarante,
Com três ninhadas de sobrinhos!
Onde estais? Onde estais?
Ondas do Mar! Serras da Estrêla d'água,
Cheias de brigues como pinhais...
Morenos mareantes, trigueiros pastôres!
Onde estais? Onde estais?
Convento d'águas do Mar, ó verde Convento,
Cuja Abadêssa secular é a Lua
E cujo Padre-capelão é o Vento. . .
Água salgada dêsses verdes poços,
Que nenhum balde, por maior, escua!
Ó Mar jazigo de paquêtes, de ossos,
Que o Sul, às vêzes, arrola à praia:
Olhos em pedra, que ainda chispam brilhos!
Corpo de virgem, que ainda veste a saia,
Braços de mães, ainda a apertar braços de filhos!
Noiva cadáver ainda com véu.. .
Ossadas ainda com os mesmos fatos!
Cabeça roxa ainda de chapéu!
Pés de defunto que ainda traz sapatos!
Boquinha linda que já não canta.. .
Bôcas abertas que ainda soltam ais!
Noivos em núpcias, ainda, aos beijos, abraçados!
Corpo intacto, a boiar (talvez alguma Santa. . .)
Ó defuntos do Mar! ó roxos arrolados!
Onde estais? Onde estais?
Ó Boa Nova, ermida à beira-mar,
Única flor, nessa viv'alma de areais!
Na cal, meu nome ainda lá deve estar,
À chuva, ao Vento, aos vagalhões, aos raios!
Ó altar da Senhora, coberto de luzes!
Ó poentes da Barra, que fazem desmaios....
Ó Sant'Ana, ao luar, cheia de cruzes!
Ó lugar de Roldão! vila de Perafita!
Aldeia de Gonçalves! Mesticosa!
Engenheiros, medindo a estrada com a fita. . .
Água fresquinha da Amorosa!
Rebolos pela areia! Ó praia da Memória!
Onde o Sr. D. Pedro, Rei-soldado,
Atracou, diz a História,
No dia... não estou lembrado;
Ó capelinha do Senhor d'Areia,
Onde o Senhor apareceu a uma velhinha. . .
Algas! farrapos dos vestidos da Sereia!
Lanchas da Póvoa que ides à sardinha,
Poveiros, que ides para as vinte braças,
Sol-pôr, entre pinhais. . .
Capelas onde o Sol faz mortes, nas vidraças!
Onde estais?
2
Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!
Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a a tôda a fôrça,
Clamam todos à uma: Agôra! agôra! agôra!
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vêzes, sabe Deus, para não mais entrar. . . )
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-Ihes o Vento e tôdas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:
Senhora Nagonia!
Olha acolá!
Que linda vai com seu êrro de ortografia. . .
Quem me dera ir lá.
Senhora da guarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!
Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Sêmos probes!
Senhor dos ramos
Istrêla do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa, Senhora, a andar.
Senhora da Luz!
Parece o Farol. . .
Maim de Jesus!
É tal qual ela, se lhe dá o Sol!
Senhor dos Passos! Sinhora da Ora!
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora. . .
Senhor dos Navegantes! Senhor de Matozinhos!
Os mestres ainda são os mesmos dantes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
À mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar. . .
Senhora dos aflitos! Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Ramos em paz!
ó lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!
Ainda lá vejo Zé da Clara, os Remelgados,
O Jéques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
Às lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
"As armas e os varões assinalados. . ."
Lá. sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira. . .
Como ela corre! com que fôrça o Vento a impele:
Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! Ide e voltai com êle
Por êsse mar de Cristo. . .
Adeus! Adeus! Adeus!
3
Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha essas moças, olha estas Marias !
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê, são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis !
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sôbre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faze-te Manel! Viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito,
Que hão de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão.
Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Tôrres de Davi, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago. .. não sei onde! Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastos
Que êles mal sabem andar.
Esta que passa é a Noite, cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judéia)
Aquêle é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela outra é a Lua Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, tôda de arminhos,
(Vê! d 'entre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Crianças em flor que ainda nos não tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mal sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel;
Abelhas d 'oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta-feira. . .
Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor. . .
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o Sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas e não cheiram mal. . .
E a procissão passa. Preamar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su 'alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no Céu ferro-e-oiro,
O sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães! passam capinhas.
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca da Moirama !
Vinho verde a escorrer da vide!
A porta dum casal, um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as môscas, do moribundo.
Dança de roda mailas moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
“Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho ! "
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho. . .
Este, sem braços, diz "que os deixou na pedreira. . . “
E, êsse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o Sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina.. .
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Tísicos! Doidos! Nus ! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobs! Flôres! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Deliriums-tremens! Quistos!
Monstros, fenômenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam" uma esmola p'las alminhas
Das suas obrigações!"
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E coitadinhos! fedem tanto: é de arrasar. . .
Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão êles que não vêm pintar?
quarta-feira, 8 de agosto de 2018
LUKÁCS: CONSCIÊNCIA DE CLASSE
Consciência de Classe
György Lukács
Capítulo V
Tão simples é, contudo, para o proletariado, a relação entre a consciência de classe e a situação de classe, em razão da essência das coisas, quanto são grandes os obstáculos que se opõem à realização dessa consciência na realidade. Aqui, de início, tudo entra na linha de conta da falta de unidade na própria consciência. De fato, embora a sociedade represente em si uma unidade vigorosa e que seu processo de solução seja igualmente um processo unitário, ambos não são dados como unidade à consciência do homem, em particular do homem nascido no seio da reificação capitalista das relações como em um meio natural. Ao contrário, são dados como uma multiplicidade de coisas e de forças independentes umas das outras.
A fissura mais frisante e mais carregada de conseqüências, na consciência de classe do proletariado, se revela na separação entre a luta econômica e a luta política. Muitas vezes Marx indicou que essa separação não tem base [36] e mostrou como está na essência de toda luta econômica transformar-se em luta política (e inversamente), e, no entanto, tem sido impossível eliminar essa concepção da teoria do proletariado. Esse desvio da consciência de classe tem seu fundamento na dualidade dialética do objetivo parcial e do objetivo final, e pois, em último lugar, na dualidade dialética da revolução proletária.
Porque as classes que, nas sociedades anteriores, estavam chamadas à dominação e, por conseguinte, eram capazes de realizar as revoluções vitoriosas, se encontravam subjetivamente diante de uma tarefa mais fácil, justamente por causa da inadequação de. sua consciência de classe à estrutura econômica objetiva, em razão, pois, da inconsciência de sua própria função no processo de evolução. Cabia-lhe somente impor a satisfação dos seus interesses imediatos com a violência de que dispunham; e o sentido social de suas ações lhes restava oculto e era confiado à "manha da razão" do processo de evolução. Mas como a história colocou o proletariado diante da tarefa de uma transformação consciente da sociedade, era necessário que surgisse na sua consciência de classe a contradição dialética entre o interesse ime diato e o objetivo final, entre o momento isolado e a totalidade. Porque o momento isolado no processo e a situação concreta com suas exigências concretas são, em razão de sua essência, imanentes à sociedade capitalista atual e submetidas a suas leis, à sua estrutura econômica. Somente em se incorporando à visão de conjunto do processo, em se vinculando ao objetivo final que eles colocam concreta e conscientemente para além da sociedade capitalista, é que eles se tornam revolucionários. Subjetivamente isso significa, para a consciência de classe do proletariado, que a dialética entre o interesse imediato e a influência objetiva sobre a totalidade da sociedade é transferida na própria consciência do proletariado, em lugar de ser - como para todas as classes anteriores - um processo puramente objetivo, que se desenrola fora da consciência (adjudicada). A vitória revolucionária do proletariado não é, pois, como o era para as classes anteriores, a realização imediata do ser socialmente dado da classe. E, como já tinha reconhecido e assinalado com nitidez o jovem Marx, sua superação de si. O Manifesto Comunista assim formula essa diferença: "Todas as classes anteriores que conquistaram o poder buscavam assegurar a situação que elas já tinham adquirido, submetendo toda sociedade às condições de sua aquisição. Os proletários só podem apropriar-se das forças produtivas sociais suprimindo o modo de apropriação que até aqui era o seu, e, por conseguinte, todo o antigo modo de apropriação" (grifado por G. L.). Essa dialética interna da situação de classe torna mais difícil o desenvolvimento da consciência de classe proletária, em oposição à burguesia que podia, desenvolvendo sua consciência de classe, permanecer à superfície dos fenômenos, no nível do mais grosseiro e do mais abstrato empirismo, enquanto para o proletariado era um imperativo elementar de sua luta de classes ir além do dado imediato. (E que Marx já assinala nas suas notas sobre o levante dos tecelões silesianos. ) [37]
Porque a situação de classe do proletariado introduz a contradição diretamente na consciência do proletariado, enquanto as contradições nascidas da situação de classe da burguesia aparecem necessariamente como os limites externos de sua consciência. Essa contradição significa que a "falsa" consciência tem, no desenvolvimento do proletariado, uma função inteiramente diferente que nas demais classes anteriores. De fato, enquanto as constatações correlatas de fatos parciais ou de momentos do desenvolvimento na consciência de classe da burguesia revelavam, por sua relação com a totalidade da sociedade, os limites da consciência, se desmascaravam como "falsa" consciência, há, mesmo na "falsa" consciência do proletariado, mesmo nos seus erros de fato, uma intenção dirigida axialmente para a verdade. E bastante ir à crítica social dos utopistas ou aos acréscimos apostos por proletários e revolucionários à teoria de Ricardo. A propósito desta última, Engels demonstrou com vigor que ela é "econômica e formalmente falsa", para logo acrescentar: "Mas o que é falso de um ponto de vista econômico e formal pode não ser menos justo do ponto de vista da história universal... A inexatidão econômica formal pode encobrir um conteúdo econômico verdadeiro" [38]. É assim que a contradição na consciência de classe do proletariado se torna solúvel, tornando-se, ao mesmo tempo, um fator consciente da história. Porque a intenção objetivamente dirigida axialmente para a verdade, e que é inerente mesmo à "falsa" consciência do proletariado, não implica absolutamente que ela possa vir dela própria para a luz, sem a intervenção do proletariado. Ao contrário: somente intensificando seu caráter consciente, agindo conscientemente e exercendo uma autocrítica consciente, é que o proletariado transformará a intenção dirigida axialmente para a verdade, despojando-a de suas falsas máscaras, em uma consciência verdadeiramente correta e de porte histórico, que subverterá a sociedade: ela seria evi dentemente impossível, se não tivesse em seu fundamento essa intenção objetiva, e aqui é que se verifica a afirmação de Marx segundo a qual "a humanidade não se propõe tarefa que não possa resolver". [39] O que é dado aqui é somente a possibilidade. A solução, ela mesma, não pode ser mais do que o fruto da ação consciente do proletariado. Essa mesma estrutura da consciência, na qual repousa a missão histórica do proletariado, que o faz ir além da sociedade existente, produz nele a dualidade dialética. O que aparecia nas outras classes como oposição entre interesse de classe e interesse da sociedade, entre a ação individual e suas conseqüências sociais, etc., como limite externo da consciência, e agora transferido, como oposição entre o interesse momentâneo e objetivo final, do interior da consciência de classe proletária. Isso significa, por conseguinte, que essa dualidade dialética é superada interiormente e que a vitória exterior do proletariado na luta das classes veio a ser possível.
Contudo, essa cisão [40] oferece precisamente um meio de compreender que a consciência de classe não é a consciência psicológica de proletários individuais ou a consciência psicológica (de massa) do seu conjunto - como fazia crer a citação posta em exergo - mas o sentido tornado consciente, da situação histórica da classe. O interesse individual momentâneo, no qual esse sentido se objetiva alternadamente e por cima do qual não se pode passar sem retornar a luta de classes do proletariado ao estado mais primitivo do utopismo, pode de fato ter uma dupla função: a de ser um passo na direção do alvo e a de ocultar o alvo. Depende exclusivamente da consciência de classe do proletariado; e não da vitória ou do impasse nas lutas particulares, que seja urna ou outra coisa. Esse perigo, que encobre particularmente a luta sindical "econômica", Marx já o percebera anteriormente e com nitidez. "Ao mesmo tempo os trabalhadores não devem superestimar para si próprios o resultado final dessas lutas. Não devem esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas desses efeitos... que recorrem a paliativos e não curam a própria doença. Também não deveriam despender toda a sua atividade exclusivamente nestas inevitáveis lutas de guerrilha..., mas ao mesmo tempo trabalhar para a transformação radical e utilizar sua força organizada como urna alavanca para a emancipação definitiva do salário". [40a]
A origem de todo oportunismo está em partir dos efeitos e não das causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não da coisa; está em ver no interesse particular e na sua satisfação não um meio de educação tendo em vista a luta final, cuja saída depende da medida em que a consciência psicológica se aproxime da consciência adjudicada, mas algo de precioso em si ou, pelo menos, algo que, por si próprio, se aproximaria do alvo. Em uma palavra, está em confundir o estado efetivo de consciência psicológica dos proletários com a consciência de classe do proletariado .
Freqüentemente se vê o que tem de catastrófico, na prática, tal confusão, quando, na seqüência dessa confusão, o proletariado apresenta uma unidade e uma coesão bem menores, em sua ação, do que as que corresponderiam à unidade das tendências econômicas objetivas. A força e a superioridade da verdadeira consciência prática de classe residem exatamente na capacidade de perceber, por trás dos sintomas dissociadores do processo econômico, sua unidade como evolução do conjunto da sociedade. Contudo, tal unidade de movimento não pode ainda, na época do capitalismo, revelar urna unidade imediata, nas formas exteriores de aparição. O fundamento econômico de uma crise mundial, por exemplo, forma seguramente urna unidade e, como tal, pode ser percebido como uma unidade econômica. Sua forma de aparição no espaço e no tempo será, contudo, uma sucessão e uma justaposição de fenômenos separados não somente nos diferentes países como também nos diferentes ramos da produção de cada país. Pois, quando o pensamento burguês "muda as diferentes partes da sociedade enquanto sociedade à parte", [41] comete, decerto, um pesado erro teórico, mas as conseqüências práticas dessa teoria errônea correspondem inteiramente aos interesses capitalistas de classe. A classe burguesa é, certamente, incapaz, no plano teórico geral, de elevar-se acima da compreensão dos detalhes e dos sintomas do processo econômico (incapacidade que, no final das contas , a condena ao impasse também no plano prático). Todavia, importa-lhe grandemente, na atividade prática imediata da vida quotidiana, que essa maneira de agir que lhe é própria se imponha também ao proletariado. Nesse caso, de fato, e somente nesse caso, é que a superioridade organizacional, etc., da burguesa pode expressar-se com clareza, enquanto a organização toda diferente do proletariado, sua atitude a organizar-se enquanto classe, não se pode impor praticamente. Pois, quanto mais progride a crise econômica do capitalismo, tanto mais essa unidade de processo econômico pode ser claramente apreendida na própria prática. Ela, decerto, também estava presente nas épocas ditas normais, e pois perceptível do ponto de vista de classe do proletariado, mas a distância entre a forma de aparição e o fundamento último era, contudo, muito grande para poder conduzir a conseqüências práticas na ação do proletariado. Esta muda nas épocas decisivas de crises. A unidade do processo total passou ao primeiro plano. A tal ponto que mesmo a teoria do capitalismo não pode abster-se disso inteiramente, embora jamais possa apreender adequadamente essa unidade. Nessa situação, o destino do proletariado e, com ele, o de toda a evolução humana depende unicamente desse passo, tornado desde logo objetivamente possível, que se fará ou não se fará. Porque mesmo que os sintomas da crise se manifestem separadamente (segundo os países, os ramos da produção, como crises econômicas , ou políticas", etc.), mesmo se o reflexo que aí corresponde na consciência psicológica imediata dos trabalhadores tem também um caráter isolado, a possibilidade e a necessidade de superar essa consciência já existem agora; e essa necessidade é sentida instintivamente pelas camadas cada vez mais amplas do proletariado. A teoria do oportunismo que não desempenhou, aparentemente, até à crise aguda, a não ser um papel de freio à evolução objetiva, toma agora uma orientação diretamente oposta à evolução. Visa impedir que a consciência de classe do proletariado continue a evoluir para se transformar, de simples dado psicológico, em adequação ao conjunto da evolução. objetiva; visa levar a consciência de classe do proletariado ao nível de um dado psicológico e dar assim ao progresso até aqui instintivo dessa consciência de classe uma orientação oposta. Essa teoria que se poderia considerar, com certa indulgência, ainda como um erro, durante o tempo em que a possibilidade prática de unificação da consciência de classe proletária não era dada no plano econômico objetivo, se reveste nessa situação de uma caráter de embuste consciente (estejam ou não seus porta-vozes psicologicamente conscientes disso). Preenche, frente a frente aos instintos corretos do proletariado, a função que sempre exerceu a teoria capitalista: denuncia a concepção correta da situação econômica global, da consciência de classe correta do proletariado e de sua forma organizacional, o partido comunista, como qualquer coisa de irreal, como um princípio contrário aos "verdadeiros" interesses dos operários (interesses imediatos, interesses nacionais ou profissionais tomados isoladamente), estranho à sua "autêntica" (dada psicologicamente) consciência de classe.
Entretanto, a consciência de classe ainda que não tendo realidade psicológica não é mera ficção. O caminho infinitamente penoso, pontilhado de numerosas recaídas, que a revolução proletária segue, seu eterno retorno ao ponto de partida, sua contínua autocrítica, de que fala Marx no Dezoito Brumário, encontram sua explicação na realidade dessa consciência.
Somente a consciência do proletariado pode mostrar como sair da crise do capitalismo. Enquanto essa consciência não existe, a crise mantém-se permanente, retorna ao seu ponto de partida, repete a situação, até que, enfim, após infinitos sofrimentos e terríveis desvios, a lição de coisas da história remata o processo de consciência no proletariado e repõe nas suas mãos a direção da história. Aqui o proletariado não tem escolha. E necessário, como diz Marx,[42] que se torne uma classe não somente "frente a frente ao capital" como também "para si própria". Isto é, que eleve a necessidade econômica de sua luta de classes ao nível de uma vontade consciente de uma consciência de classe atuante. Os pacifistas e os humanitaristas da luta das classes que, voluntária ou involuntariamente, trabalhem para amortecer esse processo por si mesmo já tão longo, tão doloroso e sujeito a tantas crises, ficariam horrorizados se compreendessem quantos sofrimentos impõem ao proletariado, ao prolongar essa lição de coisas. Porque o proletariado não pode furtar-se à sua vocação. Trata-se somente de saber o quanto deve ainda sofrer antes de alcançar a maturidade ideológica, o conhecimento correto de sua situação de classe, a consciência de classe. Para dizer a verdade, essas hesitações, essas incertezas, são um sintoma de crise da sociedade burguesa. O proletariado, enquanto produto do capitalismo, está necessariamente sujeito às formas de existência de seu produtor. Essas formas de existência são a inumanidade e a reificação. O proletariado, unicamente por sua existência, é a crítica, a negação dessas formas de existência. Mas até que a crise do capitalismo chegue ao seu termo, até que o próprio proletariado consiga revelar completamente essa crise, tendo atingido a verdadeira consciência de classe, ele é a simples crítica da reificação e, enquanto tal, não se eleva, senão negativa mente, por cima do que nega. Quando a critica não supera a simples negação de uma parte, quando, pelo menos, não tende para a totalidade, nesse caso ela não pode superar o que nega, como mostra, por exemplo, o caráter pequeno-burguês da maior parte dos sindicalistas. Essa simples crítica, essa critica feita do ponto de vista do capitalismo, se manifesta de maneira mais frisante na separação dos diferentes setores da luta. O simples fato de fazer essa separação já indica que a consciência do proletariado sofre, ainda que provisoriamente, a reificação. Embora seja evidentemente mais fácil apreender o caráter inumano de sua Situação de classe no plano econômico do que no político, no plano político do que no cultural, todas essas separações estanques demonstram a força ainda não superada dos modos capitalistas de vida sobre o proletariado.
A consciência reificada permanece necessariamente prisioneira, na mesma medida e de feitio também desesperado, nos extremos do empirismo grosseiro e do utopismo abstrato. Ou melhor, ela se torna a espectadora inteiramente passiva do movimento das coisas sujeitas às leis e nas quais não se pode, em nenhum caso, intervir. Ou melhor, ela se considera como uma força que pode dominar a seu bel-prazer - subjetivamente - o movimento das coisas, em si despojado de sentido. Já reconhecemos o empirismo grosseiro dos oportunistas nas suas relações com a consciência de classe do proletariado. Trata-se agora de compreender a função do utopismo como sinal essencial da gradação interna da consciência de classe. (A separação meramente metodológica operada aqui entre empirismo e utopismo não significa que eles não possam encontrar-se reunidos em algumas orientações particulares ou mesmo em certos indivíduos. Ao contrário, freqüentemente são encontrados em conjunto e continuam também intrinsecamente em conjunto.)
As pesquisas filosóficas do jovem Marx visavam, em grande parte, refutar as diversas teorias errôneas da consciência (tanto a teoria "idealista" da escola hegeliana como a "materialista" de Feuerbach) e alcançar uma concepção correta do papel da consciência na história. A correspondência de 1843 já concebe a consciência como imanente à evolução. A consciência não está além da evolução histórica real. Não é o filósofo quem a introduz no mundo. O filósofo não tem o direito de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprezá-las. "Mostramo-lhe simplesmente (ao mundo) porque, na realidade, ele luta, e a consciência disso é alguma coisa que se vê obrigado a adquirir, mesmo não a querendo". Trata-se somente de "explicar-lhe suas próprias ações". [43] A grande polêmica com Hegel, [44] na Sagrada Família, se concentra, principalmente, nesse ponto. O que há de incompleto em Hegel é que nele o espírito absoluto só aparentemente faz história e a transcendência da consciência que daí resulta converte-se, nos discípulos de Hegel, em uma oposição arrogante, e reacionária, entre o "espírito" e a "massa", oposição cujas insuficiências, absurdos e recaídas a um nível superado por Hegel são impiedosamente criticados por Marx. A crítica, sob a forma de aforismo, de Feuerbach, é-lhe o complemento. Aqui, por seu turno, a imanência da consciência atingida pelo materialismo é reconhecida como uma simples etapa da evolução, como a etapa da "sociedade burguesa", sendo-lhe opostas "a atividade crítica prática" e "a transformação do mundo". Estava, assim, lançado o fundamento filosófico que permite um ajuste de contas com os utopistas. Porque aparece, na Sua maneira de pensar, a mesma dualidade entre o movimento social e a consciência desse movimento. A consciência sai de um além e se aproxima da sociedade para retirá-la do mau caminho seguido até então e levá-la ao bom. O movimento proletário ainda não desenvolvido não lhes permite distinguir na história, na maneira como o proletariado se organiza em classes portanto, na consciência de classe do proletariado - o portador da evolução. Não estão ainda em condições de "perceber o que se passa diante dos seus olhos e de vir a ser a sua voz".[45]
Seria ilusório acreditar que, apesar dessa crítica do utopismo, apesar do reconhecimento histórico de que um comportamento não-utópico frente â evolução histórica se tornou objetivamente possível, o utopismo esteja efetivamente liquidado para a luta emancipadora do proletariado. Somente para as etapas da consciência de classe é que se realizou a unidade real, descrita por Marx, da teoria e da prática, a intervenção prática real da consciência de classe na marcha da história e, por aí, a revelação prática da reificação. Pois, isso não se realizou de maneira unitária e de um só golpe. Aqui aparecem não somente as gradações nacionais ou "sociais", como também as gradações na consciência de classe das próprias camadas operárias. Daí que a separação do econômico e do político seja o caso mais típico e, ao mesmo tempo, o mais importante. Há camadas do proletariado que têm um instinto de classe inteiramente correto para a sua luta econômica, que podem ascender à consciência de classe e que, não obstante, permanecem, ao mesmo tempo, no que diz respeito ao Estado, em um ponto de vista perfeitamente utópico. Acresce que isso não implica uma dicotomia mecânica. A concepção utópica que se faz da política deve necessariamente reagir de modo dialético nas concepções que se tem do conjunto da economia (por exemplo, na teoria anarco-sindicalista da revolução). Porque são impossíveis, sem um conhecimento real da interação entre a política e a economia, a luta contra o conjunto do sistema econômico e, além disso, uma reorganização radical do conjunto da economia.
O pensamento utopista está longe de ter sido superado, mesmo nesse nível, que é o mais próximo dos interesses vitais imediatos do proletariado e onde a crise atual permite decifrar a ação correta a partir da marcha da história. Vê-se bem a influência exercida ainda hoje pelas teorias tão completamente utopistas como a de Ballod ou do socialismo da Guilda. Essa estrutura se evidencia necessariamente de uma maneira ainda mais gritante em todos os domínios onde a evolução social ainda não progrediu o bastante para produzir, a partir dela própria, a possibilidade objetiva de uma visão da totalidade. É ali na atitude teórica e prática do proletariado frente a frente com as questões puramente ideológicas, com as questões de cultura, onde se pode vê-lo mais claramente. Essas questões ocupam, ainda hoje, uma posição quase isolada na consciência do proletariado; e sua ligação orgânica, tanto com os interesses vitais imediatos como com a totalidade da sociedade, não penetrou ainda na consciência. Eis por que os resultados nesse domínio raramente se elevam acima de uma autocrítica do capitalismo, realizada pelo proletariado. Nesse domínio, o que há de positivo, prática ou teoricamente, tem um caráter quase inteiramente utópico.
De uma parte, pois, essas gradações são necessidades históricas objetivas, diferenças na possibilidade objetiva da passagem à consciência (da ligação entre a política e a economia em comparação com o "isolamento" das questões culturais); mas por outro lado marcam, ali onde a possibilidade objetiva da consciência está presente, os graus na distância entre a consciência de classe psicológica e o conhecimento adequado do conjunto da situação. Contudo, essas gradações não podem referir-se diretamente as causas econômicas e sociais. A teoria objetiva da consciência de classe é a teoria de sua possibilidade objetiva. Infelizmente, uma questão que não tem sido praticamente abordada, e que poderia levar a importantes resultados, é a de saber até onde vão, no interior do proletariado, a estratificação dos problemas e a dos interesses econômicos. Todavia, no interior de uma tipologia, por mais aprofundada que seja, como no interior dos problemas da luta de classes, surge sempre a questão das estratificações no proletariado: como pode realizar-se efetivamente a possibilidade objetiva da consciência de classe? Se outrora essa questão somente se referia a indivíduos extraordinários (que se pense na previsão feita por Marx, e de modo algum utopista, dos problemas da ditadura), hoje em dia é uma questão real e atual para toda a classe: é a questão da transformação interna do proletariado, de seu movimento no sentido de ascender ao nível objetivo da sua própria missão histórica, crise ideológica cuja solução tornará possível, enfim, a solução prática da crise econômica mundial.
Seria catastrófico manter ilusões sobre a distância que o proletariado deve percorrer no caminho ideológico. Contudo, seria também catastrófico não ver as forças que agem no sentido de uma superação ideológica do capitalismo por parte do proletariado. O simples fato de que cada revolução proletária tenha produzido, por exemplo - e isso de uma maneira incessantemente mais intensa e mais consciente - o órgão de luta do conjunto do proletariado, que se converte em órgão estatal, o conselho operário, é um sinal de que a consciência de classe do proletariado está a ponto de superar vitoriosamente a mentalidade burguesa de sua camada dirigente.
O conselho operário revolucionário, que não se deve jamais confundir com sua caricatura oportunista, é uma das formas pelas quais a consciência da classe proletária lutou incansavelmente desde o seu nascedouro. Sua existência, seu contínuo desenvolvimento, mostram que o proletariado já está no limiar de sua própria consciência e, por conseguinte, no limiar da vitória. Porque o conselho operário é a superação econômica e política da reificação capitalista. Do mesmo modo que, na situação posterior à ditadura, deve superar a divisão burguesa entre legislação, administração e justiça, do mesmo modo está chamado, na luta pelo poder, a reunir em uma verdadeira unidade, de uma parte o proletariado espacial e temporalmente disperso, e de outra a economia e a política, e desse modo ajudar a reconciliar a dualidade entre o interesse imediato e o objetivo final.
Jamais se deve ignorar a distância que separa o nível de consciência, mesmo dos operários mais revolucionários, da verdadeira consciência de classe do proletariado. Esse estado de coisas também é explicável a partir da doutrina marxista da luta de classes e da consciência de classe. O proletariado só se realiza ao suprimir-se, ao levar até o fim sua luta de classes e ao instaurar a sociedade sem classes. A luta para o estabelecimento dessa sociedade, de que a ditadura do proletariado é uma simples fase, não é apenas uma luta contra o inimigo exterior, a burguesia, mas simultaneamente uma luta do proletariado contra si mesmo: contra os efeitos devastadores e degradantes do sistema capitalista na sua consciência de classe. O proletariado só obterá a verdadeira vitória quando haja superado, em si mesmo, esses efeitos. A separação dos diferentes setores que deveriam estar reunidos, os diferentes níveis de consciência alcançados atualmente pelo proletariado nos diferentes domínios permitem medir exatamente o ponto já atingido e o que resta a conquistar. O proletariado não deve recuar diante de nenhuma autocrítica, porque somente a verdade pode ser a portadora de sua vitória, e a autocrítica o seu elemento vital.
Georg Lukács
Março de 1920
Março de 1920
Notas:
[36] Misére de Ia philosophie. CI. também as cartas e extratos de cartas a F. A. Sorge e outros.(voltar ao texto)
[37] Nachlass, II, 54. (voltar ao texto)
[38] Prefácio à Misére de Ia philosophie. (voltar ao texto)
[39] Marx. Contribution à la critique de réconomie politique. (voltar ao texto)
[40] Traduzimos a palavra alemã "Zwiespalt' ora por dualidade, ora por cisão. (Nota dos tradutores franceses.) (voltar ao texto)
[40a] Salaire prix et profit. (voltar ao texto)
[41] Mis ére de Ia philosophie, éd. Costes, p. 129. (voltar ao texto)
[42] Misére de la philosophie. (voltar ao texto)
[43] Carta de Marx a Ruge (setembro de 1843). Em T. V. das Oeuvr. philos.. ed. Costes, p. 210. (voltar ao texto)
[44] CL o ensaio do autor "Quest que c'est le marxisme orthodoxe?" (voltar ao texto)
[45] Misére de la philosophie. éd. Gostes, p. 149. CL também o Manifesto Comunista. 111,3. (voltar ao texto)
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LUKÁCS: CONSCIÊNCIA DE CLASSE
quarta-feira, 11 de julho de 2018
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