SOBRE QUATRO FÓRMULAS POÉTICAS QUE PODERIAM RESUMIR
A FILOSOFIA DE KANT
Gilles Deleuze
I
A primeira é a grande fórmula de Hamlet, «The time is out of joint!». O tempo out of joint é o mesmo que a porta fora de seus gonzos. Os gonzos é o eixo em torno do qual a porta gira. Cardo, em latim, indica a subordinação do tempo aos pontos precisamente cardinais por onde passam os movimentos periódicos que ele mede. Restando o tempo em seus gonzos, ele é subordinado ao movimento: ele é a medida do movimento, intervalo ou número. Assim é o tempo para a filosofia antiga. Mas o tempo fora de seus gonzos significa a reversão da relação movimento-tempo. É o movimento, agora, que se subordina ao tempo. Tudo muda, mesmo o movimento. Muda-se de labirinto. O labirinto não é mais um círculo, ou uma espiral que traduziria suas complicações, mas um fio, uma linha reta, tanto mais misteriosa quanto mais simples e inexorável: como diz Borges, «o labirinto que se compõe de uma única linha reta e que é indivisível e incessante». O tempo não mais se relaciona ao movimento que ele mede, mas o movimento se relaciona ao tempo que o condiciona: é a primeira grande reversão kantiana na Crítica da Razão Pura.
O tempo não se definirá mais pela sua sucessão, pois a sucessão concerne somente às coisas e movimentos que estão no tempo. Se o próprio tempo fosse sucessão seria necessário que ele sucedesse num outro tempo ao infinito. As coisas se sucedem em tempos diversos, assim como são simultâneas ao mesmo tempo, e permanecem num tempo qualquer. Não é mais uma questão de definir o tempo pela sucessão, nem o espaço pela simultaneidade, nem a permanência pela eternidade. Permanência, sucessão e simultaneidade são modos e relações de tempo. Por conseqüência, do mesmo modo que não podemos mais definir o tempo pela sucessão, não podemos definir o espaço pela coexistência. Será necessário que cada um, espaço e tempo, encontrem determinações inteiramente novas. Tudo o que se move e muda está no tempo, mas o tempo, ele mesmo, não muda, não se move, e muito menos é eterno. Ele é a forma de tudo o que muda e se move, mas é uma forma imutável e imóvel. Não é uma forma eterna, mas justamente a forma do que não é eterno, a forma imutável da mudança e do movimento. Uma tal forma autônoma parece designar um profundo mistério: ela reclama uma nova definição do tempo, que Kant deve descobrir ou criar.
II
«Je est un autre» (Eu é um outro). Essa fórmula de Rimbaud seria como a expressão de um outro aspecto da revolução kantiana, ainda na Crítica da Razão Pura. E o aspecto mais difícil. Com efeito Kant explica que o «moi» ele mesmo está no tempo, e por isso não pára de se transformar: é um «moi» passivo, ou antes, receptivo, que experimenta mudanças no tempo. Mas por outro lado o «Je» é um ato que não cessa de operar uma síntese do tempo e do que se passa no tempo, distribuindo a cada instante o presente, o passado e o futuro. O «Je» e o «moi» são pois separados pela linha do tempo que os relaciona um ao outro, mas sob a condição. de uma diferença fundamental. De tal modo que minha existência não pode jamais ser determinada como aquela de um ser ativo e espontâneo. Não se pode dizer com Descartes: «Eu penso, logo, eu sou, eu sou uma coisa que pensa». Se é verdade que o Eu (Je) penso é uma determinação, ele implica a esse título uma existência indeterminada (Eu sou). Mas nada nos diz ainda sob que forma essa existência é determinável pelo «Eu penso»: ela somente é determinável no tempo, sob a forma do tempo, logo como a existência de um eu («moi» ) fenomenal, receptivo e mutante. Eu não posso, pois, me constituir como um sujeito único e ativo, mas como um «moi» passivo que se representa somente na atividade de seu próprio pensamento, ou seja, o «Je» como um Outro que o afeta. Eu sou separado de mim mesmo pela forma do tempo, e portanto eu sou um, porque o «Je» afeta necessariamente essa forma operando sua síntese, e porque o «moi» é necessariamente afetado como conteúdo nessa forma. A forma do determinável faz com que o «moi» determinado se represente na determinação como um Outro. É como um duplo desvio do «Je» e do «moi» no tempo que os relaciona um ao outro, os dobra um no outro. É o fio do tempo.
De uma certa maneira, Kant vai mais longe que Rimbaud. Pois a fórmula de Rimbaud, «Je est un autre», remete bizarramente a uma maneira de pensar aristotélica: «tanto pior para a madeira que se reconheça violino!... se o cobre acorda clarim, não é culpa sua..». Para Rimbaud, trata-se da forma determinante de uma coisa no que ela se distingue da matéria onde ela se encarna: um molde como em Aristóteles. Para Kant, trata-se da forma do tempo em geral, que distingue o ato do «Je» e o «moi» ao qual esse ato se atribui: uma modulação infinita, não mais um molde. Assim o tempo passa ao interior do sujeito para distinguir nele o «moi» e o «Je». É a forma sob a qual o «Je» afeta o «moi», a maneira pela qual o espírito afeta a si mesmo. É nesse sentido que o tempo como forma imutável, que não podia mais ser definido pela simples sucessão, aparece como a forma de interioridade (sentido íntimo ), enquanto o espaço, que não podia mais ser definido pela coexistência, aparece por seu lado como forma de exterioridade. «Forma de interioridade» não significa somente que o tempo nos é interior, mas que nossa interioridade não cessa de nos cindir a nós mesmos, de nos desdobrar: um desdobramento que não vai até o extremo, já que o tempo não tem fim. Uma vertigem, uma oscilação que constitui o tempo.
III
O terceiro aspecto da revolução kantiana concerne à Crítica da Razão Prática e poderia aparecer nas fórmulas próximas de Kafka.
o «Bem é o que diz a lei...» A lei é já uma expressão bizarra, do ponto de vista da filosofia que não conhecia senão as leis. Vêmo-lo bem,
na antiguidade, notadamente em Platão, no «Político». Se os homens soubessem o que é o Bem e soubessem a ele se conformar, não haveria necessidade de leis. As leis ou a lei são somente um «segundo recurso», um representante do Bem num mundo desertado pelos deuses. Quando a verdadeira política está ausente, o Bem deixa diretrizes gerais de acordo com as quais os homens devem se conduzir. As leis são, então, como que a imitação do Bem que lhes serve de princípio mais elevado. Elas decorrem do Bem sob certas condições. Quando Kant fala da lei, trata-se, ao contrário, da mais alta instância. Kant opera a reversão da lei e do Bem, tão importante quanto a reversão- da relação movimento-tempo; é o Bem que depende da lei, e não o inverso. Do mesmo modo que os objetos do conhecimento giram em torno do sujeito (Je), o Bem gira em torno da lei subjetiva. Mas que quer dizer aqui «subjetivo»? A lei não pode ter
outro conteúdo que ela mesma, uma:vez que todo conteúdo da lei a reconduziria a um Bem do qual ele seria a imitação. Noutros termos a lei é pura forma, e não tem objeto, nem sensível nem inteligível. Ela não nos diz o que é preciso fazer, mas a que regra (subjetiva) devemos nos conformar, qualquer que seja nossa ação. Será moral toda ação cuja máxima possa ser pensada, sem contradição, como universal, e cujo móbil não terá outro objeto senão essa máxima. Por exemplo, a mentira não pode ser pensada sem contradição, como formalmente universal, já que ela implica ao menos pessoas que nela crêem, e que não mentem ao crerem nela. A lei moral se define então como pura forma de universalidade. A lei não nos diz qual objeto a vontade deve perseguir para ser boa, mas qual forma ela deve
tomar para ser moral. A lei como forma vazia, na Crítica da Razão Prática, corresponde ao tempo como forma pura na Crítica da Razão Pura. A lei não nos diz o que é preciso, ela somente nos diz: é preciso! desobrigada de deduzir o Bem, ou seja, os objetos desse imperativo puro. Mas é o Bem que decorre da lei, não o inverso. Como na Colônia Penal de Kafka, é uma determinação puramente prática e não teórica. A lei não é conhecida porque não há nada nela a «conhece!». Ela só é conhecida por sua ação, e só age por sua sentença e sua execução. «Ela necessita», dirá Kafka, «do segredo sobre seu conteúdo». Ela não se distingue da sentença, e a sentença não se distingue da aplicação. Nós só a conhecemos pela sua marca em nosso coração e na nossa carne: culpados, necessariamente culpados. A culpabilidade é como o fio moral que desdobra o fio do tempo.
IV
«Um desregramento de todos os sentidos», dizia Rimbaud, ou antes um exercício desregrado de todas as faculdades. Esta seria a quarta fórmula de um Kant profundamente romântico, na Crítica do Juízo. É que nas duas outras Críticas as diversas faculdades subjetivas entravam em relação umas com as outras, mas essas relações estariam rigorosamente regradas, na medida em que havia sempre uma faculdade de terminante ou dominante que impunha sua regra às outras. Numerosas eram as faculdades: o sentido externo, o sentido íntimo, a imaginação, o entendimento, a razão, cada uma bem definida. Mas na Crítica da Razão Pura era o entendimento que dominava, porque determinava o sentido íntimo por intermédio de uma síntese da imaginação, e mesmo a razão se submetia ao papel que lhe designava o entendimento. Na Crítica da Razão Prática era a razão que dominava, porque é ela que constitui a pura forma de universalidade da lei, as outras faculdades seguindo como podiam (o entendimento aplicava a lei, a imaginação recebia a sentença, o sentido íntimo experimentava as conseqüências ou a sanção). Mas eis que Kant, surgido numa época em que os grandes autores se renovavam raramente, se choca com um problema que vai arrastá-lo para uma extraordinária empresa: se as faculdades podem entrar assim em relações variáveis, mas regradas por uma ou outra dentre elas, é necessário que, todas elas juntas, sejam capazes de relações livres e sem regras, onde cada uma vá ao extremo de si mesma, e entretanto mostre assim sua possibilidade de uma harmonia qualquer com as outras. Será a Crítica do Juízo como fundação do romantismo.
Não é mais a estética da Crítica da Razão Pura, que considerava o sensível como qualidade relacionável a um objeto no espaço e
no tempo, não é uma lógica do sensível, nem mesmo um novo logos que seria o tempo. É uma estética do Belo e do Sublime, onde o sensível vale para si mesmo e se revela num páthos, para além de toda lógica, que apreenderá o tempo em seu jorro, até na origem de seu fio e de sua vertigem. Não é mais o Afeto da Crítica da Razão Pura, que reponderia o «moi» ao «Je» numa relação ainda regrada seguindo a ordem do tempo, é um páthos que os deixa evoluir livremente para formar estranhas combinações como fontes do tempo, «formas arbitrárias de intuições possíveis:..»
Com efeito, o que está em questão na Crítica do Juízo é como certos fenômenos que vão definir o Belo dão ao sentido íntimo
do tempo uma dimensão suplementar autônoma, à imaginação, um poder de reflexão livre, ao entendimento uma potência conceitual infinita. As diversas faculdades entram num acordo que não é mais determinado por nenhuma, tanto mais profundo quanto não há mais regra, e que prova um acordo espontâneo do «moi» e do «Je» sob condições de uma natureza bela. O sublime vai ainda mais longe nesse sentido: ele faz jogar as diversas faculdades de tal maneira que elas se opõem uma à outra como lutadores, que uma lance a outra a seu
máximo ou ao seu limite, mas que a outra reaja levando a primeira a uma inspiração que ela não teria alcançado sozinha. Uma leva a outra ao limite, mas cada qual faz com que uma ultrapasse o limite da outra. É uma luta terrível entre a imaginação e a razão, mas também o entendimento, o sentido íntimo, luta cujos episódios serão as duas formas do Sublime, depois o Gênio. Tempestade no interior de um abismo aberto no sujeito. As faculdades se afrontam, cada uma ,a seu próprio limite, e encontram seu acordo numa discordância fundamental: um acordo discordante é a grande descoberta da Crítica do Juízo, a última reversão kantiana. A separação que reúne foi o primeiro tema de Kant, na Crítica da Razão Pura. Mas ele descobre no fim a discordância que faz acordo. Um exercício desregrado de todas as faculdades, que vai definir a filosofia futura, como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos deveria definir a poesia do futuro. Uma música nova como discordância, e como acordo discordante, a fonte do tempo.
É por isso que nós propusemos quatro fórmulas, evidentemente arbitrárias em relação ao que Kant nos deixou para o presente e para o futuro. O texto admirável de Quincey, Os Últimos Dias de Emmanuel Kant, dizia tudo, mas somente o inverso das coisas que encontram desenvolvimento nas quatro fórmulas poéticas do kantismo. Um aspecto shakespeariano de Kant, uma espécie de rei Lear?
* Sur quatre formules poetiques qui pourraient résumer la philosophie kantienne. Philosophie nº 9, 1986, Ed. Minuit.
Tradução do francês por Andréa Estevão.
GILLES
DELEUZE
MICHEL FOUCAULT: AS FORMAÇÕES HISTÓRICAS
GILLES
DELEUZE ministrou dois cursos dedicados
ao pensamento de Michel Foucault na Universidade de Paris. O primeiro entre os
dias 22 de outubro e 17 de dezembro de 1985 e o segundo de 7 de janeiro a 27 de
maio de 1986. Sua voz foi gravada. As transcrições das fitas, realizadas pela
Association Siècle Deleuzien, encontram-se disponíveis no portal da
Universidade Paris 8. O texto a seguir é a tradução da transcrição da primeira
das 8 aulas que compõem o curso de 1985, chamado As formações
históricas. Esta publicação foi idealizada pela n-1 edições em
conjunto com a editora politeia.
AULA 1: 22 DE OUTUBRO DE 1985
Em que
consiste a História da loucura? Trata-se de duas coisas. Trata-se
para Foucault de saber como é formada uma modalidade. Mas uma modalidade de
quê? Digamos, por ora – correndo o risco de termos surpresas –, uma modalidade
de enclausuramento dos loucos. Onde? Nisso que se chama, na época, o hospital
geral ou as casas de correção. E esse enclausuramento dos
loucos, ou essa constituição de um hospital geral que inclui dentre seus
internos os loucos, aparece no século XVII, ou seja, na Idade Clássica. E,
paralelamente, em que pé está a medicina? Qual medicina? A medicina, eu posso
dizer a psiquiatria? Evidente que não, a psiquiatria não existe, ela não existe
como disciplina. E, se nos falarem de doença dos nervos, doença dos humores ou
doença da cabeça, não há nenhuma razão para dizer: é a prefiguração da
psiquiatria. É um ramo da medicina no século XVII. Ademais, o que Foucault
estuda é como evoluíram o hospital geral e o asilo, e também a medicina, de tal
maneira que entre o fim do século XVIII e o início do XIX se produz isso que se
apresenta, na maior parte das vezes, como uma espécie de liberação dos loucos,
ou seja, remover as correntes. E do que se trata nesta liberação aparente? Eis
aqui, em suma, muito superficialmente, os grandes temas de História da
loucura.[1]
Em 1963
Foucault publica um livro sobre um poeta do início do século XX: Raymond
Roussel[2].
Esta obra, aparentemente insólita, parece se ancorar ou envolver o que o
próprio Roussel denomina um “procedimento de linguagem”, que ele procura
explicar em um livro intitulado Como escrevi alguns dos meus livros[3], onde dá o seguinte exemplo: suponhamos
duas proposições, “as bordas do velho bilhar” [les bandes du vieux billiard]
e “os bandos do velho saqueador” [les bandes du vieux pilliard]. Entre
as duas proposições, toda uma história insólita vai se desenrolar. E, no curso
de sua análise, percebe-se logo que Foucault atribui uma importância essencial
a um tema que é muito frequente em Roussel, aquele do duplo [double] e
da dobradura [doublure].
Pois bem.
Eu caracterizo assim, mesmo que superficialmente, esses livros de Foucault,
para que aqueles que não os leram possam escolher um. Pois eu os aconselho
vivamente a escolher um, se não leram nenhum. Aqueles que estariam interessados
neste aspecto, na análise da poesia de Roussel e no tema do duplo, por exemplo,
poderiam considerar um prefácio ulterior de Foucault a um outro inventor de
linguagem insólita. Trata-se agora de um prefácio à reedição de um livro
estranho de Jean Pierre Brisset, autor também do início do século XX que
inventa uma linguagem e uma interpretação extremamente bizarra da linguagem.
Livro intitulado Gramática lógica[4],
publicado pela Editon Thou. No prefácio, Foucault retorna a Roussel e procura
analisar o que ele apresenta como “procedimentos de linguagem”. Ele considera
três procedimentos de linguagem na fronteira entre uma literatura insólita e o
que Foucault chama de uma “incerta loucura”, ou seja: ele é ou não louco? Os
três procedimentos são: o procedimento de Roussel, de quem ele retoma a
análise, o procedimento de Brisset, e o procedimento de um norte-americano
extremamente atual, um americano contemporâneo que se chama [Louis] Wolfson e
que forjara um tratamento especial da linguagem.
No mesmo
ano, Foucault publica O Nascimento da clínica[5],
pela editora Presses universitaires de France (PUF). O
Nascimento da clínica toma em consideração duas coisas: como as
doenças se agrupam em sintomas e, ao mesmo tempo, a quais enunciados médicos
estes sintomas remetem? Duas questões consideradas ao longo de dois períodos: o
século XVIII e o início do século XIX, o período do nascimento da clínica. Vocês
veem como o tema dos espaços [lieux] está constantemente presente na
obra de Foucault: o asilo, o hospital geral, a clínica, e, em seguida, [o
laboratório de] anatomia patológica.
Em 1966,
Gallimard publica As Palavras e as coisas[6].
Consiste em que As Palavras e as coisas? Trata-se propriamente de
palavras e de coisas? Talvez. Veremos. Trata-se sobretudo de uma análise
potente da representação na Idade Clássica, isto é, nos séculos XVII e XVIII.
Em seguida, como, no fim do século XVIII e início do XIX, a representação [présentation]
é submetida a uma crítica de onde se liberarão potências extrarepresentativas
que serão a vida, o trabalho e a linguagem.
Em
1969, A arqueologia do saber[7].
É a grande teoria dos enunciados de Foucault, uma vez que ele dá à palavra
“enunciado” [énoncé] um sentido e um estatuto que ninguém dera
anteriormente.
À Arqueologia
do saber se sucede A Ordem do discurso[8],
de 1971, também pela Gallimard. Ainda em 1971 é publicado um artigo sobre
Nietzsche – com o qual iremos nos ocupar tanto quanto – sob o título
“Nietzsche, a genealogia e a história”[9],
que apareceu pela PUF em uma coletânea em homenagem a Jean Hyppolite.
Em 1973
uma pequena editora, Fata Morgana, publica um texto muito curioso de Foucault,
que vocês poderiam dispor junto [aos artigos sobre] Roussel e Brisset, e que é,
desta vez, um comentário sobre um pintor, Magritte. O texto tem o título Isto
não é um cachimbo[10],
que era o nome de um quadro de Magritte. O que há de curioso é que o quadro de
Magritte não era outra coisa senão a representação de um cachimbo, muito bem
desenhado, com uma frase escrita, inserida abaixo, que dizia: isto não
é um cachimbo – que era o título do quadro. Como pode um quadro que
representa claramente um puro e simples cachimbo intitular-se “Isto não é um
cachimbo”? Bem, isto interessa bastante Foucault. Por quê? Pois, sem dúvida,
vocês podem pressentir que há o problema de uma relação entre um desenho e um
enunciado. Que relação existe entre um desenho e um enunciado? É preciso que a
relação seja complexa, já que o enunciado que designa o cachimbo desenhado se
transforma imediatamente em “isto não é” e não em “isto é”. O que se passa
nessa transformação?
Em
1975, Vigiar e punir[11].
Aqui ainda se trata de um espaço [lieu]: a prisão – e não mais o asilo.
Com efeito, é bastante notável que, com 14 anos de distância, Vigiar e
punir seja construído de uma maneira comparável à História da
loucura. Em História da loucura, tratava-se de um espaço, o
asilo ou o hospital geral, e de um conjunto de enunciados médicos.
Em Vigiar e punir, trata-se de um espaço: a prisão. Como nasce a
prisão? Como se forma a prisão? Como se impõe um regime que é o regime da
prisão? E, ao mesmo tempo, estudo de um regime de enunciados, os enunciados de
direito penal no século XVIII.
Em 1976
aparece o primeiro tomo do projeto no qual Foucault se lança a partir de
então: História da sexualidade, que Foucault concebe de uma certa
maneira em 1976, quando a publica sob o título: A vontade de saber[12]. Pode-se notar que, na sequência – uma
vez que se vocês observarem as datas, o ritmo de Foucault é bastante regular –,
há um grande silêncio, porque o tomo II da História da
sexualidade aparecerá somente em 1984. Foucault nunca escondeu, ele o
diz formalmente, que fora levado a modificar seu primeiro plano, ele encontrara
alguma coisa que provocaria uma modificação total. Que se passou nestes anos de
silêncio? O que ele encontrara? Como ele modificou seu projeto? Em todo caso,
em 1984 aparecem os dois tomos seguintes, O uso dos prazeres, onde
Foucault explica a modificação do projeto da História da
sexualidade e por que ele foi levado a esta modificação, e o tomo
III, O cuidado de si[13]. Bem,
teremos que lidar com todo esse material.
É preciso
dizer, porque teremos que refletir sobre esse ponto, que Foucault destruiu
manuscritos já em elevado nível de elaboração. Particularmente, havia um livro
sobre Manet. Isso nos importa porque Isto não é um cachimbo é
um livro sobre Magritte que contém algumas páginas extremamente interessantes
sobre Paul Klee. As Palavras e as coisas começa com uma
descrição célebre – que está entre as páginas mais conhecidas de Foucault – que
é a descrição de um quadro de Vélasquez, As Meninas[14]. Assim, que tenha existido ou que ele
fizera um manuscrito já bastante extenso sobre Manet deve nos interessar porque
talvez fôssemos levados a perguntar: o que haveria neste manuscrito para que,
ao fim de sua vida, Foucault o destruísse? Aliás, acho que o testamento é
categórico e exclui toda publicação de obra póstuma. O que, para nós, tem
consequências, pois o momento onde ele interrompeu a publicação da História
da sexualidade não impedia que houvesse um quarto tomo sob o
título Les aveux de la chair[15], que tinha em vista os Pais da Igreja e
o período da formação do cristianismo do ponto de vista da formação da
sexualidade. Portanto, um momento essencial e fundamental. Mas por hora parece
que esse livro não deverá ser publicado, se é verdade que no testamento consta
tal proibição.
Pois bem,
eu disse tudo isso unicamente para que vocês soubessem em qual direção se
orientar, no caso de vocês não terem lido Foucault. Eu gostaria que alguns
dentre vocês tomassem Vigiar e punir, pois se vocês não conhecem
nada ou muito pouco de Foucault, é melhor ler um livro do início ao fim do que
saltar de um livro a outro.
Pois
então, eu gostaria muito de marcar os recortes. Gostaria hoje de começar por
uma espécie de tateamento. Eu lhes faço um pedido que consiste em depositar
confiança no autor que estudam. Mas o que significa “depositar confiança em um
autor”? Isso quer dizer a mesma coisa que tatear, que proceder por uma espécie
de tateamento. Antes de compreender os problemas que alguém coloca é preciso
ruminar bastante, é preciso agrupar, reagrupar, as noções que estão sendo
inventadas. É preciso a todo custo calar a própria voz da objeção. As “vozes da
objeção”, são elas que num instante diriam: “Oh, mas há algo errado aqui”.
Depositar confiança no autor é dizer a si mesmo: não nos antecipemos, é preciso
deixar falar. É preciso deixá-lo falar, mas antes de saber o sentido que ele dá
às palavras, é preciso fazer uma espécie de análise de frequência. Estar
sensível à frequência de palavras, ao seu estilo, às suas obsessões. Agora,
para que fique claro, eu gostaria de fazer algumas divisões porque o pensamento
de Foucault não é simples. Creio que seja um pensamento que inventa
coordenadas, um pensamento que se desenvolve segundo eixos.
O primeiro
desses eixos – parece-me, o primeiro que Foucault desenvolve em sua obra –, ele
o chamará a “arqueologia”. A arqueologia é a disciplina dos arquivos.
Precisamente, o que Foucault chama de arquivo? Ele procurará dizê-lo em A
Arqueologia do saber. Quase todo o primeiro período de Foucault – eu diria,
de História da loucura até Vigiar e punir –
gira em torno de quê? Esse “em torno de quê” que gira talvez permitisse definir
o arquivo. E não há dúvida de que o arquivo tem alguma coisa a ver com a
história, o arquivo tem por objeto a formação histórica, os arquivos remetem às
formações históricas (isso não nos faz avançar, à primeira vista giramos em
torno das palavras). Ora, o arquivo remete às formações históricas, o arquivo é
sempre o arquivo de uma formação.
O que é
uma formação histórica? Ou, o que é um arquivo? Foucault nos diz em O
uso dos prazeres, livro bem tardio: “meus livros foram estudos de história,
mas não um trabalho de historiador”. Todo mundo diz que Foucault tem uma
relação muito estreita com os adeptos disso que se chamou a “nova história”, em
suma, os alunos de Braudel, a Escola dos Annales, mas [falar em] uma relação
pode ser muito complexo. Ele nos diz formalmente: eu não sou historiador, sou e
permaneço filósofo. No entanto, toda uma parte de sua obra examina as formações
históricas. Ele repete: certamente, não são estudos de história, não é um
trabalho de historiador. O que ele quer dizer? Ele precisa um pouco quando diz,
em O uso dos prazeres: não esperem de mim uma história dos
comportamentos nem das mentalidades. Aqui, a alusão é clara. É verdade que a
Escola dos Annales, ao menos em parte, nos propõe uma história dos
comportamentos e das mentalidades. Exemplo: o que é uma história dos
comportamentos? Novamente giramos em torno de termos muito amplos e sumários. [Mas]
eu penso em um livro de história bastante interessante: Comment on
meurt en Anjou au XVIIème siècle, au XVIIIème siècle[16]. Como
se morre em Anjou? Ótima questão: isso é uma história de comportamento, eu
posso fazer a história de um comportamento, comportamento da morte. Poderia ser
também: como se nasce, como se nasce na Picardia em tal período histórico.
Vocês veem bem como isso mobiliza arquivos. Foucault nos diz: não faço uma
história dos comportamentos (pode-se conceber uma história do instinto
maternal, coisa que já foi feita). Enfim, o domínio de uma história dos
comportamentos é infinito. Como se come? Como se morre? Como se casa? Como se
nasce? Como se educa as crianças? Como se pare? Etc. E isso pode ser tanto uma
história dos comportamentos quanto uma história das mentalidades. E eu creio
que muita gente tomou a obra de Foucault em princípio deste maneira. Motivo
pelo qual Foucault [talvez] tenha sido tão associado à nova história.
Mas Foucault nos diz formalmente: não, eu não faço nada parecido com isso.
Isso, de fato, não quer dizer que ele não considere interessante, ele [só] diz
que esse não é o seu problema. E por que esse não é o seu problema? O que então
o interessa? O que o interessa não são os comportamentos, mas o quê? O “ver”.
As histórias de Foucault giram sempre em torno do “ver”. E vocês me dirão: mas,
“ver”, que é isso? Não seria o caso de incluí-lo [na ordem dos] comportamentos?
[Afinal] há comportamentos visuais. Não para Foucault. “Ver”, para ele, é de
ordem diferente do comportamento. Novamente, o que o interessa? Ora, “falar” e
“falar”, e [alguém] diria: Falar traduz uma mentalidade? Para Foucault, não, na
verdade, é o inverso. “Ver” – e é preciso de imediato se habituar a essa ideia,
mas não vai ser fácil – não é um comportamento dentre os outros, é a condição
de todo comportamento em uma época. “Falar” não é uma expressão da mentalidade,
é uma condição da mentalidade em uma época. Em outras palavras, falando-nos de
“ver” e “falar” Foucault pretende exceder uma história dos comportamentos e das
mentalidades para se elevar às condições dos comportamentos históricos e das
mentalidades históricas. O que pode justificar tal ambição? Foucault não aborda
“ver” e “falar” como variáveis de comportamentos ou de mentalidades, mas como
condições. Há uma pesquisa das condições da formação histórica, mas quais são
essas condições da formação histórica? O que se “diz” e o que se “vê” em uma
época? Cada época se definiria pelo momento – isso irá mudar à medida que
avançarmos –, mas empregamos palavras muito inexatas por enquanto.
É como se
cada época se definisse, antes de tudo, por aquilo que ela vê e faz ver, por
aquilo que ela diz. Bem, [mesma coisa] é dizer que “ver, fazer ver e dizer” não
estão no mesmo nível que “comportar-se de um certo modo”, ou “ter tal ou qual
ideia”. Um regime de dizer é a condição de todas as ideias de uma época. Um
regime de ver é uma condição de tudo o que faz uma época.
Pois bem,
retomo aqui meu tema. Obviamente, antes mesmo que se tenha compreendido, dez ou
doze objeções nos vêm à mente. Se vocês me acompanharam, é bastante insólita
essa atitude de erigir o ver e o falar como condição. Busquemos então
confirmações, e por isso mesmo eu tento fazer um quadro. Eu escrevo “ver” de um
lado do meu quadro, e “falar” do outro lado. E eu tento preencher meu quadro
para ter certeza de que, antes mesmo de começar, eu não traí Foucault. E eu
desfaleço imediatamente – eu não sigo a ordem cronológica – eu caio sobre o
livro intitulado As Palavras e as coisas. Bem, vocês me diriam:
mas, as coisas, não são só as coisas visíveis? Paciência. “As palavras e as
coisas”, que curioso dualismo. Ora, não é só a ordem do visível, mas, enfim, as
coisas são o visível, as palavras são o dizível. Ver, falar. Não é suficiente,
evidentemente. Uma objeção a respeito: Foucault será o primeiro a denunciar o
título. Ele dirá: não compreenderam efetivamente o que eu quis dizer por “As
palavras e as coisas”, pois [o título] não quer dizer “as palavras”, não quer
dizer “as coisas”. Deve-se entender ironicamente o título. Entretanto, à
primeira vista, a ironia escapa. Por que “as palavras e as coisas” é irônico?
Um passo
adiante: a aula de coisas [leçon de choses][17].
Vocês sabem como é na escola primária, certo? Num momento específico, na escola
primária, havia duas disciplinas fundamentais: a aula de coisas e a aula de
palavras (aula de gramática), eram as duas faces da escola primária. Tinha a
hora de estudar as salinas, e nos mostravam uma salina, ou seja, uma imagem de
salina, uma figura de salina, a salina visível, o guarda-chuva visível, ou –
digamos – o cachimbo visível. O professor dizia: isto é um cachimbo, isto é uma
salina. Pois bem, depois a aula de gramática, e dessa vez era a ordem do dizer
e não mais a ordem do desenho. A ordem do dizer é diferente da ordem do
desenho. E se, naquele momento, dizer é diferente de ver, o dizer “isso é um
cachimbo” se enuncia necessariamente como “isso não é um cachimbo”, ou seja: o
dizer não é um ver.
A aula de
coisas e a aula de gramática remetem desta vez ao pequeno livro de Foucault
comentando Magritte do qual eu falava. O quadro de Magritte, o desenho de um
cachimbo, é a aula de coisas. O título do quadro é “Isto não é um cachimbo”.
Forçosamente: “isto não é um cachimbo” se torna “isto não é um cachimbo” na
medida em que dizer não é ver. É claro, se o que eu vejo é um cachimbo, o que
eu digo, necessariamente, não é um cachimbo. Pois bem, veremos o que isso quer
dizer.
Coisas e
palavras (primeiro par) nos deslocaram para: aula de coisas, aula de gramática
(segundo par). Ou, se preferirem, o desenho, o texto, como Foucault nos dirá em
“Isto não é um cachimbo”. O que fornece meu terceiro par: desenho-texto.
Terceiro
tema, que se torna muito constante em um livro específico de Foucault, O Nascimento
da clínica: o visível e o enunciável, par de noções que O
Nascimento da clínica invoca constantemente. Sob qual forma e de que
maneira uma doença é visível em tal época? O que torna vísivel a doença? O
sintoma, é o que faz ver uma doença. Como se define a clínica quando ela se
forma no século XVIII? A clínica é antes de tudo uma nova maneira de fazer ver
a doença. Mas, ao mesmo tempo, a doença não é só um conjunto de sintomas, ou
seja, o “visível”, ela é também o “enunciável”. Ela é uma combinação de signos,
e tal como o sintoma é visível, também o signo é legível. Mas o visível e o legível
não são a mesma coisa. O visível e o enunciável – no nível das doenças, tanto
na formação clínica quanto na formação anatomopatológica – farão o objeto
de O Nascimento da clínica. Um passo a mais? Talvez não pudessemos
dizer: voilà, o que interessa fundamentalmente a Foucault segundo o
primeiro eixo, o que nos permitiria definir a arqueologia, é o terceiro par:
“visível e enunciável”. Isso me faz introduzir um passo a mais… [ele escreve no
quadro]. Quarto: as visibilidades e os enunciados.
O que isso
implica? O que implica progressão ou passagem a esse novo par: as visibilidades
e os enunciados? Implica que o que é enunciável é o enunciado, e o que é
visível é a visibilidade. Vocês me dirão: banal! Não, de modo algum, isso
complica. Se esta fórmula tem um sentido: “o que é visível é a visibilidade, o
que é enunciável é o enunciado”, ela simplesmente quer dizer que os enunciados
não estarão plenamente dados… [interrupção na gravação]. As visibilidades não
se confundem com os objetos nem com as qualidades vistas, o que complexifica
[as coisas]. Mas é bem o que eu gostaria de dizer: os enunciados são
enunciáveis e as visibilidades são visíveis.
Portanto,
fiz um pequeno progresso passando ao quinto par. E aqui eu me entusiasmo, e por
quê? Pois bem, de que modo visibilidade e enunciado são constantes em todo o
primeiro período [da obra] de Foucault? Eu tomo os dois livros que me pareceram
ter uma espécie de paralelismo. História da loucura, a respeito do
asilo, e Vigiar e punir, a respeito da prisão.
História da
loucura nos diz como, no século XVII, aparece
o hospital geral, a casa de correção, o asilo. É uma arquitetura, como a prisão
é uma arquitetura. Uma arquitetura é o quê? É um agregado de pedras, é um
agregado de coisas, um agregado material. Mas, se eu defino o hospital geral ou
a prisão desta maneira, será que isso me diz realmente alguma coisa? Não muito.
Eu poderia falar ainda de um estilo “prisão”. Há um estilo prisão, um estilo
hospital… Mas o que haveria além disso? O hospital é um lugar onde se vê, ou,
se preferirem, é um lugar que faz ver. A prisão é um lugar onde se vê e é um
lugar que faz ver. Isso quer dizer muitas coisas. Isso quer dizer que o asilo
ou o hospital geral implicam uma certa maneira de ver a loucura. E o inverso
também é verdadeiro: esta maneira de ver requer previamente o próprio asilo. No
asilo, os loucos são vistos, literalmente. Eles são literalmente vistos porque,
no século XVII, acontecem as visitas, mostram-se os loucos. Reparem: até hoje
mostram-se os loucos, seguramente não da mesma maneira. Há as visitas onde as
pessoas, no século XVII, vão ver os loucos atrás das grades. O hospital geral é
um lugar de visibilidade. Não simplesmente porque existem as visitas, mas por
uma razão mais profunda, evidentemente.
O hospital
geral implica uma nova maneira de ver a loucura. Isso quer dizer que não é a
mesma maneira de ver a loucura do Renascimento ou da Idade Média. Não havia a
mesma visibilidade da loucura, sem dúvida, e essa visibilidade abrange, ela
compreende, a maneira como o louco vê a si próprio. Pois bem, uma certa maneira
de ver, eis então um dos temas essenciais da História da loucura, é
que o hospital geral reúne e agrupa em um conjunto os loucos, mas também os
vagabundos, os mendigos, os desocupados e também os libertinos, os depravados…
tudo em um mesmo conjunto, o conjunto do hospital geral. Pois bem, muito
rapidamente, entre o fim do século XVII e o XVIII, as vozes se elevarão para
denunciar essa mistura e para dizer que é preciso separar os vagabundos dos
loucos, [que] os desocupados não merecem ser assimilados aos loucos; em seguida
para dizer: os loucos merecem cuidados especiais, não se pode misturá-los com
os vagabundos. Bem, enquanto essas vozes surgiram para denunciar a mistura de
vagabundos e loucos, a mistura de desocupados e loucos no hospital geral,
tem-se a súbita impressão de que o século XVII não os diferenciava por uma
espécie de falta ou por uma espécie de miopia, por uma espécie de cegueira.
Foucault mostra que não é nada disso: se o século XVII misturava os loucos com
os vagabundos e os desocupados, era devido à sua própria percepção da loucura.
Não em função de uma miopia, [mas] simplesmente de uma percepção perfeitamente
articulada, [percepção] que estará articulada de forma totalmente diferente em
uma outra formação história. É em nome de uma “sensibilidade coletiva”, ele nos
diz em História da loucura. Há uma percepção coletiva da loucura no
século XVII que funda a assimilação [da loucura] com vagabundos, mendigos,
libertinos e desocupados. Eu poderia então tentar definir uma maneira de ver a
loucura no século XVII que não será a mesma da Idade Média e do Renascimento,
que não será a maneira ulterior. Essa [maneira de ver] será a visibilidade. E,
com efeito, o que é uma arquitetura? Bom, certamente uma arquitetura é um
agregado de pedras, mas ela é antes de tudo e muito mais um lugar de
visibilidade. Antes de esculpir as pedras, o que se esculpe é a luz.
Esta é a
ideia de Foucault, e é uma grande ideia. Eu não sei se isso é verdadeiro ou
não, mas seu ponto de partida é que a arquitetura é um lugar de visibilidade. A
arquitetura organiza as visibilidades. A arquitetura é a instauração de um
campo de visibilidades. Vejam vocês: sempre esta subida em direção à
visibilidade como uma subida em direção à condição de uma determinada formação
histórica. O que condiciona a arquitetura é a visibilidade que se pretende
realizar. É em função da maneira pela qual o século XVII vê a loucura, e não em
função de uma cegueira, que se misturam os loucos e os vagabundos. Vocês me
perguntarão por quê? Veremos isso mais tarde.
E a
prisão? Não é mesma coisa, mesmo se ela surge no século XVIII? É uma
arquitetura de pedras ainda mais duras. E, bem, não. Antes de ser as pedras
mais duras de todas, a prisão tem como condição um regime de visibilidade. Ela
é uma escultura de luz, não há outra definição para a prisão. “Luz”, “ver”, mas
ver o quê? Ver aqueles que estão na prisão, ou seja, ver o crime. A prisão é o
lugar de visibilidade do crime, tal como o asilo é o lugar de visibilidade da
loucura. Isso já deveria nos fazer refletir sobre um ponto. Dizíamos que – e
será preciso retornar a este ponto, mas aqui [somente] agrupamos as noções –
Foucault se interessava particularmente e quase exclusivamente pelos meios de
enclausuramento, o asilo, a prisão. Fizeram-se a ele objeções substanciais, por
exemplo… há uma página bastante interessante de Paul Virilio que consiste em
dizer: Foucault é entediante porque o enclausuramento é bem datado e, hoje, as
formas em que vivemos não são mais as formas de enclausuramento, mas hoje é
ainda pior. De modo que, pensava Virilio, Foucault teria deixado escapar algo
de fundamental quanto às nossas sociedades modernas, [algo] que não procede
mais do enclausuramento. É interessante a página de Virilio, ela é bem
interessante, mas, evidentemente, como toda objeção – a página de Virilio não
perde em nada por isso –, ela nada acrescenta. Por quê? Porque se há alguém que
disse, antes de Virilio, que o problema não era o do enclausuramento, esse
alguém é Foucault. Ele já o dissera no nível dos meios de enclausuramento. No
sentido de que não é senão secundariamente que o hospital geral e a prisão são
meios de enclausuramento. Primariamente, são lugares de visibilidade, quer
dizer, lugares de quadriculamento[18] visual.
Em Vigiar
e punir Foucault desenvolverá a fundo [este conceito] a propósito da
prisão. Ele dirá: o que é uma prisão e qual sua função? E ele vai buscar em um
texto bastante fascinante de um autor do fim do século XVIII, de um reformista
do fim do XVIII, Bentham, que escreveu um livro intitulado O Panopticon[19]. O panóptico, que era a prisão modelo,
era o lugar cujos habitantes, chamados “prisioneiros”, deviam ser vistos a cada
instante sem que eles pudessem se ver entre si. Eles seriam vistos a cada
instante por pessoas chamadas “vigilantes”[20],
sobre-vigilantes[21],
que veriam [os prisioneiros] sem que eles próprios pudessem ser vistos. Eis aí
uma repartição[22] da
luz e da sombra. Como se faria esta repartição? Não é difícil, o panóptico era
em suma [ele desenha na lousa] uma circunferência. Circunferência espessa
vazada por uma janela na periferia exterior e na periferia interior, de modo
que a luz atravessa [a circunferência]. No centro, uma torre, uma torre com
venezianas. As celas estão dispostas ao longo da circunferência, entre a janela
externa e a interna. As celas são atravessadas pela luz. A torre central, a
torre de controle, possui venezianas de tal maneira que o prisioneiro não possa
ver nada do que se passa no interior da torre. Em contrapartida, da torre, vê-se
tudo o que se passa nas células. Os prisioneiros não veem a cela ao lado. De um
lado vocês têm: ser visto sem ver. Do outro lado: ver sem ser visto. Isto é o
panóptico. Em outros termos, a prisão é uma forma de luz, é uma distribuição de
luzes e de sombras antes de ser uma pilha de pedras.
Isso acaso
incita em Foucault uma certa concepção da pintura? Talvez, na medida em que a
luz seria igualmente condição da pintura, condição do ato de pintar. Um quadro
é uma visibilidade. Posso dizer da pintura que ela é arte das visibilidades, e
talvez essa seja uma das razões pelas quais ela tem uma relação essencial com a
arquitetura, uma relação íntima.
Assim,
justifiquei a ideia de visibilidade tanto no nível da História da
loucura quanto no nível de Vigiar e punir. E reitero:
a prisão é a visibilidade do crime, o crime trazido à luz, bem como o hospital
geral é a visibilidade da loucura no século XVII. [É] a maneira pela qual o
século XVII vê a loucura e traz à luz a loucura. Mas, por outro lado, há o
enunciado. Por que “por outro lado”? O que isto quer dizer?
Há um
certo estado da medicina que comporta uma categoria de doenças. Mais uma vez:
doenças dos humores, doenças da cabeça, doenças dos nervos. As doenças mentais
não [eram] uma questão. As análises de Foucault são definitivas: o século XVII
ignora a categoria de doença mental, por razões simples que veremos. No nível
da medicina não se distinguia nunca alma e corpo, não havia psicologia, logo
não havia doença mental. Mas há doenças da cabeça, doenças dos humores, doenças
de nervo, a saber, as neuroses – a palavra aparece desde o século XVIII,
chama-se neurose as doenças de nervo[23].
Há portanto um certo número ou um certo corpo de enunciados, um certo conjunto
de enunciados sobre um grupo de doenças. Essas doenças são enunciáveis. Mas eis
aqui um fato bruto, como um fato histórico: a medicina não penetra no hospital
geral. O hospital geral não tem por origem a medicina. E mais ainda: o hospital
geral, o asilo, a casa de correção não têm nada a ver com a medicina. Ninguém
se trata no hospital geral. Mas então, de onde saiu o hospital geral? A
resposta de Foucault – eu resumo bastante nesta minha análise: [o hospital
geral] vem da polícia, ele não vem definitivamente da medicina. Mas a medicina
trata, sim, ela trata, mas fora do hospital geral. Tudo se passa como se
houvesse uma heterogeneidade entre o hospital geral, lugar de visibilidade da
loucura, e a medicina, lugar de enunciabilidade das doenças da cabeça.
Mas haverá
encontro entre os dois? Sim, haverá encontros, quando os dois estiverem
constituídos. Mas a genealogia é independente. Haverá encontro, mas não se
trata da mesma formação. E quando eu falava de um paralelismo com Vigiar
e Punir [era porque] vocês encontrarão um tema, vocês encontrarão o
mesmo tema aprofundado em Vigiar e Punir.
Agora, os
enunciados médicos, eles dizem respeito a quê? Pois eles não penetram, eles não
visariam àquilo que vemos no hospital geral? Qual é o objeto destes enunciados?
Os enunciados médicos dizem respeito a uma noção específica do século XVII: a
desrazão[24] (e
sem dúvida há um interesse real do século XVII ou da Idade Clássica em ter
formado esta noção). O hospital geral compreende os loucos e faz vê-los, mas a
medicina enuncia a desrazão. Novamente, a questão não é saber se houve encontro
entre os dois, trata-se em princípio de saber e de mostrar que a formação dos
dois é completamente diferente.
Bem,
retorno a Vigiar e Punir. A prisão é uma maneira de ver o crime, é
um lugar de visibilidade do crime, do crime enquanto crime punido. E, com
efeito, é um lugar de luz, que distribui a luz e a sombra. Ao mesmo tempo, qual
é o regime de enunciado na mesma época? Bem, na mesma época há um direito
penal, há todo um movimento da reforma do direito penal, no século XVIII,
movimento bastante interessante. Tanto mais interessante que, desde que se
estude este grande movimento do direito penal e de sua reforma, percebe-se que
este movimento não diz respeito à prisão, e que a prisão é estrangeira ao
direito penal. Agora, é evidente que haverá encontro, mas não é essa a questão.
É que, do ponto de vista do direito penal, a prisão não é senão uma sanção particular
para um caso de crime preciso, uma entre tantas outras formas de sanções
previstas. Mais ainda, o direito penal só considera a prisão com uma espécie de
mal-estar, como se o direito penal não cessasse, diante da prisão, de formular
o enunciado: “isto não é uma prisão”; isto não é um cachimbo, isto não é uma
prisão. O direito penal pensa todo um regime de sanções sem se referir à
prisão, ou se referindo minimamente à prisão. A prisão é um verdadeiro corpo
estranho no direito penal.
Mas de
onde então vem a prisão, visto que ela não vem do direito penal? Ela vem de uma
coisa completamente diferente, daquilo que Foucault chamará de “técnicas
disciplinares”. Técnicas disciplinares do trabalho, do exército, da escola. E a
prisão não nasce de um corpo jurídico, mas de um corpo disciplinar
extra-jurídico. Pois bem, os enunciados do direito se referem a quê? Assim como
no século XVII havia os enunciados médicos que se referiram à desrazão e
inventaram essa noção, os enunciados do direito, no século XVIII, aludem à
delinquência e inventam essa noção. Os enunciados acerca da delinquência e da
prisão como lugar de visibilidade são heterogêneos. Há pontos de encontro e
todos os tipos relações, mas há heterogeneidade, não se trata da mesma formação
arqueológica. Assim como entre o hospital geral e os enunciados da medicina.
Logo, eis um novo par[25]:
as visibilidades, os enunciados.
Será
preciso fazer uma análise comparada da prisão como lugar de visibilidade do
crime e do direito penal como enunciado da delinquência. Do mesmo modo, análise
comparada entre o hospital geral como visibilidade da loucura e os enunciados
médicos como enunciados de desrazão. Cada elemento tem a sua linha própria,
independente do outro.
Continuemos
na nossa pesquisa dos pares. Aqui tentaremos pensar como se funda, em Foucault,
o par visibilidades-enunciados. Vocês veem que o visível e o enunciável
de O Nascimento da clínica como que se transformou em
visibilidade-enunciado. Mais uma vez: a arquitetura deve ser compreendida
assim, como regime de luz. Novo par. Posso muito bem dizer que, na prisão… e
em Vigiar e punir ocorre a Foucault dizer diversas vezes “a
prisão é uma evidência”, como o hospital geral é uma evidência. É interessante
este emprego da palavra “evidência”, pois a evidência é uma visibilidade.
Portanto Foucault faz da evidência uma concepção histórica. Cada formação
histórica possui evidências, suas próprias evidências. E, na época seguinte, o
que era evidente deixa de sê-lo. Que os loucos possam – e mesmo, devam – estar
reunidos com os vagabundos etc, é uma “evidência” para o século XVII. Não é um
erro de julgamento. Em outras palavras, delineia-se aqui o grande princípio
histórico de Foucault: toda formação histórica vê aquilo que é capaz de ver,
toda formação histórica vê tudo o que ela pode ver. E, correlativamente, toda
formação histórica diz tudo o que pode dizer.
Uma
formação histórica se definirá com base em suas próprias evidências, ou seja,
[com base] no seu regime de luz e em suas discursividades. Um regime de
enunciados será chamado por Foucault de “discursividade” [discursivité].
Evidência e discursividade. Em A Arqueologia do saber, esse par
evolui, mas de maneira tal que nos faz correr um grande perigo. Que grande
perigo é esse? Corremos o risco de não ver senão um termo do par. Entretanto, o
outro permanece, mas é designado apenas negativamente. E encontraremos
expressões como: formação não-discursiva, formação discursiva. Eis, portanto,
como o “ver”, as visibilidades, só são designadas negativamente sob o nome de
formações não-discursivas. Por quê? O que aconteceu? A primeira resposta,
simples mas insuficiente, consiste em dizer que A Arqueologia do saber é
um livro inteiramente consagrado à questão “o que se deve entender por
enunciado?”. Logo, como ele não considera o outro polo – as visibilidades –
ainda que faça alusão, esta é feita de maneira negativa somente. Mas outra
questão surge necessariamente: por que Foucault sente necessidade de consagrar
um livro aos enunciados, separando-os das visibilidades?
Continuo
minhas análises unicamente de terminologia e vejo que, ainda uma vez, o par se
deslocará, mas sempre sob as rúbricas ver/falar. No livro sobre Raymond
Roussel, Foucault nos diz que há dois tipos de obras nesse poeta. Na verdade o
livro nos mostrará que são três tipos. Mas não posso tratar de todos, então nos
limitaremos aos dois tipos mais fáceis. Ele nos diz: há livros que descrevem
máquinas, máquinas extraordinárias que nos apresentam espetáculos insólitos e
insensatos. E o que significam essas máquinas? Há um livro onde Roussel
descreve esses espetáculos saídos de máquinas misteriosas onde, por exemplo, os
mortos recapitulam o último momento de suas vidas, não cessam de fazê-lo,
encerrados em gaiolas de vidro.
Essa ideia
da máquina é interessante. Vocês já veem que teremos uma confirmação, o que
buscamos são confirmações do que dizíamos há pouco sobre a arquitetura.
Certamente nem todas as máquinas são óticas. E seria tolo pensar assim. Por
outro lado, não é tolo dizer: toda máquina, qualquer que seja, permite ver
alguma coisa. Toda máquina, além do que faz, faz ver. A máquina a vapor faz ver
alguma coisa. As máquinas óticas, por uma razão ainda maior, fazem ver. Dizer
que a máquina necessariamente faz ver alguma coisa é a mesma coisa que dizer: a
arquitetura é uma escultura de luz. Logo, máquinas que fazem ver algo que não
se poderia ver sem elas. Em outras palavras, a visibilidade é inseparável de um
tipo de processo que deveríamos chamar de “processo maquínico” [processus
machinique]. As descrições de máquinas ou de processos maquínicos definem
um primeiro tipo de obra em Raymond Roussel.
O segundo
tipo são livros que não repousam sobre a descrição de máquinas que fazem ver um
espetáculo, mas sobre um procedimento linguístico. Não mais um processo, mas um
procedimento. E um procedimento linguístico é um regime enunciativo. O processo
é maquínico, mas o procedimento é enunciativo. Eis um novo par: processo
maquínico-procedimento enunciativo.
Vamos resumir
tudo isso. Aqui eu recorro a termos que não são de Foucault para tentar
englobar tudo. Vocês veem que seguimos uma espécie de dualismo muito curioso
que se desloca ao longo dos livros de Foucault, com suas nuances, assumindo
esta ou aquela aparência. Aqui eu penso na terminologia empregada pelo
linguista Hjelmslev, que fala de – retenho somente as palavras, pois elas
parecem-me poder ajudar – forma de conteúdo e forma de expressão. Ele diz: há
formas de conteúdo e formas de expressão. Segundo ele, que é um puro linguista,
a “forma de expressão” é um modo de rebatizar – há razões para esse novo
batismo – o que os linguistas chamam o significante, e a “forma de conteúdo” o
que os linguistas chamam o significado.
Tomo
emprestada a terminologia de Hjelmslev, mas imediatamente digo: suponhamos que
a forma de conteúdo não tenha nada a ver com significado e que a forma de
expressão não tenha nada a ver com significante. De uma certa maneira, é bem
isso que Foucault mostrará.
O que é a
forma de expressão em uma dada formação histórica? É o regime dos enunciados. O
que é a forma de conteúdo? Eu diria, por exemplo, que a prisão é uma forma de
conteúdo, assim como o hospital geral. De fato, encontramos a expressão
diversas vezes em Vigiar e punir: a “forma-prisão”[26], com um traço de união. A forma-prisão é
uma forma de conteúdo, pois a forma de expressão seria o direito penal. A
medicina, com seus enunciados, é uma forma de expressão. O hospital geral ou o
asilo são formas de conteúdo. Simplesmente porque, em Foucault – e veremos por
que –, a forma de expressão não tem mais nada a ver com um significante e a
forma de conteúdo não tem mais relação com um significado, pois as
visibilidades são irredutíveis a um significado, e os enunciados são
irredutíveis ao significante. Foucault dirá sem cessar que as discursividades
se anulariam caso colocadas sob a ordem do significante.
Mas, vejam
que avançamos. É preciso que vocês concordem que, com toda essa lista sobre o
ver e o falar, chegamos ao menos a uma formulação muito mais rigorosa sobre o
par de base: campo de visibilidade, regime de enunciados. Ou, se preferirem,
visibilidades e enunciados.
O muito
curioso dualismo de Foucault é fundado na irredutibilidade de uma forma à
outra. Ver e falar. Ver não é simplesmente o exercício empírico do olho, é
constituir visibilidades. Ver ou fazer ver. Enunciar não é o exercício empírico
da linguagem, é constituir enunciados. Ora, não é de forma alguma fácil constituir
visibilidades e enunciados. Eles não existem já prontos pois variam conforme as
épocas. E como se constitui tal regime de enunciado? Como se forma tal lugar de
visibilidade?
Bem,
vejamos se fizemos um pequeno progresso, visto que… Primeira questão: ficou
mais claro o modo pelo qual Foucault pretende ir além [déborder] de uma
história dos comportamentos e das mentalidades? Não se trata ainda de
justificar tudo, mas agora estão mais claras as seguintes fórmulas: as
visibilidades não são coisas entre tantas outras e as visões, as evidências,
não são ações entre outras. Ver é uma condição sob a qual surge toda ação,
paixão etc. Tudo o que se faz ou se sofre em uma época não pode se dar senão
quando surge sob um regime de luz. E, do mesmo modo, tudo o que se pensa em uma
época, todas as ideias de uma época supõem seu regime de enunciados. Os
enunciados não são ideias dentre outras, tampouco as simples comunicações entre
ideias. São as condições para o desdobramento de todas as redes de ideias que
operam em uma época. As visibilidades não são somente dados como tantos outros,
são condições de luz que tornam possível trazer à luz, o trazer à luz o que se
faz e se prova em uma época. Foucault não faz uma história das mentalidades e
uma história dos comportamentos. Ele se eleva para as condições, próprias de
cada época, que tornam possíveis tanto comportamentos quanto mentalidades. Em
outros termos, ele trabalha como um filósofo e não como um historiador. Ver e
falar determinam condições na medida em que o ver se ultrapassa na direção dos
campos de visibilidade e o falar na direção dos regimes de enunciados. E, de
fato, eis que … [interrupção na gravação][27].
Isso nos
leva a falar de maneira, digamos, filosófica: ver e falar são elementos puros.
Ver e falar fazem parte de uma análise de elementos. Logo, ver não é um
comportamento, falar não é uma ideia. Não é uma história das ideias nem uma
história dos comportamentos. Trata-se de fato de se elevar às condições, a
saber: as visibilidades e os enunciados. E isso não é tudo. O que dissemos nos
coloca em condição de evitar uma espécie de mutilação, uma espécie de
contra-senso acerca de Foucault. Em virtude da força e da originalidade da sua
teoria dos enunciados, da noção completamente nova que decorre da sua definição
de enunciado, [evitamos] fazer de Foucault alguém para quem há somente
enunciados – ao ponto do visível não ser senão resíduos de enunciados, ou ilusões
projetadas pelo enunciado –, reduzindo-o assim a um filósofo da linguagem ou,
pior ainda, um filósofo analítico. Refiro-me aqui à filosofia analítica
anglo-americana. Seguramente há espaço para comparar Foucault com esses autores
– linguistas ou filósofos analíticos –, mas insisto uma vez mais neste
“dualismo tão bizarro”, o dualismo visibilidade/enunciado.
Sem dúvida
alguns de vocês tiveram a oportunidade de encontrar Foucault quando era vivo.
Creio que bastava vê-lo para compreender duas coisas. Que ele tinha uma paixão,
não tanto pelo que dizia ele mesmo, mas pelo que ouvia dizer. Ele tinha também
uma paixão por ver. Uma espécie de gênio visual, não menos que um gênio do
enunciado. Por que me detenho nessa nota pessoal? Porque lembro-me de um texto
onde um comentador de El Greco, o pintor, fala das formas alongadas de sua
pintura, dos corpos alongados, sugerindo haver uma relação com o astigmatismo
do pintor. O alongamento do corpo como técnica pictórica é um efeito do
astigmatismo? Certamente não. Mas não poderia haver uma relação complexa entre
os dois? A respeito da miopia de Foucault, quero dizer, a respeito da sua
paixão por ver, seria legítimo relacionar essa espécie de paixão com o que ele
entendia por “ver”? Pois, quando ele fala das visibilidades…
Eu lhes
dizia, as visibilidades não são coisas, não são objetos. Isto podemos
justificar filosoficamente. Quando Foucault fala a respeito, as expressões que
retornam constantemente são espelhamento, cintilar e resplandecer [miroitement, scintillement, éclat].
Seu estilo mesmo é um estilo de luz. A materialidade de seu estilo é
extraordinariamente luminosa. O visível não é coisa nem objeto, tampouco a
qualidade. O visível é o brilho, o cintilar, a claridade. Isto é uma
visibilidade. Precisaremos ver por quê? E, como eu dizia, os enunciados são
completamente diferentes de palavras e frases. Em Foucault há uma paixão de
ver, assim como de enunciar. É por este motivo que ele descreve quadros tão
bem.
Retomando
meus pares, podemos acrescentar um último: descrição, enunciação. A descrição é
sempre descrição de um quadro e é completamente diferente de um enunciado. Em
toda a sua obra, ele faz descrições de quadros. Do quadro de Velásquez e do
quadro de Magritte, mas também descrições da prisão, do asilo… Como podemos
falar de uma visibilidade? Falar de uma visibilidade é descrever, e descrever
não é o mesmo que enunciar. E Foucault caminha com duas passadas dissimétricas:
as descrições e os enunciados, de modo que devemos considerar tanto a teoria
das descrições quanto a teoria dos enunciados.
Dito isso,
parece-me que, sem dúvida, há um “primado” dos enunciados sobre as
visibilidades. Mas, o que significa “ter o primado”? O primado dos
enunciados sobre as visibilidades culmina com A Arqueologia do saber,
mas Foucault não voltará a esse ponto. E, de fato, encontra-se em A
Arqueologia do saber uma expressão muito curiosa na qual Foucault nos
diz: “o discursivo possui relações discursivas com o não- discursivo”. Não se
poderia expressar melhor o primado do discursivo. O discursivo possui relações
discursivas com o não-discursivo significa que o enunciado tem relações
enunciativas com o não-enunciado, com o visível. Eu lhes peço para refletir
sobre isso porque nos ocuparemos muito deste ponto, que é muito meticuloso, muito
preciso. Pois nunca o primado quer dizer “redutibilidade”, e isso parece-me
evidente. Toda compreensão de Foucault que traduza o primado do enunciado sobre
o visível em termos de redutibilidade do visível ao enunciável é profundamente
mutilador. Ademais, alguma coisa só tem primado sobre outra na medida em que
esta outra é de uma outra natureza. Primado não significa redução. O enunciado
tem o primado sobre o visível. Mas, o que significa “primado”? Em todo caso,
“primado” não quer dizer que o visível se reduz ao enunciado.
Neste
ponto onde nos encontramos, é preciso explicitar quatro teses. Creio que as
encontramos todas em Foucault. Primeira tese: há uma diferença de natureza
entre ver e falar, entre visível e invisível. Ou, em termos mais cultos: não há
isomorfismo. Foucault não cessará de dizê-lo e o diz explicitamente em Isto
não é um cachimbo e O Nascimento da clínica,
mas recusa o isomorfismo em todos os seus livros. Não há isomorfismo entre ver
e falar, ou seja, entre o visível e o enunciável. Ou seja, não há conformidade.
“Conformidade” significa uma forma comum ou uma correspondência biunívoca entre
as duas formas. Em outros termos, não vemos jamais aquilo de que falamos e não
se fala jamais daquilo que vemos.
Esta é a
sua grande tese, e ele não cessa de dizê-lo. Notadamente no início de As
Palavras e as coisas – veremos esses textos mais tarde em detalhes –,
ele escreve “o que se vê não se aloja jamais no que se diz”, e acrescenta “e
por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas,
comparações”[28] –
há uma longa frase – em vão se tentará fazer ver o que se está dizendo. Falar
não é ver, ver não é falar, há uma disjunção entre ver e falar, não há
conjunção. Vocês me dirão: não é verdade, posso falar do que vejo e posso ver
aquilo de que falo. Se o disserem, então não me compreenderam. É claro que
podem, mas qual seria o interesse? Quando falam daquilo que veem, só há
interesse se o interlocutor não vê. Pois se ele vê a mesma coisa, não há
interesse em dizer o que veem… Olha um barco… Bem, é tudo.
Com
relação à disjunção ver-falar, Foucault evidentemente faz parte, não sei bem,
de um conjunto de pensamento, está em certa relação com outros pensadores.
Seria preciso ver de perto o que isso significa em termos da disjunção
ver-falar. Isso parece, uma vez mais, uma platitude ou mesmo algo discutível.
O que é
importante não é que o ver e o falar não sejam a mesma coisa, mas aquilo que
remetem o ver e o falar. Ver e falar não vão juntos, mas o que não vai junto é
aquilo a que remete o ver e aquilo a que remete o falar. Segundo Foucault, o
ver remete às visibilidades e o falar aos enunciados. O que significa: entre os
enunciados e as visibilidades há uma diferença de natureza, não há isomorfismo.
Ele mostrou em História da loucura que não havia isomorfismo
entre o hospital e a medicina, pois cada um tem a sua formação. O hospital vem
da polícia, a desrazão vem da medicina. Do mesmo modo, a prisão vem do [poder]
disciplinar, a delinquência do judiciário. Não há isomorfismo, não há forma
comum.
Isso nos
leva a pensar em outros autores. Antes de todos, Blanchot, por quem Foucault
frequentemente expressou sua dívida. Não se deve considerar Foucault um
discípulo de Blanchot. Creio mais que há um encontro entre os dois, sobretudo
que, a partir da mesma tese “ver não é falar”, ambos desenvolverão o tema de
duas maneiras diferentes. De fato, “ver não é falar” é um grande texto de
Blanchot. Ele percorre toda a sua obra e é um capítulo preciso, dentre as mais
belas páginas de A Conversa infinita[29].
Neste livro, ele afirma que falar não é ver. Notem que Blanchot não acrescenta
“ver não é falar”. Creio que é Foucault quem faz a recíproca, ver não é falar.
A relação entre Blanchot e Foucault será um problema que veremos mais adiante.
Aqueles
que estavam aqui no ano passado talvez se lembrem que encontramos o regime de
uma disjunção entre ver e falar num outro nível que era o nível do cinema[30]. E nos pareceu, quando trabalhamos com a
palavra [parole] no cinema, que certos autores do cinema moderno faziam
da palavra e do falante um uso muito particular no sentido de que era um uso
“disjuntivo” com a imagem visual e que, entre a palavra e a imagem visual
haviam relações de disjunção. Pareceu-nos que era, antes de tudo, verificado ou
representado por três grandes autores atuais: os Straub, Marguerite Duras e Syberberg.
O que é essa disjunção ver-falar? Como diz Marguerite Duras, é como se
houvessem dois filmes, dois filmes sem isomorfismos, o filme das vozes e o
filme visual. E as vozes evocam um acontecimento [événement] que não se
verá, ao passo que a imagem visual apresenta lugares sem acontecimento, lugares
vazios ou lugares mudos. Pensem, por exemplo – aqueles que viram o filme –,
em India song[31],
onde a imagem visual e o filme das vozes remetem a lugares diferentes.
O que se
vê não se aloja no que se diz. O que se diz não faz ver. Há o ver e há o dizer,
mas numa relação disjuntiva. Vale dizer: uma não-relação [non-rapport].
“Não-relação”, esta expressão insólita é de Blanchot. Ele diz: “entre ver e
dizer, entre ver e falar, entre falar e ver, há uma não-relação”. E acrescenta:
“esta não-relação que é talvez mais absoluta do que qualquer outra relação”.
Curioso isto. Se vocês lerem Isto não é um cachimbo, verão que
Foucault retoma a expressão “não-relação” dizendo: entre o desenho e seu
título, ou seja, entre o visível e o enunciado, há uma não-relação. Ou seja, há
disjunção.
Bem, mas,
ao mesmo, recaímos no seguinte ponto: esta não-relação deve bem ser, de uma
certa maneira, uma relação, e, mais ainda, ser mais profunda do que qualquer
relação. A forma do visível e a forma do enunciável são irredutíveis. Não há
conformidade nem correspondência nem isomorfismo. Há uma não-relação, há uma
disjunção. Essa relação deve ser, de algum modo, original e paradoxal, não de
conformidade. Estamos plenamente imersos no problema da verdade tal como o
coloca Foucault, porque a verdade sempre foi definida como “a conformidade”,
conformidade entre a coisa e a representação, conformidade entre dizer e ver.
Portanto, a primeira tese de Foucault, sobre a qual ele nunca mudará, é:
heterogeneidade, diferença de natureza entre as duas formas; o que se vê não se
aloja jamais no que se diz e reciprocamente.
Segunda
tese: qual vem primeiro? A questão não se coloca. Há uma pressuposição
recíproca. Um e outro se pressupõem.
Terceira
tese: há o primado do enunciado sobre o visível. Voltamos ao nosso problema. O
primado não implica nenhuma redução. Ambos são irredutíveis, mesmo havendo o
primado de um sobre o outro. Mas, longe de determinar uma redução, o primado
supõe a irredutibilidade. Só posso exercer um primado ou um poder sobre aquilo
que resiste a mim, sobre aquilo que tem uma outra forma.
Por fim,
quarta tese: há capturas mútuas, tanto num sentido quanto em outro. Isto será o
mais complicado em Foucault: os enunciados não cessam de captar, de capturar o
visível. As visibilidades não cessam de captar e capturar os enunciados. Mas
como isso é possível, visto serem duas formas heterogêneas irredutíveis? Na
minha opinião, eis aqui o que há de mais belo em Foucault, esse sistema de
dupla captura.
As
visibilidades se apoderam de enunciados, estes se apoderam de visibilidades. É
neste pequeno livro, Isto não é um cachimbo, que Foucault
desenvolve mais o tema. Ele fala de “incisão dos enunciados no visível”, de
“incursão do visível no enunciado”. Incursão, incisão. Ele diz: “cada um envia
sua flecha no alvo do outro”, e acrescenta: “é uma batalha”[32].
Vocês veem, ele vive a relação entre visibilidades e enunciados como uma
batalha. E deve ser uma batalha, pois não tem a mesma forma. Não pode haver
acordo entre os enunciados e as visibilidades, pois o acordo é uma forma comum
ou uma correspondência de forma a forma. Se há fenômenos de captura não será na
forma de um acordo, de uma conformidade, mas na forma de uma captura, captura
violenta, uma batalha. Vocês me dirão: são apenas palavras. Sim, mas estas
palavras nos permitem delimitar e identificar o problema.
Temos
portanto essas quatro teses fundamentais. Primeira: diferença de natureza ou
heterogeneidade entre a forma do visível e do enunciável. Segunda:
pressuposição recíproca dos dois. Nenhum pressupõe o outro. Terceira: primado
do enunciado sobre a visibilidade. Quarto: captura mútua, enlace de lutadores
entre as visibilidade e os enunciados, como numa batalha.
Expor
essas teses significa enunciar um programa. Teremos que lidar com essas quatro
teses. O que posso concluir no momento? O que é um arquivo? Darei uma resposta
que será, num certo sentido, a mais decepcionante, mas que não mais o será se
vocês considerarem o caminho que percorremos para chegar até aqui. Eu diria: o
arquivo é fundamentalmente audiovisual. E pronto! Mas esta platitude foi
transformada por Foucault. Pois, o que é a arqueologia? É o estudo das
formações históricas. Por que é diferente da história? Porque é preciso se
alçar até as condições, o visível e o enunciável, e a história não pode extrair
nem as visibilidades nem os enunciados puros. São elementos puros que requerem
uma análise filosófica.
O que é
então uma formação histórica? Agora posso dizê-lo: é um agenciamento do visível
e do enunciável, é uma combinação, é uma maneira de combinar visibilidades e
enunciados. Os dois são irredutíveis, mas as capturas não se dão de modo
aleatório. Não é qualquer enunciado que se combina com qualquer visibilidade.
Há combinações ou “capturas” que excluem certos aleatórios. A coerência de uma
época é feita segundo suas visibilidades, em virtude de sua forma própria, são
combináveis com seus enunciados, igualmente em virtudes de suas formas
próprias. É isso que definirá este entrelaçamento, este entrecruzamento dos
visíveis e dos enunciáveis que variam segundo cada formação histórica. Nenhuma
formação histórica possui as visibilidades [visibilités] nem as
enunciabilidades [énonçabilités] de outra. E assim que houver uma
variação do regime dos enunciados e dos campos de visibilidade podemos dizer
que entramos em uma outra formação histórica. Assim, arqueologia, esse
agenciamento do visível e do enunciável como constitutivos da formação
histórica. É isso que Foucault chamará, na sua terminologia própria, um
dispositivo.
Eu termino
com esse ponto: ver e falar, ou seja, os visíveis e os enunciáveis constituem o
que ele chama “um saber”. O saber é sempre o efetuar a não-relação entre o
visível e o enunciável, é combinar o visível e o enunciável, é operar as
capturas mútuas do visível e do enunciável. E há o problema da verdade. Vocês
notarão que eu defini da mesma maneira arquivo, audiovisual, formação
histórica, combinação de visível e enunciável, e saber. Pois, para Foucault,
não há nada sob o saber. Tudo é um saber. Tudo é saber. Não há experiência
anterior ao saber. Eis a sua ruptura com a fenomenologia. Não há, como dizia
Merleau-Ponty, uma “experiência selvagem”, não há o vivido [vécu], ou
melhor, o vivido já é um saber. Nem todo saber é uma ciência, mas não há nada
sob o saber. O que é uma formação histórica? São os limiares de saber muito
diferentes uns dos outros e que constituíram, numa dada época, um empilhamento
de limiares, empilhamento de limiares diversamente orientados. Daí uma
“arqueologia do saber”. É o saber que é objeto de uma arqueologia, pois
saber é precisamente combinar o visível e o enunciável. Em qual sentido? Aqui
eu introduzo o que veremos no próximo encontro. Neste sentido, o visível remete
a um processo [processus], nós vimos, o enunciável remete a um método [procédé].
Combinar processo e método dá lugar a um procedimento [procédure]. O
saber é procedimento. A verdade não existe independentemente do procedimento e
o procedimento é a combinação do processo do visível com o método enunciativo.
Eis todo
um conjunto de noções. Fizemos um percurso em torno do que é apenas o primeiro
eixo do pensamento de Foucault. No próximo encontro poderemos retomar algum
ponto que tenha ficado obscuro. Gostaria que refletissem sobre tudo isso, que é
um pouco o programa de nossas próximas aulas. Aqueles a quem o tema não
interessa, não retornem. Aqueles a quem o tema diz respeito, venham novamente,
e no início da aula responderemos às suas questões antes de avançar.
Esta
publicação, idealizada pela n-1 edições em conjunto com
a editora politeia, pretende traduzir e disponibilizar
gratuitamente aos assinantes de PANDEMIA as aulas que Gilles Deleuze ministrou
na Universidade Paris 8. A base para o projeto são as transcrições realizadas
pela Association Siècle Deleuzien. O primeiro curso a integrar o
projeto é Michel Foucault: As formações históricas – 8 aulas.
Ministradas entre outubro e dezembro de 1985, abordam grande parte da
trajetória intelectual de Foucault (da História da Loucura à História
da Sexualidade).
São Paulo
| dezembro de 2017
n-1edicoes.org
editorapoliteia.com.br
[1] FOUCAULT,
M. História da loucura na Idade Clássica. Trad. José T. C.
Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978.
[3] ROUSSEL,
R. Como escrevi alguns dos meus livros. Trad. Fabiano B. Viana.
Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2015.
[9] FOUCAULT,
M. “Nietzsche, a genealogia e a história”. In: FOUCAULT, M. Microfísica
do poder. Trad. Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.
15-37.
[10] FOUCAULT,
M. Isto não é um cachimbo. Trad. Jorge Coli. São Paulo: Paz e
Terra, 1988. René Magritte faleceu em agosto de 1967. Foucault dedicou-lhe um
artigo intitulado Ceci n’est pas une pipe, onde analisa a
pintura A traição das imagens de Magritte. Este artigo foi
publicado em janeiro de 1968 na revista Les Cahiers du chemin e
em Dits et écrits v. I, p. 663.
[11] FOUCAULT,
M. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Trad. Raquel Ramalhete.
Petrópolis: Vozes, 2009.
[12] FOUCAULT,
M. História da sexualidade v. I: a vontade de saber. Trad. Maria T.
da C. Albuquerque e J. A. G. Albuquerque, Rio de Janeiro: Graal, 1984.
[13] FOUCAULT,
M. História da sexualidade v. II: o uso dos prazeres. Trad. Maria
T. da C. Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1984; FOUCAULT, M. História
da sexualidade v. III: o cuidado de si. Trad. Maria T. da C. Albuquerque.
Rio de Janeiro: Graal, 1985.
[15] FOUCAULT,
M. Histoire de la sexualité v. IV – Les aveux de la
chair. F. Gros (ed).
Paris: Gallimard, 2018.
[16] LEBRUN, F. Les hommes et la mort en Anjou aux XVIIe et
XVIIIe siècles. Paris: Flammarion, 1975.
[17] Leçon
de choses é o ensino a partir de objetos concretos ministrado nos
primeiros anos escolares.
[20] A
edição brasileira de Vigiar e Punir traduz surveillants por
“fiscais” (2009, p. 233). Como existe a categoria de “vigilantes
penitenciários” e para manter coerente a referência etimológica, optamos por
“vigilantes”.
[21] Deleuze
refere-se à etimologia de surveiller, que tem o sentido de “vigiar
de cima”. Em português existe o verbo “sobrevigiar”.
[22] Répartition. Um
dos subcapítulos de Vigiar e punir se chama “L’art des
repartitions”, traduzido na edição brasileira por “A arte das
distribuições” (2009, p. 137). Optamos por “repartição” porque abaixo
traduzimos “distribue la lumière” por “distribui a luz”.
[23] O
conceito de névrose – cujo termo em francês viria a ser
traduzido, em língua portuguesa, ora por “nevrose”, ora por “neurose”, cada um,
em particular, assumindo domínio e sentido distintos – popularizou-se na França
a partir da segunda metade do XVIII, através da medicina de Philippe Pinel
(1745-1826). Em sua Nosographie Philosophique, introduz: “Mas serão
nos desregramentos orgânicos do cérebro que devemos procurar o princípio das
diversas alienações do espírito ou perturbações das funções do entendimento,
como pensa Locke e Condillac, ou como os fatos particulares o fazem presumir?”
(PINEL, P. Nosographie Philosophique, ou la méthode de l’analyse
appliquée a la médicine – T. 3. Paris : J. A. Brosson, Libraire,
1813, p. 3). E pontua: “A distribuição das doenças nervosas parece se afastar
do método relativo à classificação da maioria das doenças, sobretudo quando se
trata de flegmasias e hemorragias; estas últimas são próximas entre si tanto
pela conformidade de estrutura anatômica quanto pela analogia de funções que se
observa nas partes que elas afetam; pois as lesões que estas mesmas funções
desenvolvem têm com efeito uma grande semelhança. Nas névroses,
poder-se-iam agrupar conjuntamente objetos muito distintos, como lesões do
órgão da audição e da vista, as névroses das funções
cerebrais, da locomoção e da voz; enfim as névroses das
funções nutritivas, da respiração etc. Mas poucas dessemelhanças estas diversas
funções oferecem, e por consequência suas lesões; elas parecem formar uma
classe cujos atributos incidem mais diretamente sobre o sistema nervoso, que
tem como origem conhecida o órgão encefálico, e que se distribui em todas as
partes do corpo para a transmissão do sentimento, do movimento, e fazer
funcionar as funções orgânicas.” (PINEL, 1813, p. 8).
[24] Déraison,
também traduzido por “insanidade” ou “desatino” (Cf. História da
loucura, p. 13, 14 etc)
[25] “A
arqueologia estuda o saber. Mas a tese de Deleuze a respeito do conceito de
saber em Foucault é original. Segundo ele, o saber é constituído por dois
elementos puros, duas formas, dois estratos, duas estratificações, duas
qualificações, duas camadas sedentárias – termos que podem ser tomados como
sinônimos. Além disso, alguns pares terminológicos igualmente sinônimos indicam
quais são esses elementos ou essas formas: ver e falar, visível e dizível,
visibilidade e legibilidade, conteúdo e expressão.” (MACHADO, R. Deleuze,
a arte e a filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2009, pp. 163-4)
[27] Deleuze
faz uma pausa para tratar da organização do curso. Ele diz: “Repito o que disse
para os que não estavam aqui. A cada encontro, estarei aqui às 9 horas e
retomarei com os presentes os pontos do encontro precedente que julgarem
necessário. Ou então iremos um pouco adiante. Às 9:45 ou 10:00 iniciarei a nova
aula. Pois há muitos de vocês que chegam entre 9:30 e 10 horas, o que me
incomoda. Vocês compreendem? Assim eu manejo habilmente… Má vontade… E, bem, de
todo modo, não é um problema para você, que chega às 10 horas. [Claire Parnet]:
mas o seu curso é às 10 horas… [Deleuze]: não, neste ano ele é às 9 horas. Tudo
mudou devido à reforma. [Claire Parnet] seis horas de curso, se você aprofunda
a cada vez, você terminará às 13:30… [Deleuze, rindo]: animosidade, má
vontade.”
[29] BLANCHOT,
M. A Conversa infinita v. 1. A Palavra Plural. Trad. Aurélio
G. Neto. São Paulo: Escuta, 2001. O capítulo citado por Deleuze encontra-se
neste volume e se chama “Falar, não é ver”.
[30] Deleuze
lecionou cursos sobre cinema na Universidade de Paris na primeira metade da
década de 1980. Aqui ele se refere ao último curso (Cinema e pensamento)
ministrado entre outubro de 1984 e junho de 1985.