DELEUZE, Gilles (2003) Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.
Proust e os signos
GILLES DELEUZE
2.ed
Forense Universitária – RJ
2003
Capítulo I
Os
Tipos de SignosEm que consiste a unidade
de A la recherche du temps perdu?
Sabemos ao menos que ela não consiste na
memória, nem tampouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Recherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um
lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recordação,
uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como
na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não
é simplesmente o tempo passado; é também o tempo que se perde, como na
expressão "perder tempo". É certo
que a memória intervém como um meio da busca, mas não é o meio mais profundo;
e o tempo passado intervém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura
mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase musical de
Vinteuil, que não trazem à memória
nenhuma lembrança, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito
mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza,
que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação
material".l
Não se trata de uma
exposição da memória involuntária, mas do relato de um aprendizado – mais
precisamente, do aprendizado de um homem de letras.2 O caminho de
Méséglise
l.P321.
2. TR 150.
4
e o caminho de Guermantes são muito menos
fontes de lembrança do que matérias-primas, linhas do aprendizado. São os dois caminhos
de uma "formação". Proust freqüentemente aborda situações como esta:
em dado momento o herói não conhece ainda determinado fato que virá a
descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vivia. Daí o
movimento de decepções e revelações que dá ritmo a toda a Recherche. Pode-se evocar o
platonismo de Proust – aprender é ainda relembrar; mas, por mais importante que
seja o seu papel, a memória só intervém como o meio de um aprendizado que a
ultrapassa tanto por seus objetivos quanto por seus princípios. A Recherche é voltada para o futuro e
não para o passado.
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado
temporal, não de um saber abstrato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um
objeto, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados.
Não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa. Alguém
só se torna marceneiro tornando-se sensível aos signos da madeira, e médico
tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação
com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos, todo ato
de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. A obra de Proust é
baseada não na exposição da memória, mas no aprendizado dos signos.
Dos signos ela extrai sua unidade e seu
surpreendente pluralismo. A palavra "signo" é uma das palavras mais freqüentes da
Recherche, principalmente na sistematização final, que constitui o
Tempo redescoberto. A Recherche se apresenta como a
exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se
cruzam em certos pontos. Os signos são específicos e constituem a matéria desse
ou daquele mundo. Os personagens secundários já o demonstram: Norpois e o
código diplomático, Saint-Loup e os signos estratégicos, Cottard e os sintomas
médicos. Pode-se ser muito hábil em decifrar os signos
5
de uma especialidade, mas continuar idiota em
tudo o mais, como o caso de Cottard, grande clínico. Além disso, num domínio comum, os mundos se
fecham: os signos dos Verdurin não funcionam entre os Guermantes; inversamente,
o estilo de Swann ou os hieróglifos de Charlus também não funcionam entre os Verdurin. A unidade de todos os mundos
está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, matérias; não se descobre
nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e interpretação.
Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do
mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifrados do mesmo
modo, não mantêm com o seu sentido uma relação idêntica. Que os signos formam
ao mesmo tempo a unidade e a pluralidade da Recherche, esta é a hipótese que
devemos verificar ao considerarmos os mundos de que o herói participa diretamente.
*
O primeiro mundo da Recherche é
o da mundanidade. Não existe meio que emita e concentre tantos signos em
espaços tão reduzidos e em tão grande velocidade. Na verdade, estes signos não
são homogêneos. Em um mesmo momento eles se diferenciam, não somente segundo
as classes, mas segundo "famílias espirituais" ainda mais profundas.
De um momento para outro eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por
outros signos. Assim, a tarefa do
aprendiz é compreender por que alguém é "recebido" em determinado
mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos e
quem são seus legisladores e seus papas. Na obra de Proust, Charlus é o mais
prodigioso emissor de signos, pelo seu poder mundano, seu orgulho, seu senso
teatral, seu rosto e sua voz. Mas Charlus, movido pelo amor, não é nada nos salões dos Verdurin; mesmo no seu
próprio mundo, acabará por não ser mais nada quando as leis implícitas tiverem
mudado. Qual é, então, a unidade dos
6
signos mundanos? Um
cumprimento do duque de Guermantes deve ser interpretado e, neste caso, os
riscos de erro são tão grandes quanto num diagnóstico. O mesmo acontece com uma
simples mímica da Sra. Verdurin.
O signo mundano surge como o substituto de uma
ação ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um
signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação transcendente ou
conteúdo ideal, mas que usurpou o suposto valor de seu sentido. Por esta razão
a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e,
do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se pensa, não se ag, mas
emitem-se signos. Nada engraçado é dito em casa da Sra. Verdurin e esta não ri,
mas Cottard faz sinal de que está dizendo alguma coisa engraçada, a Sra.
Verdurin faz sinal de que ri e este signo é tão perfeitamente emitido que o Sr.
Verdurin, para não parecer inferior, procura, por sua vez, uma mímica
apropriada. A Sra. de Germantes dá, muitas vezes, mostras de um coração duro e
de pouca inteligência, mas emitirá sempre signos encantadores. Ela nada faz por seus amigos, não pensa como eles,
emite-lhes signos. O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a "substitui",
pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula
pensamento e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e sua
vacuidade,
embora não se possa concluir que esses signos sejam desprezíveis. O
aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles.
Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, como que
um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos mundanos
são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, exprimindo sobre nós
o efeito das pessoas que sabem produzi-los.3
3. CG
426-431.
7
O segundo
círculo é o do amor. O encontro Charlus-Jupien leva o leitor a assistir à mais prodigiosa troca de signos. Apaixonar-se é
individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É torna-se sensível a esses signos, aprendê-los (como a lenta individualização de Albertina
no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de
conversa, mas o
amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como
um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós.
O amado implica, envolve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar,
isto é, interpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo
do amor não diz respeito apenas à multiplicidade
dos seres amados, mas também à multiplicidade
das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem envolvidos no
amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por
mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso,
também as mulheres amadas estão muitas vezes ligadas a paisagens que
conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las
refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um
ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países
inacessíveis, desconhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a
praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma
paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que
somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que
universo me distinguia ela?"4
Há,
portanto, uma contradição no amor. Não podemos interpretar os signos de um
ser amado sem desembocar em mundos que se formaram sem nós, que se formaram
com outras
4. RF 294.
8
pessoas,
onde não somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe
dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos
do amado, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedicados,
exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de preferência; mas, como esses signos são os
mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada
preferência que nós usufruímos delineia a imagem do mundo possível onde
outros seriam ou são preferidos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a
sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe dirigira naquela mesma
noite – e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por
outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela,
cada carícia inventada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar,
cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam
enriquecer de novos instrumentos o seu suplício."5 A contradição
do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme
são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia,
de independência, com relação ao nosso amor.
A primeira lei do amor é subjetiva:
subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do
amor. O ciúme
vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação
do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado,
desde que os "expliquemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a
nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o
amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular
do amado, mas em razão de uma contradição mais profunda, que provém da
natureza do amor e da si-
5. CS
232·233.
9
tuação
geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são
signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentiroros que
não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a origem dos
mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão
sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento
de um aprofundamento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérprete de
mentiras. O seu destino está contido no lema "Amar sem ser
amado".
Que
esconde a mentira dos signos amorosos? Todos os signos
mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto:
o mundo de Gomorra, que também não depende desta ou daquela mulher (embora
determinada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a
possibilidade feminina por excelência, como um a priori que o
ciúme descobre. O mundo expresso pela mulher
amada é sempre um mundo que nos exclui, mesmo quando ela nos dá mostras de
preferência. Mas, de todos os mundos, qual o mais exclusivo? "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de
sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da
realidade que nos submerge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas
suposições, era por elas pressentido (...) o rival não era semelhante a mim,
suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, proporcionar a
Albertina os mesmos prazeres, nem mesmo concebê-los de modo exato."6
Nós interpretamos todos os signos da mulher amada, mas no final dessa dolorosa
decifração nos deparamos com o signo de Gomorra como a expressão mais profunda
de uma realidade feminina original.
6. SG
405-409.
10
A segunda
lei do amor proustiano se liga à primeira: objetivamente os amores intersexuais são menos profundos
que a homossexualidade, encontram sua verdade na homossexualidade. Pois, se é
verdade que o segredo da mulher amada é o segredo de Gomorra, o segredo do
amante é o de Sodoma. Em circunstâncias análogas, o herói da Recherche surpreende a Srta. Vinteuil e surpreende Charlus.7
Mas a Srta. Vinteuil explica todas as mulheres amadas, como Charlus implica
todos os amantes. No infinito de nossos amores está o hermafrodita original.
Mas o hermafrodita não é um ser capaz de fecundar-se. Ao invés de reunir os
sexos, ele os separa; é a fonte de onde jorram continuamente as duas séries
homossexuais divergentes, a de Sodoma e a de Gomorra. É ele que possui a chave da predição de Sansão: "Os dois sexos morrerão
cada um para seu lado."8 Assim, os amores intersexuais são
apenas a aparência que encobre a destinação de cada um, escondendo o fundo
maldito onde tudo se elabora. Se as duas séries homossexuais são o mais profundo,
é também em função dos signos. As personagens de Sodoma e de Gomorra
compensam, pela intensidade do signo, o segredo a que estão ligadas. De uma
mulher que olha Albertina, Proust escreve: "Dir-se-ia fazer-lhe sinais
como com o auxílio de um farol."9 O mundo
do amor vai dos signos reveladores da mentira aos signos ocultos de Sodoma e
Gomorra.
*
O
terceiro mundo é o das impressões ou das qualidades sensíveis.
Uma qualidade sensível nos proporciona uma estranha alegria, ao mesmo tempo que
nos transmite uma espécie de imperativo. Uma vez experimentada, a qualidade
não aparece mais como uma propriedade do objeto que a possui no momen-
7.SG 8.
8.SG 14.
9.SG 200.
11
to, mas
como o signo de um objeto completamente
diferente, que devemos tentar decifrar através de um esforço sempre sujeito a
fracasso. Tudo se passa como se a qualidade envolvesse, mantivesse
aprisionada, a alma de um objeto diferente daquele que ela agora designa. Nós
"desenvolvemos" esta qualidade, esta impressão sensível, como um
pedacinho de papel japonês que se abre na água e liberta a forma aprisionada.10 Exemplos
como esse são os mais célebres da Recherche e aumentam no final (a revelação final do "tempo
redescoberto" é anunciada pela multiplicação desses signos). Mas,
quaisquer que sejam os exemplos – madeleine, campanários, árvores, pedras do calçamento, guardanapo,
barulho de colher ou do cano d'água –, trata-se sempre do mesmo
desenvolvimento. No princípio, uma intensa alegria, de tal modo que estes
signos já se distinguem dos precedentes por seu efeito imediato. Depois, uma
espécie de sentimento de obrigação, necessidade de um trabalho do pensamento:
procurar o sentimento do signo (acontece, entretanto, que nós nos furtamos a
esse imperativo, por preguiça ou porque nossas buscas fracassam por impotência
ou azar: como acontece no caso das árvores). Finalmente, o sentido do signo
aparece, revelando-nos o objeto oculto – Combray para a madeleine, as jovens para os campanários, Veneza para as pedras do
calçamento...
É duvidoso que o esforço de interpretação
termine aí. Falta ainda explicar a razão pela qual, através da solicitação da madeleine, Combray não se contenta de ressurgir tal como esteve presente
(simples associação de idéias), mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua
"essência", na sua eternidade. Ou, o que vem dar no mesmo, resta
explicar por que sentimos uma alegria tão intensa e tão particular. Em um texto
importante, Proust cita a madeleine como um fracasso: "... de cujos (sic!) causas
profundas adiara até então a busca."11
10.CS 47.
11.TR 121.
12
Entretanto,
a madeleine, de determinado ponto de vista,
aparece como um verdadeiro sucesso: o intérprete encontra seu sentido, não sem
esforço, na lembrança inconsciente de Combray. As três árvores, pelo
contrário, são um fracasso total, pois seu sentido nunca é elucidado. Deve-se
portanto pensar que, ao escolher a madeleine como exemplo de insuficiência, Proust visa a uma nova
etapa da interpretação, uma etapa final.
As
qualidades sensíveis ou as impressões, mesmo bem interpretadas,
não são ainda em si mesmas signos suficientes. Não são mais signos vazios,
provocando-nos uma exaltação artificial, como os signos mundanos. Também não
são signos enganadores que nos fazem sofrer, como os do amor, cujo verdadeiro
sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São signos verídicos, que
imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum, signos plenos,
afirmativos e alegres. São signos
materiais. Não simplesmente
por sua origem sensível. Seu sentido
tal como é desenvolvido significa Combray, as jovens, Veneza ou Balbec. Não é
apenas sua origem, mas sua explicação, seu desenvolvimento, que permanece
material.12 Sentimos perfeitamente que Balbec, Veneza... não surgem
como produto de uma associação de idéias, mas em pessoa e em essência. Todavia,
não estamos ainda em estado de poder compreender o que é essa essência ideal,
nem por que sentimos tanta alegria. "O gosto da madeleine lembrava-me
Combray. Mas, por que me tinham, num como noutro momento, comunicado as imagens
de Combray e de Veneza uma alegria semelhante à da
certeza e suficiente para, sem mais provas, tornar-me indiferente a idéia da
morte?"13
*
No final
da Recherche, o intérprete compreende o que
lhe escapara no caso da madeleine ou dos campanários: o sentido
12.P 321.
13. TR 121.
13
material
não é nada sem uma essência ideal que ele encarna. O erro é acreditar que os
hieróglifos representam "apenas objetos materiais".14 O
que permite agora ao intérprete ir mais além é que, nesse meio-tempo, o
problema da Arte foi colocado e resolvido. Ora, o mundo da Arte é
o último mundo dos signos; e esses signos, como que desmaterializados, encontram
seu sentido numa essência ideal. Desde então, o mundo revelado da Arte reage
sobre todos os outros, principalmente sobre os signos sensíveis; ele os
integra, dá-lhes o colorido de um sentido estético e penetra no que eles tinham
ainda de opaco. Compreendemos então que os signos sensíveis já remetiam
a uma essência ideal que se encarnava no seu sentido material. Mas sem a Arte
nunca poderíamos compreendê-los, nem ultrapassar o nível de interpretação que
correspondia à análise da madeleine. É por esta razão que todos os signos convergem para a
arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados inconscientes
da própria arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte.
Ainda não
os definimos. Esperamos apenas que concordem que o problema de Proust é o dos
signos em geral e que os signos constituem diferentes mundos: signos mundamos
vazios, signos mentirosos do amor, signos sensíveis materiais e, finalmente,
signos essenciais da arte (que transformam todos os outros).
14. TR 129.
14
Capítulo
II
Signo
e Verdade
Na
realidade, a Recherche du temps perdu é uma
busca da verdade. Se ela se chama busca do tempo perdido é apenas porque a
verdade tem uma relação essencial com o tempo. Tanto no amor como na natureza
ou na arte, não se trata de prazer, mas de verdade.1 Ou melhor, só
usufruímos os prazeres e as alegrias que correspondem à descoberta da verdade. O
ciumento sente uma pequena alegria quando consegue decifrar uma mentira do
amado, como um intérprete que consegue traduzir um trecho complicado, mesmo
quando a tradução lhe revela um fato pessoalmente desagradável e doloroso.2
É preciso então compreender como
Proust define sua própria busca da verdade, como a contrapõe a outras buscas,
científicas ou filosóficas.
Quem procura a verdade? E o que
está querendo dizer aquele que diz "eu quero a verdade"? Proust não
acredita que o homem, nem mesmo um espírito suposmente puro, tenha naturalmente
um desejo do verdadeiro, uma vontade de verdade. Nós só procuramos a verdade
quando estamos
determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma
espécie de violência que nos leva a essa busca. Quem procura a verdade?
O ciumento sob a pressão das mentiras do amado. Há sempre a violência de um
signo que nos força a procurar,
1.RF 10.
2.CS 238.
15
que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa
vontade, ela se trai por signos involuntários.3
O erro da filosofia é
pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela
verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem
perturbam. "As idéias formadas pela inteligência pura só possuindo uma
verdade lógica, uma verdade possível, sua seleção torna-se arbitrária."4
Elas são gratuitas porque nascidas da inteligência, que somente lhes confere
uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria
a autenticidade. As idéias da inteligência só valem por sua significação
explícita, portanto convencional. Um dos temas em que Proust mais insiste é
este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de
uma violência sobre o pensamento. As significações explícitas e
convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como
aparece encoberto e implícito num signo exterior.
À idéia
filosófica de "método" Proust opõe a dupla idéia de
"coação" e "acaso". A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos
força a pensar e a procurar o que é verdadeiro. O acaso dos encontros, a
pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é
precisamente o signo que é
objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violência. O acaso do encontro é que
garante a necessidade daquilo que é pensado. Fortuito e inevitável, como
diz Proust. "E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as
duas pedras em que tropeçara no pátio."5 O que quer aquele que
diz "eu quero a verdade"? Ele só a quer coagido e forçado. Só a quer sob o império de um
encontro, em relação a determinado signo. Ele quer interpretar, decifrar,
traduzir, encontrar o sentido do signo.
3.CG 46.
4.TR 130.
5.TR 130.
16
"Cumpria-me pois buscar o sentido, encoberto pelo
hábito, dos menores signos que me rodeavam, Guermantes, Albertina, Gilberta,
Saint-Loup, Balbec etc."6
Procurar a verdade é interpretar, decifrar, explicar, mas
esta "explicação" se confunde com o desenvolvimento do signo em si
mesmo; por isso a Recherche é sempre
temporal e a verdade sempre uma verdade do tempo. A sistematização final evoca
o fato de que o próprio Tempo é plural. Daí a grande distinção entre o Tempo
perdido e o Tempo redescoberto: há verdades do tempo perdido e verdades do
tempo redescoberto. É importante distinguir quatro estruturas do tempo,
cada qual contendo sua verdade. O tempo perdido não é apenas o tempo que passa,
alterando os seres e anulando o que passou; é também o tempo que se perde (por
que, ao invés de trabalharmos e sermos artistas, perdemos tempo na vida
mundana, nos amores?). E o tempo redescoberto é, antes de tudo, um tempo que
redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da eternidade;
mas é também um tempo original absoluto, verdadeira eternidade que se afirma na
arte. Para cada espécie de signo há uma linha de tempo privilegiado que lhe
corresponde, em que o pluralismo multiplica as combinações. Cada espécie de
signo participa, de modo desigual, de várias linhas de tempo; uma mesma linha
mistura desigualmente várias espécies de signos.
*
Há signos que nos obrigam a pensar no tempo perdido, isto
é, na passagem do tempo, na anulação do que passou e na alteração dos seres.
Rever pessoas que nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus
rostos, não sendo mais habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os
efeitos do tempo, que modificou determinados traços, alongando-os, tornando
6.TR 143.
17
outros flácidos ou vincados. O Tempo, para tornar-se
visível, "vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se
apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica".7 No final da Recherche surge um desfile de rostos no salão dos Guermantes; mas,
se tivéssemos tido o necessário aprendizado, teríamos sabido desde o início
que os signos mundanos, em razão de sua vacuidade, deixavam transparecer alguma
coisa de precário, ou então já se cristalizavam, se imobilizavam, para esconder
sua alteração, pois a mundanidade é, a todo instante, alteração, mudança. "As
modas mudam, visto elas mesmas nascerem da necessidade de mudança."8
No final da Recherche Proust
mostra a profunda modificação da sociedãde, motivada não só pelo caso Dreyfus
como pela guerra e, principalmente, pelo próprio Tempo. Ao invés de ver nisso o
fim de um "mundo", ele compreende que o mundo que havia conhecido e
amado era em si mesmo alteração e mudança, signo e efeito de um Tempo perdido
(até mesmo dos Guermantes nada permaneceu além do sobrenome). Proust não
concebe absolutamente a mudança como uma duração bergsoniana, mas como uma
defecção, uma corrida para o túmulo.
Com mais razão, os signos do amor antecipam, de certo
modo, sua alteração e sua anulação; são eles que implicam o tempo perdido no
estado mais puro. O envelhecimento dos freqüentadores de salões não é nada
comparado ao inacreditável e genial envelhecimenento de Charlus, que é
simplesmente uma redistribuição de suas almas múltiplas, já presentes no modo
de olhar ou no tom de voz de Charlus ainda jovem. É por uma
simples razão que os signos do amor e do ciúme trazem consigo a própria
destruição: o amor não pára de preparar seu próprio desaparecimento, de
figurar sua ruptura. Assim é no amor como na morte. Do mesmo modo que
imaginamos estar ainda vivos
7.TR 162.
8.RF 3.
18
para ver a cara que farão aqueles que nos perderam,
também imaginamos estar ainda suficientemente apaixonados para gozar a
tristeza daquele que não mais amamos. É bem verdade que repetimos
nossos amores passados, mas também é verdade que nosso amor atual, em toda a
sua vivacidade, "ensaia" o momento da ruptura ou antecipa seu
próprio fim. Esse é o sentido do que chamamos uma cena de ciúme. Nós
encontramos essa repetição voltada para o futuro, esse ensaio do desfecho, no
amor de Swann por Odette, no amor por Gilberta ou por Albertina. Diz Proust, a
respeito de Saint-Loup: "Sofria de antemão. Sem esquecer uma só, todas as
dores de uma ruptura que em outros momentos julgava poder evitar."9
É mais espantoso que os signos sensíveis, apesar de
sua plenitude, possam também ser signos de alteração e de desaparecimento.
Entretanto, Proust cita um caso, o da botina e da lembrança da avó, que, em
princípio, não difere da madeleine e das
pedras do calçamento, mas nos faz sentir uma ausência dolorosa e constitui o
signo de um Tempo perdido para sempre, ao invés de nos dar a plenitude do Tempo
que redescobrimos.10 Inclinado sobre sua botina, ele sente algo de
divino; tem, entretanto, os olhos marejados de lágrimas, pois a memória
involuntária traz-lhe a lembrança desesperadora da avó morta. "Não era
senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse
anacronismo que tantas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o
dos sentimentos – que eu acabava de saber que ela estava morta. (...) que a
havia perdido para sempre." Por que a lembrança involuntária, ao invés de
uma imagem da eternidade, nos traz o sentimento agudo da morte? Não basta
invocar o caráter particular do exemplo em que ressurge um ser amado, nem a
culpa que o herói sente em relação à avó. É no
próprio signo sensível que devemos encontrar uma
9. CG 91.
10. SG 127-132.
19
ambivalência capaz de explicar por que às vezes ele se
transforma em dor em vez de prolongar-se em prazer.
A botina, tanto quanto a madeleine, provoca a intervenção da memória involuntária: uma
sensação antiga tenta se superpor, se acoplar à sensação
atual, e a estende sobre várias épocas ao mesmo tempo. Basta, entretanto, que a
sensação atual oponha à antiga
sua "materialidade" para que a alegria dessa superposição dê lugar a
um sentimento de fuga, de perda irreparável, em que a sensação antiga é
repelida para o fundo do tempo perdido. O fato de o herói sentir-se culpado dá
apenas à sensação atual o poder de
evitar que ela seja absorvida pela sensação antiga. Ele começa sentindo a
mesma felicidade que no caso da madeleine, mas logo a felicidade é substituída pela certeza da morte
e do nada. Há uma ambivalência que sempre permanece como uma possibilidade da
memória em todos os signos em que ela intervém (daí a inferioridade desses
signos). É que a própria Memória implica "a estranha
contradição entre a sobrevivência e o nada", "a dolorosa síntese da
sobrevivência e do nada".11 Mesmo na madeleine ou nas pedras do calçamento o nada aparece, desta vez
encoberto pela superposição das duas sensações.
*
Ainda de uma outra maneira os signos mundanos, principalmente
os signos mundanos, mas também os signos do amor e mesmo os signos sensíveis,
são signos de um tempo "perdido": são os signos de um tempo que se perde. Pois não
é muito sensato freqüentar a sociedade, apaixonar-se por mulheres medíocres,
nem mesmo despender tantos esforços de imaginação diante de um pilriteiro,
quando melhor seria conviver com pessoas profundas, e, sobretudo, trabalhar. O
herói da Recherche expressa
11. SG 130.
20
muitas vezes sua decepção, e a de seus pais, diante de
sua impotência para trabalhar, para iniciar a obra literária que ele anuncia.12
A revelação final de que há verdades a serem descobertas nesse tempo
que se perde é o resultado essencial do aprendizado. Um trabalho
empreendido pelo esforço da vontade não é nada; em literatura ele só nos pode
levar a essas verdades da inteligência., às quais falta a marca da
necessidade, e das quais se tem sempre a impressão de que elas "teriam
podido" ser outras e ditas de forma diferente. Do mesmo modo, o que diz um
homem profundo e inteligente vale por seu conteúdo manifesto, por sua
significação explícita, objetiva e elaborada; tiraremos pouca coisa disso,
apenas possibilidades abstratas, se não soubermos chegar a outras verdades por
meio de outras vias, que são precisamente as do signo. Ora, um ser medíocre ou
mesmo estúpido, desde que o amemos, é mais rico em signos do que o espírito
mais profundo, mais inteligente. Tanto mais uma mulher é incapaz, limitada,
mais ela compensa por meio de signos – que às vezes a traem e denunciam uma
mentira – sua incapacidade de formular julgamentos inteligentes ou de ter um
pensamento coerente. Proust assim se refere aos intelectuais: ''A mulher
medíocre, que nos espantávamos ao ver preferida por eles, enriquece-lhes bem
mais o universo do que o teria feito uma mulher inteligente."13
Existe uma embriaguez provocada pelas matérias e naturezas rudimentares por
serem ricas em signos. Com a mulher amada medíocre nós voltamos às origens da
humanidade, isto é, ao tempo em que os signos sobrepujavam o conteúdo
explícito, e os hieróglifos substituíam as letras: essa mulher não nos
"comunica" nada, mas não deixa de produzir signos que devem ser
decifrados.
12.RF 121·122.
13.F 156.
21
Por isso, quando pensamos que perdemos nosso tempo, seja
por esnobismo, seja por dissipação amorosa, estamos muitas vezes trilhando um
aprendizado obscuro, até a revelação final de uma verdade desse tempo que se
perde. Nunca se sabe como
uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio
de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem
sabe como um estudante pode tornar-se repentinamente "bom em latim",
que signos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de
aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos
professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a
heterogeneidade como relação. Nunca se aprende fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende.
Quem sabe como se tornar um grande escritor? Diz Proust, a propósito de Otávio:
"Não me impressionei menos ao refletir que talvez as obras-primas mais extraordinárias
de nossa época tenham saído, não dos concursos universitários, de uma educação
modelar e acadêmica, no estilo de Broglie, mas do contato com as 'pesagens' e
com os grandes bares."14
Mas perder tempo não é o suficiente. Como vamos extrair
as verdades do tempo que se perde, e mesmo as verdades do tempo perdido? Por
que Proust chama essas verdades de "verdades da inteligência"? De
fato, elas se opõem às verdades que a inteligência descobre quando trabalha de
boa vontade, põe-se em ação e recusa-se a perder tempo. Vimos, sob esse ponto
de vista, a limitação das verdades propriamente intelectuais: falta-lhes
"necessidade". Em
arte ou em literatura, quando a inteligência intervém, é sempre depois, nunca antes: ''A impressão é para o escritor o mesmo que a experimentação é
para o sábio,
14. F 148.
22
com a diferença de ser neste anterior e naquele posterior
o trabalho da inteligência."15 Em primeiro lugar, é preciso
sentir o efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que forçado
a procurar o sentido do signo. Em Proust, o pensamento geralmente aparece sob
várias formas: memória, desejo, imaginação, inteligência, faculdade das
essências... Mas, no caso do tempo que se perde e do tempo perdido, é a
inteligência, e apenas ela, que é capaz de tornar possível o esforço do
pensamento, ou de interpretar o signo; é ela que o encontra, contanto que venha
"depois". Dentre todas as formas do pensamento, só a inteligência
extrai as verdades dessa ordem.
Os signos mundanos são frívolos, os do amor e do ciúme,
dolorosos; mas quem procuraria a verdade se não tivesse aprendido que um
gesto, uma inflexão, uma saudação devem ser interpretados? Quem procuraria a
verdade se não tivesse inicialmente experimentado o sofrimento que causa a
mentira do ser amado? As idéias da inteligência são muitas vezes "sucedâneos"
do desgosto.16 A dor força a inteligência a pesquisar, como certos
prazeres insólitos põem a memória a funcionar. Cabe à inteligência compreender, e nos fazer compreender, que os signos mais
frívolos da mundanidade correspondem a determinadas leis e que os signos
dolorosos do amor correspondem a repetições. Assim, aprendemos a nos servir dos
seres: frívolos ou cruéis, eles "posaram diante de nós", eles nada
mais são do que a encarnação de temas que os ultrapassam, ou pedaços de uma
divindade que nada mais pode contra nós. A descoberta das leis mundanas dá um
sentido a signos que se tornariam insignificantes tomados isoladamente; mas,
sobretudo, a compreensão de nossas repetições amorosas transforma em alegria
cada um desses signos que, tomados isoladamente, tanto sofri-
15.TR 130.
16.TR 150.
23
mento nos causaria. "Pois nem ao ser que mais amamos
somos tão fiéis como a nós mesmos, e cedo ou tarde nós o esquecemos, a fim de
poder – visto ser esse um de nossos traços de caráter continuar a amar."17
Um a um os seres que amamos nos fizeram sofrer; mas a cadeia interrompida que
eles formam é um alegre espetáculo da inteligência. Graças à inteligência,
descobrimos então o que não podíamos saber no início: que, quando pensávamos
perder tempo, já fazíamos o aprendizado dos signos. Apercebemo-nos de que nossa
vida preguiçosa se identificava com nossa obra: "toda minha vida... uma
vocação."18
Tempo que se perde, tempo
perdido, mas também tempo que se redescobre.e tempo redescoberto. A cada
espécie de signo corresponde, sem dúvida, uma linha de tempo privilegiada. Os
signos mundanos implicam principalmente um tempo que se perde; os signos do
amor envolvem particularmente o tempo perdido. Os signos sensíveis muitas vezes
nos fazem redescobrir o tempo, restituindo-o no meio do tempo perdido.
Finalmente, os signos da arte nos trazem um tempo redescoberto, tempo original
absoluto que compreende todos os outros. Mas, se cada signo tem sua dimensão
temporal privilegiada, cada um também se cruza com as outras linhas e
participa das outras dimensões do tempo. O tempo que se perde prolonga-se no
amor e mesmo nos signos sensíveis; o tempo perdido já aparece na mundanidade e
subsiste ainda nos signos da sensibilidade. O tempo que se redes cobre reage,
por sua vez, sobre o tempo que se perde e sobre o tempo perdido. É no tempo
absoluto da obra de arte que todas as outras dimensões se unem e encontram a
verdade que lhes corresponde. Os mundos de signos, os círculos da Recherche, se desdobram, então, segundo linhas do tempo, verdadeiras
linhas de aprendizado; mas,
nessas linhas, eles inter-
17.TR 151.
TR
145.
24
ferem uns sobre os outros. Sem se corresponderem ou
simbolizarem, sem se entrecruzarem, sem entrarem em combinações complexas que
constituem o sistema da verdade, os signos não se desenvolvem, não se explicam,
pelas linhas do tempo.
25
Capítulo III
O Aprendizado
A obra de Proust não é voltada para o passado e as
descobertas da memória, mas para o futuro e os progressos do aprendizado. O
importante é que o herói não sabe certas coisas no início, aprende-as
progressivamente e tem a revelação final. Inevitavelmente, ele sofre
decepções: "acreditava", tinha ilusões; o mundo vacila na corrente do
aprendizado. Mas ainda estamos dando ao desenvolvimento da Recherche um caráter linear. De fato, uma revelação parcial aparece
em determinado campo de signos, mas é acompanhada às vezes de regressões em
outros campos, mergulha numa decepção mais geral, pronta a reaparecer em
outros campos, sempre frágil enquanto a revelação da arte ainda não
sistematizou o conjunto. E, a cada instante, também pode acontecer que uma
decepção particular faça surgir a preguiça e comprometa o todo. Daí a idéia
fundamental de que o tempo forma diversas séries e comporta mais dimensões do
que o espaço: o que é ganho em uma não é ganho na outra. A Recherche é ritmada não apenas pelos depósitos ou sedimentos da
memória, mas pelas séries de decepções descontínuas e pelos meios postos em
prática para superá-las em cada série.
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a
ser decifrada é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer
oculto em nós mesmos se não tivéssemos os encontros necessários; e esses
encontros ficariam sem efeito se não conseguíssemos vencer certas crenças. A
primeira dessas crenças
26
é atribuir ao objeto os signos de que é portador. Tudo
nos leva a isso: a percepção, a paixão, a inteligência, o hábito e até mesmo o
amor-próprio.1 Pensamos que o próprio "objeto" traz o
segredo do signo que emite e sobre ele nos fixamos, dele nos ocupamos para
decifrar o signo. Por comodismo, chamemos objetivismo
essa tendência que nos é natural ou pelo menos habitual.
Cada uma de nossas impressões tem dois lados:
"Envolta uma parte pelo objeto, prolongada em nós a outra, só de nós conhecida."2
Cada signo tem duas metades: designa um objeto
e significa alguma coisa diferente. O lado objetivo é o lado do prazer, do gozo imediato e da prática:
enveredando por este caminho, já sacrificamos o lado da "verdade". Reconhecemos as coisas sem
jamais as conhecermos. Confundimos o significado do signo com o ser ou o
objeto que ele designa. Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos
esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento dos encontros,
preferimos a facilidade das recognições, e assim que experimentamos o prazer
de uma impressão, como o esplendor de um signo, só sabemos dizer "ora,
ora, ora", o que vem a dar no mesmo que "bravo! bravo! bravo!",
expressões que manifestam nossa homenagem ao objeto.3
Tomado por um estranho sabor, o herói se inclina sobre a
xícara de chá, bebe um segundo e um terceiro gole, como se o próprio objeto
fosse revelar-lhe o segredo do signo. Impressionado com o nome de um lugar, com
o nome de uma pessoa, ele pensa, de início, nas criaturas e nos lugares que
esses nomes designam. Antes de conhecê-la, a Sra. de Guermantes lhe aparecia
com a auréola do prestígio, porque devia possuir, acreditava ele, o segredo de
seu nome. Imaginava-a "banhada, como em um poente, na luz alaranjada que
emana desta sílaba – antes".4 E quando a viu:
1.TR 142.
2. TR 139.
3. CS 135-136 e TR 139.
4. CS 148.
27
"Dizia comigo que era mesmo ela que designava para todo o mundo o nome de Duquesa de Guermantes; a
vida inconcebível que este nome significava, continha-a
realmente aquele corpo."5 O mundo lhe
parece misterioso antes de freqüentá-lo: ele acredita que os que emitem signos
são também os que os compreendem e deles detêm o código. Em seus primeiros
amores, ele faz o "objeto" se beneficiar de tudo o que ele próprio
sente: o que lhe parece único em determinada pessoa parece-lhe também pertencer
a essa pessoa. Tanto que os primeiros amores são orientados para a confissão,
que é justamente a forma amorosa de homenagem ao objeto (devolver ao amado o
que se acredita lhe pertencer). "Mas no tempo em que eu amava Gilberta,
julgava ainda que o Amor existia realmente fora de nós... ; parecia-me que se
eu, por conta própria, houvesse substituído a doçura da confissão pelo
dissímulo da indiferença, ter-me-ia privado de uma das alegrias com que mais
sonhara e também fabricado, à minha
guisa, um amor fictício e sem valor."6 Enfim, a própria arte
parece ter seu segredo nos objetos a descrever, nas coisas a designar, nas
personagens ou nos lugares a observar; e se o herói muitas vezes duvida de
suas capacidades artísticas é porque se sente impotente para observar, para
escutar e para ver.
O "objetivismo" não poupa nenhuma espécie
de signo. Ele não resulta de uma tendência única, mas da reunião de um complexo
de tendências. Relacionar um signo ao objeto que o emite, atribuir ao objeto o
benefício do signo, é de início a direção natural da percepção ou da
representação. Mas é também a direção da memória voluntária, que se lembra das
coisas e não dos signos. É, ainda, a direção do prazer e da atividade prática,
que se baseiam na posse das coisas ou na consumação dos objetos. E, de outra
forma, é a tendência da inteligência. A inteligência
deseja a objetividade, como a percepção o objeto. Anseia por
5. CG 158.
6. CS 331.
28
conteúdos objetivos, significações objetivas explícitas,
que ela própria será capaz de descobrir, de receber ou de comunicar. É, pois, tão objetivista quanto a percepção. Ao mesmo tempo que a percepção se
dedica a apreender o objeto sensível, a inteligência se dedica a apreender as
significações objetivas. Pois a percepção acredita que a realidade deva ser vista, observada, mas a inteligência acredita que a verdade deva ser dita e formulada. O que o
herói da Recherche não sabe no início da
aprendizagem? Não sabe "que a verdade não tem necessidade de ser dita para
ser manifestada, e que podemos talvez colhê-la mais seguramente sem esperar
pelas palavras e até mesmo sem levá-las em conta, em mil signos exteriores,
mesmo em certos fenômenos invisíveis, análogos no mundo dos caracteres ao que
são, na natureza física, as mudanças atmosféricas". 7
Diversos são também as coisas, os empreendimentos e os valores
aos quais tende a inteligência. Ela nos induz à conversação, em que
trocamos e comunicamos idéias; ela nos incita à amizade, fundada na comunidade de idéias e sentimentos; ela nos
convida ao trabalho, pelo qual
chegaremos a descobrir novas verdades comunicáveis; à filosofia, isto é, a
um exercício voluntário e premeditado do pensamento pelo qual chegaremos a
determinar a ordem e o conteúdo das significações objetivas. Devemos reter este
ponto essencial: a amizade e a filosofia são passíveis da mesma crítica.
Segundo Proust, os amigos são como espíritos de boa vontade que estão
explicitamente de acordo sobre a significação das coisas, das palavras e das
idéias; mas o filósofo também é um pensador que pressupõe em si mesmo a boa
vontade de pensar, que atribui ao pensamento o amor natural do verdadeiro e à verdade a determinação explícita daquilo que é naturalmente pensado. Por
esta razão, ao duo tradicional da amizade e da filosofia Proust oporá um duo
mais obscuro forma-
7.CG 46: "Mas Francisca foi quem
primeiro me deu o exemplo (que só mais tarde eu devia compreender. .. )."
29
do pelo amor e a arte. Um amor medíocre vale mais do que
uma grande amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de interpretação
silenciosa. Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosófica, porque o que
está envolvido no signo é mais profundo que todas as significações explícitas;
o que nos violenta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou
de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é "aquilo
que faz pensar".8 Sob todas as formas, a inteligência só
alcança por si própria, e só nos faz atingir, as verdades abstratas e
convencionais, que não têm outro valor além do possível. De que valem essas verdades objetivas que resultam de uma combinação de
trabalho, inteligência e boa vontade, mas que se comunicam na medida em que são
encontradas e são encontradas na medida em que são recebidas? Sobre uma
entonação da Berma disse Proust: "Mas era por causa de sua própria clareza
que não o satisfazia. Tão engenhosa era a entonação, de um significado e
intenção tão definidos, que parecia ter existência própria e que qualquer
artista inteligente a poderia adquirir."9 \
No início, o herói da Recherche
participa, mais ou menos, de todas as crenças objetivistas. Mas que ele
participe menos da ilusão em determinado campo de signos, ou que dela se
desfaça rapidamente em determinado nível, isso não impede que a ilusão
permaneça em outro nível, em outro campo. Desse modo, não parece que o herói
tenha tido algum dia um grande sentido da amizade: esta sempre lhe pareceu
secundária e o amigo valer mais pelo espetáculo que oferece do que por uma
comunhão de idéias ou de sentimentos que inspiraria. Os "homens superiores"
nada lhe ensinam; o próprio Bergotte ou Elstir não lhe podem comunicar nenhuma
verdade que lhe evite fazer seu próprio aprendizado e passar pelos signos e
pelas decepções para os quais ele se inclina. Rapidamente pressente que um es-
8.CG 11l.
9.RF 111.
30
pírito superior ou mesmo um grande amigo não valem um
amor, mesmo passageiro. Entretanto, no amor lhe é muito mais difícil se
desfazer da ilusão objetivista correspondente: é o amor coletivo pelas jovens
em Balbec, é a lenta individualização de Albertina, são os acasos da escolha
que lhe ensinam que as razões de amar nunca se encontram naquele que se ama,
mas remetem a fantasmas, a Terceiros, a Temas que nele se incorporam por
intermédio de complexas leis. Ao mesmo tempo, ele aprende que a confissão não é
o essencial do amor e que não é necessário, nem desejável, confessar: estaremos
perdidos, toda a nossa liberdade estará perdida, se enriquecermos o objeto com
signos e com significações que o ultrapassam. "Desde o tempo dos
brinquedos nos Campos Elíseos, se as criaturas a que se prendia sucessivamente
meu amor permaneciam quase idênticas, tornara-se diferente a minha concepção
do amor. De uma parte, a confissão, a declaração de meu afeto àquela que eu
amava, não mais me parecia uma das cenas necessárias e capitais do amor, nem
este uma realidade exterior... "10
Como é difícil, em qualquer campo, renunciar a essa
crença em uma realidade exterior! Os signos sensíveis nos preparam uma
armadilha e nos induzem a procurar seu sentido no objeto que os contém ou os
emite, de tal maneira que a possibilidade de um fracasso, a renúncia da
interpretação, é como o cupim na madeira. Mesmo quando vencemos as ilusões
objetivistas na maior parte dos campos, elas subsistem ainda na Arte, em que
continuamos a crer que é preciso saber escutar, olhar, descrever, dirigir-se ao
objeto, decompondo-o e triturando-o para dele extrair uma verdade.
O herói da Recherche, entretanto,
conhece muito bem os defeitos de uma literatura objetivista e insiste, muitas
vezes, em sua impotência para observar, para descrever. São célebres os
10. RF 398.
31
ódios de Proust: contra Sainte-Beuve, para quem a
descoberta da verdade não se separa de uma "conversa", de um método
de colóquio, pelo qual se pretende extrair a verdade dos dados mais
arbitrários, a começar pelas confidências daqueles que pretendem ter conhecido
bem alguém; contra os Goncourt, que decompõem um personagem ou um objeto,
examinam-no, analisam sua arquitetura, refazem suas linhas e projeções para
delas tirar verdades exóticas (os Goncourt também acreditavam no prestígio da
conversação); contra a arte realista ou popular que acredita nos valores
inteligíveis, nas significações bem definidas e nos grandes temas. É preciso julgar os métodos pelos seus resultados: por exemplo, as coisas
lastimáveis que Sainte-Beuve escreveu sobre Balzac, Stendhal ou Baudelaire. O que podem
os Goncourt entender a respeito do casal
Verdurin ou de Cottard? Nada, se nos ativermos ao pastiche da Recherche.
Eles relatam e analisam o que foi expressamente dito, mas
passam ao largo dos signos mais evidentes, signo da burrice de Cottard, mímica
e símbolos grotescos da Sra. Verdurin. A arte popular e proletária se
caracteriza por considerar os operários uns imbecis. É decepcionante, por natureza, uma literatura que interpreta os signos
relacionando-os com objetos designáveis (observação e descrição), que se cerca
de garantias pseudo-objetivas do testemunho e da comunicação (conversa, pesquisa),
que confunde o sentido com significações inteligíveis, explícitas e formuladas
(grandes temas).11
O herói da Recherche sempre se
sentiu estranho a essa concepção da arte e da literatura. Por que, então,
experimenta uma decepção tão forte cada vez que verifica sua inanidade? É que,
11.TR 143. Devemos evitar o
julgamento de que a crítica proustiana do objetivismo . possa se aplicar ao que
chamamos hoje nouveau romano Os métodos de descrição do
objeto, no nouveau roman, só têm sentido em relação com as
modificações subjetivas que eles servem para revelar e que sem eles
permaneceriam imperceptíveis. O nOLl\!eaU roman permanece
sob o signo dos hieróglifos e das verdades implicadas.
32
pelo menos, a arte encontrava nessa concepção uma
destinação precisa: ela abraçava a vida para exaltá-Ia, para dela extrair o
valor e a verdade. Quando protestamos contra uma arte de observação e de
descrição, quem diz que não é nossa incapacidade de observar, de descrever, que
alimenta esse protesto? Nossa incapacidade de compreender a vida? Acreditamos
estar reagindo a uma forma ilusória de arte, mas estamos talvez reagindo a uma
fraqueza de nossa natureza, a uma falta de querer-viver. Tanto que nossa
decepção não é simplesmente a que é provocada pela literatura objetiva, mas
também a que é suscitada pela incapacidade de nos realizarmos nessa forma de
literatura.12 Apesar de sua repugnância, o herói da Recherche não pode, entretanto, deixar de sonhar com os dons de
observação que lhe poderiam suprir as intermitências da inspiração. "Ao
dar-me, porém, a esperança de uma possível observação humana, substituir a
inspiração impossível, eu a sabia apenas um consolo... "13 A decepção com a literatura é inseparavelmente dupla: "A literatura
não me daria mais a menor alegria, não sei se por culpa minha, de minha
incapacidade, ou sua, se de fato era menos carregada de realismo do que eu
supusera."14
A decepção é um momento fundamental da busca ou do
aprendizado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não
nos revela o segredo que esperávamos. E a decepção é pluralista, variável
segundo cada linha. Poucas são as coisas não decepcionantes à primeira vez que
as vemos, porque a primeira vez é a vez da inexperiência, ainda não somos capazes
de distinguir o signo e o objeto: o objeto se interpõe e confunde os signos.
Decepção na primeira audição de Vinteuil, no primeiro encontro com Bergotte, na
primeira visão da igreja de Balbec. Não basta voltar às coisas uma segunda vez, porque
a
12.TR 18-20.
13.TR 112.
14.TR 120.
33
memória voluntária e esse próprio retorno apresentam
inconvenientes análogos aos que nos impediam, na primeira vez, de experimentar
livremente os signos (a segunda estada em Balbec não foi menos decepcionante
que a primeira, sob outros aspectos) .
Como, em cada caso, remediar a decepção? Em cada linha de
aprendizado, o herói passa por uma experiência análoga, em momentos diversos: ele se esforça para encontrar uma compensação subjetiva à decepção com relação ao objeto. Quando
vê, e mais tarde vem a conhecer, a Sra. de Guermantes, ele percebe que ela não
detém o segredo do sentido de seu sobrenome. Seu rosto e seu corpo não são
coloridos pela tinta das sílabas. Que fazer senão compensar a decepção?
Tornar-se pessoalmente sensível a signos menos profundos, porém mais
apropriados ao charme da duquesa, graças ao jogo de associações de idéias que
ela nos desperta. "Que a Sra. de Guermantes fosse igual às outras mulheres,
e isso tenha sido uma decepção para mim no princípio, agora, por reação, e com
o auxílio, de vinhos tão bons, era quase um maravilhamento."15
O mecanismo da decepção objetiva e da compensação subjetiva
é particularmente analisado no exemplo do teatro. O herói deseja ouvir a
Berma. Mas, quando o consegue, procura inicialmente reconhecer o seu talento,
delineá-lo, isolá-lo para poder, enfim, designá-la. É a Berma,
"finalmente eu ouço a Berma". Ele percebe uma entonação
particularmente inteligente, de admirável justeza. De repente, é Fedra, é Fedra
em pessoa. Entretanto, nada impede a decepção, pois essa entonação tem apenas
valor inteligível, um sentido perfeitamente definido; ela é somente o fruto da
inteligência e do trabalho.16 Talvez fosse necessário ouvi-la de
outro modo. Os signos que não soubemos apreciar nem interpretar enquanto os
relacionávamos à pessoa
15.CG 408.
16.RF 111.
34
da Berma, talvez devêssemos procurar seu sentido em outro
lugar: nas associações que não estão nem em Fedra, nem na Berma. Por isso
Bergotte explica ao herói que determinado gesto da Berma evoca o de uma
estatueta antiga que a atriz nunca viu e na qual, certamente, Racine nunca
pensou.17
Cada linha de aprendizado passa por esses dois momentos:
a decepção provocada por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa
de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva, em que reconstruímos
conjuntos associativos. O que acontece no amor, acontece também na arte. É fácil
compreender a razão: o signo é sem dúvida mais profundo que o objeto que o
emite, mas ainda se liga a esse objeto, ainda está semi-encoberto. O sentido
do signo é sem dúvida mais profundo do que o sujeito que o interpreta, mas se
liga a esse sujeito, se encarna pela metade em uma série de associações
subjetivas. Passamos de um ao outro, saltamos de um para o outro, preenchemos a
decepção do objeto com uma compensação do sujeito.
Somos, então, capazes de pressentir que o momento da
compensação continua sendo insuficiente e não nos dá uma revelação definitiva.
Substituímos por um jogo subjetivo de associação de idéias os valores
inteligíveis objetivos. A insuficiência dessa compensação aparece melhor quanto
mais subimos na escala dos signos. Um gesto da Berma seria belo porque
evocaria o de uma estatueta, como a música de Vinteuil seria bela porque nos
evocaria um passeio no bois de Boulogne.18 Tudo é permitido no exercício das associações e, sob esse
ponto de vista, não encontramos diferença de natureza entre o prazer da arte e
o da madeleine: sempre o cortejo das
contigüidades passadas. Mesmo a experiência da madeleine não se reduz, na verdade, a simples associação de idéias;
mas não estamos ainda prontos para entender o porquê; e reduzindo a qualidade
de uma obra de arte
17.RF 105.
18.RF 83.
35
ao sabor da madeleine nos
privamos para sempre do meio de entendê-la. Ao invés de nos conduzir a uma
justa interpretação da arte, a compensação subjetiva acaba por fazer da própria
obra de arte um simples elo na cadeia de nossas associações de idéias: como a
mania de Swann, que nunca tinha apreciado tanto Giotto ou Botticelli quanto
quando descobre seus estilos no traçado do rosto de uma cozinheira ou de uma
mulher amada. Ou, então, construímos um museu particular onde o sabor de uma madeleine, a característica de uma corrente de ar valem mais do que
qualquer beleza: "Pois ficava frio diante das belezas que me assinalavam e
exaltava-me com reminiscências confusas (...) detive-me com êxtase a respirar o
cheiro de um vento que passava pela porta. 'Vejo que você gosta das correntes
de ar' – disseram eles."19
*
Entretanto, o que existe além do objeto e do sujeito? O
exemplo da Berma nos dá a resposta. O herói da Recherche compreenderá finalmente que nem a Berma nem Fedra são
pessoas designáveis, nem tampouco elementos de associação. Fedra é um papel a ser representado e a Berma se integra nesse papel. Não
no sentido em que o papel seja ainda um objeto, ou algo subjetivo; muito pelo
contrário, é um mundo, um meio espiritual povoado de essências. A Berma,
portadora de signos, torna-os de tal modo imateriais que eles se abrem
inteiramente para essas essências e são a tal ponto preenchidos por elas que,
mesmo através de um papel medíocre, seus gestos ainda nos revelam um mundo de
essências possíveis.20
Além dos objetos designados, além das verdades inteligíveis
e formuladas, além das cadeias de associação subjetivas e
19.SG 272.
20.CG 31-34.
36
de ressurreições por semelhança ou contigüidade, há as essências,
que são alógicas ou supralógicas. Elas ultrapassam tanto os estados da
subjetividade quanto as propriedades do objeto. É a
essência que constitui a verdadeira unidade do signo e do sentido; é ela que
constitui o signo como irredutível ao objeto que o emite; é ela que constitui
o sentido como irredutível ao sujeito que o apreende. Ela é a última palavra do
aprendizado ou a revelação final. Ora, mais do que pela Berma, é pela obra de
arte, pela pintura e pela música, e sobretudo pelo problema da literatura, que
o herói da Recherche atinge
essa revelação das essências. Os signos mundanos, os signos amorosos e mesmo os
signos sensíveis são incapazes de nos revelar a essência: eles nos aproximam
dela, mas nós sempre caímos na armadilha do objeto, nas malhas da
subjetividade. É apenas no nível da arte que as essências são
reveladas. Mas, uma vez manifestadas na obra de arte,
elas reagem sobre todos os outros campos: aprendemos que elas já se haviam encarnado, já estavam em todas as espécies de
signos, em todos os tipos de aprendizado.
37
Capítulo IV
Os Signos da Arte e a Essência
Qual é a superioridade dos signos da Arte com relação a
todos os outros? É que todos os outros são signos materiais. São
materiais, em primeiro lugar, por causa de sua emissão: eles surgem
parcialmente encobertos no objeto que os porta. As qualidades sensíveis, os
rostos amados, são ainda matéria. (Não é por acaso que as qualidades sensíveis
significativas são principalmente os odores e os sabores – dentre todas as
qualidades, as mais materiais – e que, no rosto amado, são as faces e a textura
da pele que mais nos atraem.) Os signos da arte
são os únicos imateriais. É óbvio que a pequena frase de Vinteuil brota do piano e do violino, podendo,
logicamente, ser decomposta materialmente: cinco notas muito unidas, e duas se
repetindo. Como em Platão, em que 3 + 2 nada explica. O piano
aparece apenas como a imagem espacial de um teclado de natureza diferente, as
notas surgindo como a "aparência sonora" de uma entidade espiritual.
"Como se os intrumentistas estivessem, mais que tocando a frase,
executando os ritmos por ela exigidos para aparecer... "1 Desse ponto de vista, a própria impressão da pequena frase musical é sine materia.2
A Berma, por sua vez, serve-se de sua voz, de seus
braços, mas os gestos, em vez de testemunharem "conexidades muscu-
1.CS 289.
2.CS 178.
38
lares", constituem um corpo transparente que refrata
uma essência, uma Idéia. As atrizes medíocres têm necessidade de chorar para
indicar que seu papel comporta a dor: "Excedente de lágrimas que se via
correr, porque não tinham podido embeber-se na voz marmórea de Arícia ou de
Ismênia." Mas todas as expressões da Berma, como num grande violinista,
tornaram-se qualidades de timbre. Em sua voz "já não subsistia um só dejecto
de matéria inerte e refratária ao espírito".3
Os outros signos são materiais, não apenas por sua origem
e pela maneira como permanecem semi-encobertos no objeto, mas também por seu
desenvolvimento ou sua "explicação". A madeleine nos remete a Combray, o calçamento, a Veneza... Sem
dúvida, as duas impressões, a presente e a passada, têm uma mesma qualidade;
mas não deixam de ser materialmente duas. De tal modo que, cada vez que
intervém a memória, a explicação dos signos comporta ainda alguma coisa de
material.4 Os campanários de Martinville, na ordem dos signos
sensíveis, são um exemplo menos "material" porque apelam para o
desejo e a imaginação e não para a memória.5 Contudo, a impressão
dos campanários se explica pela imagem de três jovens; mas por serem filhas de
nossa imaginação elas não deixam de ser materialmente diferentes dos
campanários.
Proust se refere muitas vezes à necessidade que pesa sobre ele: sempre alguma coisa lhe lembra ou lhe faz
imaginar outra. Mas, qualquer que seja a importância desse processo de analogia
na arte, ele não é sua fórmula mais· profunda. Enquanto descobrirmos o sentido
de um signo em outra coisa, ainda subsistirá um pouco de matéria rebelde ao
espírito. Ao contrário, a Arte nos dá a verdadeira unidade: unidade de um signo
imaterial e de um sentido inteiramente espiritual. A essência é exa-
3. CG 31.
4.P321.
5. lbid.
39
tamente essa unidade do signo e do sentido, tal qual é
revelada na obra de arte. Essências ou idéias são o que revela cada signo da
pequena frase de Vinteuil;6 é o que dá à frase sua existência real, independentemente dos instrumentos e dos sons
que a reproduzem ou a encarnam mais do que a compõem. Nisto consiste a
superioridade da arte sobre a vida: todos os signos que encontramos na vida
ainda são signos materiais e seu sentido, estando sempre em outra coisa, não é
inteiramente espiritual.
*
O que é uma essência, tal como é revelada na obra de
arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que
constitui o ser, que nos faz concebê-lo. Porque só a arte, no que diz respeito
à manifestação das essências, é capaz de nos dar o
que procurávamos em vão na vida: "A diversidade que em vão procurara na
vida, nas viagens... "? "Não
existindo na superfície da Terra, entre todos os países que nossa percepção
uniformiza, o mundo das diferenças, com mais forte razão não existe também no
mundo elegante. Existirá, aliás, em algum lugar? O septeto de Vinteuil parecera
dizer-me que sim."8
Mas o que é uma diferença última absoluta? Não é uma diferença
empírica, sempre extrínseca, entre duas coisas ou dois objetos. Proust nos dá
uma primeira aproximação da essência quando diz que ela é alguma coisa em um
sujeito, como a presença de uma qualidade última no âmago de um sujeito: diferença
interna, "diferença qualitativa decorrente
da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem a arte, seria o
eterno segredo de cada um de nós".9 Sob esse prisma, Proust é
6.CS 290.
7.P 133.
8.P 234.
9.TR 142.
40
leibniziano: as essências são verdadeiras mônadas, cada
uma se definindo pelo po-nto de vista através do qual exprime o mundo, cada
ponto de vista remetendo a uma qualidade última no fundo da mônada. Como diz
Leibniz, elas não têm portas nem janelas: o ponto de vista sendo a própria
diferença, pontos de vista sobre um mundo supostamente o mesmo são tão
diferentes quanto os mundos mais distantes. Por essa razão a amizade só
estabelece falsas comunicações, fundadas sobre mal-entendidos, e só abre
falsas janelas. Por essa razão o amor, mais lúcido, renuncia por princípio a
toda comunicação. Nossas únicas janelas, nossas únicas portas são espirituais:
só há intersubjetividade artística. Somente a arte nos dá o que esperaríamos em
vão de um amigo, o que teríamos esperado em vão de um ser amado. "Só pela
arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não
é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura
existem na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso,
vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quantos artistas originais
existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito... "10
Deve-se concluir que a essência é subjetiva e que a
diferença é mais entre sujeitos do que entre objetos? Isso seria desprezar os
textos em que Proust trata as essências como Idéias platônicas e lhes confere
uma realidade independente. Mesmo Vinteuil "revelou a frase musical"
muito mais do que a criou.11
Cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista.
Mas o ponto de vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta.
Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem dúvida, o
mundo expresso não existe fora do sujeito
que o exprime (o que chamamos de mundo exterior é apenas a projeção ilusória, o
limite uniformizante de todos esses
10.TR 142.
11.CS 290-292.
41
mundos expressos). Mas o mundo expresso não se confunde
com o sujeito: dele se distingue exatamente como aessência se distingue da
existência e inclusive de sua própria existência. Ele não existe fora do
sujeito que o exprime, mas é expresso como a essência, não do próprio sujeito,
mas do Ser, ou da região do Ser que se revela ao sujeito. Razão pela qual cada
essência é uma pátria, um país;12 ela não se reduz a um estado
psicológico, nem a uma subjetividade psicológica, nem mesmo a uma forma qualquer
de subjetividade superior. A essência é a qualidade última no âmago do sujeito,
mas essa qualidade é mais profunda do que o sujeito,
é de outra ordem: "Qualidade desconhecida de um mundo único." 13
Não é o sujeito que explica a essência, é, antes, essência que se implica, se
envolve, se enrola no sujeito: Mais ainda: enrolando-se sobre si mesma ela
constitui a subjetividade. Não são os indivíduos que constituem o mundo, mas
os mundos envolvidos, as essências, que constituem os indivíduos: "Esses
mundos que são os indivíduos e que sem a arte jamais conheceríamos."14
A essência não é apenas individual, é individualizante.
O ponto de vista não se confunde com quem nele se coloca;
a qualidade interna não se confunde com o sujeito que ela individualiza. Esta
distinção entre essência e sujeito é tão importante que Proust vê nela a única
prova possível da imortalidade da alma. Na alma daquele que a desvela, ou
apenas a compreende, a essência é como uma "divina cativa". 15
Talvez as essências tenham, elas próprias, se aprisionado, se envolvido nas
almas que elas individualizam. Não existem fora desse cativeiro, mas não se
separam da "pátria desconhecida" com que elas se envolvem em nós. São
nossos "reféns": morrem se morremos, mas se são
12.P217.
13.P 321.
14.P 218
15.CS 291.
42
eternas, de alguma forma somos também imortais. Elas
tornam a morte menos provável; a única prova, a única chance é estética. Duas
questões, também, estão fundamentalmente ligadas: "As questões da
realidade da Arte, da realidade da Eternidade sla alma."16 Sob
esse aspecto, a morte de Bergotte diante do pequeno detalhe de parede amarela
de Ver Meer torna-se simbólica: "Em celestial balança lhe aparecia, num
prato, sua própria vida; no outro, o pequeno detalhe de parede tão bem pintada
de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o primeiro pelo
segundo... Nova crise prostrou-o... Estava morto. Morto para sempre? Quem o
poderá dizer?"17
*
O mundo envolvido da essência é sempre um começo do Mundo
em geral, um começo do Universo, um começo radical absoluto. "Primeiro o
piano solitário gemia como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino
escutou-o, respondeu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do
mundo, como se ainda não houvesse senão os dois sobre a face da Terra, ou,
antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um
criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata."18
O que Proust diz do mar ou do rosto de uma jovem é ainda mais verdadeiro quando
se refere à essência e à obra de
arte: a instável oposição, "essa perpétua recriação dos elementos
primordiais da natureza". 19 Mas a essência assim definida é o nascimento do Tempo. Não que o tempo já
se tenha desdobrado: ele não tem ainda as dimensões segundo as quais poderia se
desenvolver, nem mesmo as séries
16.P 320.
17.P 158.
18.CS 292.
19.RF 383.
43
separadas em que se distribui segundo ritmos diferentes.
Certos neoplatônicos utilizavam uma palavra profunda para designar o estado
originário que precede todo desenvolvimento, todo desdobramento, toda
"explicação": a complicação, que
envolve o múltiplo no Uno e afirma o Uno do múltiplo. A eternidade não lhes parecia
a ausência de mudança, nem mesmo o prolongamento de uma existência sem
limites, mas o estado complicado do próprio tempo (uno ictu mutationes tuas complectitur). O Verbo, omnia complicans, e contendo todas as essências, era definido como a
complicação suprema, a complicação dos contrários, a instável oposição... Daí
tiravam a idéia de um Universo essencialmente expressivo, organizando-se
segundo graus de complicações imanentes e uma ordem de explicações
descendentes.
O mínimo que se pode dizer é que Charlus é complicado,
tomando a palavra rigorosamente em seu sentido etimológico. A genialidade de
Charlus consiste em manter todas as almas que o compõem em estado
"complicado": é assim que conserva sempre a frescura de um começo de
mundo e não cessa de emitir signos primordiais, signos que o intérprete deverá
decifrar, isto é explicar.
Contudo, se procurarmos na vida alguma coisa que corresponda
à situação das essências originais, não a
encontraremos neste ou naquele personagem, mas num estado profundo – o sono.
Quem dorme "mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos
anos e dos mundos"; essa maravilhosa liberdade que só cessa com o
despertar, quando se é coagido a escolher segundo a ordem do tempo
redesdobrado.20 Do mesmo modo; o sujeito-artista tem a revelação de
um tempo original, enrolãao, complicado na própria essência, abarcando de uma
só vez todas as suas séries e suas dimensões. Aí está o sentido da expressão
"tempo redescoberto". O tempo redescoberto, em
20. CS 12-13.
44
seu estado puro, está contido nos signos da arte. Não se
deve confundi-lo com outro tempo redescoberto, o dos signos sensíveis, que é
apenas um tempo que se redescobre no seio do próprio tempo perdido, e que
também mobiliza todos os recursos da memória involuntária, dando-nos uma
simples imagem da eternidade. Como o sono, a arte está para além da memória e
recorre ao pensamento puro como faculdade das essências. O que a arte nos faz
redescobrir é o tempo tal como se encontraem-olado na essência, tal como nasce
no mundo envolvido da essência, idêntico à eternidade, O extratemporal de
Proust é esse tempo no estado de nascimento e o sujeito-artista que o redescobre.
Por essa razão, podemos dizer com todo o rigor que só a obra de arte nos faz
redes cobrir o tempo: a obra de arte é "o único meio de redescobrir o
tempo perdido". 21 Ela porta os signos mais importantes, cujo
sentido está contido numa complicação primordial, verdadeira eternidade, tempo
original absoluto.
*
Como a essência se encarna na obra de arte? Ou, o que vem
a dar no mesmo, como um sujeito-artista consegue "comunicar" a
essência que o individualiza e o torna eterno? Ela se encama nas matérias. Mas
essas matérias são dúcteis, tão bem malaxadas e desfiadas que se tornam
inteiramente espirituais. Essas matérias, sem dúvida, são a cor para o pintor,
como o amarelo de Ver Meer, o som para o músico e a palavra para o escritor.
Mas, de modo mais profundo, são matérias livres que tanto se exprimem através
das palavras como dos sons e das cores, Em Thomas Hardy, por exemplo, os blocos
de pedra, a geometria desses blocos, o paralelismo das linhas formam uma
matéria espiritualizada, em que as próprias palavras vão buscar sua ordenação;
em Stendhal, a altitude é uma matéria aérea "ligando-se
21. TR 145.
45
à vida
espiritual". 22 O verdadeiro tema de uma obra não é o assunto
tratado, sujeito consciente e voluntário que se confunde com aquilo que as
palavras designam, mas os temas inconscientes, Q.s arquétipos involuntários,
dos quais as palavras, como as cores e os sons, tiram o seu sentido e a sua
vida. A arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela a matéria se espiritualiza,
os meios físicos se desmaterializam, para refratar a essência, isto é, a
qualidade de um mundo original. Esse tratamento da matéria é o
"estilo".
Como
qualidade de um mundo, a essência jamais se confunde com um objeto; ao
contrário, ela aproxima dois objetos inteiramente diferentes, que deixam
perceber a qualidade no meio revelador. Ao mesmo tempo que a essência se
encarna em determinada matéria, a qualidade última que a constitui se expressa
como a qualidade comum a dois objetos diferentes, misturados nessa
matéria luminosa, mergulhados nesse meio refrangente. Nisto consiste o estilo:
"Podem-se alinhar indefinidamente numa descrição os objetos pertencentes
ao sítio descrito, mas a verdade só surgirá quando o escritor tomar dois
objetos diversos, estabelecer a relação entre eles, análoga no mundo da arte à
relação única entre causa e efeito no da ciência, e os enfeixar nos
indispensáveis anéis de um belo estilo."23 Isso significa que o
estilo é basicamente metáfora. Mas a metáfora é essencialmente metamorfose e
indica como os dois objetos permutam suas determinações, e até mesmo a palavra
que os designa, no novo meio que lhes confere a qualidade comum, É o que
acontece nos quadros de Elstir, em que o mar se torna terra e a terra mar; onde
a cidade só é designada por "termos marítimos" e a água por
"termos urbanos". 24 O estilo, para espiritualizar a
matéria e torná-la adequada à essência, reproduz a
22.P 323.
23.TR 137.
24.RF 327-329.
46
instável oposição, a complicação original, a luta e a
troca dos elementos primordiais que constituem a própria essência. Em Vinteuil
ouve-se o combate entre dois temas como num corpo-a-corpo: "Corpo-a-corpo
de energias somente, em verdade, pois se essas criaturas se acometiam, eram
despojadas de seu corpo físico, de sua aparência, de seu nome... "25
Uma essência é sempre um nascimento do mundo; mas o estilo é esse nascimento
continuado e refratado, esse nascimento redescoberto nas matérias adequadas às
essências, esse nascimento como metamorfose de objetos. Q estilo não é o homem:
é a própria essência.
A essência não é apenas particular, individual, mas
individualizante. Ela própria individualiza e determina as matérias em que se
encarna, como os objetos que enfeixa nos anéis do estilo: como o avermelhado
septeto e a branca sonata de Vinteuil ou a bela diversidade na obra de Wagner.26
É que a essência é em si mesma diferença, não tendo,
entretanto, o poder de diversificar e de diversificar-se, sem a capacidade de
se repetir, idêntica a si mesma. Que poderíamos fazer da essência, que é diferençã
última, senão repeti-la, já que ela não pode ser substituída, nada podendo
ocupar-lhe o lugar? Por essa razão1Jma grande música deve ser tocada muitas
vezes; poema, aprendido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se
opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não nos faça
dizer: "A mesma e no entanto outra."27
A diferença, como qualidade de um mundo, só se afirma
através de uma espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e
reúne objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença
original, como, por sua vez, a diversidade constitui os níveis de uma
repetição não menos funda-
25.P 220.
26.P 133.
27.P 219.
47
mental. Sobre a obra de um grande artista podemos dizer:
é a mesma coisa, apenas com a diferença de nível; como também: é outra coisa,
apenas com a semelhança de grau. Na verdade, diferença e repetição são as duas
potências da essência, inseparáveis e correlatas. Um artista não envelhece
porque se repete, pois a repetição é potência da diferença, não menos que a diferença
é poder da repetição. O artista envelhece quando, “pelo desgaste de seu
cérebro", julga mais simples encontrar diretamente na vida, como pronto e
acabado, aquilo que ele só poderia exprimir em sua obra, aquilo que deveria
distinguir e repetir através de sua obra.28 O artista, ao
envelhecer, confia na vida, na "beleza da vida", mas só tem
sucedâneos daquilo que constitui a arte: repetições que se tornaram mecânicas,
pois são exteriores, diferenças imóveis que tornam a cair numa matéria que não
conseguem mais tornar leve e espiritual. A vida não possui as duas potências da arte; ela
só as recebe degradando-as e só reproduz a essência no nível mais baixo, no
mais fraco grau.
A arte possui um privilégio absoluto, que se exprime de
várias maneiras. Na arte, a matéria se torna espiritualizada e os meios
desmaterializados. A obra de arte é, pois, um mundo de signos que são
imateriais e nada têm de opaco, pelo menos para o olho ou ouvido artistas. Em
segundo lugar, o sentido desses signos é uma essência que se afirma em toda a
sua potência. Em terceiro lugar, o signo e o sentido, a essência e a matéria
transmutada se confundem ou se unem numa adequação perfeita. Identidade de um
signo como estilo e de um sentido como essência: esta é a característica da
obra de arte. Sem dúvida, a própria arte é sempre objeto de um aprendizado, em
que passamos pela tentação objetivista e pela compensação subjetiva, como em
qualquer outro campo. Mas a revelação da essência (além do objeto e além do
próprio sujeito) só pertence ao domí-
28.
RF 339.
48
nio da arte: se tiver de realizar-se, é nele que se
realizará. Daí por que a arte é a finalidade do mundo, o destino inconsciente
do aprendiz.
Encontramo-nos, então, diante de dois tipos de questões.
Que valor têm os outros signos, os que constituem os domínios da vida? Por si
mesmos, o que nos ensinam? Podemos dizer que eles nos põem no caminho da arte?
De que maneira? Mas, sobretudo, uma vez que tenhamos a revelação final da
arte, como essa revelação vai reagir sobre os outros campos e tornar-se o
centro de um sistema que nada deixa fora de seu âmbito? A essência é sempre
uma essência artista. Mas, uma vez descoberta, ela não se encarna apenas nas
matérias espiritualizadas, nos signos imateriais da obra de arte. Ela também
se encarna nos outros domínios, que serão, desde então, integrados naquela
obra. Assim, ela atravessa os meios mais opacos, os signos mais materiais,
onde perde algumas de suas características originais, absorvendo outras, que
exprimem a descida da essência nessas matérias cada vez mais rebeldes. Há leis
de transformação da essência em relação com as determinações da vida.
49
Capítulo V
Papel Secundário da Memória
Os signos mundanos e os signos amorosos, para serem interpretados,
precisam da inteligência. É a inteligência que os decifra: com a condição de
"vir depois", de ser, de certa forma, obrigada a pôr-se em movimento,
sob a exaltação nervosa que nos provoca a mundanidade, ou, ainda mais, sob a
dor que o amor nos instila. Sem dúvida, a inteligência mobiliza outras faculdades.
Vê-se o ciumento pôr todos os recursos da memória a serviço da interpretação
dos signos do amor, isto é, das mentiras do amado.
Mas a memória, não sendo solicitada diretamente, só pode fornecer uma
contribuição voluntária, e precisamente porque é apenas "voluntária",
vem sempre muito tarde com relação aos signos a decifrar. A memória do
ciumento pretende tudo reter, porque o menor detalhe pode se revelar um signo
ou um sintoma de mentira; ela quer tudo armazenar para que a inteligência
disponha da matéria necessária às suas próximas interpretações. Há, também,
alguma coisa de sublime na memória do ciumento: ela enfrenta seus próprios
limites e, voltada para o futuro, esforça-se para ultrapassá-los. Mas chega
tarde demais porque não soube captar no momento a frase que deveria reter, o
gesto que não sabia ainda que adquiriria determinado sentido. 1"Depois,
diante da mentira falante, ou tomado de
1. P 45-46.
50
uma dúvida ansiosa, eu queria lembrar-me; era em vão;
minha memória não fora prevenida a tempo, julgara inútil guardar cópia” 2
Em suma, na interpretação dos signos do amor, a memória apenas intervém sob
uma forma voluntária que a condena a um patético fracasso. Não é o esforço da
memória, tal como aparece em cada amor, que consegue decifrar os signos correspondentes;
é apenas o impulso da inteligência, na série de amores sucessivos, balizada
pelos esquecimentos e pelas repetições inconscientes.
*
Em que nível, então, intervém a famosa memória involuntária? Ela só intervém em
função de uma espécie de signos muito particulares: os signos sensíveis. Apreendemos
uma qualidade sensível como signo; sentimos um imperativo que nos força a
procurar seu sentido. Então, a Memória involuntária, diretamente solicitada
pelo signo, nos fornece seu sentido (como Combray para a madeleine, Veneza para as pedras do
calçamento... ).
Em segundo lugar, essa memória involuntária não possui o
segredo de todos os signos sensíveis: alguns remetem ao desejo ou a figuras da
imaginação (como os campanários de Martinville). Razão por que Proust
distingue cuidadosamente dois casos de signos sensíveis: as reminiscências e as descobertas; as "ressurreições da
memória" e as "verdades escritas por figuras".3 Pela
manhã, quando o herói se levanta, não sente apenas a pressão das lembranças
involuntárias que se confundem com uma luz ou com um odor, mas também o impulso
dos desejos involuntários que se encarnam numa mulher que passa – padeira,
lavadeira ou jovem orgulhosa, "uma imagem, enfim"... 4 No iní-
2.P 128. 3. TR 129. 4 P
17.
51
cio, nem mesmo podemos dizer de que lado vem o signo. A
qualidade se dirige à imaginação ou,
simplesmente, à memória? É preciso tudo experimentar para descobrir a faculdade que nos dará o sentido
adequado; e, quando fracassamos, não podemos saber se o sentido que nos ficou
velado era uma figura de sonho ou uma lembrança dissimulada na memória
involuntária. As três árvores, por exemplo, eram uma paisagem da Memória ou do
Sonho?5
Os signos sensíveis que se explicam pela memória involuntária
têm uma dupla inferioridade, não somente com relação aos signos da arte, mas
também com relação as signos sensíveis que remetem à imaginação. Por um lado, sua matéria é mais ;pãca e rebelde, sua explicação
permanece material demais; por outro, eles só superam em aparência a contradição
do ser e do nada (como vimos na lembrança da avó). Proust nos fala da plenitude
das reminiscências ou das lembranças involuntárias, da alegria celestial que
nos dão os signos da Memória e do tempo que eles nos fazem bruscamente
redescobrir. Os signos sensíveis que se explicam pela memória formam, na
verdade, um “começo de arte” , eles nos pôem “no caminho da arte”.6 Nunca nosso aprendizado encontraria seu
resultado na arte se não passasse por esses signos que nos dão uma antecipação
do tempo redescoberto e nos preparam para a plenitude das idéias estéticas.
Mas nada fazem além de nos preparar: são apenas um começo. São, ainda, signos
da vida e não signos da arte.7
Eles são superiores aos signos mundanos, superiores aos
signos do amor, mas inferiores aos da arte; e, mesmo em seu gênero, são
inferiores aos signos sensíveis da imaginção, que estão mais próximos da arte
(embora pertencendo ainda à vida). 8
5.RF 231-232.
6.TR 138.
7. Ibid. ("... ou mesmo,
assim como a vida... ").
8.P321.
52
Proust muitas vezes apresenta os signos da memória como
decisivos; as reminiscências parecem-lhe constitutivas da obra de arte, não
apenas na perspectiva de seu projeto pessoal, mas na de grandes precursores,
como Chateaubriand, Nerval ou Baudelaire. Mas, se as reminiscências são
integradas na arte como partes constitutivas, é na medida em que são elementos
condutores, elementos que conduzem o leitor à compreensão da obra e o artista à
concepção de sua tarefa e da unidade dessa tarefa: "Porque seria, justa e
unicamente, esta espécie de sensações a propícia à obra de arte, eis o que
tentaria verificar objetivamente."9 As reminiscências são metáforas da
vida; as metáforas são reminiscências da arte. Ambas, com efeito, têm algo em
comum: determinam uma relação entre dois objetos inteiramente diferentes,
"para as subtrair às contingências do tempo". 10 Mas só a arte realiza plenamente o que a vida apenas esboçou. As reminiscências,
na memória involuntária, são ainda vida: arte no nível da vida, conseqüentemente
metáforas ruins. Ao contrário, a arte em sua essência, a arte superior à vida,
não se baseia na memória involuntária, nem mesmo na imaginação e nas figuras
inconscientes. Os signos da arte se explicam pelo pensamento puro como
faculdade das essências. Dos signos sensíveis em geral, quer se dirijam à
memória ou mesmo à imaginação, devemos dizer ora que vêm antes da arte e que a
ela nos conduzem, ora que vêm depois da arte e que dela captam apenas os reflexos
mais próximos.
*
Como explicar o mecanismo complexo das reminiscências? À primeira
vista, trata-se de um mecanismo associativo; por um
9. TR 158.
10. TR 137.
53
lado, semelhança entre uma sensação presente e uma
sensação passada; por outro, contigüidade da sensação passada com um conjunto que
vivíamos então, e que ressuscita sob a ação da sensação presente. Assim, o
gosto da madeleine é semelhante ao que sentíamos em
Combray; e ele ressuscita Combray, onde o sentimos pela primeira vez. Tem-se
muitas vezes salientado a importância formal de uma psicologia associacionista
em Proust. Entretanto, não teríamos razão em criticá-la: o associacionismo é
menos ultrapassado que a crítica do associacionismo. Devemos, pois, perguntar
de que ponto de vista os casos de reminiscência ultrapassam realmente os mecanismos
de associação, e, também, de que ponto de vista eles remetem efetivamente a
tais mecanismos.
A reminiscência coloca vários problemas que não são resolvidos
pela associação de idéias. Por um lado, de onde vem a extraordinária alegria
que experimentamos na sensação presente? Alegria tão possante que é suficiente
para tornar a morte indiferente. Por outro lado, como explicar que não haja
simples semelhança entre as duas sensações, presente e passada? Além de uma
semelhança entre duas sensações, descobrimos nas duas a identidade de uma mesma
qualidade. Enfim, como explicar que Combray surja, não exatamente como foi
vivida, em contigüidade com a sensação passada, mas com um esplendor, com uma
"verdade" que nunca tivera equivalente no real?
Essa alegria do tempo redescoberto, essa identidade da qualidade,
essa verdade da reminiscência, nós as experimentamos e sentimos que elas vão
além de todos os mecanismos associativos. Mas em quê? Somos incapazes de
dizer. Constatamos o que se passa, mas não temos ainda meios de compreendê-lo. Com
o sabor da madeleine, Combray
surgiu em seu esplendor, mas não descobrimos, de modo algum, aS'causas de tal
aparição. A impressão das três árvores permanece inexplicada; ao contrário, a
impressão da madeleine parece
explicada por Combray.
54
Entretanto, avançamos muito pouco: por que essa alegria,
por que esse esplendor na ressureição de Combray? ("de cujas causas
profundas adiara até então a busca").11
A memória voluntária vai de um
presente atual a um presente que "foi", isto é, a alguma coisa que
foi presente mas não o é mais. O passado da memória voluntária é, pois,
duplamente relativo: relativo ao presente que foi, mas também relativo ao
presente com referência ao que é agora passado. O que vale dizer que essa
memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes.
Por esta razão, Proust faz as mesmas restrições à memória
voluntária e à percepção consciente:
esta pensa encontrar o segredo da impressão no objeto, aquela crê descobrir o
segredo da lembrança na sucessão dos presentes; são exatamente os objetos que
distinguem os presentes sucessivos. A memória voluntária procede por
instantâneos: "Apenas esta palavra a tornava para mim tão enfadonha como
uma exposição de fotografias, e eu não sentia hoje mais gosto, mais dons para
descrever o que vira outrora do que ontem para fixar imediatamente o que
observava com olhos minuciosos e entediados. "12
Évidente que alguma coisa de essencial escapa à memória voluntária:
o ser-em-si do passado. Ela faz como se o passado se constituísse como tal depois
de ter sido presente e, assim, seria necessário esperar um novo presente para
que o precedente passasse, ou se tornasse passado. Dessa maneira, no entanto, a
essência do tempo nos escapa, pois se o presente não fosse passado ao mesmo
tempo que presente, se o mesmo momento não coexistisse consigo mesmo como
presente e passado, ele nunca passaria, nunca um novo presente viria substituí-lo.
O passado, tal como é em si, coeiste, não sucede ao presente que ele foi. Na
verdade, nós não apreendemos alguma coisa como passado
11.TR 121.
12.TR 120.
55
no mesmo momento em que a sentimos como presente (salvo
nos casos de paramnésia, aos quais talvez corresponda, em Proust, a visão das
três árvores).13 Mas é porque as exigências conjuntas da percepção
consciente e da memória voluntária estabelecem uma sucessão real onde, mais
profundamente, há uma coexistência virtual.
Se existe alguma semelhança entre a concepção de Bergson
e a de Proust, é justamente nesse nível. Não no nível da duração, mas da
memória. Que não retomamos de um presente atual ao passado, não recompomos o
passado com os presentes, mas nos situamos imediatamente no próprio passado;
que esse passado não representa alguma coisa que foi, mas simplesmente alguma
coisa que é e coexiste consigo mesma como presente; que o passado não pode se
conservar em outra coisa que não nele mesmo, porque é em si, sobrevive e se
conserva em si – essas são as célebres teses de Matière et mémoire. Este ser-em-si do passado, Bergson o chamava de
virtual. Proust faz o mesmo quando fala dos estados induzidos pelos signos da
memória: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos."14 É verdade que, a partir daí, o problema não é o mesmo para Proust e para Bergson:
para este é suficiente saber que o passado se conserva em si. Malgrado suas
profundas páginas sobre o sono, ou sobre a paramnésia, Bergson não se pergunta
como o passado, tal como é em si, também poderia ser recuperado para nós. Segundo
ele, mesmo o sonho mais profundo implica um desgaste da lembrança pura, uma
queda de lembrança numa imagem que a deforma. O problema de Proust é: como
resgatar para nós o passado, tal como se conserva em si, tal como sobrevive em
si? Proust expõe a tese bergsoniana, não diretamente, mas através de uma
anedota do "filósofo norueguês", que por sua vez a ou-
13. RF 231-232. 14 TR 125.
56
viu de Boutroux.15 Note-se a reação de Proust:
"Nós possuímos todas as nossas lembranças se não a faculdade de recordá-las,
diz, conforme Bergson, o grande filósofo norueguês... Mas o que é uma lembrança
de que a gente não se recorda?" Proust coloca desta maneira a questão:
como resgataremos o passado tal como é em si? É a esta
pergunta que a memória involuntária responde.
A Memória involuntária parece, a princípio, basear-se na
semelhança entre duas sensações, entre dois momentos. Mas, de modo mais
profundo, a semelhança nos remete a uma estrita identidade: identidade de uma qualidade comum às duas
sensações, ou de uma sensação comum aos dois momentos, o atual e o antigo.
Assim acontece com o sabor: dir-se-ia que ele contém um volume de duração que o
estende por dois momentos ao mesmo tempo. Mas, por sua vez, a sensação, a
qualidade idêntica, implica uma relação com alguma coisa diferente. O sabor da madeleine aprisionou
e envolveu Combray em seu volume. Enquanto permanecemos na percepção
consciente, a madeleine tem
apenas uma relação exterior de contigüidade com Combray; enquanto permanecemos
na memória voluntária, Combray se mantém exterior à madeleine, como o contexto separável da antiga sensação. A memória
involuntária tem, porém, uma característica específica: ela interioriza o
contexto, torna o antigC2contexto inseparável da sensação presente. Ao mesmo
tempo que a semelhança entre os dois momentos se ultrapassa em direção a uma
identidade mais profunda, a contigüidade que pertencia ao momento passado se
ultrapassa em direção a uma diferença mais profunda. Ao mesmo tempo que Combray
ressurge na sensação atual, sua diferença com relação à antiga sensação se
interioriza na sensação presente. A sensação presente não é, pois, mais
separável dessa relação com o objeto diferente. O essencial na memória
involuntária não é a semelhança, nem
15. SG 302-303
57
mesmo a identidade, que são apenas condições.; o essencial é a diferença interiorizada, tornada imanente. É nesse sentido que a reminiscência é o análogo da arte e a memória
involuntária o análogo de uma metáfora: ela toma "dois objetos
diferentes" – a madeleine com seu
sabor, Combray com suas qualidades de cor e de temperatura – e envolve um no
outro, faz da relação dos dois alguma coisa de interior.
O sabor, qualidade comum às duas sensações, sensação comum
aos dois momentos, só está aí para lembrar outra coisa: Combray. Com essa
invocação, Combray ressurge de forma absolutamente . nova. Não surge como
esteve presente; surge como passado, mas esse passado não é mais relativo ao
presente que ele foi, não é mais relativo ao presente em relação ao qual é
agora passado. Não mais a Combray da percepção, nem tampouco a da memória
voluntária; Combray aparece como não podia ter sido vivida: não em realidade,
mas em sua verdade; não em suas relações exteriores e contingentes, mas em sua
difeferença interiorizada, em sua essência. Combray surge em um passado puro,
coexistindo com os dois presentes, mas fora de seu alcance, fora do alcance da
memória voluntária atual e da percepção consciente antiga: "Um pouco de
tempo em estado puro."16 Não mais uma simples semelhança entre o presente
e o passado, entre um presente que é atual e um passado que foi presente; nem
mesmo uma identidade dos dois momentos; é muito mais o ser-em-si do passado, mais
profundo que todo o passado que fora, que todo o presente que foi. "Um
pouco de tempo em estado puro", isto é, a essência localizada do tempo.
*
"Reais sem serem atuais, ideais sem serem
abstratos." Esse real ideal, esse virtual, é a essência, que se realiza ou
se encarna
16. TR 125.
58
na lembrança involuntária. Nesse caso, como na arte, o
envolvimento, o enrolamento, permanece sendo o estado superior da essência. A
lembrança involuntária retém os dois poderes: a diferença no antigo momento e
a repetição no atual. A essência, entretanto, se realiza na lembrança
involuntária em um grau mais baixo do que na arte, se encarna em matéria mais
opaca. Em primeiro lugar, a essência não mais aparece como a qualidade última
de um ponto de vista singular, como era a essência artista: individual e até
mesmo individualizante. Ela é, sem dúvida, particular: mas é antes princípio
de localização do que de individuação; aparece como essência local: Combray,
Balbec, Veneza... É também particular porque revela a verdade diferencial
de um lugar, de um momento. Mas, sob outro ponto de vista, ela é geral, porque traz
essa revelação numa sensação "comum" a dois lugares, a dois
momentos. Também na arte a qualidade da essência se expressava como qualidade
comum a dois objetos; mas a essência artista nada perdia de sua singularidade,
nada alienava, porque os dois objetos e sua relação eram inteiramente
determinados pelo ponto de vista da essência, sem nenhuma contingência. Não é
o que acontece com a memória involuntária, em que a essência chega a ter um
mínimo de generalidade. Essa é a razão por que Proust diz que os signos sensíveis
remetem a uma "essência geral", como os signos do amor ou os signos
mundanos.17
Há uma segunda diferença, agora do ponto de vista do tempo.
A essência artista nos revela um tempo original, que ultrapassa suas séries e
suas dimensões; um tempo "complicado" em sua própria essência,
idêntico à eternidade. Quando falamos de um "tempo
redescoberto" na obra de arte, referimo-nos a esse tempo primordial, que
se opõe ao tempo desdobrado e desenvolvido, isto é, ao tempo sucessivo que
passa, ao tempo que em geral se
17. TR 158.
59
perde. Ao contrário, a essência que se encarna na
lembrança involuntária não nos revela esse tempo original; faz-nos redescobrir
um outro tempo – o próprio tempo perdido. Ela surge bruscamente em um tempo já
desdobrado, desenvolvido, e no âmago desse tempo que passa redescobre um centro
de envolvimento, que nada mais do que a imagem do tempo original. Por isso as
revelações da memória involuntária são extraordinariamente breves e não se
poderiam prolongar sem nos causarem dano: "Na vertigem de uma incerteza
semelhante à que nos provoca, por vezes, ao adormecermos, uma
visão inefável."18 A reminiscência nos revela o passado puro, o ser-em-si
do passado, e, sem dúvida, esse ser-em-si ultrapassa todas as dimensões empíricas
do tempo. Mas, em sua ambigüidade, ele é tanto o princípio a partir do qual as
dimensões se desdobram no tempo perdido quanto o princípio no qual se pode
redescobrir esse tempo perdido, o centro em torno do qual se pode enrolá-lo de
novo para ter uma imagem da eternidade. Esse passado puro é a instância que não
se reduz a nenhum presente que passa, mas também a instância que faz passar
todos os presentes, presidindo sua passagem; nesse sentido, ele implica ainda
a contradição da sobrevivência e do nada. A visão inefável, de que fala Proust,
é feita desse amálgama. A memória involuntária nos dá a eternidade, mas de tal
forma que não tenhamos a força de suportá-la mais do que um instante, nem o
meio de descobrir-lhe a natureza. O que ela nos dá é, antes, a imagem
instantânea da eternidade; e todos os Eus da memória involuntária são
inferiores ao Eu da arte, do ponto de vista das próprias essências.
Em último lugar, a realização da essência na lembrança involuntária
não se separa de determinações que permanecem exteriores e contingentes. Não
depende das circunstâncias que, em virtude da potência da memória involuntária,
alguma coisa
18. TR 127.
60
surja em sua essência ou em sua verdade. Mas que essa
"alguma coisa" seja Combray, Balbec ou Veneza, que tal essência (ao
invés de outra) seja selecionada e encontre, então, o momento propício de
encanar-se – isso põe em jogo múltiplas circunstâncias e contingências. Por um
lado, é evidente que a essência de Combray não se realizaria no sabor redescoberto
da madeleine se não tivesse havido, de início,
a contigüidade real entre a madeleine, tal como
foi saboreada, e Combray, tal como esteve presente. Por outro, a madeleine com seu sabor e Combray com suas qualidades têm ainda
matérias distintas que resistem ao envolvimento, à penetração de uma na outra.
Devemos, pois, insistir nestes dois pontos: uma essência
se encarna na lembrança involuntária, mas aí encontra matérias muito menos
espiritualizadas, meios menos "desmaterializados" do que na arte. E, contrariamente
ao que se passa na arte, a seleção e a escolha dessa essência dependem de dados
exteriores à própria essência, remetem, em última instância, a
estados vividos, a mecanismos de associações que permanecem subjetivos e
contingentes. (Outras contigüidades teriam induzido ou selecionado outras
essências.) Na memória involuntária, a física ressalta a resistência das
matérias e a psicologia a irredutibilidade das associações subjetivas. Por
essa razão, os signos da memória constantemente nos preparam a armadilha de uma
interpretação objetivista, mas também, e sobretudo, a tentação de uma
interpretação inteiramente subjetiva. É por isso,
enfim, que as reminiscências são metáforas inferiores: a memória, ao invés de
reunir dois objetos diferentes, cuja seleção e relacionamento são inteiramente
determinados por uma essência que se encarna num meio dúctil ou transparente,
reúne dois objetos ainda ligados a uma matéria opaca, cuja relação com ela
depende de uma associação. Assim, a essência não é mais senhora de sua própria
encarnação, de sua própria seleção, sendo ela mes-
61
ma selecionada através de dados que lhe são exteriores e
apresentando, assim, o mínimo de generalidade de que falávamos.
Podemos dizer que os signos sensíveis da memória são da
vida e não da arte. A memória involuntária ocupa um lugar central, não o ponto
extremo. Sendo involuntária, ela rompe com a atitude
da percepção consciente e da memória voluntária, torna-nos sensíveis aos
signos e, em momentos privilegiados, dá-nos a interpretação de alguns deles.
Os signos sensíveis que lhe correspondem são superiores aos signos mundanos e
aos signos do amor, mas inferiores a outros signos não menos sensíveis: signos
do desejo, da imaginação ou do sonho (estes são de matérias mais espirituais e
remetem a associações mais profundas, que não mais dependem de contigüidades
vividas). Com mais forte razão, os signos sensíveis da memória involuntária são
inferi?res aos da arte; eles perderam a perfeita identidade do signo e da
essência; representam apenas o esforço da vida para nos preparar para a arte e
para a revelação final da arte.
Não se deve ver na arte um meio mais profundo de explorar
a memória involuntária; deve-se ver na memória involuntária uma etapa, e não a
mais importante, do aprendizado da arte. É certo que
essa memória nos coloca no caminho das essências; mais ainda: a reminiscência
já possui a própria essência, soube capturá-la. Mas ela nos dá a essência em um
estado impreciso, em um estado secundário, de modo ainda tão obscuro que somos
incapazes de compreender o dom que recebemos e a alegria que experimentamos.
Aprender é relembrar, mas relembrar nada mais é do que aprender, ter um
pressentimento. Se, impulsionados pelas etapas sucessivas do aprendizado, não
chegássemos à revelação final da arte,
permaneceríamos incapazes de compreender a essência, até mesmo de compreender
que ela já estava na lembrança involuntária ou na alegria do signo sensível
(estaríamos sempre reduzidos a "adiar" o exame das causas). É
necessário que todas as etapas conduzam à arte e que atinja-
62
Mos sua revelação; então tornaremos a descer os níveis,
os integraremos na própria obra de arte, identificaremos a essência em suas
realizações sucessivas, daremos a cada nível de realização o lugar e o sentido
que lhe cabem na obra. Descobriremos, assim, o papel da memória involuntária e
as rezões desse papel, importante, embora secundário, na encarnação das
essências. Os paradoxos da memória involuntária se explicam poe uma instância
mais elevada que ultrapassa a memória, inspira as reminiscências e lhe comunica
uma parte de seu segredo.
Capítulo
VI
Série e Grupo
63
A encarnação das essências persiste nos signos amorosos e
até mesmo nos signos mundanos. A diferença e a repetição permanecem, então, como
os dois poderes da essência, a qual continua irredutível tanto ao objeto que
porta o signo quanto ao sujeito que o sente. Nossos amores não se explicam pessoas
que amamos, nem pelos estados transitórios por que passamos no momento em que
estamos amando. Mas como conciliar a idéia de uma presença da essência com o
caráter mentiroso dos signos do amor e com o caráter vazio dos signos do
mundanismo? A essência é levada a tomar uma forma cada vez mais geral, uma
generalidade cada vez maior; em última análise, ela tende a se confundir com
uma "lei" (a propósito do amor e do mundanismo, Proust sempre
demonstrou seu gosto pela generalidade e sua paixão pelas leis). As essências
podem, portanto, se encarnar nos signos amorosos exatamente como as leis gerais
da mentira, e nos signos mundanos como as leis gerais do vazio.
Uma diferença original preside nossos amores. Talvez seja
a imagem da Mãe – ou do Pai, para uma mulher, como acontece com a Srta.
Vinteuil. Mais profundamente, é uma imagem longínqua, além de nossa
experiência, um Tema que nos ultrapassa, uma espécie de arquétipo. Imagem,
idéia ou essência bastante rica para diversificar-se nos seres que amamos, e
mesmo em apenas um ser amado; exatamente como se repete em
64
nossos amores sucessivos e em cada um dos nossos amores
tomados isoladamente. Albertina é a mesma e é outra, tanto em relação aos
outros amores do herói como em relação a ela própria. Há tantas Albertinas que
seria preciso dar um nome específico a cada uma delas e, no entanto, é como se
fosse um mesmo tema, uma mesma qualidade vista sob vários aspectos. As
reminiscências e as descobertas se misturam, então, intimamente em cada amor.
A memória e a imaginação se revezam e se corrigem, e cada uma, ao dar um passo,
impele a outra a dar um passo suplementar.! Com mais razão, em nossos amores sucessivos:
cada amor traz sua diferença, já compreendida no precedente, e todas essas
diferenças estão contidas em uma imagem primordial, que não cessamos de
produzir em diversos níveis e de repetir como a lei inteligível de todos os
nossos amores. "Assim, meu amor por Albertina, até nas suas divergências,
já se inscrevia em meu amor por Gilberta... "2
Nos signos do amor, os dois poderes da essência deixam de
estar juntos. A imagem ou o tema contêm o caráter particular de nossos amores,
mas nós repetimos tanto mais e tanto melhor essa imagem que na realidade ela
nos escapa e permanece inconsciente. Longe de exprimir a potência imediata da
idéia, a repetição testemunha aqui uma separação, uma inadequação entre a
consciência e a idéia. A experiência de nada nos serve, porque negamos que
repetimos e acreditamos sempre em algo novo; mas também porque ignoramos a
diferença que tornaria nossos amores inteligíveis e os relacionaria a uma lei
que seria como que sua fonte permanente. O inconsciente, em amor, é a separação
dos dois aspectos da essência, diferença e repetição.
A repetição amorosa é uma repetição serial. Os amores do
herói por Gilberta, pela Sra. de Guermantes, por Albertina formam uma série em
que cada termo acrescenta sua pequena di-
1.RF 391·392.
2.TR 148.
65
ferença. "Quando muito, a este amor, terá aquela que
tanto amamos acrescentado um cunho particular, que nos obrigará a ser-lhe fiel
até na infidelidade. Necessitaremos, com a sua sucessora, dos mesmos passeios
matinais, levá-la-emos do mesmo modo todas as noites a casa, dar-lhe-emos
também dinheiro demais."3 Mas também, entre dois termos da
série, aparecem relações de contraste que complicam a repetição: "Ah!
como esse amor a Albertina, de que eu julgara poder calcular a sorte, à vista do que eu dedicara a Gilberta, se desenvolvera em perfeito contraste
com este último."4 E sobretudo, quando passamos de um termo
amado a outro devemos levar em conta uma diferença acumulada no sujeito amoroso,
como uma razão de progressão na série, "índice de variação que se acentua
à medida que vai chegando a novas
regiões, sob outras latitudes da vida".5 É que a
série, através das pequenas diferenças e das relações contrastadas, não se
desenvolve sem convergir para sua própria lei e o próprio sujeito amoroso vai
se reaproximando cada vez mais de uma compreensão do tema original. Compreensão
que ele só atingirá plenamente quando tiver deixado de amar, quando não tiver
mais nem o desejo, nem o tempo, nem a idade para amar. É nesse
sentido que a série amorosa constitui um aprendizado: nos primeiros termos o
amor aparece ligado a seu objeto, de sorte que o mais importante é confessar;
depois aprendemos a subjetividade do amor, com a necessidade de não confessar,
para preservar nossos próximos amores. Mas, à medida
que a série se aproxima de sua própria lei, e a nossa capacidade de amar de
seu próprio fim, pressentimos a existência do tema original ou da idéia, que
ultrapassa tanto nossos estados subjetivos quanto os objetos em que ela se
encarna.
3.TR1S1.
4. F 23.
S. RF 374.
66
Não há apenas uma série de amores sucessivos; cada amor
assume uma forma de série. As pequenas diferenças e as relações contrastadas
que encontramos de um amor a outro já são encontradas em um mesmo amor: de uma
Albertina a outra, pois Albertina possui almas múltiplas e múltiplas faces.
Estas faces, estas almas não estão exatamente no mesmo plano, elas se
organizam em série. (De acordo com a lei de contraste, "dois é o número mínimo
da variedade... Se recordamos um olhar enérgico e um rosto atrevido, o próximo
encontro nos chocará, isto é, veremos quase exclusivamente um lânguido perfil e
uma sonhadora doçura, coisas que nos passaram por alto na recordação
precedente".)6 Ainda mais: um índice de variação subjetiva
corresponde a cada amor, medindo seu início, sua duração e seu término. Em
todos esses sentidos, o amor por Albertina forma uma série em que podemos
distinguir dois períodos diferentes de ciúme; e, no final, o esquecimento de
Albertina só se desenvolve na medida em que o herói desce os níveis que
marcaram o início de seu amor: "E, de fato, eu agora sentia bem que antes
de esquecê-la por completo, antes de atingir a indiferença inicial, seria
necessário, como ao viajante que voltou pelo mesmo caminho ao ponto de onde
partira, atravessar em sentido inverso todos os sentimentos pelos quais tinha
passado antes de chegar ao meu grande amor."? Assim, três etapas marcam o
esquecimento, como uma série invertida: o retorno à indivisão, retorno a um
grupo das jovens análogo àquele de onde Albertina foi tirada; a revelação dos
gostos de Albertina, que se assemelha de certo modo às primeiras intuições do
herói, mas num momento em que a verdade não mais o interessa; enfim, a idéia de
que Albertina continua viva, idéia que lhe proporciona tão pouco prazer, em
contraste com a dor experimentada quando já a sabia morta mas ainda a amava.
6.RF 391-392.
7.F llO.
*
67
Não somente cada amor forma uma série particular como, no
outro pólo, a série de nossos amores ultrapassa nossa experiência, encadeia-se
com outras experiências, abre-se para uma realidade transubjetiva. O amor de
Swann por Odette já faz parte da série que tem sua continuação no amor do herói
por Gilberta, pela Sra. de Guermantes, por Albertina. Swann representa o papel
de iniciador em um destino que ele não soube realizar por si mesmo: "Em
suma, refletindo bem, a matéria de minha experiência me vinha de Swann, e não
só no que lhe dizia pessoalmente respeito ou a Gilberta. Mas fora ele quem,
desde Combray, me inculcara o desejo de ir a Balbec... Sem Swann eu nem teria
conhecido os Guermantes... "8 Swann foi
apenas a oportunidade, mas sem essa oportunidade a série teria sido outra; e,
de certo modo, Swann foi muito mais: foi ele quem, desde o começo, possuía a
lei da série ou o segredo da progressão e o confidenciou ao herói num
"aviso profético"; o ser amado como Prisioneiro.9
É possível encontrar a origem da série amorosa no
amor do herói por sua mãe, mas, mesmo aí, encontramos Swann que, ao vir jantar
em Combray, priva a criança da presença materna. E a tristeza do herói, sua
angústia em relação à mãe, é a mesma angústia e a mesma tristeza que o próprio
Swann sentira por Odette: "... talvez ninguém pudesse compreender-me
melhor do que ele; essa angústia que há em sentir a criatura a quem se ama em
um lugar de festa onde a gente não está, e aonde não pode ir vê-Ia, foi o amor
que lhe deu a conhecer, o amor ao qual está de certo modo predestinada e que
ele termina por açambarcar e singularizar; mas quando, como no meu caso, essa
angústia nos penetra antes que o amor haja feito seu aparecimento em nossa
8.TR 156-157.
9.RF 108.
vida, fica ela flutuando à sua espera, vaga e livre... "lO Concluir-se-á que a imagem da mãe não é, talvez, o tema
mais profundo, nem a razão da série amorosa. Na verdade, nossos amores repetem
nossos sentimentos pela mãe, mas esses, por sua vez, repetem outros amores, que
nós mesmos não vivemos. A mãe aparece como a transição de uma experiência a outra,
o modo pelo qual nossa experiência se inicia já ligada a experiências
realizadas por outros. Em última análise, a experiência amorosa é a da
humanidade inteira, que a corremede uma hereditariedade transcendente
atravessa.
Assim, a série pessoal de nossos amores remete, por um
lado, a uma série mais vasta, transpessoal; por outro, a séries mais restritas,
constituídas de cada amor em particular. As séries são, pois, implicadas umas
nas outras, os índices de variações e as leis de progressão, envolvidos uns nos
outros. Ao perguntarmos como os signos do amor devem ser interpretados,
procuramos uma instância através da qual as séries podem ser explicadas e os
índices e as leis se desenvolverem; ora, por maior que seja o papel da memória
e da imaginação, essas faculdades só intervêm no nível de cada amor
particular, e menos para interpretar seus signos do que para surpreendê-los e
recolhê-los, para secundar uma sensibilidade que os apreende. A passagem de um
amor a outro encontra sua lei no Esquecimento e não na memória; na
Sensibilidade e não na imaginação. Na verdade, apenas a inteligência é uma
faculdade capaz de interpretar os signos e explicar as séries do amor. É por isso
que Proust insiste no seguinte ponto; há esferas em que a inteligência, apoiando-se
na sensibilidade, é mais profunda, mais rica, do que a memória e a imaginação. 11
Não que as verdades do amor façam parte dessas verdades
abstratas, que um pensador poderia descobrir por intermédio de
10.CS 33.
11.TR 145-146.
69
um método ou de uma reflexão livre. É preciso
que a inteligência seja forçada, que sofra uma coação que não a deixe livre
para escolher; essa coação é a da sensibilidade, a do próprio signo no nível de
cada amor. Os signos do amor são acompanhados de sofrimento porque implicam
sempre uma mentira do amado, como uma ambigüidade fundamental de que nosso ciúme
se aproveita e se nutre. Então, o sofrimento por que passa nossa senbilidade
força nossa inteligência a procurar o sentido do signo e a essência que nele se
encarna. "Um homem dotado de sensibilidade poderia, ainda que não tivesse
imaginação, escrever romances admiráveis. O sofrimento que os outros lhe
causassem, seus esforços para evitá-Io, os conflitos que daí lhe resultariam
com pessoas cruéis, tudo isso, interpretado pela inteligência, forneceria
matéria para um livro... tão belo como se fosse imaginado, inventado."12
Em que consiste a interpretação da inteligência? Consiste
em descobrir a essência como lei da série amorosa, o que significa dizer que
na esfera do amor a essência não se separa de um tipo de generalidade;
generalidade de série, generalidade propriamente serial. Cada sofrimento é
particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por
determinada criatura, em determinado amor. Mas, porque esses sofrimentos se
reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles alguma coisa de geral,
que também é alegria. A obra de arte "é promessa de felicidade porque nos
ensina não só que todo amor o geral jaz
ao lado do particular como também a passar deste àquele, numa ginástica que,
consistindo em desprezar-lhe o motivo para buscar-lhe a essência, nos fortalece
contra a dor".13 O que repetimos é, cada vez, um sofrimento
particular, mas a repetição é sempre alegre, o fato da repetição constitui uma
alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particula-
12.Ibid.
13.TR 148.
70
res, mas a idéia que deles extraímos é geral e alegre. A
repetição amorosa não se separa de uma lei de progressão pela qual nos
aproximamos de uma tomada de consciência que transmuta nossos sofrimentos em
alegria. Nós nos apercebemos de que nossos sofrimentos não dependiam do objeto,
eram "rodeios" ou "farsas" que preparávamos para nós
mesmos, ou melhor, armadilhas e coquetismos da Idéia, alegrias da Essência. Há
um trágico do que se repete, mas um cômico da repetição e, mais profundamente, a
alegria da repetição compreendida ou da compreensão da lei. Exgaímos de nossas
tristezas particulares uma Idéia geral; é que a Idéia era primeira, já se
encontrava lá, como a lei da série já estava contida em seus primeiros termos.
O humor da Idéia é manifestar-se na tristeza, é aparecer como um desgosto.
Desse modo, o fim já aparecia no início: "As idéias são sucedâneos dos
desgostos (...) Sucedâneos, aliás, só na ordem do tempo, porque o elemento
primitivo parece ser a idéia, não passando os pesares de vias de penetração
inicial de certas noções."14
O trabalho da inteligência consiste em, sob a pressão da
sensibilidade, transmutar nosso sofrimento em alegria, ao mesmo tempo que o
particular no geral. Somente ela pode descobrir a generalidade e achá-la
alegre, encontrando no final aquilo que já estava presente desde o começo,
necessariamente inconsciente. Somente ela pode descobrir que os amados não
foram causas que agiram de maneira autônoma, mas os termos de uma série que
desfilavam em nós, os quadros vivos de um espetáculo interior, os reflexos de
uma essência. "Cada criatura que nos faz sofrer pode representar para nós
uma divindade da qual é apenas um reflexo fragmentário e a derradeira manifestação,
divindade que, contemplada tão-somente como idéia, para logo transmuda em
alegria a dor que experimentávamos. A arte
14. TR 150.
71
de viver consisle em nos sabermos servir de quem nos
atormenta como de degraus de acesso à sua forma divina, povoando
assim diariamente de deuses a nossa vida."15
A essência se encarna nos signos amorosos necessariamente
sob uma forma serial, portanto geral. A essência é sempre diferença. No amor,
porém, a diferença se situa no inconsciente: torna-se, de certo modo, genérica
ou específica, determinando uma repetição cujos termos só se distinguem por
diferenças infinitesimais e por contrastes sutis. Em suma, a essência assume a
generalidade de um Tema ou de uma Idéia que serve de lei à série de nossos amores. É por isso
que a encarnação da essência, a seleção da essência que se encarna nos signos
amorosos, depende de condições extrínsecas e de contingências subjetivas mais
do que nos signos sensíveis. Swann é o grande iniciador inconsciente, o ponto
de partida da série; mas como não lamentar os temas sacrificados, as essências
eliminadas, como os possíveis leibnizianos que não passam à existência e que teriam formado outras séries, em outras circunstâncias e
sob outras condições? É a Idéia que determina a série de nossos estados
subjetivos, mas também são ós acasos de nossas relações subjetivas que determinam
a seleção da Idéia. Por isso a tentaçãocle uma interpretação subjetivista é
muito mais forte no amor do que nos signos sensíveis: todo amor se liga a
associações de idéias e a impressões subjetivas, e o seu fim se confunde com a
destruição de uma "porção" de associações, como numa congestão
cerebral em que uma artéria gasta se rompe.16
Nada mostra melhor a exterioridade da seleção do que a
contingência na escolha da pessoa amada. Não apenas temos amores fracassados
(srta. de Stermaria), que sabemos que por pouco poderiam ter dado certo, mas
nossos amores bemsucedidos, e a série que formam ao se encadearem, isto é,
encar-
15.TR 144.
16.F 139.
72 nando determinada essência em vez de outra, dependem de ocasiões, de
circunstâncias, de fatores extrínsecos.
Um dos casos mais evidentes é o seguinte: a criatura
amada faz parte, de início, de um grupo onde ainda não se encontra individualizada.
Quem será a amada nesse grupo homogêneo? E por que acaso é Albertina quem
encarna a essência, quando outra poderia fazê-lo? Ou mesmo uma outra essência,
encarnada em outra jovem, a que o herói poderia ser sensível, e que teria, pelo
menos, modificado a série de seus amores? "Ainda agora a vista de uma me
causava um prazer no qual entrava, numa proporção que eu não saberia dizer, a
possibilidade de ver as outras seguirem-na mais tarde e, ainda que não viessem
naquele dia, o ensejo de falar a respeito delas e saber que lhes seria contado
que eu estivera na praia."17 Existe no grupo das jovens um misto,
uma mistura de essências, sem dúvida vizinhas, com relação a que o herói é
quase igualmente disponível: "Cada uma conservava para mim, como no primeiro
dia, qualquer coisa da essência das outras (...)."18
Albertina entra portanto na série amorosa, mas apenas porque
é extraída de um grupo, com toda a contingência que corresponde a essa
extração. Os prazeres que o herói experimenta no grupo são prazeres sensuais,
mas não fazem parte do amor. Para tornar-se um termo da série amorosa é preciso
que Albertina seja isolada do grupo em que aparece no início, é preciso que
seja escolhida, e essa escolha não se faz sem incerteza e contingência. De
modo inverso, o amor por Albertina só termina realmente com um retornõao
grupo: seja ao antigo grupo das jovens, tal como Andréa o simboliza depois da
morte de Albertina ("nessa época eu sentia prazer em manter relações
semicarnais com ela, por causa do aspecto coletivo de que se revestia a
princípio e que agora voltaria a caracterizar meu amor às moças
17.RF413.
18. SG 403.
73
do grupinho por muito tempo indiviso entre elas"); 19 seja a um
grupo análogo, encontrado na rua, quando Albertina já estava morta, e que
reproduzia, em sentido contrário, uma formação do amor, uma seleção da amada.20
Se, por um lado, grupo e série se opõem, por outro, eles são inseparáveis e
complementares.
*
A essência, tal como se encarna nos signos amorosos, manifesta-se
sucessivamente sob dois aspectos. Em primeiro lugar, sob a forma das leis
gerais da mentira. Pois é preciso mentir e só estamos dispostos a mentir a
alguém que nos ama. Se a mentira obedece a determinadas leis é porque implica
uma certa tensão no mentiroso, como um sistema de relações físicas entre a verdade
e as denegações ou invenções sob as quais pretende-se escondê-la: há, pois,
leis de contato, de atração e de repulsão, que formam uma verdadeira
"física" da mentira. Com efeito, a verdade está presente no amado
que mente; ele tem um conhecimento permanente dela, não a esquece, enquanto
esquece rapidamente uma mentira improvisada. A coisa escondida age nele de tal
maneira que de seu contexto ele extrai um pequeno fato verdadeiro destinado a
garantir o conjunto da mentira. Mas é exatamente esse pequeno fato que o trai,
porque seus ângulos se adaptam mal ao resto, revelando uma outra origem, um
pertencimento a outro sistema; ou então a coisa escondida age a distância,
atrai o mentiroso que, incessantemente, dele se acerca. Ele traça assintotas,
acreditando tornar insignificante seu segredo através de alusões diminutivas,
como Charlus dizendo: "eu que tenho procurado a beleza sob todas as suas
formas". Ou, então, inventamos uma multidão de detalhes verossímeis,
porque acreditamos que a própria verossimilhança é
19.F 141.
20.F 113-114.
74
uma aproximação do verdadeiro; mas o excesso de verossimilhança,
como pés a mais num verso, trai nossa mentira e revela a presença da falsidade.
Não apenas a coisa escondida permanece presente no mentiroso,
"porque o mais perigoso de todos os encobrimentos é o da própria falta no
espírito do culpado'',21 como também as coisas escondidas, não
cessando de juntar-se umas às outras e de aumentar como uma negra bola de neve,
fazem com que o mentiroso seja sempre traído: inconsciente dessa progressão,
ele mantém a mesma distância entre aquilo que confessa e aquilo que nega.
Aumentando o que nega, ele confessa cada vez mais. A mentira perfeita suporia,
no próprio mentiroso, uma prodigiosa memória voltada para o futuro, capaz de
deixar traços no porvir, tanto quanto a verdade. E, sobretudo, a mentira teria
de ser "total". Essas condições não são possíveis; também as mentiras
fazem parte dos signos, são precisamente os signos dessas verdades que elas
pretendem ocultar. "Ilegíveis e divinos vestígios."22
Ilegíveis, mas não inexplicáveis ou sem interpretação.
A mulher amada esconde um segredo, mesmo que este seja
conhecido de todos os outros. O amante, como um prepotente carcereiro, esconde
a criatura amada. É preciso ser duro, cruel e pérfido com a pessoa que
se ama. Na verdade, o amante mente tanto quanto a amada: ele a seqüestra,
evitando confessar-lhe seu amor, a fim de continuar melhor policial, melhor
carcereiro. Ora, o essencial para a mulher é esconder a origem dos mundos que
ela implica em si mesma, ponto de partida dos gestos, hábitos e gostos que ela
temporariamente nos dedica. As mulheres amadas tendem para um segredo de
Gomorra como para um pecado original: "a hediondez de Albertina."23
Mas os próprios amantes têm um segredo correspondente, uma hediondez aná-
21.SG 95.
22.CS 234.
23.F 151.
75
loga. Consciente ou não, é o segredo de Sodoma. De sorte
que a verdade do amor é dualista e a série amorosa só é simples aparentemente,
dividindo-se em duas séries mais profundas, representadas pela Srta. Vinteuil
e por Charlus. O herói da Recherche tem,
pois, duas revelações chocantes quando, em circunstâncias semelhantes,
surpreende a Srta. Vinteuil e, depois, Charlus,24 Que significam
essas duas séries da homossexualidade?
Proust procura explicá-las na passagem de Sodoma e Gomorra em que aparece constantemente uma metáfora vegetal. A
verdade do amor é, de início, a divisão dos sexos. Vivemos sob a predição de
Sansão: "Os dois sexos morrerão cada um para seu lado."25
Mas tudo se torna complicado porque os sexos separados, divididos, coexistem no
mesmo indivíduo: "Hermafroditismo inicial" como numa planta ou num
caramujo, que não podem ser fecundados por si próprios, mas "podem sê-lo por
outros hermafroditas",26 Acontece, então, que o intermediário,
em lugar de assegurar a união do macho com a fêmea, desdobra cada sexo em si
mesmo. Símbolo de uma autofecundação, tanto mais comovente por ser
homossexual, estéril, indireta. Mais do que uma aventura, é a própria essência
do amor. O Hermafrodita original produz continuamente as duas séries
homossexuais divergentes, separando os sexos ao invés de reuni-los, de tal
modo que os homens e as mulheres só aparentemente se cruzam. É necessário afirmar com relação a todos os amantes e a todas as mulheres
amadas aquilo que só é evidente em certos casos especiais: os amantes
"representam para a mulher que gosta das mulheres o papel de outra
mulher, e a mulher lhes oferece ao mesmo tempo aproximadamente o que encontram
eles no homem". 27
24.SG 8.
25.SG 14.
26.SG 25.
27.SG 20.
76
No amor, a essência se encarna a princípio nas leis da
mentira, mas, em seguida, nos segredos da homossexualidade: a mentira não
teria a generalidade que a torna essencial e significativa se não se referisse
à homossexualidade como à verdade que ela encobre. Todas as mentiras se
organizam e giram em torno dela, como em torno de seu eixo. A homossexualidade
é a verdade do amor. Razão por que a série amorosa é realmente dupla: ela se
organiza em duas séries que não encontram sua fonte apenas nas imagens do pai e
da mãe, mas numa continuidade filogenética mais profunda. O Hermafroditismo
inicial é a lei contínua das séries divergentes; de uma série a outra vê-se
constantemente o amor engendrar signos que
são os de Sodoma e os de Gomorra.
*
Generalidade significa duas coisas: a lei de uma série
(ou de várias séries) cujos termos diferem, ou o caráter de um grupo cujos
elementos se assemelham. Sem dúvida alguma, os grupos intervêm no amor. O
amante extrai a criatura amada de um conjunto preliminar e interpreta os
signos, que são, a princípio, coletivos. Ou melhor: as mulheres de Gomorra ou
os homens de Sodoma emitem "signos astrais", através dos quais se
reconhecem e formam as associações malditas que reproduzem as duas cidades
bíblicas.28 Acontece que o grupo não é essencial no amor; ele apenas
proporciona as ocasiões. A verdadeira generalidade do amor é serial: nossos
amores só são profundamente vividos segundo as séries em que eles se
organizam. O mesmo não acontece em relação ao mundanismo. As essências ainda
se encarnam nos signos mundanos, mas num último nível de contingência e de
generalidade. Elas se encarnam ime-
28. SG 200-201.
77
diatamente nas sociedades, sua generalidade é apenas uma
generalidade de grupo: o último grau da essência.
Não há dúvida de que o “mundo" expressa forças
sociais, históricas e políticas. Os signos mundanos, entretanto, são emitidos
no vazio; assim atravessam distâncias astronômicas, que fazem com que a
observação do mundanismo não se pareça absolutamente com um estudo
microscópico, mas telescópico. Proust diz muitas vezes: em um certo nível das
essências, o que interessa não é mais a individualidade, nem o detalhe, são as
leis, as grandes distâncias e as grandes generalidades. O telescópio, não o
microscópio.29 Se isso é verdadeiro em relação ao amor, com muito
mais razão o é em relação ao mundo. O vazio é precisamente o meio portador de
generalidade, meio físico privilegiado para a manifestação de uma lei. Uma
cabeça oca apresenta melhores leis estatísticas do que uma matéria mais densa.
"Os seres mais estúpidos manifestam nos gestos, nas palavras, nos
sentimentos involuntariamente expressos, leis que não percebem mas deixam
surpreendet pelo artista."30 Acontece, sem dúvida, que um gênio
singular, uma alma dirigente presidam o curso' dos astros, tal como Charlus.
Mas, da mesma forma que os astrônomos deixaram de acreditar nas almas
dirigentes, também o mundo deixa de acreditar em Charlus. As leis que presidem
as mudanças do mundo são leis mecânicas em que predomina o Esquecimento. (Em
páginas célebres, Proust analisa o poder do esquecimento social, em função da
evolução dos salões, desde o caso Dreyfus até a Guerra de 1914. Poucos textos
fazem melhor comentário da frase de Lênin sobre a capacidade que tem a
sociedade de substituir "os velhos preconceitos apodrecidos" por
novos preconceitos, ainda mais infames ou mais estúpidos.)
29.TR 246.
30.TR 146.
78
Vazio, burrice, esquecimento: essa é a trindade do grupo
mundano. Mas com ela o mundanismo ganha velocidade, mobilidade na emissão dos
signos, perfeição no formalismo e generalidade no sentido: coisas essas que
formam um meio indispensável ao aprendizado. À medida
que a essência se encarna de modo cada vez mais fraco, os signos adquirem uma
importância cômica. Provocam-nos uma espécie de exaltação nervosa cada vez mais
exterior; excitam a inteligência para serem interpretados. Nada provoca tanto
nossa curiosidade como saber o que se passa na cabeça de um tolo. Num grupo,
aqueles que são como papagaios são também "aves proféticas": sua tagarelice
assinala a presença de uma lei. 31 E se os grupos ainda fornecem uma
rica matéria à interpretação é porque têm
afinidades ocultas, um conteúdo propriamente inconsciente. As verdadeiras
famílias, os verdadeiros meios, os verdadeiros grupos são os meios, os grupos
"intelectuais", isto é, nós sempre pertencemos à sociedade de onde emanam as idéias e os valores em que acreditamos. Não é o
menor erro de Taine ou de Sainte-Beuve terem invocado a influência imediata dos
meios simplesmente físicos e reais. Na verdade, o intérprete deve recompor os
grupos, neles descobrindo as famílias mentais a que
estão relacionados. Pode acontecer a duquesas ou ao Sr. de Guermantes de
falarem como pequeno-burgueses: a lei da sociedade e, mais genericamente, a
lei da linguagem é "que nos expressemos como as pessoas de nossa classe
mental e não da nossa casta de origem".32
31.TR 146.
32.CG 182.
79
Capítulo VII
O Pluralismo no Sistema dos Signos
A Recherche do tempo
perdido se apresenta como um sistema de signos. Mas esse sistema é pluralista,
não apenas porque a classificação dos signos utiliza critérios múltiplos, mas
também porque devemos sempre conjugar dois pontos de vista distintos no
estabelecimento desses critérios. Por um lado, devemos considerar os signos do
ponto de vista do processo de um aprendizado. Qual é a potência e a eficácia
de cada tipo de signo? Isto é, em que medida ele nos prepara para a revelação
final? Que nos faz compreender, por si mesmo e imediatamente, através de uma
lei de progressão que difere segundo os tipos, e que se relaciona com outros
tipos por regras variáveis? Por outro lado, devemos considerar os signos do
ponto de vista da revelação final. Esta se confunde com a Arte, a mais alta
espécie de signos. Mas, na obra de arte, todos os outros signos são retomados,
ocupam um lugar correspondente à eficácia
que apresentavam na evolução do aprendizado e recebem uma explicação final das
características que então apresentavam, e que sentíamos sem poder
compreendê-las totalmente.
Levando em consideração esses pontos de vista, o sistema
utiliza sete critérios. Os cinco primeiros podem ser brevemente relembrados; os
dois últimos têm conseqüências que devem ser desenvolvidas.
1 º) A matéria em que o signo é inscrito. Essas matérias são mais ou menos resistentes e opacas,
mais ou menos desmateria-
80
lizadas, mais ou menos espiritualizadas. Os signos
mundanos são mais materiais por evoluírem no vazio. Os signos amorosos são
inseparáveis da força de um rosto, da textura de uma pele, da forma e do
colorido de uma face: coisas que só se espiritualizam quando a criatura amada
dorme. Os signos sensíveis também são qualidades materiais, sobretudo os
aromas e os sabores. Somente na Arte é que o signo se torna imaterial, ao mesmo
tempo que seu sentido se torna espiritual.
2º) A maneira como alguma coisa é emitida e apreendida
como signo e os perigos (que disso decorrem) de uma
interpretação ora objetivista, ora subjetivista. Cada tipo de signo
nos remete ao objeto que o emite como também ao sujeito que o apreende e o
interpreta. A princípio acreditamos que é preciso ver e escutar; ou que é
preciso confessar (render uma homenagem ao objeto), como no amor; ou que é
necessário observar e descrever a coisa sensível; e trabalhar, fazer um esforço
de pensamento com a finalidade de apreender as significações e os valores
objetivos. Desiludidos, nos lançamos no jogo das associações subjetivas.
Entretanto, para cada espécie de signo, esses dois momentos do aprendizado têm
um ritmo e relações específicas.
3º) O efeito do signo sobre nós, o tipo de emoção que suscita. Exaltação nervosa dos signos mundanos; angústia e
sofrimento dos signos amorosos; alegria extraordinária dos signos sensíveis
(onde a angústia, entretanto, ainda desponta como a contradição subsistente do
ser e do nada), alegria pura dos signos da arte.
4º) A natureza do sentido e a relação do signo com o sentido. Os signos mundanos são vazios;
substituem a ação e o pensamento, pretendem valer por seu sentido. Os signos
amorosos são enganadores: seu sentido se encontra na contradição daquilo que
revelam e do que pretendem esconder. Os signos sensíveis são verídicos, mas
neles permanece a oposição da sobrevivência e do nada; e seu sentido ainda é
material, reside em outra coisa. Entretanto, na medida em que nos elevamos até
a arte, a relação do signo com o sentido se torna cada vez mais próxima e ín-
81
tima. A arte é a bela unidade final de um signo imaterial
e de um sentido espiritual.
5º) A principal
faculdade que explica ou interpreta o signo, que desenvolve seu
sentido. A inteligência para os signos mundanos; também a
inteligência, mas de forma diferente, para os signos amorosos (o esforço da
inteligência não é mais suscitado por uma exaltação que precisa ser acalmada,
mas pelos sofrimentos da sensibilidade, que é necessário transmutar em
alegria). Para os signos sensíveis, ora a memória involuntária, ora a imaginação,
tal como nasce do desejo. Para os signos da arte, o pensamento puro como
faculdade das essências.
6º) As estruturas
temporais ou as linhas de tempo implicadas no signo e o tipo
correspondente de verdade. O
tempo é sempre necessário para a interpretação de um signo, o ternpo é sempre
o de uma interpretação, isto é, de um desenvolvimento. No caso dos signos
mundanos, perdemos tempo porque esses signos são vazios e reaparecem, intactos
ou idênticos, no final de seu desenvolvimento. Como um monstro, como uma
espiral, eles renascem de suas próprias metamorfoses. Também existe uma
verdade do tempo que se perde, como se fora a maturação do intérprete, pois
esse não se redes cobre de forma idêntica. Com relação aos signos do amor, nos
situamos, sobretudo, no tempo perdido: tempo que altera os seres e as coisas e
que os faz passar. Neles ainda há uma verdade – as verdades desse tempo
perdido. Mas não apenas a verdade do tempo perdido é múltipla, aproximativa,
equívoca, como também só a captamos no momentc em que ela deixou de nos
interessar, quando o eu do intérprete, o Eu que amava, já não mais existe.
Assim acontece tanto com Gilberta como com Albertina: no que diz respeito ao
amor, a verdade sempre aparece tarde
demais. O tempo do amor é um tempo perdido, porque o signo só se desenvolve na
medida em que desaparece o eu que correspondia ao seu sentido. Os signos sensíveis
nos apresentam uma nova estrutura do tempo: tempo que se redescobre no seio do
próprio tempo perdido, imagem da
82
eternidade. É que os
signos sensíveis (por oposição aos signos amorosos) têm o poder seja de
suscitar, pelo desejo e a imaginação, seja de ressuscitar, pela memória
involuntária, o Eu que. corresponde ao seu sentido. Finalmente, os signos da
arte definem o tempo redescoberto: tempo primordial absoluto, verdadeira eternidade
que reúne o sentido e o signo.
Tempo que se perde, tempo perdido, tempo que se redescobre
e tempo redescoberto são as quatro linhas do tempo. Notar-se-á, no entanto,
que, se cada tipo de signos tem sua linha particular, ele participa das outras
linhas, entrecruzando-se com elas ao se desenvolver. É, portanto, nas linhas do tempo que os signos interferem uns com os outros
e multiplicam suas combinações. O tempo
que se perde se prolonga em todos os outros signos, com exceção dos da arte.
Inversamente, o tempo perdido já se encontra nos signos mundanos, alterando-os
e comprometendo sua identidade formal. Também já está subjacente nos signos
sensíveis, introduzindo um sentimento de nada, mesmo nas alegrias da
sensibilidade. Por sua vez, o tempo que se redescobre não é estranho ao tempo
perdido: nós o redescobrimos no próprio âmago do tempo perdido. Enfim, o tempo
redes coberto da arte engloba e compreende todos os outros, pois é unicamente
nele que cada linha de tempo encontra sua verdade, seu lugar e seu resultado
do ponto de vista da verdade.
De determinado ponto de vista, cada linha de tempo vale
por si mesma ("todos esses planos diferentes, segundo os quaiso Tempo,
desde que, nesta festa, eu o recapturara, dispunha a minha vida... ").l Essas estruturas temporais são, portanto, como
"séries diferentes e paralelas".2 Mas esse paralelismo ou
essa autonomia das séries não exclui, sob outro ponto de vista, uma espécie
de hierarquia. De uma linha a outra, a relação entre o signo e o sentido de faz
mais íntima, mais necessária e mais pro-
1.TR 239.
2.SG 128.
83
funda. De cada vez recuperamos na linha superior o que
estava perdido nas outras, tudo acontecendo como se as linhas do tempo se
partissem, encaixando-se umas nas outras.
Desse modo, é o próprio Tempo que é serial; cada aspecto
do tempo passa a ser, desde então, um termo da série temporal absoluta,
remetendo a um Eu que dispõe de um campo de exploração cada vez mais vasto,
cada vez mais individualizado. O tempo primordial da arte imbrica todos os
tempos, o Eu absoluto da Arte engloba todos os Eus.
7º) A essência. Dos
signos mundanos aos signos sensíveis, a relação do signo com seu sentido é cada
vez mais íntima. Assim se delineia o que os filósofos chamariam de uma "dialética
ascendente". Mas apenas no nível mais profundo, no nível da arte, é que a
Essência é revelada: como a razão dessa relação e de suas variações. Então, a
partir dessa revelação final, podemos descer os níveis. Não que tenhamos de
retomar à vida, ao amor, à mundanidade, mas descemos a série do tempo,
consignando, a cada linha temporal e a cada espécie de signos, a verdade que
lhes é peculiar. Quando atingimos a revelação da arte, aprendemos que a
essência já se encontrava nos níveis mais baixos. Era ela que, em cada caso,
determinava a relação do signo com seu sentido. Essa relação é tanto mais forte
quanto a essência se encama com mais necessidade e individualidade; ao contrário,
tanto mais enfraquecida quanto a essência apresenta maior generalidade e se
encarna em dados mais contingentes. Assim, na arte, a própria essência
individualiza o sujeito em que se incorpora e determina de modo absoluto os
objetos que a exprimem. Nos signos sensíveis, entretanto, a essência começa a
adquirir um mínimo de generalidade, sua encamação depende de dados contingentes
e de determinações exteriores. Sobretudo nos signos do amor e nos signos
mundanos: sua generalidade é, então, uma generalidade de série ou uma
generalidade de grupo; sua seleção remete cada vez mais a determinações objetivas
extrínsecas e mecanismos subjetivos de associação. Por
84
essa razão, não podíamos compreender imediatamente que as
Essências já animavam os signos mundanos, os signos amorosos, os signos
sensíveis. Mas quando os signos da arte nos revelam a essência, reconhecemos
seu efeito nos outros campos. Sabemos reconhecer as marcas de seu esplendor
atenuado, enfraquecido. Estamos, então, em condições de dar à essência o que
lhe pertence e de recuperar todas as verdades do tempo, como também todas as
espécies de signos, para fazer delas partes integrantes da própria obra de
arte.
Implicação e explicação, envolvimento e desenvolvimento,
tais são as categorias da Recherche. Por um
lado, o sentido é implicado no signo; é como que uma coisa enrolada em outra. O
prisioneiro, a alma prisioneira significam que há sempre um encaixamento, um
enrolamento do diverso. Os signos emanam de objetos
que são como caixas ou vasos fechados. Os objetos retêm uma alma cativa, a alma
de outra coisa que se esforça para entreabrir a tampa.3 Proust gosta
da "crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham
cativas nalgum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada;
efetivamente perdidas, para nós, até o dia, que para muitos nunca chega, em que
nos acontece passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe
serve de prisão."4 Mas às metáforas de implicação
correspondem, por outro lado, as imagens de explicação. Pois o signo se
desenvolve, se desenrola no mesmo tempo em que é interpretado. O amante
ciumento desenvolve os mundos possíveis encerrados na criatura amada. O homem
sensível libera as almas implicadas nas coisas, mais ou menos como quem vê os
pedaços de papel do jogo japonês desdobrando-se na água, estirando-se ou
explicando-se, ao formar flores, casas e personagens.5 O próprio
sentido se confunde com
3.CG 154.
4.CS 44-45.
5.CS 47.
85
esse desenvolvimento do signo, como o signo se confundia
com o enrolamento do sentido. Assim, a Essência é, finalmente, o terceiro termo
que domina os dois outros, que dirige seu movimento: a essência complica o
signo e o sentido, ela os mantém complicados, põe um no outro. Ela mede, em
cada caso, a relação entre o signo e o sentido, seu grau de afastamento ou de
proximidade, seu grau de unidade. Sem dúvida o signo, por si próprio, não se
reduz ao objeto, mas ainda está parcialmente contido nele. Sem dúvida o
sentido, por si próprio, não se reduz ao sujeito, mas depende parcialmente do
sujeito, das circunstâncias e das associações subjetivas. Além do signo e do
sentido, há a Essência como razão suficiente dos dois outros termos e de sua
relação.
O essencial na Recherche não é a
memória nem o tempo, mas o signo e a verdade. O essencial não é lembrar-se, mas
aprender; porque a memória só vale como uma faculdade capaz de interpretar
certos signos e o tempo só vale como a matéria ou o tipo dessa ou daquela
verdade. E a lembrança, ora voluntária, ora involuntária, só intervém em
momentos precisos do aprendizado, para contrair o efeito ou para abrir novos
caminhos. As noções da Recherche são: o
signo, o sentido, a essência; a continuidade dos aprendizados e o modo brusco
das revelações. Saber que Charlus é homossexual constitui um deslumbramento;
mas foi necessária a maturação progressiva e contínua do intérprete, e depois
o salto qualitativo em um novo saber, em um novo domínio de signos. Os leitmotive da Recherche são: eu
ainda não sabia; eu compreenderia mais tarde; quando deixava de aprender, eu
não me interessava mais. As personagens da Recherche só adquirem importância quando emitem signos a serem
decifrados, num ritmo de tenwo mais ou menos profundo. A avó, Francisca, a Sra.
de Guermantes, Charlus, Albertina só valem Relo que nos ensinam. "A
alegria com que fiz meu primeiro aprendizado quando Francisca... ",
"com Albertina eu nada mais tinha a aprender... ".
86
Há uma visão proustiana do mundo que se define, em princípio,
por aquilo que exclui: nem matéria bruta, nem espírito voluntário; nem física,
nem filosofia. A filosofia supõe enunciados diretos e significações explícitas
saídos de um espírito que quer a verdade. A física supõe uma matéria objetiva e
não ambígua, sujeita às condições do real. Erramos quando acreditamos nos
fatos: só há signos. Erramos quando acreditamos na verdade: só há
interpretações. O signo tem um sentido sempre equívoco, implícito e implicado.
"Eu seguira em minha vida uma marcha inversa à dos povos, que não se
servem da escrita fonética senão depois de terem considerado os caracteres
como uma seqüência de símbolos."6 O que reúne o perfume de uma flor e o
espetáculo de um salão, o gosto de uma madeleine e a
emoção de um amor, é o signo e o correspondente aprendizado. O perfume de uma
flor;quando esta emite um signo, ultrapassa, ao mesmo tempo, as leis da matéria
e as categorias do espírito. Não somos físicos nem metafísicos: devemos ser
egiptólogos. Pois não há leis mecânicas entre as coisas, nem comunicações
voluntárias entre os espíritos; tudo é implicado, complicado, tudo é signo,
sentido, essência. Tudo existe nessas zonas obscuras em que penetramos como em
criptas, para aí decifrar hieróglifos e linguagens secretas. O egiptólogo, em
todas as coisas, é aquele que faz uma iniciação – é o aprendiz.
Não existem coisas nem espíritos, só existem corpos:
corpos astrais, corpos vegetais... A biologia teria razão se soubesse que os
corpos em si mesmos já são linguagem. Os lingüistas teriam razão se soubessem
que a linguagem é sempre a dos corpos. Todo sintoma é uma palavra, mas, antes
de tudo, todas as palavras são sintomas. "As mesmas palavras só me
elucidavam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue às
faces de uma pessoa que se perturba, ou ainda como um silêncio
6. P 70.
87
súbito."7 Não devemos estranhar que o
histérico faça falar seu corpo. Ele redes cobre uma linguagem primitiva, a
verdadeira linguagem dos símbolos e dos hieróglifos. Seu corpo é um Egito. As
mímicas da Sra. Verdurin, seu medo de que o queixo se desloque, suas atitudes
artistas que parecem as de uma pessoa que dorme, seu nariz gomenolado formam um
alfabeto para os iniciados.
7. P 70.
88
Conclusão
A Imagem do Pensamento
Se o tempo tem uma importância fundamental na Recherche, é porque toda verdade é verdade do tempo. A Recherche é, antes de tudo, uma busca da verdade, em que se
manifesta toda a dimensão "filosófica" da obra de Proust, em
rivalidade com a filosofia. Proust constrói uma imagem do pensamento que se
opõe à da filosofia, combatendo o que
há de mais essencial numa filosofia clássica de tipo racionalista: seus
pressupostos. O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito como espírito, o
pensador como pensador quer o verdadeiro, ama ou deseja o que é verdadeiro,
procura naturalmente o verdadeiro. Ele antecipadamente se confere uma boa
vontade de pensar: toda a sua busca é baseada numa "decisão
premeditada". Daí decorre o método da filosofia: de determinado ponto de
vista, a busca da verdade seria a coisa mais natural e mais fácil possível:
bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exteriores que
desviam o pensamento de sua vocação e fazem com que ele tome o falso pelo
verdadeiro. Tratar-se-ia de descobrir e organizar as idéias segundo uma ordem
que seria a do pensamento, como significações explícitas ou verdades
formuladas que viriam saciar a busca e assegurar o acordo entre os espíritos.
Na palavra filósofo existe "amigo". É muito
significativo que Proust dirija a mesma crítica à filosofia
e à amizade. Os amigos são, um em relação ao outro,
como que espíritos de boa vontade que sempre concordam a respeito da
significação das
89
coisas e das palavras, comunicando-se sob o efeito de uma
boa vontade comum. A filosofia é como a expressão de um Espírito universal que
concorda consigo mesmo para determinar significações explícitas e
comunicáveis. A crítica de Proust toca no essencial: as verdades permanecem
arbitrárias e abstratas enquanto se fundam na boa vontade de pensar. Apenas o
convencional é explícito. Razão pela qual a filosofia, como a amizade, ignora
as zonas obscuras em que são elaboradas as forças efetivas que agem sobre o
pensamento, as determinações que nos forçam a pensar. Não basta uma boa vontade
nem um método bem elaborado para ensinar a pensar, como não basta um amigo para
nos aproximarmos do verdadeiro. Os espíritos só se comu!1icam no convencional;
o espírito só engendra o possível. Às verdades da filosofia faltam a
necessidade e a marca da necessidade. De fato, a verdade não se dá, se trai;
não se comunica, se interpreta; não é voluntária, é involuntária.
O grande tema do Tempo redescoberto é o seguinte: a busca
da verdade é a aventura própria do involuntário. Sem algo que force a pensar,
sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que
o pensamento é o que "dá que pensar"; mais importante do que o
filósofo é o poeta. Victor Hugo faz filosofia em seus primeiros poemas, porque
"ele ainda pensa, em vez de contentar-se, como a natureza, em dar que
pensar".l Mas o poeta aprende que o essencial está fora do
pensamento, naquilo que força a pensar. O leitmotiv
do Tempo redes coberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a
interpretar, expressões que nos forçam a pensar.
"Porque as verdades direta e claramente apreendidas
pela inteligência no mundo da plena luz são de qualquer modo mais superficiais
do que as que a vida nos comunica à nossa
revelia, numa impressão física, já que entrou pelos sentidos, mas da qual
1. CG 428.
90
podemos extrair o espírito. (...) Era mister tentar
interpretar as sensações como signos de outras
tantas leis e idéias, procurando pensar, isto é, fazendo sair da penumbra o que
sentira, convertê-lo em seu equivalente espiritual. (...) Pois reminiscências
como o ruído do garfo e o sabor da madeleine, ou
verdades escritas por figuras cujo sentido eu buscava em minha cabeça, onde
campanários, plantas sem nome, compunham um alfarrábio complicado e florido,
todas, logo de início, privavam-me da liberdade de escolher entre elas, obrigavam-me a aceitá-las tais
como me vinham. E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pedras do calçamento em que tropeçara no
pátio. Mas o modo fortuito, inevitável, porque
surgira a sensação, constituía justamente uma prova da verdade do passado que
ressuscitava das imagens que desencadeava, pois percebemos seu esforço para
aflorar à luz, sentimos a alegria do real recapturado. (...)
Do livro subjetivo composto por esses sinais desconhecidos (sinais em relevo,
dir-se-ia, que minha atenção procurava, roçava, contornava como um mergulhador
em suas sondagens) ninguém me poderia, com regra alguma, facilitar a leitura,
consistindo esta num ato criador que não admite suplentes nem colaboradores...
Por possuírem apenas uma verdade lógica, uma verdade possível, as idéias
selecionadas pela inteligência pura são selecionadas arbitrariamente. O livro
de caracteres figurados, não traçados por nós, é o nosso
único livro. Não que as idéias por nós elaboradas não possam ser logicamente
certas, mas não sabemos se são verdadeiras. Só a impressão, por mofina que lhe
pareça a matéria e inverossímeis as pegadas, é um critério de verdade e como
tal deve ser exclusivamente apreendida pelo espírito, sendo, se ele lhe souber
extrair a verdade, a única apta a conduzi-lo à perfeição
e enchê-lo da mais pura alegria."2
2. TR 129-130.
91
O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de
um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a
necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma
simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A
criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese
implica alguma coisa que violenta o pensamento, que O tira de
seu natural estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre
interpretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo. Traduzir,
decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Nem existem significações
explícitas nem idéias claras, só existem sentidos implicados nos signos; e se O pensamento
tem o poâer de explicar o signo, de desenvolvê-lo em uma Idéia, é porque a
Idéia já estava presente no signo, em estado envolvido e enrolado, no estado
obscuro daquilo que força a pensar. Só procuramos a verdade no tempo, coagidos
e forçados. Quem procura a verdade é o ciumento que descobre um signo
mentiroso no rosto da criatura amada; é o homem sensível quando encontra a
violência de uma impressão; é o leitor, o ouvinte, quando a obra de arte emite
signos, o que o forçará talvez a criar, como o apelo do gênio a outros gênios.
As comunicações de uma amizade tagarela nada são em comparação com as
interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e a
sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte. A
criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos. A obra de
arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumento,
divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai.
A aventura do involuntário se encontra no nível de cada
faculdade. Os signos mundanos e os signos amorosos são interpretados pela
inteligência de duas maneiras diferentes. Mas não se trata mais aqui da
inteligência abstrata e voluntária, que pretende encontrar por si mesma as
verdades lógicas, ter sua pró-
92
pria ordem e se antecipar às pressões que surgem de fora.
Trata-se de uma inteligência involuntária que sofre a pressão dos signos e só
se anima para interpretá-los, para conjurar assim vazio em que ele se asfixia,
o sofrimento que a sufoca. Tanto na ciência quanto na filosofia, a inteligência
vem sempre antes; mas a especificidade dos signos é que eles recorrem à
inteligência considerada como algo que vem depois, que deve vir depois.3
O mesmo acontece com a memória. Os signos sensíveis nos forçam a procurar a
verdade, mas mobilizam uma memória involuntária (ou uma imaginação involuntária
nascida do desejo). Finalmente, os signos da arte nos forçam a pensar: eles
mobilizam o pensamento puro como faculdade das essências. Eles desencadeiam no
pensamento o que menos depende de sua boa vontade: o próprio ato de pensar. Os
signos mobilizam, coagem uma faculdade: seja inteligência, memória ou
imaginação. Essa faculdade, por sua vez, põe o pensamento em movimento, força-o
a pensar a essência. Sob os signos da arte aprendemos o que é o pensamento puro
como faculdade das essências e como a inteligência, a memória ou a imaginação o
diversificam com relação às outras espécies de signos.
Voluntário e involuntário não designam faculdades diferentes,
mas um exercício diferente das mesmas faculdades. A percepção, a memória, a
imaginação, a inteligência, o próprio pensamento só têm um exercício
contingente quando se exercem voluntariamente; então, aquilo que percebemos
poderia também ser lembrado, imaginado, concebido, e inversamente. A percepção
não nos dá nenhuma verdade profunda, nem a memória voluntária nem o pensamento
voluntário: apenas verdades possíveis. Nada nos força a interpretar alguma
coisa, nada nos força a decifrar a natureza de um signo, nada nos força a
mergulhar como "um mergulhador em suas sondagens". Todas
3. TR 130.
93
as faculdades se exercem harmoniosamente, mas uma substituindo
a outra, no arbitrário e no abstrato. Ao contrário, cada vez que uma faculdade
toma sua forma involuntária ela descobre e atinge seu próprio limite, eleva-se
a um exercício transcendente, compreende a própria necessidade como sua
potência insubstituível; deixa de ser permutável. Ao invés de uma percepção
indiferente, uma sensibilidade que capta e recebe os signos: o signo é o
limite dessa sensibilidade, sua vocação, seu exercício extremo. Em lugar de uma
inteligência voluntária, de uma memória voluntária, de uma imaginação
voluntária, todas essas faculdades surgem em sua forma involuntária e
transcendente, quando então cada uma descobre aquilo que só ela tem o poder de
interpretar, cada uma explica um tipo de signo que especificamente lhe
violenta. O exercício involuntário é o limite transcendente ou a vocação de
cada faculdade. Em lugar do pensamento voluntário, tudo que força a pensar,
tudo que é forçado a pensar, todo pensamento involuntário que só pode pensar a
essência. Só a sensibilidade apreende o signo como tal: só a inteligência, a memória
ou a imaginação explicam o sentido, cada qual segundo uma determinada espécie
designo; só o pensamento puro descobre a essência, é forçado a pensar a
essência como a razão suficiente do signo e de seu sentido.
*
É bem possível que a crítica da filosofia, tal como
Proust a realiza, seja eminentemente filosófica. Que filósofo não desejaria
construir uma imagem do pensamento que não dependesse mais de uma boa vontade
do pensador e de uma decisão premeditada? Sempre que se sonha com um
pensamento concreto e perigoso, sabe-se muito bem que ele não depende de uma
decisão nem de um método explícitos, mas de uma violência encontrada,
refratada, que nos conduz, independentemente de nossa vontade, até as
Essências. Pois as essências vivem em zonas obs-
94
curas nunca nas regiões temperadas do claro e do
distinto. Elas estão enroladas naquilo que força a pensar; não respondem ao
nosso esforço voluntário; só se deixam pensar quando somos coagidos a fazê-lo.
Proust é platônico, e não vagamente porque invoca as essências
ou as Idéias a propósito da pequena frase de Vinteuil. Platão constrói uma
imagem do pensamento sob o signo dos encontros e das violências. Em certa
passagem da República, Platão
distingue duas espécies de coisas no mundo: as que deixam o pensamento inativo
ou lhe dão apenas o pretexto de uma aparência de atividade e as que fazem
pensar, que forçam a pensar. 4 As primeiras são os objetos de
recognição; todas as faculdades se exercem sobre os objetos, mas num exercício
contingente que nos faz dizer "é um dedo", é uma maçã, é uma casa...
Outras coisas, ao contrário, nos forçam a pensar: não mais objetos reconhecíveis, mas coisas que violentam, signos encontrados. São "percepções contrárias ao mesmo
tempo", diz Platão. (Proust dirá: sensações comuns a dois lugares, a dois
momentos.) O signo sensível nos violenta: mobiliza a memória, põe a alma em
movimento; mas a alma, por sua vez, impulsiona o pensamento, lhe transmite a
pressão da sensibilidade, força-o a pensar a essência como a única coisa que
deva ser pensada. Assim, as faculdades entram num exercício transcendente em
que cada uma afronta e encontra seu limite: a sensibilidade, que apreende o
signo; a alma, a memória, que o interpreta; o pensamento, forçado a pensar a
essência. Com justa razão pode Sócrates dizer: sou o Amor mais do que o Amigo,
sou o Amante; sou a arte mais do que a filosofia; sou a coação e a violência,
mais do que a boa vontade. O Banquete,
Fedra e Fédon são os
três grandes estudos sobre os signos.
4. Piarão, República, VII, 523 b-525 b.
95
Mas o demônio socrático, a ironia, consiste em antecipar
os encontros. Em Sócrates, a inteligência precede os encontros; provoca-os,
suscita-os, organiza-os. O humor de Proust é de outra natureza: é o humor
judeu contra a ironia grega. É preciso
ser dotado para os signos, predispor-se ao seu encontro, expor-se à sua violência. A inteligência vem sempre depois; ela é boa quando vem
depois, só é boa quando vem depois. Vimos como essa diferença com relação ao
platonismo acarreta muitas outras. Não há Logos,
só há hieróglifos. Pensar é, portanto, interpretar, traduzir. As
essências são, ao mesmo tempo, a coisa a traduzir e a própria tradução; o
signo e o sentido. Elas se enrolam no signo para nos forçar a pensar, e se
desenrolam no sentido para serem necessariamente pensadas. Sempre o hieróglifo,
cujo duplo símbolo é o acaso do encontro e a necessidade do pensamento:
"fortuito e inevitável".
SEGUNDA PARTE
A Máquina Literária
99
Capítulo I
Antilogos
Proust vive, a seu modo, a oposição entre Atenas e Jerusalém.
No decorrer da Recherche ele
elimina muitas coisas ou muitas pessoas que aparentemente formam uma mistura
heteróclita: os observadores, os amigos, os filósofos, os tagarelas, os
homossexuais à grega, os intelectuais e
os voluntariosos. Mas todos eles participam do logos e são, sob diversos aspectos, as personagens da mesma
dialética universal: a dialética como "Conversa entre Amigos", em que
wdas as faculdades se exercem voluntariamente e colaboram, sob a égide da Inteligência,
para ligar a observação das Coisas, a descoberta das Leis, a formação das
Palavras, a análise das Idéias e tecer continuamente o vínculo entre a Parte e
o Todo e entre o Todo e a Parte. Observar cada coisa como um todo e depois
pensá-la, por sua lei, como parte de um todo, ele mesmo presente, por sua
Idéia, em cada uma das partes. Não será o logos
universal, o gosto pela totalização, que se encontra, de diferentes
modos, na conversa dos amigos, na verdade racional e analítica dos filósofos, na
démarche dos
sábios, na obra de arte premeditada dos literatos, no simbolismo convencional
das palavras que todos empregam?!
1.A dialética não é separável
dessas características extrínsecas; é assim que Bergson a define pelas duas
características da conversa entre amigos e da significação convencional das
palavras nas cidades (cf. La pensée et le mouvant, Presses
Universitaires de France, ps. 86-88).
100
No logos há um
aspecto, por mais oculto que esteja, pelo qual a Inteligência vem sempre antes, pelo qual o todo já se encontra presente e a lei já
conhecida antes daquilo a que se vai aplicá-Ia: passe de mágica dialético, em
que nada mais se faz do que reencontrar o que já estava dado de antemão e de
onde se tiram as coisas que aí tinham sido colocadas. (Reconhecem-se restos de
um logos em Sainte-Beuve e seu detestável
método, quando interroga os amigos de um autor para avaliar a obra como produto
de uma família, de uma época e de um meio, mesmo que considere, por sua vez, a
obra como um todo que reage sobre o meio. Método que o levou a considerar
Baudelaire e Stendhal um pouco como Sócrates considerou Alcebíades: gentis
rapazes que merecem ser conhecidos. E Goncourt dispõe ainda das migalhas do logos quando observa o banquete dos Verdurin e os convidados
reunidos "para conversas de alto nível, entremeadas de jogos
inocentes".)2
A Recherche é
construída sobre uma série de oposições. À observação Proust opõe a
sensibilidade; à filosofia, o pensamento; à reflexão, a tradução; ao uso lógico
ou conjunto de todas as nossas faculdades, que a inteligência precede e faz
convergir na ficção de uma "alma total", um uso dislógico e disjunto
que mostra que nunca dispomos de todas as faculdades ao mesmo tempo e que a
inteligência vem sempre depois.3 Mais ainda: à amizade opõe-se o
amor: à conversa, a interpretação silenciosa; à homossexualidade grega, a
judia (a amaldiçoada); às palavras, os nomes; às significações explícitas, os
signos implícitos e os sentidos enrolados. "Eu seguira em minha vida uma
marcha inversa à dos povos, que não se servem da escrita fonética senão depois
de só terem considerado os caracteres como uma seqüência de símbolos; eu, que
2.TR 13. Foi
nesse pastiche de Goncourt que
Proust levou às últimas conseqüências sua crítica à observação, que constitui um dos temas constantes da Recherche.
3.SG 127; sobre a inteligência que
deve vir depois, cf. TR 130 e
todo o prefácio de Contre Sainte-Beuve.
101
durante tantos anos não buscara a vida e o pensamento
reais das pessoas senão no enunciado direto que deles me forneciam elas
voluntariamente, chegara, por culpa delas, a, pelo contrário, só dar
importância aos testemunhos que não são uma expressão racional e analítica da
verdade; as mesmas palavras só me elucidavam sob a condição de serem interpretadas
como um afluxo de sangue às faces de uma pessoa que se perturba, ou ainda como
um silêncio súbito."4 Não que Proust substitua a lógica do Verdadeiro
por uma simples psicofisiologia dos motivos. É o ser da
verdade que nos força a procurá-la onde ela reside, naquilo que está implicado
ou complicado, e não nas imagens claras e nas idéias manifestas da
inteligência.
Consideremos três personagens secundários da Recherche que, por certos aspectos, estão ligados ao logos: Saint-Loup, intelectual ávido de amizade; Norpois,
obcecado pelas significações convencionais da diplomacia; Cottard, que
escondeu sua timidez com a máscara fria do discurso científico autoritário.
Ora, cada uma deles revela, a seu modm, a falência do logos e só tem valor por sua familiaridade com os signos mudos,
fragmentários e subjacentes, que o integram nessa ou naquela parte da Recherche. Cottard, imbecil iletrado, encontra sua genialidade no
diagnóstico, isto é, na interpretação das síndromes equívocas.5
Norpois sabe muito bem que as convenções da diplomacia, como as do mundanismo,
mobilizam e restituem signos puros sob as significações explícitas empregadas.6
Saint-Loup explica
4.P 70.
5.RF 3, 54-55.
6.CG 201-202: "O Sr. de
Norpois, aflito com o aspecto que iam tomar os acontecimentos, sabia muito bem
que não era com a palavra 'paz' ou com a palavra 'guerra' que lhe seriam
notificados, mas com uma outra, banal em aparência, terrível ou bendita, e que
o diplomata, com auxílio de sua cifra, saberia imediatamente ler, e à qual
responderia, para salvaguardar a dignidade da França, com outra palavra
igualmente banal, mas sob a qual o ministro da nação inimiga veria em seguida:
guerra."
102que a arte da guerra depende menos da ciência e do raciocínio do que da
penetração de signos sempre parciais, signos ambíguos que envolvem fatores
heterogênenos ou mesmo signos falsos destinados a enganar o adversário.7
Não há lagos da guerra, da política ou da
cirurgia, mas apenas códigos enrolados nas matérias e nos fragmentos não
totalizáveis que fazem do estrategista, do diplomata e do médico pedaços mal
ajustados de um divino intérprete, mais próximo da Sra. de Thebes do que de um
mestre da dialética. Proust sempre contrapõe o mundo dos signos e dos sintomas
ao mundo dos atributos, o mundo do pathos ao mundo do lagos, o mundo
dos hieróglifos e dos ideogramas ao mundo da expressão analítica, da escritura
fonética e do pensamento racional. São constantemente recusados por ele grandes
temas herdados dos gregos: o philos, a sophia, o diálogo, o lagos, a phoné; e somente
os ratos que aparecem em nossos pesaadelos "fazem discursos
ciceronianos". O mundo dos signos opõe-se ao lagos de cinco pontos de vista: pela figura das partes que esses
signo; recortam no mundo, pela natureza da lei que revelam, pelo uso das
faculdades que requerem, pelo tipo de unidade que deles decorre e pela estutura
da linguagem que os traduz e interpreta. É de todos
esses pontos de vista – partes, lei, uso, unidade, estilo – que é preciso
confrontar e opor o signo e o lagos, o pathos e o lagos.
*
Vimos que havia um platonismo proustiano: toda a Recherche é uma experiência das reminiscências e das essências. Sabemos,
também, que o uso disjunto das faculdades em seu exercício involuntário tem
como modelo Platão, quando este apresenta uma sensibilidade que se expõe à
violência dos signos, uma alma memorante que os interpreta e redes cobre seu
7. CG 84.
103
sentido, um pensamento inteligente que descobre a
essência. Entretanto, há uma diferença evidente: a reminiscência platônica tem
como ponto de partida qualidades ou relações sensíveis apreendidas umas nas
outras, tomadas em seu devir, em sua variação, em sua posição instável, em sua
"fusão mútua" (como o igual que, sob certos aspectos, é desigual, o
grande que se torna pequeno, o pesado que é inseparável do leve... ). Mas esse
devir qualitativo representa um estado de coisas, um estado do mundo que, mais
ou menos e segundo suas forças, imita a idéia. E a idéia como ponto de chegada
da reminiscência é a essência estável, a coisa em si separando os contrários,
introduzindo no todo a justa medida (a igualdade que só é iguaL). Razão por
que a idéia vem sempre "antes", é sempre pressuposta, mesmo quando
só é descoberta depois. O ponto de partida só vale por sua capacidade de já
imitar o ponto de chegada, de tal modo que o uso disjunto das faculdades é
apenas um "prelúdio" à dialética que os reúne em um mesmo lagos, um pouco como a construção dos arcos de círculo prepara o
giro do círculo inteiro. Como diz Proust, resumindo toda a sua crítica à
dialética: a inteligência vem sempre antes.
Não é absolutamente o que acontece na Recherche: o devir qualitativo, a mútua fusão, "a instável
oposição" são inscritos num estado d'alma e não num
estado de coisas ou do mundo. Um raio oblíquo do sol poente, um perfume, um
sabor, uma corrente de ar, um complexo qualitativo efêmero são valorizados
apenas pelo "lado subjetivo" em que penetram. É por essa
razão que a reminiscência intervém: a qualidade é inseparável de uma cadeia de
associação subjetiva que não estamos isentos de experimentar quando a sentimos
pela primeira vez. Certamente o sujeito não é a última palavra da Recherche: a fraqueza de Swann é ater-se às simples associações,
prisioneiro de seus estados d'alma, associando a pequena frase musical de
Vinteuil ao amor que teve por Odette ou às folhagens do Bois, onde ele a
104
ouviu.8 As associações subjetivas,
individuais, só existem para serem ultrapassadas no caminho para a essência; o
próprio Swann pressente que o gozo da arte, "ao invés de ser puramente
individual como o do amor", remete a uma "realidade superior".
Mas a essência, por sua vez, não é mais a essência estável, a idealidade
vista, que reúne o mundo em um todo e nele introduz a justa medida. A essência,
segundo Proust, como tentamos demonstrar, não é algo visto, mas uma espécie de
ponto de vista superior. Ponto
de vista irredutível que significa tanto o nascimento do mundo quanto o caráter
original de um mundo. Nesse sentido a obra de arte constitui e reconstitui sempre
o começo do mundo, mas forma também um mundo específico absolutamente
diferente dos outros, e envolve uma paisagem ou lugares imateriais inteiramente
distintos do lugar em que o apreendemos. Sem dúvida, é essa estética do ponto
de vista que aproxima Proust de Henry James. Mas o importante é que o ponto de
vista ultrapassa o indivíduo, tanto quanto a essência ultrapassa o estado
d'alma: o ponto de vista permanece superior àquele que nele se coloca ou
garante a identidade de todos os que o atingem. Não é individual, mas, ao
contrário, princípio de individuação. Nisso reside precisamente a originalidade
da reminiscência proustiana: ela vai de um estado d'alma, e de suas cadeias
associativas, a um ponto de vista criador ou transcendente; e não mais, à maneira
de Platão, de um estado do mundo a objetividades vistas.
De tal modo que todo o problema da objetividade, como o
da unidade, se acha deslocado de uma maneira que devemos dizer
"moderna", essencial à literatura moderna. A ordem ruiu, tanto nos
estados do mundo que presumidamente deveriam reproduzi-la quanto nas essências
ou idéias que supostamente deveriam inspirá-la. O mundo ficou reduzido a
migalhas e caos.
8. CS 201; RF 83.
105
Precisamente porque a reminiscência vai de associações
subjetivas a um ponto de vista originário, a objetividade só pode se encontrar
na obra de arte: ela não existe mais nos conteúdos significativos como estados
do mundo, nem nas significações ideais como essências estáveis, mas unicamente
na estrutura formal significante da obra, isto é, no estilo. Não se trata mais
de dizer: criar é relembrar; mas relembrar é criar, é ir até o ponto em que a cadeia
associativa se rompe,- escapa ao indivíduo constituído, se transfere para o
nascimento de um mundo individuante. E não se trata mais de dizer: criar é pensar,
mas, pensar é criar e, antes de tudo, criar no pensamento o ato de pensar.
Pensar é fazer pensar; relembrar é criar; não criar a lembrança, mas criar o
equivalente espiritual da lembrança ainda por demais material, criar o ponto de
vista que vale para todas as associações, o estilo que vale para todas as
imagens. É o estilo que substitui a
experiência pela maneira como dela se fala ou pela fórmula que a exprime, o
indivíduo no mundo pelo ponto de vista sobre o mundo, e faz da reminiscência
uma criação realizada.
Encontram-se os signos no mundo grego: a grande trilogia
platônica, O Banquete, Fedra e Fédon, isto é, o amor, o delírio e a
morte. O mundo grego não se exprime apenas no lagos como bela totalidade, mas em fragmentos e partes como
objetos de aforismos, em símbolos como metades separadas, nos signos dos
oráculos e no delírio dos adivinhos. Mas a alma grega sempre teve a impressão
de que os signos, linguagem muda das coisas, eram um sistema mutilado, variável
e enganador, restos de um lagos que
deveriam ser restaurados em uma dialética, reconciliados por uma philia, harmonizados por uma sophia, dirigidos por uma inteligência
que antecede. A melancolia das mais belas estátuas gregas é o pressentimento
de que o lagos que as anima vai
se romper em fragmentos. Aos signos do fogo que anunciam a vitória a
Clitemnestra, linguagem mentirosa e fragmentária, boa para mulheres, o corifeu
opõe uma outra, o logos do mensageiro
que reúne tudo em um, na justa medida, felicidade e ver-
106
dade.9 Na linguagem dos signos, ao contrário,
só há verdade naquilo que é feito para enganar, nos meandros daquilo que a
oculta, nos fragmentos de uma mentira e de uma infelicidade: só há verdade
traída, isto é, ao mesmo tempo entregue pelo inimigo e revelada por contornos
ou pedaços. Como disse Espinosa quando definiu a profecia, o profeta judeu
privado de lagos, reduzido
à linguagem dos signos, tem sempre necessidade de um signo para persuadir-se de
que o signo de Deus não é enganador. Porque mesmo Deus pode querer enganá-lo.
Quando uma parte vale por si própria, quando um fragmento
fala por si mesmo, quando um signo se eleva, pode ser de duas maneiras muito
diferentes: ou porque permite adivinhar o todo de onde foi extraído, reconstituir
o organismo ou a estátua a que pertence e procurar a outra parte que se lhe
adapta, ou, ao contrário, porque não há outra parte que lhe corresponda, nenhuma
totalidade a que possa pertencer, nenhuma unidade de onde tenha sido arrancado
e à qual possa ser devolvido. A primeira maneira é a dos gregos: somente dessa
forma eles suportam os "aforismos". É preciso
que a menor parte seja também um microcosmo para que
nela se reconheça que ela pertence ao todo mais vasto de um macrocosmo. Os signos se compõem segundo analogias e
articulações que formam um grande Vivente, como ainda se vê no platonismo da
Idade Média e do Renascimento, eles são tomados numa ordem do mundo, em um
feixe de conteúdos significativos e significações ideais, que ainda são testemunhas
de um lagos no instante mesmo em que o
rompem. Não se pode invocar os fragmentos dos pré-socráticos para fazer deles
os Judeus de Platão; não se pode fazer passar por uma intenção o estado
fragmentado em que o tempo os deixou.
9. Cf. Ésquilo, Agamemnon, 460·502
(Henri Maldiney comenta esses versos ao anali· sar a oposição entre a linguagem
dos signos e a do lagos, Bulletin Faculté de Lyon, 1967).
107
Acontece o contrário com uma obra que tem por objeto, ou
melhor, por sujeito, o tempo. Ela diz respeito a fragmentos que não podem mais
se reajustar, é composta de pedaços que não fazem parte do mesmo puzzle, que não pertencem a uma totalidade prévia, que não
emanam de uma unidade, mesmo que tenha sido perdida. Talvez o tempo seja isso:
a existência última de partes de tamanhos e de formas diferentes que não se
adaptam, que não se desenvolvem no mesmo ritmo e que a corrente do estilo não
arrasta na mesma velocidade. A ordem do cosmos ruiu, despedaçou-se nas cadeias
associativas e nos pontos de vista não comunicantes. A linguagem dos signos se
põe a falar por si mesma, reduzida aos recursos da infelicidade e da mentira;
ela não mais se apóia em um lagos subsistente:
só a estrutura formal da obra de arte será capaz de decifrar o material fragmentário
que ela utiliza, sem referência exterior, sem código alegórico ou analógico.
Quando Proust procura precursores em reminiscência, cita Baudelaire, mas
reprova-lhe ter feito um uso muito "voluntário" do método, istGJ é,
ter procurado analogias e articulações objetivas ainda muito platônicas em um
mundo habitado pelo lagos. Ao
contrário, o que ele aprecia na frase de Chateaubriand é que o perfume de
heliotrópio seja trazido não "pela brisa da pátria, mas pelo vento
selvagem da Terra-nova, alheio à planta exilada, sem simpatia de reminiscências e de volúpia".1O Entendamos
que não há aqui reminiscência platônica precisamente porque não há simpatia
como reunião em um todo, mas que o próprio mensageiro é uma parte heteróclita
que não se une à sua mensagem nem àquele a quem ele a envia. É o que
sempre acontece em Proust e é justamente sua concepção inteiramente nova ou
moderna da reminiscência: uma cadeia associativa
heteróclita só é unificada por um ponto de
vista criador, ele próprio desempenhando o papel de parte heteróclita no conjunto.
10. Citação de Chateaubriand, TR 159.
108
Esse é o procedimento que garante a pureza do encontro ou
do acaso e que recalca a inteligência impedindo-a de vir antes. Em vão
procurar-se-iam, em Proust, as banalidades a respeito da obra de arte como
totalidade orgânica, em que cada parte predetermina o todo e o todo determina
as partes (concepção dialética da obra de arte). O próprio quadro de Ver Meer
não vale como um todo, mas pelo pequeno detalhe de parede amarela nele colocado
como fragmento de um outro mundo. 11 O mesmo acontece com a
pequena frase musical de Vinteuil, "intercalada, episódica" e sobre
a qual disse Odette a Swann: "Que necessidade tens do resto? Este é o nosso trecho."12 Também a igreja de Balbec,
decepcionante quando nela procuramos "um movimento quase persa" em
seu conjunto, revela, ao contrário, sua beleza em uma de suas partes
discordantes, que representa, de fato, "dragões quase chineses".13
Os dragões de Balbec, o detalhe da parede de Ver Meer, a pequena frase
musical, misteriosos pontos de vista nos dizem a mesma coisa que o vento de Chateaubriand:
agem sem "simpatia", não fazem da obra uma totalidade orgânica;
funcionam como fragmento que determina uma cristalização. Veremos que não foi
por acaso que o moc:lel; dõvegetal substituiu em Proust o da totalidade animal,
tanto na arte quanto na sexualidade. Tal obra, que tem como sujeito o tempo, nem mesmo precisa ser escrita em aforlsmos. É nos
meandros e nos anéis de um estilo Antilogos que ela faz todos os rodeios
necessários para juntar os ú(timos pedaços, arrastar em velocidades diferentes
todos os fragmentos, em que cada um remete a um conjunto diferente, não remete
a conjunto nenhum, ou só remete ao conjunto do estilo.
11.P 157·158.
12.CS 186.
13.RF 331·332.
109
Capítulo
II
As Caixas e os Vasos
Afirmar que Proust tinha uma idéia, mesmo que confusa, da
unidade prévia da Recherche, ou que a
tivesse encontrado logo em seguida, mas como que animando desde o início o
conjunto, é lê-lo desatentamente, é aplicar-lhe critérios de totalidade
orgânica que ele justamente recusava, é fechar-se à concepção
tão nova de unidade que ele estava criando. Pois é exatamente daí que é preciso
partir: a disparidade, a incomensurabilidade, o esmigalhamento das partes da Recherche, com as rupturas, os hiatos, as lacunas, as intermitências
que lhe garantem a diversidade final. Sob esse aspecto, há duas figuras
fundamentais: uma concerne particularmente às relações continente-conteúdo; a
outra, às relações partes-todo. A primeira é uma figura de encaixe, de envolvimento, de implicação – as coisas, as pessoas e os nomes são caixa, das
quais se tira alguma coisa de forma totalmente diferente, de natureza
totalmente diversa, conteúdo desmedido. "Atento em relembrar exatamente o
perfil do telhado ou o matiz da pedra, que, sem que eu soubesse o motivo, me
haviam parecido plenos, prestes a entreabir-se, a revelar-me aquilo de que não
eram mais que a cobertura... "1 O Sr. de Charlus, "esse
personagem pintalgado, pançudo e fechado, semelhante a alguma caixa de
procedência exótica e suspei-
1. CS 153·154.
110
ta", abriga em sua voz ninhada de jovens e de almas
femininas tutelares.2 Os nomes próprios são caixas entreabertas que
projetam suas qualidades sobre o ser que designam: "O nome de Guermantes
de então é como um desses balõezinhos em que se encerrou oxigênio ou algum
outro gás", ou como esses "pequenos tubos" dos quais se
"tira" a cor desejada.3 Com relação a esta primeira figura
de envolvimento, a atividade do narrador consiste em explicar, isto é, em desdobrar, desenvolver o conteúdo do
incomensurável ao continente. A segunda figura é a da complicação: trata-se, desta
vez, da coexistência de partes assimétricas e não comunicantes, seja porque se
organizam como metades bem separadas, seja porque se orientam como
"lados" ou caminhos opostos, seja porque se põem a girar, a turbilhonar,
como a roda de uma loteria que arrasta e por vezes mistura os lotes fixos. A
atividade do narrador consiste, então, em eleger,
escolher; pelo menos é esta sua atividade aparente, pois muitas
forças diversas, elas próprias complicadas nele, se esforçam para determinar
sua pseudovontade, para fazê-lo eleger tal parte na composição complexa, tal
lado na instável oposição, tal lote no torvelinho das trevas.
A primeira figura é denominada pela imagem das caixas entreabertas,
a segunda pela imagem dos vasos fechados. A primeira (continente-conteúdo) vale pela posição de um conteúdo sem medida comum; a segunda (partes-todo) vale pela oposição de uma vizinhança sem comunicação. Freqüentemente elas se misturam,
passam de uma para outra. Por exemplo: Albertina tem dois aspectos; por um
lado, ela complica em si
muitas personagens, muitas jovens das quais dir-se-ia que cada uma é vista com
a ajuda de um instrumento de ótica diferente, que é preciso saber escolher de
acordo com as circunstâncias e os matizes do desejo; por outro lado, ela implica ou envolve a praia e as ondas,
2.SG 347.
3.CG3.
111
mantém ligadas entre si "todas as impressões de uma
série marítima" que é preciso saber desdobrar, desenvolver como se desenrola
uma corda.4 Mas cada uma das grandes categorias da Recherche não deixa de assinalar uma preferência por uma dessas
figuras, até em sua maneira de participar secundariamente daquela que não
constitui sua origem. Razão por que se pode conceber cada grande categoria em
uma das duas figuras como tendo seu duplo na outra, e talvez como já sendo
inspirada por esse duplo, que é, a um só tempo, o mesmo e o inteiramente outro.
Assim, no que concerne à linguagem: os
nomes próprios têm, em primeiro lugar, todo o seu poder como caixas das quais
se extrai o conteúdo e, uma vez esvaziados pela decepção, ordenam-se, ainda,
uns em função dos outros, "encerrando", "enclausurando", a
história universal; mas os nomes comuns adquirem seu valor introduzindo no
discurso pedaços não comunicantes de mentira e de verdade escolhidos pelo
intérprete. Ou então, do ponto de vista das faculdades: a memória involuntária
tem como atividade, antes de tudo, abrir as caixas, desdobrar um conteúdo
oculto, enquanto, do outro pólo, o desejo, ou melhor, o sono faz girar os vasos
fechados, as faces circulares e elege aquele que melhor convém a determinada
profundidade do sono, a determinada proximidade do despertar, a determinado
grau de amor. Ou ainda no próprio amor: o desejo e a memória combinam-se para
formar sedimentos de ciúme, o primeiro ocupado, antes de tudo, em multiplicar
as Albertinas não comunicantes, o segundo em extrair de Albertina incomensuráveis
"regiões de lembranças".
De tal modo que só se pode considerar abstratamente cada
uma das duas figuras para determinar sua diversidade específica. Em primeiro
lugar, perguntar-se-á qual é o continente e em que consiste exatamente o
conteúdo; qual é a relação de um
4.CG 282-283. Os dois aspectos
estão bem assinalados pela expressão "por outro lado".
112
com o outro; qual é a forma da "explicação";
que dificuldades ela encontra em razão da resistência do continente ou da ocultação
do conteúdo, e, acima de tudo, onde intervém a incomensurabilidade dos dois,
oposição, hiato, esvaziamento, corte etc. No exemplo da madeleine, Proust evoca os pedacinhos de papel japonês que,
mergulhados numa bacia, se estiram e se desdobram, isto é, se explicam;
"Assim, agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do Sr. Swann,
e as ninféias do Vivonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias, e
a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma forma e solidez,
saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá."5 Mas apenas
aproximadamente. O verdadeiro continente não é a taça mas a qualidade sensível, o sabor. E o
conteúdo não é uma cadeia associada a este sabor, a cadeia das coisas e das
pessoas conhecidas em Combray, mas Combray como essência, Combray como puro
ponto de vista, superior a tudo que foi vivido desse próprio ponto de vista, aparecendo, enfim, por si e em
seu esplendor, numa relação de corte com a cadeia associativa que, em relação a
ele, só percorria metade do caminho.6 O conteúdo
foi de tal maneira perdido, nunca tendo sido possuído, que sua reconquista é
uma criação. E é precisamente porque a essência como ponto de vista
individuante supera toda a cadeia de associação individual com a qual rompe,
que tem o poder não só de nos lembrar, mesmo intensamente, o eu que viveu toda
a cadeia, mas também de o fazer reviver em si, reindividuando-o, uma
existência pura que ele jamais viveu. Neste sentido, toda
"explicação" de alguma coisa é ressureição de um eu.
5.CS 47.
6.Já observamos que a madeleine é um caso de explicação bem-sucedida
(contrariamente às três árvores, por exemplo, cujo conteúdo permanece perdido
para sempre). Mas bem-sucedida apenas em parte, porque, embora a
"essência" já seja invocada, o narrador permanece na cadeia associativa,
que não explica ainda "por que essa recordação (o) tornava tão
feliz". Somente no final da Recherche é que a
teoria e a experiência da essência adquirem seu estatuto.
113
O ser amado é como a qualidade sensível, vale pelo
que envolve. Seus olhos seriam apenas pedras e seu corpo um pedaço de carne,
se não exprimissem um mundo ou mundos possíveis, paisagens e lugares, modos de
vida que é preciso explicar, isto é, desdobrar, desenrolar como os pedacinhos
de papel japonês: como a Srta. de Stermaria e a Bretanha, Albertina e Balbec. O amor e o
ciúme são estritamente comandados por essa atividade de explicação. Há mesmo
como que um duplo movimento pelo qual uma paisagem necessita enrolar-se numa
mulher, como a mulher, desenrolar as paisagens e os lugares que "contém"
encerrados em seu corpo.7 A expressividade é o conteúdo de um ser.
Aí, também, poder-se-ia acreditar que exista apenas uma relação de associação
entre o conteúdo e o continente. Entretanto, embora a cadeia associativa seja
estritamente necessária, há algo a mais, que Proust define como caráter indivisível
do desejo que quer dar uma forma a uma matéria e preencher de matéria uma
forma.8 Mas o que mostra ainda que a cadeia de associações só existe
em relação com uma força que a vai romper é uma curiosa distorção pela qual se
é tomado no mundo desconhecido expresso pelo ser amado, esvaziado de si
próprio, aspirado para esse outro universo.9 De tal modo que ser
visto faz o mesmo efeito que ouvir pronunciar seu nome pelo ser amado; o efeito
de aparecer nu em sua boca.1O A associação da paisagem e do ser
amado no espírito do narrador é, portanto, rompida em proveito de um ponto de
vista do ser amado sobre a paisagem, em que o próprio narrador é tomado, mesmo
que seja para ser excluído, recalcado. Mas, desta vez a ruptura da cadeia
associativa não é superada pela aparição de uma essência; ela é
7.CS 135-136.
8.CS 79: "... não era isso
devido ao acaso de uma simples associação de idéias... "
9. RF 230; RF 294.
10.CS 331.
114
aprofundada por uma operação de esvaziamento que restitui
ao narrador o seu próprio eu. Pois o narrador-intérprete, apaixonado e
ciumento, vai enclausurar o ser amado, encerrá-lo, seqüestrá-lo para melhor
"explicá-lo", isto é, esvaziá-lo de todos os mundos que contém.
"Prendendo Albertina, restituíra eu ao universo todas aquelas asas
cintilantes. (...) Elas dão beleza ao mundo. Foram elas que em outro tempo deram
beleza a Albertina. (...) Perdera Albertina todas as suas cores. (...) Perdera
pouco a pouco a beleza. (...) Convertida na desbotada prisioneira, reduzida ao
seu eu sem brilho lhe eram necessários, para lhe serem restituídas as cores,
aqueles relâmpagos em que eu me recordava do passado." 11
Apenas o ciúme tornará a preenchê-la, por um instante, com um universo que uma
lenta explicação se esforçará, por sua vez, em esvaziar. Devolver ou restituir
o eu do narrador a ele próprio? Trata-se na verdade de outra coisa. Trata-se
de esvaziar cada um dos eus que amou Albertina, de conduzi-lo a seu término,
segundo uma lei de morte que se entrelaça com a das ressurreições, como o
tempo perdido se entrelaça com o tempo redescoberto. E os eus se obstinam
tanto em procurar seus suicídios, em repetir-preparar seus próprios fins,
quanto em reviver em outra coisa, repetir-rememorar suas vidas.12
Mesmo os nomes próprios têm um conteúdo inseparável das
qualidades de suas sílabas e das associações livres de que fazem parte.
Justamente porque não se pode entreabrir a caixa sem projetar todo o conteúdo
associado na pessoa ou no lugar reais, ao contrário das associações forçadas,
que, totalmente diferentes, impostas pela mediocridade da pessoa e do lugar,
vêm
11.P 145-146.
12.RF 147: "Encarniçava-me
continuamente no longo e cruel suicídio dessa parte do meu eu que em mim
próprio amava Gilberta, e isso com a clarividência do que estava fazendo no
presente e de suas conseqüências no futuro."
115
torcer e romper a primeira série e criar um grande hiato
entre o conteúdo e o continente.13 Em todos os aspectos dessa
primeira figura da Recherche manifesta-se
sempre a inadequação do conteúdo; sua incomensurabilidade: seja conteúdo perdido, que se redescobre no esplendor de uma essência que
ressuscita um antigo eu, seja conteúdo esvaziado, que
provoca a morte do eu, seja conteúdo separado, que nos
lança numa inevitável decepção; um mundo nunca poderá ser organizado
hierárquica e objetivamente, as próprias cadeias de associação subjetivas, que
lhe dão um mínimo de consistência ou de ordem, rompem-se em proveito de pontos
de vista transcendentes, mas variáveis e violentamente imbricados, uns
exprimindo verdades da ausência e do tempo perdido, outros, da presença ou do
tempo redescoberto. Os nomes, os seres e as coisas estão abarrotados de um
conteúdo que os faz explodir; assiste-se, então, não só a uma espécie de
explosão dos continentes pelos conteúdos, mas à explosão
dos próprios conteúdos que, desdobrados, explicados, não formam uma figura
única, mas verdades heterogêneas em fragmentos que lutam muito mais entre si do
que se conciliam. Mesmo quando o passado nos é restituído em sua essência, a
conjunção do mesmo presente com o passado parece mais uma luta do que um
acordo, e aquilo que nos é dado nem é uma totalidade nem uma eternidade, mas
"um pouco de tempo em estado puro", isto é, um fragmento do tempo.14
Nada é pacificado por uma philia; como
acontece com os lugares e os momentos, dois sentimentos só se unem lutando, e
formam nessa luta um corpo irregular de pouca duração. Até mesmo no mais alto
estado da essência
13.Sobre os dois movimentos
associativos em sentido inverso, cf. RF 185-186. É essa
decepção que será recompensada, sem ser preenchida suficientemente, pelos
prazeres da genealogia ou da etimologia dos nomes próprios: cfRoland Barthes,
"Proust et les noms" (To Honor Roman ]akobson, Mouton)
e Gérard Genette, "Prollst et le langage indirect" (Figures lI, Editions dll Sellil).
14.TR 125.
116
como ponto de vista artístico, o mundo que começa faz com
que os sons lutem com pedaços finais disparatados sobre os quais repousa.
"Em breve os dois motivos lutaram entre si, num corpo-a-corpo em que
algumas vezes um desaparecia totalmente, quando, a seguir, não se percebia mais
que um trecho do outro."
É isso, sem dúvida, que dá conta, na Recherche, desse extraordinário encadeamento de partes inconciliáveis,
em ritmos de desdobramento ou em velocidade de explicação irredutíveis: não
apenas elas não compõem em conjunto um todo, mas cada parte separadamente
também não exprime um todo de onde seria arrancada, diferente do todo de uma
outra parte, formando uma espécie de diálogo entre universos. Mas a força com
que são projetadas no mundo, inseridas violentamente umas nas outras, apesar de
suas bordas não serem correspondentes, faz com que todas elas sejam
reconhecidas como partes, sem no entanto compor um todo, mesmo que seja
oculto, sem emanar de totalidades, mesmo que sejam perdidas. Ao colocar
fragmentos nos fragmentos, Proust encontra o meio de nos fazer pensar todos,
mas sem referência a uma unidade de que eles derivariam, ou que deles
derivaria. 15
15.Disse muito bem Georges Poulet;
"O universo proustiano é um universo em pedaços, cujos pedaços contêm
outros universos, esses, por sua vez, em pedaços. (...) A descontinuidade
temporal é precedida, até mesmo comandada, por uma descontinuidade ainda mais
radical, a do espaço" (L 'espace
proustien, Gallimard, ps. 54-55). Todavia, Poulet mantém na obra de
Proust os direitos de uma continuidade e de uma unidade, de que ele não
procura definir a natureza original muito particular (ps. 81 e 102); é que, por
outro lado, ele tende a negar a originalidade ou a especifidade do tempo
proustiano (sob o pretexto de que esse tempo nada tem a ver com uma duração
bergsoniana, ele afirma que é um tempo espacializado, cf. ps. 134-136). O
problema de um mundo em fragmentos, em seu conteúdo mais geral, foi colocado
por Maurice Blanchot (principalmente em L'entretien
infini, Gallimard). Trata-se de saber qual é a unidade
ou a não-unidade de tal mundo, uma vez dito que ele nem pressupõe, nem forma um
todo; "Quem diz fragmento não deve apenas dizer fragmentação de uma
realidade já existente, nem momento de um conjunto ainda por vir...
Na violência do fragmento uma outra relação, intei ramente diferente, nos é dada", "nova relação com o de
fora", "afirmação irredutível à unidade" que não se
deixa reduzir à forma aforística.
117
Quanto à segunda figura da Recherche, a da complicação, que mais particularmente concerne à
relação partes-todo, vemos ela aplicar-se às palavras, aos seres e às coisas,
isto é, aos tempos e aos lugares. A imagem do vaso fechado, que marca a oposição de uma parte com uma vizinhança sem comunicação, substitui aqui a imagem da caixa
entreaberta, que marcava a posição de um conteúdo sem medida comum com o continente. É assim que os dois lados da
Recherche, o lado de Méséglise e o lado de
Guermantes, permanecem justapostos "longe um do outro e sem poder-se conhecer,
nos vasos herméticos e incomunicáveis de tardes diferentes",16
Impossível fazer como diz Gilberta: "Podemos ir a Guermantes passando por
Méséglise." Mesmo a revelação final do tempo redescoberto não os
unificará, nem os fará convergir, apenas multiplicará as
"transversais", também incomunicantes.17 Do mesmo modo, o
rosto dos seres tem pelo menos dois lados assimétricos, como "duas
estradas opostas que nunca se comunicarão": é o que acontece com Rachel,
que tem o rosto da generalidade e o da singularidade, como também o da nebulosa
informe, vista de muito perto, e o da boa organização, a distância
conveniente. Ou então com Albertina, que tem o rosto que inspira confiança e o
que reage à suspeita do ciúme.18 Os dois lados ou os dois caminhos
são apenas direções estatísticas. Podemos formar uni. conjunto complexo, mas
nunca nós o formaremos sem que ele se cinda, por sua
vez, em mil vasos fechados: como o rosto de Albertina, que,
quando pensamos em juntá-lo para um beijo, salta de um plano a outro durante o
percurso de nossos lábios à sua face;
"dez Albertinas" em vasos fechados, até
16.CS 118.
17.TR 237.
18.F 56 e CG 121,133-134.
118
o momento final quando tudo se desfaz na proximidade
exagerada.19 Em cada vaso um eu que vive, que percebe, que deseja e
se recorda, que vela ou que dorme, que morre, se suicida e revive
intermitentemente: "esmigalhamento", "fracionamento" de
Albertina, a que corresponde uma multiplicação do eu. Uma mesma notícia global,
a partida de Albertina, deve ser sabida por todos esses eus distintos, cada
qual no fundo de sua urna.20
Não acontece o mesmo, em outro nível, com o mundo, realidade
estatística sob a qual "os mundos" são tão separados quanto astros
infinitamente distantes, cada qual possuindo seus signos e suas hierarquias,
que fazem com que um Swann ou um Charlus nunca sejam reconhecidos pelos
Verdurin, até a grande mistura do final, cujas novas leis o narrador renuncia a
apreender, como se também ele tivesse atingido esse limiar de proximidade em
que tudo se desfaz e volta ao estado de nebulosa? Finalmente, os discursos ou
as faltas operam também, do mesmo modo, uma distribuição estatística das palavras, sob a qual o intérprete discerne camadas, famílias,
subordinações e empréstimos muito diferentes uns dos outros, que dão
testemunho das ligações daquele que fala, de seus relacionamentos e de seus
mundos secretos, como se cada palavra pertencesse a um aquário colorido deste
ou daquele modo, contendo determinada espécie de peixes, para além da falsa
unidade do logos: é o que
acontece com certas palavras que não faziam parte do vocabulário anterior de
Albertina e que persuadem o narrador de que ela se tornara mais abordável ao
entrar numa nova faixa de idade, com novas relações; ou então com a horrível
expressão "se faire casser le... ", que revela ao narrador um mundo
abominável.21 É por isso que, em oposição ao logos-verdade, a mentira
19.CG 284-285: "Soube, por esses
detestáveis signos, que estava beijando as faces de Albertina."
20.F 9.
21.CG 276-278; P 290-292.
119
pertence à linguagem
dos signos; como a imagem de um puzzle desajustado,
as próprias palavras são fragmentos de um mundo que se ajustariam a outros fragmentos
do mesmo mundó, mas não àos outros fragmentos de outros mundos junto aos quais
os tivéssemos posto.22 Existe, portanto, aqui, nas palavras, como
que um fundamento geográfico e lingüístico para a psicologia do mentiroso.
É o que significam os vasos fechados: só existe
totalidade estatística e privada de sentido profundo. "Pois o que nós
julgamos seja o nosso amor, o nosso ciúme, não é uma mesma paixão contínua,
indivisível. Compõem-se eles de uma infinidade de amores sucessivos, de ciúmes
diferentes, mas, por sua multidão initerrupta, dão a impressão da continuidade,
a ilusão da unidade."23 Entretanto, entre todas as partes
fechadas, existe um sistema de passagem, que não se deve confundir com um meio
de comunicação direta nem de totalização. Como entre o caminho de Méséglise e o
caminho de Guermantes, toda a obra consiste em estabelecer transversais que nos fazem saltar de um a outro perfil de
Albertina, de uma Albertina a outra, de um mundo a outro, de uma palavra a
outra, SEP nunca reduzir o múltiplo ao uno; sem nunca reunir o
múltiplo em um todo, mas afirmando a unidade bastante original daquele múltiplo, afirmando, sem os reunir, todos esses fragmentos irredutíveis ao todo. O ciúme é a transversal da multiplicidade amorosa; a
viagem, a transversal da multiplicidade dos lugares; o sono, a transversal da
multiplicidade dos momentos. Os vasos fechados se organizam ora em
22.CS 234; PISO. Com relação a
Odette tanto quanto com relação a Albertina, Proust invoca esses fragmentos de
verdade que, introduzidos pelo ser amado para autenticar uma mentira, têm como
efeito contrário denunciá-Ia. Mas, antes de se referir à verdade ou à falsidade
de um relato, esse "desacordo" se refere às próprias palavras que,
reunidas numa frase, têm origens e alcances bastante diferentes.
23.CS 307-309.
120
partes separadas, ora em direções opostas, ora (como em
certas viagens, ou durante o sono) em círculo. Mas o importante é que o
círculo não se fecha, não totaliza, ao contrário, faz desvios e forma ângulos,
é um círculo descentrado que faz passar para a direita o que estava à esquerda e para a extremidade o que estava no centro. Não se estabelece a
unidade de todas as vistas de uma viagem de trem no próprio círculo, que guarda
suas partes fechadas, nem na coisa contemplada, que multiplica as suas, mas em
uma transversal que sempre se está percorrendo, indo "de uma janela a
outra",24 Tanto isso é verdade que a viagem não faz os lugares
se comunicarem nem os reúne, mas só afirma em comum sua diferença (essa afirmação comum se fazendo em outra dimensão que
não a da diferença afirmada – na transversal) .25
A atividade do narrador não consiste mais em explicar,
desdobrar um conteúdo, mas em eleger, escolher, uma parte não comunicante, um
vaso fechado, com o eu nele contido. Escolher determinada jovem num grupo,
determinado corte ou plano fixo na jovem, escolher determinada palavra naquilo
que ela diz, determinado sofrimento no que ela nos faz sentir e, para sentir
esse sofrimento, para decifrar a palavra, para amar essa jovem, escolher
determinado eu que se faz viver ou reviver en-
24.RF 181: "O trem fez uma
volta... e eu me desolava por haver perdido minha faixa de céu rósea, quando a
avistei de novo, mas vermelha desta vez, na janela fronteira, que ela
abandonou, a um segundo cotovelo da linha férrea; de modo que eu passava o
tempo a correr de uma janela a outra, para aproximar, para enquadrar os
fragmentos intermitentes e opostos de minha bela madrugada escarlate e fugidia,
e ter dela uma vista total e um quadro contínuo." Esse texto invoca certamente
uma continuidade e uma totalidade, mas o essencial é saber onde elas se
elaboram – nem no ponto de vista, nem na coisa vista, mas na transversal, de
uma janela a outra.
25.RF 173: "O prazer específico
das viagens (...) é tornar a diferença entre a partida e a chegada não tão
insensível, mas tão profunda quanto possível, em senti-ia na sua totalidade,
intacta... "
121
tre todos os possíveis: essa é a atividade correspondente
à complicação.26 Essa atividade de escolha, sob a forma mais
pura, nós a vemos exercer-se no momento do despertar, quando o sono fez girar
todos os vasos fechados, todas as peças cerradas, todos os eus seqüestrados,
freqüentados por quem dorme. Não só existem diferentes compartimentos do sono
que giram aos olhos do insone em vias de escolher sua droga ("sono do
estramônio, do cânhamo-da-índia, dos variados extratos do éter... ") –
mas todo homem que dorme "mantém em círculo, em volta de si, ao longo das
horas, a ordem dos anos e dos mundos": o problema do despertar é o de
passar deste compartimento do sono, e de tudo o que aí se desenrola, ao
compartimento real onde se está, de redescobrir o eu da vigília entre todos
aqueles que se acaba de ser em sonho, que se poderia ter sido ou que se foi, de
redescobrir, enfim, a cadeia associativa que nos fixa ao real, ao deixar os
pontos de vista superiores do sono.27 Não se deve perguntar quem escolheu.
Certamente nenhum eu, visto que nós mesmos somos escolhid05, visto que um
determinado eJ é escolhido cada vez que "nós" escolhemos um ser para
amar, um sofrimento a suportar, e que esse eu não menos se surpreende em viver
e reviver, e em responder ao apelo, não sem se fazer esperar. Desse modo, ao
sair do sono "não se é mais ninguém. Como, então, procurando nosso
pensamento, a nossa personalidade, como se procura um objeto perdido, acaba-se
por encontrar o próprio eu antes de outro qualquer? Por que, quando
recomeçamos a pensar, não é então uma outra personalidade, que não a anterior,
que se encarna em nós? Não se vê o que é que dita a escolha e por que, entre os
milhões de seres humanos
26.F 99-100: "No sofrimento
físico, pelo menos, não precisamos escolher nós mesmos a nossa dor. A doença
no-ia determina e impõe. Mas, no ciúme, temos de ensaiar de algum modo
sofrimentos de todo gênero e de toda magnitude, antes de nos determos naquele
que parece convir-nos."
27.Cf. as célebres descrições do
sono e do despertar, CS 11-16 e CG 62-64.
122
que a gente poderia ser, vamos pôr a mão exatamente
naquele que éramos na véspera".28 Na verdade, existe uma
atividade, um puro interpretar, puro
escolher, que não tem nem sujeito nem objeto, visto que ela escolhe tanto o
intérprete quanto a coisa a interpretar, tanto o signo quanto o eu que o
decifra. É o que se dá como o "nós" da interpretação:
"Mas nem sequer dizemos nós... um nós que não tivesse conteúdo."29
Assim, o sono é mais profundo do que a memória, pois a
memória, mesmo involuntária, permanece ligada ao signo que a solicita e ao eu
já escolhido que ela fará reviver, enquanto o sono é a imagem do puro
interpretar que se enrola em todos os signos e se desenvolve através de todas
as faculdades. O interpretar só tem uma unidade transversal; ele é a única
divindade de que qualquer coisa é fragmento, mas sua "forma divina"
não recolhe nem recola os fragmentos: ela os conduz, ao contrário, ao mais alto
estado, ao mais agudo, impedindo que eles formem um conjunto ou sejam
destacados. O "sujeito" da Recherche não é,
finalmente, nenhum eu, é esse nós sem
conteúdo que distribui Swann, o narrador, Charlus, e os distribui ou os
escolhe sem totalizá-los.
Vimos, anteriormente, signos que se distinguiam por sua
matéria objetiva, sua cadeia de associação subjetiva, a faculdade que os
decifra, sua relação com a essência. Mas, formalmente, os signos têm dois
tipos que se encontram em todas as espécies: as caixas entreabertas, a serem
explicadas, e os vasos fechados, a serem escolhidos. E se o signo é sempre
fragmento sem totalização nem unificação, é porque o conteúdo se atém ao
continente por toda a força da incomensurabilidade que traz consigo, e porque o
vaso se atém a sua vizinhança por toda a força de não-comunicação que mantém em
si. A incomensurabilidade e a não-comunicação são distâncias, mas distâncias
28. CG 63.
123
que colocam um dentro do outro ou os aproximam. E o tempo
não significa outra coisa: sistema de distâncias não espaciais, distância
específica do próprio contíguo ou do próprio conteúdo, distâncias sem intervalos. Sob esse aspecto, o tempo
perdido, que introduz distâncias entre coisas contíguas, e o tempo redescoberto,
que estabelece, ao contrário, uma contigüidade entre coisas distantes,
funcionam de maneira complementar conforme seja o esquecimento ou a lembrança
que operem "interpolações fragmentadas, irregulares". Pois ainda não
é esta a diferença entre o tempo perdido e o tempo redescoberto; o primeiro,
por sua força de esquecimento, de doença e de idade, afirma os pedaços como que
disjuntos, tanto quanto o outro, com sua força de lembrança e de ressurreição.30
De qualquer modo, segundo a fórmula bergsoniana, o tempo significa que tudo não
é dado: o Todo não pode ser dado. O que não quer dizer que o todo "se
faz" em uma outra dimensão que seria precisamente temporal, como o
entende Bergson, ou como o entendem, por sua vez, os dialéticos partidários de
um processo de totalização; mas que o tempo, último intérprete, último interpretar,
tem o estranho poder de afirmar simultaneamente pedaços que não formam um todo
no espaço, como também não formam uma unidade por sucessão no tempo. O tempo é
exatamente a transversal de todos os espaços possíveis, inclusive dos espaços
âe tempo.
30.F 139. Nesse trecho é o
esquecimento que tem força de interpolação fragmenta. da, introduzindo
distâncias entre nós e os acontecimentos recentes; enquanto em SG 129 é a
lembrança que se interpola e dá contigüidade às coisas distantes.
124
Capítulo III
Os Níveis da Recherche
Em um universo assim fragmentado não há lagos que possa reunir todos os pedaços: não há lei que os
ligue a um todo; não há todo a redescobrir nem mesmo a formar. E no entanto há
uma lei; mas o que mudou foi sua natureza, sua função, sua relação. O mundo
grego é um mundo em que a lei vem sempre em segundo lugar; ela é potência
secundária em relação ao lagos que
abrange o todo e o refere ao Bem. A lei, ou melhor, as leis apenas regem as
partes, as adaptam, aproximam, reúnem, nelas estabelecendo um
"melhor" relativo. As leis também só valem na medida em que nos
permitem conhecer alguma coisa que as ultrapassa e em que elas determinam uma
figura do "melhor", isto é, o aspecto que toma o Bem no lagos em relação a determinadas partes, determinada região,
determinado momento. Parece que a consciência moderna do antilogos impôs à lei
uma revolução radical. Na medida em que ela rege um mundo de fragmentos não
totalizáveis e não totalizados, a lei se toma potência primordial; ela não diz
mais o que é bom, mas é bom o que diz a lei. Assim, ela adquire uma espantosa
unidade: não há mais leis especificadas desta ou daquela maneira, mas a lei,
sem outra especificação. É bem verdade que esta unidade espantosa é
absolutamente vazia, unicamente formal, visto que ela não nos permite conhecer
nenhum objeto distinto, nenhuma totalidade, nenhum Bem de referência, nenhum lagos referente. Ao invés de juntar e adaptar partes, ela, ao
contrário, as separa, as
125
compartimenta, introduz a não-comunicação no contíguo, a
não-comensurabilidade no continente. Nada nos possibilitando conhecer, a lei
só nos mostra o que ela é marcando nossa carne, já nos aplicando a sanção;
eis, então, o fantástico paradoxo: como não sabíamos o que queria a lei antes
de receber a punição, só podemos obedecer à lei como culpados, só podemos lhe
responder por nossa culpabilidade, visto que ela só se aplica às partes como
que disjuntas, tornando-as ainda mais disjuntas, desmembrando-lhes os corpos,
arrancando-lhes os membros. Rigorosamente incognoscível, a lei só se dá a
conhecer quando aplica as mais duras sanções ao nosso corpo supliciado.
A consciência moderna da lei adquire uma forma particularmente
aguda com Kafka: é em A muralha da China que aparece
o liame fundamental entre o caráter fragmentário da muralha, a maneira
fragmentária de sua construção e o caráter incognoscível da lei, sua
determinação idêntica a uma sanção de culpabilidade. Em Proust, no entanto, a
lei apresenta uma outra figura, porque a culpabili.dade é, antes de tudo, como
que a aparência que oculta uma realidade fragmentária mais profunda, ao invés
de ser ela mesma essa realidade mais profunda, à qual nos levam os fragmentos
separados. À consciência depressiva da lei, tal como aparece em
Kafka, se opõe a consciência esquizóide da lei segundo Proust. Entretanto, à
primeira vista, a culpabilidade desempenha um grande papel na obra de Proust,
com seu objeto essencial: a homossexualidade. Amar pressupõe a culpabilidade do
ser amado, embora todo o amor seja uma discussão sobre as provas, um
julgamento de inocência pronunciado sobre o ser que no entanto sabemos que é
culpado. O amor é, pois, uma declaração de inocência imaginária estendida entre
duas certezas de culpabilidade, a que condiciona a priori o amor e o torna possível e a que acaba o amor, que lhe
marca o fim experimental. Daí o narrador não poder amar Albertina sem ter
apreendido esse a priori de
culpabilidade que ele vai deslindar
126
em toda a sua experiência através de sua persuasão de que
ela é inocente apesar de tudo (essa persuasão sendo inteiramente necessária,
agindo como reveladora): "Aliás, mais até do que as culpas do tempo em que
as amamos, há as culpas de antes de as conhecermos, e a primeira de todas: sua
índole. O que, com efeito, torna dolorosos tais amores, é que lhes preexiste
uma espécie de pecado original da mulher, um pecado que no-las faz amar... "1 "Afinal, e apesar de
todas as negativas da razão, escolhê-la e amá-la não era conhecer Albertina em
toda a sua hediondez?... Sentirmo-nos atraídos por um ser, e começar a amá-lo,
é, por mais inocente que nos pareça, ler, já em versão diferente, todas as suas
traições e suas faltas."2 O amor acaba quando a certeza a priori de culpabilidade completou sua
trajetória, quando se tornou empírica, desfazendo a persuasão empírica de que
Albertina era, apesar de tudo, inocente; uma idéia "formava pouco a pouco
o fundo da minha consciência, aí se substituindo à idéia de que Albertina era inocente – era a idéia de que ela era
culpada", de modo que a certeza das faltas de Albertina só se revelou ao
narrador quando elas não mais o interessavam, quando ele deixou de amá-la, vencido
pelo cansaço e pelo hábito.3
Com mais razão, a culpabilidade aparece nas séries homossexuais.
Lembremo-nos da veemência com que Proust traça o quadro da homossexualidade
masculina como raça maldita, "raça sobre a qual pesa uma maldição e que
tem que viver em mentira e perjúrio, filhos sem mãe... amigos sem amizades...
sem honra, que não precária, sem liberdade, que não provisória até o
descobrimento do crime; sem posição que não seja instável",
homossexualidade-signo que se opõe à grega,
à homossexuali-
1.P 126.
2.F 151-152.
3.F 92.
127
lidade-logos.4 Mas o leitor
tem a impressão de que essa culpabilidade é mais
aparente do que real; e
se o próprio Proust fala da originalidade de seu projeto, se ele próprio
declara ter passado por várias "teorias", é porque ele não se
contenta em isolar especificamente uma homossexualidade maldita. Todo o tema
da raça maldita ou culpada se entrelaça, aliás, com um tema de inocência, a
sexualidade das plantas. A complexidade da teoria proustiana é enorme devido ao
fato de que ela apresenta vários níveis. Em um primeiro nível, o conjunto dos amores intersexuais em seus
contrastes e suas repetições; em segundo
nível, esse conjunto se divide em duas séries ou direções; a de
Gõmorra, que esconde o segredo cada vez revelado, da mulher amada, e a de
Sodoma, que traz o segredo, ainda mais oculto, do amante. É nesse nível que impera a idéia de falta ou
de culpabilidade; mas, se esse segundo nível não é o mais profundo é devido ao
fato de ele próprio ser tão estatístico quanto o conjunto que ele decompõe: a
culpabilidade, nesse sentido, é vivida muito mais como social do que como moral
ou interiorizada. De modo geral, pode-se observar em Proust que não apenas um
conjunto dado só tem valor estatístico, como também os dois lados dissimétricos
ou as duas grandes direções em que ele se divide. Por exemplo: o
"exército" ou a “multidão" de todos os eus do narrador que amam
Albertina forma um conjunto de primeiro nível; mas os dois subgrupos da
"confiança" e da "suspeita do ciúme" estão em um segundo
nível de direções ainda estatísticas que recobrem movimentos de terceiro
nível, as agitações das partículas singulares, de cada um dos eus que compõem a
multidão ou o exército nessa ou naquela direção.5 Do mesmo modo, o
caminho de Méséglise e o caminho de Guermantes só devem ser considerados como
lados estatísticos, também eles como que
4.SG 14. Contre Sainte-Beuve, capo
XIII: "A raça maldita".
5.56: "Na multidão, esses
elementos podem... "
128
formados por uma multidão de figuras elementares. Do
mesmo modo, enfim, a série de Gomorra e a série de Sodoma, com suas
culpabilidades correspondentes, são sem dúvida mais finas do que a grossa
aparência dos amores heterossexuais, mas ocultam ainda um último nível,
constituído pelo comportamento de órgãos e partículas elementares.
O que interessa realmente a Proust nas duas séries homossexuais,
e o que as torna estritamente complementares, é a profecia da separação que
elas realizam: "Os dois sexos morrerão cada um para seu lado."6
E a metáfora das caixas ou dos vasos fechados adquire todo o seu sentido se
considerarmos que os dois sexos estão ao mesmo tempo presentes e separados no
mesmo indivíduo: contíguos, mas compartimentados e não comunicantes, no
mistério do hermafroditismo inicial. É aí, justamente, que o
tema vegetal adquire todo o seu sentido, por oposição a um lagos-vivente: o hermafroditismo não é a propriedade de uma
totalidade animal hoje perdida, mas a compartimentação atual dos dois sexos
numa mesma planta. "O órgão masculino está separado nela por um tabique do
órgão feminino."7 E é nesse ponto que vai se situar o terceiro nível: um indivíduo de determinado sexo (só se é de
determinado sexo global ou estatisticamente) traz em si mesmo o outro sexo, com
o qual não pode comunicar-se diretamente. Quantas jovens aninhadas em Charlus
e que mais tarde se tornarão também avós.8 "Em alguns (...) a
mulher se acha não só interiormente unida ao homem, mas horrivelmente visível,
agitados como estão em um espasmo de histérico, por um riso agudo que lhes
convulsiona os joelhos e as mãos."9 O primeiro nível foi
definido pelo con-
6.SG 14.
7.SG 23, 84.
8.SG 243, 289. Cf. o comentário de
Roger Kempf, "Les cachotteries de M. de CharJus", Critique, janeiro
de 1968.
9.SG 18.
129
junto estatístico dos amores heterossexuais; o segundo,
pelas duas direções homossexuais ainda estatísticas, pelas quais um indivíduo
tomado no conjunto precedente era remetido a outros indivíduos do mesmo sexo,
participando da série de Sodoma, se é homem, e da série de Gomorra, se é mulher
(como Odette e Albertina). Mas o terceiro nível é transexual ("o que
erroneamente chamamos homossexualidade") e ultrapassa tanto o indivíduo
quanto o conjunto: designa no indivíduo a coexistência de fragmentos dos dois
sexos, objetos parciais que não se comunicam. O
mesmo acontece com as plantas: o hermafrodita tem necessidade de um terceiro
(o inseto) para que a parte feminina seja fecundada ou para que a parte
masculina seja fecundante. 10 Uma comunicação aberrante se faz em uma dimensão transversal entre sexos
compartimentados. Ou melhor, é ainda mais complicado, porque vamos encontrar
nesse novo plano a distinção entre o segundo e o terceiro nível. Com efeito,
pode acontecer que um indivíduo globalmente determinado como masculino procure,
para fecundar sua parte feminina com a qual ele próprio não pode se comunicar,
um indivíduo globalmente do mesmo sexo que ele (o mesmo acontecendo com a
mulher e sua parte masculina). Entretanto, em um caso mais profundo, o
indivíduo globalmente determinado como masculino fecundará sua parte feminina
por meio de objetos parciais que podem ser encontrados tanto numa mulher como
num homem. Aí está o fundo do transexualismo segundo Proust: não mais uma homossexualidade global e específica em que os homens se
relacionam com os homens e as mulheres com as mulheres numa separação de duas
séries, mas uma homossexualidade local e não
específica em que o homem procura também o que há de masculino na
mulher, e a mulher, o que há de femini-
10. SG 4, 23.
130
no no homem; e isso na contigüidade compartimentada dos
dois sexos como objetos parciais.11
Daí o texto, aparentemente obscuro, em que Proust opõe à homossexualidade global e específica essa homossexualidade local e não
específica: "Uns, os que tiveram a infância mais tímida sem dúvida, pouco
se preocupam com a qualidade material do prazer que recebem, contanto que
possam referi-lo a um rosto masculino. Enquanto outros, dotados indubitavelmente
de sentidos mais violentos, assinalam a seu prazer material imperiosas
localizações. Estes ofenderiam acaso com suas confissões ao tipo mediano das
pessoas. Talvez vivam menos exclusivamente sob o signo de Saturno, já que para
eles as mulheres não estão totalmente excluídas como para os primeiros... Mas
os segundos buscam aquelas que gostam de mulheres, podem conseguir-lhes algum
jovem, aumentar-lhes o prazer que sentem em encontrar-se com ele; ainda mais,
podem, da mesma forma, achar nel-as o mesmo prazer que com um homem. Daí vem
que somente existem os ciúmes, dos que amam os primeiros, pelo prazer que
pudessem ter com um homem e que é o único que lhes parece uma traição, já que
não participam do amor das mulheres, não o praticaram senão como costume e para
reservar-se a possibilidade do matrimônio, imaginando tão escassamente o gozo
que este pode proporcionar, que não os faz sofrer a não ser que o experimente
aquele a quem amam, ao passo que os segundos muitas vezes inspiram ciúmes por
causa de seus amores com mulheres. Porque, nas relações que com elas mantêm,
representam para a mulher que gosta das mulheres o papel de outra mulher, e a
mulher lhes oferece ao mesmo
11.Gide, que se bate pelos direitos
de uma homossexualidade-Iogos, critica em Proust o fato de considerar apenas os
casos de inversão e de efeminação. Ele se atém ao segundo nível, não parecendo
absolutamente ter compreendido a teoria proustiana. (Da mesma maneira que
aqueles que se limitam ao tema da culpabilidade em Proust.)
131
tempo aproximadamente o que encontram eles no homem... "12 Se compreendermos
o sentido desse transexualismo como último nível da teoria proustiana, e sua
relação com a prática das compartimentações, não apenas se esclarecerá a
metáfora vegetal, como também se tornará totalmente grotesca a pergunta sobre
o grau de "transposição" que Proust teria realizado, como se
acredita, para transformar Alberto em Albertinaj mais grotesco ainda seria
apresentar como uma revelação a descoberta de que Proust deve ter tido algumas
relações amorosas com mulheres. É o caso de dizer que
realmente a vida não dá nenhuma contribuição para a obra ou para a teoria, pois
a obra ou a teoria se ligam à vida
secreta por um liame mais profundo do que o de todas as biografias. Basta
seguir o que Proust explica em seu grande relato de Sodoma e Gomorra: o
transexualismo, isto é, 8 homossexualidade
local e não específica, fundada na compartimentação contígua dos sexos-órgãos
ou dos objetos parciais, que se descobre sob a homossexualidade global e
específica fundada na independência dos sex9s-pessoas ou das séries de
conjunto.
O ciúme é o delírio próprio dos signos. Encontra-se err
Proust a confirmação de um liame fundamental entre o ciúme e a
homossexualidade, embora lhe dê uma interpretação inteiramente nova. Na medida
em que o ser amado contém mundos possíveis (Srta. de Stermaria e a Bretanha,
Albertina e Balbec) trata-se de explicar, de desdobrar todos esses mundos. Mas,
precisamente porque esses mundos só têm valor pelo ponto de vis ta que o amado
tem sobre eles, e que determina a maneira come se enrolam neles, o amante nunca
poderá ser suficientementl tomado nesses
mundos sem ser ao mesmo tempo excluído deles pois só lhes pertence como coisa
vista, portanto, também come coisa quase não vista, quase não notada, excluída
do ponto de
12. SG 19-20.
132
vista superior a partir do qual se faz a seleção. O olhar
do ser amado só me integra na paisagem e circunvizinhanças excluindo-me do
ponto de vista impenetrável a partir do qual a paisagem e circunvizinhanças
nele se organizam: "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de
que universo me distinguia ela? Ser-me-ia tão difícil dizê-lo como, ao nos
aparecerem ao telescópio certas particularidades em um astro vizinho, seria desastrado
inferir que ali habitam seres humanos, que eles nos avistam e que idéias essa
visão acaso lhes despertou."13 Do mesmo modo, as preferências
e as carícias do amado só me tocam quando delineiam a imagem dos mundos
possíveis em que outros foram, são ou serão preferidos. 14 Razão
pela qual, em segundo lugar, o ciúme não é mais simplesmente a explicação dos mundos possíveis envolvidos no ser amado
(em que outros, parecidos comigo, podem ser vistos e escolhidos), mas a
descoberta do inundo incognoscível que
representa o ponto de vista do próprio amado e que se desenvolve em sua série
homossexual. Nele o amado só está em relação com seres iguais a ele, mas
diferentes de mim, fontes de prazeres que me são desconhecidos e impraticáveis:
"Era uma terra incógnita terrível
a que eu acabara de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se
abria."15 Finalmente, em terceiro lugar, o ciúme descobre a
transexualidade do ser amado, tudo aquilo que se oculta ao lado de seu sexo
aparente globalmente determinado, os outros sexos contíguos e não comunicantes,
e os estranhos insetos encarregados de estabelecer a comunicação entre esses
lados – em suma, a descoberta dos objetos parciais, ainda mais cruel do que a
das pessoas rivais.
Há uma lógica do ciúme que é das caixas entreabertas e
dos vasos fechados e que consiste em seqüestrar, em enclausurar o
13.RF 294.
14.CS 232.
15.SG 405.
133
ser amado. É essa a
lei que Swann pressente no final de seu amor por Odette e que o narrador já
percebe em seu amor pela mãe, sem ter ainda força para aplicá-la, e que
finalmente aplicará em seu amor por Albertina.16 Toda a filiação
secreta da Recherche, os tenebrosos cativos. Seqüestrar é, em primeiro lugar,
esvaziar o ser amado de todos os mundos
possíveis que ele contém, é
decifrar e explicar esses mundos; mas é também relacioná-los com o ponto de
envolvimento, com a dobra que marca seu pertencimento ao ser amado.17
Em seguida, é cortar a série homossexual que constitui o mundo desconhecido do
amado; mas é também descobrir a homossexualidade como o pecado original do
amado, cujo seqüestro é a forma de punição. Enfim, seqüestrar é impedir os
lados contíguos, os sexos e os objetos parciais de se comúnicarem na dimensão
transversal freqüentada pelo inseto (o terceiro objeto); é fechá-los em si
mesmos, interrompendo as malditas trocas; mas é também colocá-los um do lado
do outro e deixá-los inventar seu sistema de comunicação que sempre nos
surpreende, que cria prodigiosos acasos e despista nossas suspeitas (o segredo
dos signos). Há uma relação impressionante entre o seqüestro causado pelo
ciúme, a paixão de ver e a ação de profanar – a trindade proustiana: seqüestro,
voyeurismo e profanação. Porque aprisionar é precisamente colocar-se na
posição de ver sem ser visto, isto é, sem arriscar-se a ser dominado pelo ponto
de vista do outro que nos expulsava do mundo ao mesmo tempo que nos incluía.
Assim acontece quando o narrador vê Albertina dormir. Ver é exatamente reduzir
o outro aos lados contíguos não comunicantes que o constituem e esperar o modo
de comunicação transversal que essas metades compartimentadas encontrarão um
jeito de criar. Ver também se ultrapassa na tentação de fazer ver, de mostrar,
mesmo que seja simbolicamente. Fazer ver é impor
16.RF 108 e P 12-13.
17.P 145-146.
134
a alguém a contigüidade de um espetáculo estranho,
abominável, hediondo. É não
apenas impor-lhe a visão dos vasos fechados e contíguos, objetos parciais
entre os quais se esboça um acoplamento contranatureza, mas também tratar esse
alguém como se ele próprio fosse um desses objetos, um desses lados contíguos
que devem comunicar-se transversalmente.
Daí o tema da profanação, tão caro a Proust. A Srta.
Vinteuil põe a fotografia de seu pai em contigüidade com seus entretenimentos
sexuais. O narrador põe móveis de família numa casa de tolerância. Sendo beijado
por Albertina ao lado do quarto materno, ele pode reduzir a inãe ao estado de
objeto parcial (língua) contíguo ao corpo de Albertina. Sonhando, ele põe seus
pais em jaulas como se fossem ratos feridos, abandonados aos movimentos
transversais que os atravessam e os fazem sobressaltar-se. Profanar é sempre
fazer a mãe (ou o pai) funcionar como objeto parcial, isto é,
compartimentá-Ia, fazê-la ver um espetáculo contíguo e até mesmo fazê-la atuar
nesse espetáculo que ela não pode mais interromper e do qual não pode escapar,
fazê-la juntar-se ao espetáculo.18
Freud assinalou duas angústias fundamentais em relação
com a lei: a agressividade contra o ser amado acarreta, por um lado, uma ameaça
de perda de amor, por outro lado, uma culpabilidade por uma volta da
agressividade contra si próprio. A segunda figura dá à lei uma consciência depressiva, mas a primeira é uma consciência
esquizóide da lei. Em Proust o tema da culpabilidade permanece superficial,
mais social do que moral, mais projetado sobre os outros do que interiorizado
ao narrador, distribuído nas séries estatísticas. Em compensação, a perda do
amor define realmente o destino ou a lei: amar
sem ser amado,
18. Esse tema de profanação, tão freqüente em sua obra e em sua vida,
Proust geralmente o expõe em termos de "crença": por exemplo, CS
140-142. Ele parece-nos, antes, remeter a toda uma técnica de contigüidades,
compartimentações e comunicações entre vasos fechados.
135
visto que o amor implica a apreensão desses mundos
possíveis no amado, que me expulsam ao mesmo tempo que me aprisionam,
culminando no incognoscível mundo homossexual; mas também deixar de amar, visto que o esvaziamento dos mundos, a explicação
do amado acarretam a morte do eu que ama.19 "Ser duro e pérfido
com aquele que se ama", visto que se trata de seqüestrá-Io, de vê-lo
quando ele não mais nos pode ver, e depois fazer-lhe ver cenas compartimentadas
de que ele é o teatro vergonhoso ou simplesmente o aterrorizado espectador.
Seqüestrar, ver, profanar, resume toda a lei do amor.
Isso significa que a lei em geral, num mundo privado de logos, rege as
partes sem todo, de que vimos a natureza entreaberta ou fechada. Longe de
reuni-las ou de aproximá-las num mesmo mundo, ela mede sua separação, seu
afastamento, sua distância, sua compartimentação, instaurando apenas comunicações
aberrantes entre os vasos não comunicantes, unidades transversais entre as
caixas que repelem qualquer totalização, inserindo à força em determinaçlo mundo o fragmento de outro mundo, impelindo os mundos
e os diversos pontos de vista para o infinito vazio das distâncias. É por esta razão que, desde o nível mais elementar, a lei como lei social ou
natural aparece do lado do telescópio e não do microscópio. Sem dúvida, muitas
vezes Proust faz uso do vocabulário do infinitamente pequeno: o rosto, ou
melhor, os rostos de Albertina diferem por "um infinitesimal desvio de
linhas", os rostos das jovens do grupo diferem "pelas diferenças
infinitamente pequenas das linhas".20 Mas, mesmo aí, os
pequenos desvios de linhas só adquirem valor como portadores de cores que se
afastam e se distanciam uns dos outros, modificando suas dimensões. O
instrumento da Recherche é o telescópio e não o microscópio, porque as distâncias
19.Amar sem ser amado: RF 400.
Deixar de amar: RF 147; P 145. Ser insensível e pérfido com aquele que se ama:
P 91.
20.CG 285; RF 414-415.
136
infinitas subtendem sempre as atrações infinitesimais e
também porque o tema do telescópio reúne as três figuras proustianas daquilo
que se vê de longe, do choque entre mundos e do desdobramento das partes umas
nas outras. "Breve pude mostrar alguns esboços. Ninguém entendeu nada. Até
os que me aprovavam a percepção das verdades que tencionava gravar depois no
templo felicitaram-se por as haver descoberto ao 'microscópio', quando, ao
contrário, eu me servira de um telescópio.."para distinguir coisas
efetivamente muito pequenas, mas porque estavam situadas a longas distâncias,
cada uma num mundo. Procurara as grandes leis, e tachavam-me de rebuscador de
pormenores."21 O salão do restaurante comporta tantos astros
quanto mesas em torno das quais os garçons executam suas evoluções; o grupo
das jovens tem movimentos aparentemente irregulares cujas leis só podem ser
conhecidas através de pacientes observações, "astronomia apaixonada";
o mundo envolvido em Albertina tem as particularidades daquilo que vislumbramos
em um astro "graças ao telescópio".22 E, se o sofrimento é
um sol, é porque seus raios atravessam as distâncias num saldo sem anulá-las. É o que vimos com relação à contigüidade, à compartimentação das
coisas contíguas: a contigüidade não reduz a distância ao infinitamente
pequeno, mas afirma, alonga uma distância sem intervalo, em conformidade com
uma lei sempre astronômica, sempre telescópica, que rege os fragmentos de
universos disparatados.
21.TR 246.
22.RF 294, 307 e 324.
137
Capítulo IV
As Três Maquinas
Ora, o telescópio funciona. Telescópio psíquico para uma
"astronomia apaixonada", a Recherche
não é apenas um instrumento de que Proust se serve ao mesmo tempo
que o fabrica. É também um instrumento para os outros, e cujo uso
eles devem aprender: "Eles não seriam meus leitores, mas leitores de si
mesmos, meu livro não passando de uma espécie de lente de aumento, como os
que oferecia a um freguês o dono da loja de instrumentos ópticos em Combra,y, o
livro graças ao qual eu lhes forneceria meios de se ler. Por isso não esperaria
deles nem elogios nem ataques, mas apenas que me dissessem se estava certo, se
as palavras em si lidas eram mesmo as que eu empregara (as possíveis
divergências não provindo, aliás, sempre de erros meus, mas, algumas vezes, de
não serem os olhos do leitor daqueles aos quais meu livro conviria para a
leitura interior)1. E não apenas um instrumento: a Recherche é uma máquina. A obra de arte
moderna é tudo o que se quiser, isto, aquilo ou aquilo outro; é mesmo de sua
natureza ser tudo que se quiser, ter a sobredeterminação que se quiser, desde
que funcíone: a obra de arte
moderna é uma máquina e funciona como tal. Mal-
1.TR 240 e TR 153: "Mas outras
particularidades (como a inversão) o obrigarão a ler de tal maneira para ler
bem; o autor não se deve com isso ofender, mas, ao contrário, deixar-lhe a
maior liberdade, dizendo-lhe: Experimente se vê melhor com estas lentes, com aquelas,
com aquelas outras."
138
colm Lowry diz esplendidamente de seu romance:
"Pode-se considerá-lo uma espécie de sinfonia, ou uma espécie de ópera, ou
até mesmo uma ópera-westem; é jazz, poesia, canção, tragédia, comédia, farsa e assim por
diante (...) é uma profecia, uma advertência política, um criptograma, um filme
burlesco e um Mane-Tecel-Fares. Pode-se considerá-lo até mesmo como uma espécie
de maquinaria; e ela funciona muito bem, estejam certos, pois eu mesmo já a
experimentei."2 Proust diz a mesma coisa quando nos aconselha,
não a ler sua obra, mas a nos servirmos dela para lermos em nós mesmos. Não há
uma sonata ou um septeto na Recherche; é a
própria Recherche que é uma sonata, um septeto ou
mesmo uma ópera-bufa; e Proust acrescenta: uma catedral ou até mesmo um
vestido.3 ֹ uma profecia sobre os
sexos, uma advertência política que chega até nós vinda do fundo do caso
Dreyfus e da guerra de 1914, um criptograma que decodifica e recodifica todas
as nossas linguagens sociais, diplomáticas, estratégicas, eróticas, estéticas,
um westem ou um filme burlesco sobre a
Prisioneira, um Mane-Tecel-Fares, um manual mundano, um tratado de metafísica,
um delírio de signos ou de ciúmes, um exercício de adestramento das faculdades.
Tudo o que se quiser, contanto que se faça funcionar o conjunto, e "isto
funciona, estejam certos". Ao logos, órgão e organon, cujo sentido é preciso descobrir no todo a que pertence,
se opõe o antilogos, máquina e maquinaria cujo sentido (tudo o que se quiser)
depende unicamente do funcionamento, e este, das peças separadas. A obra de
arte moderna não tem problema de sentido, ela só tem um problema de uso.
Por que uma máquina? Pelo simples fato de que a obra de
arte, assim compreendida, é essencialmente produtora: produ/ tora de certas
verdades. Ninguém mais do que Proust insistiu no seguinte ponto: a verdade é
produzida e produzida por or-
2.Malcolm Lowry, Choix de
lettres, Denoel, ps. 86-87.
3.TR 240.
139
dens de máquinas que funcionam em nós, extraída a partir
de nossas impressões, aprofundada em nossa vida, manifestada em uma obra. Essa
é a razão por que Proust recusa com tanta veemência uma verdade que não seja
produzida, mas apenas descoberta ou, ao contrário, criada, e um pensamento que
se pressuporia a si mesmo pondo a inteligência em primeiro lugar, reunindo
todas as suas faculdades em um uso voluntário correspondente à descoberta ou à criação (logos). Por possuírem apenas uma verdade lógica, uma verdade
possível, as idéias selecionadas pela inteligência pura são selecionadas
arbitrariamente. O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é o
nosso único livro. Não que as idéias por nós elaboradas não possam ser logicamente certas, mas não sabemos se são verdadeiras."
E a imaginação criadora não vale mais que a inteligência descobridora ou observadora.4
Vimos anteriormente de que maneira Proust renovava a
equivalência platônica criar-lembrar. É que lembrar e criar nada
mais são do que dois aspectos da mesma produção – o "interpretar", o
"decifrar", o "traduzir" constituem o próprio processo de
produção. É por ser produção que a obra de arte não coloca um
problema particular de sentido, mas de uso.5 Mesmo o pensar deve ser
produzido no pensamento. Toda produção parte da impressão, porque apenas ela
reúne em si o accaso do encontro e a necessidade do efeito, violência que ela nos
faz sofrer. Toda produção parte, portanto, de um signo e supõe a profundidade e
a obscuridaae do involuntário.''A imaginação, o pensamento serão máquinas em si
mesmo admiráveis, mas podem ficar inertes. E o sofrimento as põe em
movimento."6 Então, como vimos, o
4.TR 146; "Um homem dotado de
sensibilidade poderia, ainda que não tivesse imaginação, escrever romances
admiráveis."
5.Sobre o conceito de produção em
suas relações com a literatura, cf. Pierre Macherey, Pour une théorie de Ia production littéraire, Paris,
Maspéro.
6.TR 152.
140
signo, por sua natureza, aciona esta ou aquela faculdade,
mas nunca todas ao mesmo tempo, impulsionando-a até o limite de seu exercício
involuntário e disjunto, pelo qual ela produz o sentido. Uma classificação dos
signos nos indicou as faculdades que entram em jogo nesse ou naquele caso e o
tipo de sentido prod uzido (especialmente leis
gerais ou essências singulares). Em todo
caso, a faculdade escolhida sob coação do signo constitui o interpretar; e o
interpretar produz o sentido, a lei ou a essência segundo o caso, que é sempre
um produto. Porque o sentido (verdade) nunca está na impressão nem mesmo na
lembrança, mas se confunde com o "equivalente espiritual" da
lembrança ou da impressão, produzido pela máquina involuntária de interpretação.7
É essa noção de equivalente espiritual que funda um novo liame entre
lembrar-se e criar, e o funda em um processo de produção considerado como obra
de arte.
A Recherche é a
produção da verdade procurada. E não há exatamente a verdade, mas ordens de
verdade, como ordens de produção; e não basta dizer que há verdades do tempo
redescoberto e verdades do tempo perdido, porque a grande sistematização
final distingue não apenas duas ordens de verdades, mas três. A primeira ordem
parece dizer respeito ao tempo redescoberto, visto que engloba todos os casos
de reminiscências naturais e de essências estéticas; a segunda e a terceira
ordens parecem confundir-se no fluxo do tempo perdido e produzir verdades
apenas secundárias, que são ditas ora "encaixar", ora
"engastar" ou "cimentar" as da primeira ordem.s
Entretanto, a determinação dos temas e o movimento do texto nos forçam a
distinguir três ordens. A primeira ordem se define pelas reminiscências e essências,
isto é, pelo mais singular, e pela
produção do tempo redescoberto que lhes corresponde, pelas condições e
7.TR 129. Mesmo a memória, ainda
muito material, tem necessidade de umeqHivalente
esPiritHal: cf. P 320-321.
8.TR 144, 168 e 194.
141
pelos agentes dessa produção (signos naturais e
artísticos). A segunda ordem diz respeito não menos à arte e à obra de arte, mas agrupa os prazeres e os
sofrimentos que não alcançam plenitude em si mesmos, que remetem a outra
coisa, mesmo se essa outra coisa e sua finalidade permanecem despercebidas,
signos mundanos e signos amorosos, em suma, tudo aquilo que obedece a leis gerais e intervém na produção do tempo perdido (pois o tempo
perdido também é questão de produção). Enfim, a terceira ordem também diz respeito
à arte, mas se define pela universal alteração, a morte e a idéia da morte, a produção de
catástrofe (signos de envelhecimento, de doença, de morte). No que se refere ao
movimento do texto, não é absolutamente da mesma maneira que as verdades de
segunda ordem vêm secundar ou "encaixar" as de primeira, dando-lhes
uma espécie de correspondente, de prova a contrario em outro
campo de produção, e que as da terceira ordem vêm, sem dúvida, "engastar"
e "cimentar" as da primeira, opondo-Ihes, porém, uma verdadeira
"objeção" que deverá ser "superada" entre duas ordens de
produção.9
Todo o problema reside na natureza dessas três ordens. Se
não seguirmos a ordem de apresentação do tempo redescoberto, que
necessariamente dá a primazia a este último do ponto de vista da exposição
final, deveremos considerar como ordem primária os sofrimentos e os prazeres
não plenos, que não têm finalidade determinada, que obedecem a leis gerais. Ora, estra-
9.A
organização do Tempo redescoberto a partir da "vesperal em casa da Sra. de
Guermantes" é a seguinte; a) a
ordem das reminiscências e das essências singulares como primeira dimensão da
obra de arte, TR 120-143; b) transição
sobre o sofrimento e o amor em conseqüência das exigências da obra de arte
total, TR 143 -144; c) a ordem dos prazeres e dos sofrimentos, com suas leis
gerais, como segunda dimensão da obra de arte, confirmando a primeira, TR
145-158; d) transição, retorno à primeira dimensão TR 158-160; e) a ordem da alteração e da morte, como terceira dimensão
da obra de arte, contradizendo a primeira, mas, superando a contradição, TR
160-166; f) o Livro com suas três dimensões,
TR 237 – 251.
142
nhamente, Proust agrupa aqui os valores da mundanidade
com seus prazeres frívolos, os valores do amor com seus sofrimentos e até mesmo
os valores do sono com seus sonhos. Na "vocação" de um homem de
letras, etles constituem um "aprendizado", isto é, a familiaridade
com uma matéria bruta que só será reconhecida mais tarde no produto final.l0
São, sem dúvida, signos extremamente diferentes, especialmente os signos
mundanos e os signos do amor, mas vimos anteriormente que seu ponto de vista
comum se encontrava na faculdade que os interpretava – a inteligência, mas uma
inteligência que vem depois, ao invés
de vir antes, forçada pela coação do signo – e no sentido que corresponde a
esses signos: sempre uma lei geral, quer seja ela a de um grupo, como no mundanismo,
ou a de uma série de seres amados, como no amor. Mas estas são ainda
semelhanças grosseiras. Se considerarmos ele mais
perto esta primeira espécie de máquina, veremos que ela se define, antes de
mais nada, por uma produção de objetos parciais,
tais como foram definidos anteriormente: fragmentos sem totalidade, partes
divididas, vasos sem comunicação, cenas compartimentadas. Melhor ainda, se há
sempre uma lei geral, é no sentido particular que Proust lhe dá: não reunindo
em um todo, mas, ao contrário, determinando as distâncias, os afastamentos, as
compartimentações. Se os sonhos aparecem nesse grupo, é por sua capacidade de
mostrar os fragmentos como que através de um telescópio, de fazer girar
diferentes universos e de transpor, sem anulá-las, "enormes distâncias".11
As pessoas com quem sonhamos perdem seu caráter global e são tratadas como objetos
parciais, ou porque uma parte delas é destacada pelo nosso sonho, ou porque funciona inteiramente como tais objetos. Ora, era exatamente
isto que nos oferecia o material mundano: a possibilidade de destacar, como num
sonho frívolo, um movimento de ombros de uma pessoa e
10.TR 145-150.
11.TR 153.
143
um movimento de pescoço de outra, não para totalizá-Ios,
mas para compartimentá-los um ao lado do outro. 12 Com mais razão, é o que nos oferece o material amoroso, em que cada um dos
seres amados funciona como objeto parcial, "reflexo fragmentário" de
uma divindade cujos sexos compartimentados são percebidos sob a pessoa global.
Enfim, a idéia de lei geral, em Proust, é inseparável da produção dos objetos
parciais e da produção das verdades de grupo ou das verdades de série correspondentes.
O segundo tipo de máquina produz ressonâncias, efeitos de
ressonância. Os mais célebres são os da memória involuntária, que fazem ressoar
dois momentos, um atual e um antigo. O próprio desejo tem efeitos de
ressonância (por isso os campanários de Martinville não são um caso de
reminiscência). Mais ainda, a arte produz ressonâncias que não são da memória:
"Impressões obscuras me haviam (...) solicitado o pensamento, tal como
estas reminiscências, a atenção, encerrando, porém, não uma velha sensação, mas
uma verdade nova, uma imagem preciosa que eu tentava desvendar por meio de
esforços semelhantes aos que fazemos para recordar alguma coisa."l3
É que a arte faz ressoar dois objetos longínquos
"pelo vínculo indescritível de uma aliança de palavras". 14 Não se
deve crer que essa nova ordem de produção suponhq a produção
anterior dos objetos parciais e se estabeleça a partir deles; seria falsear a
relação existente entre as duas ordens, que não é de fundação. A relação é,
antes, como que entre tempos plenos e tempos vazios, ou melhor, do ponto de
vista do produto, entre verdades do tempo redescoberto e verdades do tempo
perdido. A ordem da ressonância se distingue pelas faculdades de extração ou
de interpretação que ela aciona e pela qualidade de seu produto que é
12.TR 146.
13.TR 129.
14.TR 137.
144
também modo de produção: não mais uma lei geral, de grupo
ou de série, mas uma essência singular, essência local ou localizante no caso
dos signos de reminiscência, essência individuante no caso dos signos da arte.
A ressonância não se baseia em pedaços que lhe seriam fornecidos pelos objetos
parciais, nem totaliza pedaços que viriam de outro lugar. Ela extrai seus próprios
pedaços e os faz ressoar segundo sua finalidade específica, mas não os
totaliza, visto que se trata sempre de um "corpo a corpo", de uma
"luta" ou de um "combate".15 O que é produzido
pelo processo de ressonância, na máquina de fazer ressoar, é a essência
singular, o ponto de vista superior aos dois momentos que ressoam, em ruptura
com a cadeia associativa que vai de um a outro: Combray em sua essência tal
como não foi vivida; Combray como ponto de vista, tal como nunca foi vista.
Constatamos anteriormente que o tempo perdido e o tempo
redes coberto tinham uma mesma estrutura de divisão ou de fragmentação; que não
é por aí que eles se distinguem. Além disso, seria tão falso apresentar o tempo
perdido como improdutivo em sua ordem, quanto apresentar o tempo redescoberto
como totalizante na sua. Há, ao contrário, dois processos de produção
complementares, cada qual definido pelos pedaços que fragmenta, por seu regime
e seus produtos, pelo tempo pleno ou pelo tempo vazio que nele se encontra.
Razão por que Proust não vê oposição entre os dois, mas define a produção dos
objetos parciais como secundando e encaixando a das ressonâncias. Assim, a
"vocação" do homem de letras não é apenas feita do aprendizado ou da
finalidade indeterminada (tempo vazio), mas do êxtase ou da meta final (tempo
pleno).16
O que é novo em Proust, o que faz o permanente sucesso e
a eterna significação da madeleine não é
simplesmente a existência desses êxtases ou desses instantes privilegiados. Há inúme-
15.P 220; TR 126.
16.Sobre o caráter extático da
ressonância, cf. TR 126-127.
145
ros exemplos desses instantes na literatura. Também não é
a maneira original como Proust os apresenta e os analisa com seu estilo
peculiar. É, antes, o fato de que ele os produz, e de que esses
instantes se tornam o efeito de uma máquina literária. Daí a multiplicação de
ressonâncias no final da Recherche, em casa
da Sra. de Guermantes, como se a máquina se revelasse a todo o vapor. Não mais
se trata de uma experiência extraliterária que o homem de letras relata ou de
que se aproveita, mas de uma experimentação artística produzida pela
literatura, de um efeito literário, no sentido em que se fala de efeito
elétrico, eletromagnético etc. É o caso de se dizer: isto
funciona. Que a arte seja uma máquina de produzir, e notadamente de produzir
efeitos, disso Proust teve plena consciência; e efeitos sobre os outros, visto
que os leitores ou espectadores se porão a descobrir, neles mesmos ou fora
deles, efeitos análogos aos que a obra de arte produziu. "Mulheres passam
pela rua, diferentes daquelas de outrora, pois que são verdadeiras Renoir, esse
Renoir em que antigamente recusávamos distinguit mulheres. Também as viaturas
são Renoir, as águas e o céu."17 É nesse
sentido que Proust se refere a seus livros como óculos, como um instrumento de
ótica. Há sempre alguns imbecis que acham uma tolice ter experimentado, após a
leitura de Proust, fenômenos análogos às ressonâncias que ele descreve; há
sempre alguns pedantes que se perguntam se não se trata de casos de paramnésia,
de ecmnésia, de hipermnésia, quando a originalidade de Proust é justamente
ter assinalado, neste domínio clássico, uma repartição e uma mecânica que antes
dele não existia. Mas não se trata apenas de efeitos produzidos sobre os
outros; é a obra de arte que produz em si mesma e sobre si mesma seus próprios efeitos, e deles se sacia, deles se nutre: ela se
alimenta das verdades que engendra.
17.CF. a bela análise de Michel Souriau
"La matiere, Ia lettre et le verbe", Recherches philosophiques,
IlI.
146
É importante que se entenda: o que é produzido não é
apenas a interpretação que Proust dá desses fenômenos de ressonância ("a
procura das causas"); é todo fenômeno que é interpretação. Há certamente
um aspecto objetivo do fenômeno; um aspecto objetivo, por exemplo, é o sabor da
madeleine como qualidade comum aos dois momentos.
Do mesmo modo, há certamente um aspecto subjetivo – a cadeia associativa que
liga toda Combray vivida a esse sabor. Mas, se a ressonância tem assim
condições objetivas e subjetivas, o que ela produz é de natureza totalmente
diferente, é a Essência, o Equivalente espiritual, visto que é uma Combray que
nunca foi vista e que está em ruptura com a cadeia subjetiva. É por isso
que produzir (diferente de descobrir e de criar; e toda a Recherche desvia sucessivamente da observação das coisas e da imaginação
subjetiva. Ora, quanto mais a Recherche opera
essa dupla renúncia, essa dupla depuração, mais o narrador se apercebe de que
não apenas a ressonância é produtora de um efeito estético, mas de que ela
própria pode ser produzida, pode ser um efeito artístico.
Sem dúvida, é isso que o narrador não sabia desde o
início. Mas toda a Recherche implica
um debate entre a arte e a vida, uma questão sobre o relacionamento entre elas
que só obterá resposta no final do livro (e obterá resposta precisamente com a
descoberta de que a arte não é apenas descobridora ou criadora, mas produtora).
No decorrer da Recherche, se a
ressonância como êxtase aparece como a meta final da vida, não se percebe bem o
que lhe pode a arte acrescentar, e o narrador tem, então, com relação à arte, as maiores dúvidas. É quando
surge a ressonância como produtora de determinado efeito, em determinadas
circunstâncias naturais, objetivas e subjetivas, e através da máquina
inconsciente da memória involuntária. Mas, no final, vê-se o que a arte é capaz
de acrescentar à natureza: ela produz as
próprias ressonâncias, porque o estilo faz
ressoar dois objetos quaisquer e deles extrai uma "imagem preciosa", substituindo as condições determinadas de um produto natural inconsciente
pelas li-
147
vres condições de uma produção artística.18 Desde então a arte aparece naquilo que ela é, a meta
final da vida, que a própria vida não pode realizar por si mesma; e a memória
involuntária, utilizando apenas determinadas ressonâncias, é apenas um começo
de arte na vida, uma primeira etapa.19 A natureza ou a vida, ainda
muito pesadas, encontraram na arte seu equivalente espiritual. E até mesmo a memória
involuntária encontrou seu equivalente espiritual, puro pensamento produzido e
produtor.
Todo o interesse se desloca então dos instantes naturais
privilegiados para a máquina artística capaz de produzi-los ou reproduzi-los,
de multiplicá-los: o livro. A esse respeito só vemos comparação possível com
Joyce e sua máquina de epifanias, pois Joyce também começa procurando o segredo das
epifanias do lado do objeto, em conteúdos significantes ou significações
ideais, e depois na experiência subjetiva de um esteta. Somente quando os
conteúdos significantes e as significações ideais desmoronam dando lugar a uma
multiplicidade de fragmentos e de caos, e as formas subjetivas, dando lugar a
um impessoal caótico e múltiplo, é que a obra de arte adquire seu sentido
pleno, isto é, todos os sentidos que se quiser segundo seu funcionamento – o
essencial é que ela funcione, estejam certos. Então o artista, e em seguida o
leitor, é aquele que "disentangles" e "re-embodies": ao fazer ressoar dois objetos,
ele produz a epifania, extraindo a imagem preciosa das condições naturais que a
determinam para reencarná-la nas condições artísticas escolhidas.20
"Significante e significado se fundem por um curto-circuito poeticamente
necessário, mas ontologicamente gratuito e imprevisto. A linguagem cifrada não
se refere a um cosmos objetivo, exterior à
18.TR 129-138.
19.TR 138: "Não fora, sob esse
ponto de vista, a próptia natureza que me pusera no caminho da arte, não era
ela um começo de arte!"
20.Cf. Joyce, Stephen hera (vimos que o mesmo acontece em Proust, e que, na
arte, a própria essência determina as condições de sua encarnação, ao invés de
depen: der de condições naturais dadas).
148
obra; sua compreensão só tem valor no interior da obra e
se acha condicionada por sua estrutura. A obra como um todo propõe novas
convenções lingüísticas a que ela se submete, e se torna a chave de seu próprio
código."21 Mais ainda, a obra só é um todo, e num sentido novo,
em virtude dessas novas convenções lingüísticas.
Resta ainda a terceira ordem proustiana, a da alteração e
da morte universais. O salão da Sra. de Guermantes, com o envelhecimento de seus
convidados, faz-nos assistir à distorção dos pedaços de rosto, à fragmentação
dos gestos, à incoordenação dos músculos, às mudanças de coloração, à formação
de musgos, liquens, manchas oleosas sobre os corpos, sublimes travestis,
sublimes gagás. Por toda a parte a proximidade da morte, o sentimento da
presença de uma "coisa terrível", a impressão de um fim último ou
mesmo de uma catástrofe final em um mundo deslocado que não é apenas regido
pelo esquecimento, mas corroído pelo tempo. "Lassas ou quebradas, já não
atuavam as molas da máquina joeirante... "22
Ora, esta última ordem suscita tanto mais problemas quanto
parece inserir-se nas duas outras. Já não estava vigilante nos êxtases a idéia
da morte e o deslizamento do antigo momento que se afastava a toda velocidade?
Assim, quando o narrador se inclinava para desabotoar sua botina, tudo começava
exatamente como num êxtase: o atual momento ressoava junto com o antigo,
fazendo reviver a avó no gesto de se inclinar; mas a alegria era substituída
por uma insuportável angústia: a conjugação dos dois momentos se desfazia
dando lugar a uma violenta evasão do antigo, numa certeza de morte e de vazio.23
Do
21.Umberto
Eco, L'oeuvre ouverte, Paris,
Editions du Seuil, p. 231. (N. da Ed. bras.: Deleuze cita nessa passagem um
estudo do autor italiano sobre a obra de Joyce, que não foi incluído na edição
brasileira de Obra aberta.)
22.TR 187.
23.SG 127.
149
mesmo modo, a sucessão dos eus distintos nos amores, ou
até mesmo em cada amor, já continha uma longa teoria dos suicidas e dos
mortos.24 Entretanto, enquanto as duas primeiras ordens não
colocavam nenhum problema quanto à sua conciliação, embora uma representasse o
tempo vazio e a outra o tempo pleno, uma o tempo perdido e a outra o tempo
redescoberto, há agora, ao contrário, uma conciliação a ser feita, uma
contradição a ser superada entre essa terceira ordem e as duas outras (razão
por que Proust, nesse ponto, fala da "mais grave das objeções" contra
seu empreendimento). É que os objetos e os eus parciais da primeira ordem
levam à morte uns aos outros, uns em relação aos outros, cada um permanecendo
indiferente à morte do outro: portanto, eles ainda não extraem a idéia da morte, como que banhando uniformemente
todos os pedaços, arrastando-os em direção a um fim último universal. Com mais
razão se manifesta uma "contradição" entre a sobrevivência da segunda
ordem e o nada da terceira; entre "a fixidez da lembrança" e "a
decadência das triaturas", entre a meta final extática e o fim último
catastrófico.25 Contradição que não é resolvida com a lembrança da
avó, mas que reclama ainda mais um aprofundamento: "Esta impressão
dolorosa e incompreensível atualmente, não sabia eu por certo se haveria de
arrancar-lhe um pouco de verdade alguma vez, mas sabia que se pudesse algum
dia extrair-lhe esse pouco de verdade só poderia ser dela, tão particular, tão
espontânea, que não a traçara a minha inteligência nem a atenuara a minha
pusilanimidade, mas que a própria morte, a brusca revelação da morte, como um
raio, tinha cavado em mim um duplo e misterioso sulco, segundo um gráfico
sobrenatural e inumano."26 A contradição apare-
24.TR 243.
25.SG 129-130; TR 208.
26.SG 130.
150
ce aqui em sua forma mais aguda. As duas primeiras ordens
eram produtivas e.assim sua conciliação não colocava problema particular; mas a
terceira, dominada pela idéia de morte, parece absolutamente catastrófica e
improdutiva. Pode-se conceber uma máquina capaz de extrair alguma coisa a
partir desse tipo de impressão dolorosa e de produzir determinadas verdades? Se
não pudermos concebê-Ia, a obra de arte encontra "a mais grave das
objeções".
Em que consiste esta idéia da morte, inteiramente
diferente da agressividade da primeira ordem (um pouco como, na psicanálise, o
instinto de morte se distingue das pulsões destruidoras parciais)? Ela consiste
num determinado efeito de Tempo. Sendo dados dois estados de uma mesma pessoa,
um antigo, de que nos lembramos, e outro atual, a impressão de envelhecimento
de um a outro tem por efeito fazer recuar o antigo "num passado mais do
que remoto, quase inverossímil", como se tivessem passado períodos
geológicos.27 Pois "na apreciação do tempo passado só custa o
primeiro passo. É difícil, antes, imaginar
tanto tempo decorrido, depois, aceitar que não se haja passado ainda mais.
Causa espanto, a princípio, ser tão longínquo o século XIII, mais tarde
existirem tantas igrejas daquela época, entretanto inúmeras em França."28
É assim que o movimento do tempo, de um passado ao presente, se duplica em
um movimento forçado de maior amplitude, em
sentido inverso, que varre os dois momentos, ressalta o intervalo entre eles e
faz recuar o passado. É esse segundo movimento que constitui, no tempo, um
"horizonte". Não se deve confundi-lo com o eco de ressonância; ele
dilata infinitamente o tempo, enquanto a ressonância o contrai ao máximo. A
idéia da morte é, desde então, muito menos um corte do que um efeito de mistura
ou de confusão, visto que a
27.TR 173-174.
28.TR 169.
151
amplitude do movimento forçado é ocupada tanto pelos vivos
quanto pelos mortos, todos agonizantes, todos semimortos ou com os pés na cova.29
Mas esta meia-morte é também a estatura dos gigantes, visto que no seio de
amplitude desmesurada pode-se descrever os homens como seres monstruosoS
"ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável do que o tão restrito
a eles reservado no espaço. Um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à
semelhança de gigantes, tocam simultaneamente, imersos nos anos, todas as
épocas de suas vidas, tão distantes _ entre as quais tantos dias cabem -no
Tempo. "30 A esta altura, já estamos perto de resolver a
objeção ou a contradição. A idéia da morte deixa de ser uma "objeção"
desde que se possa ligá-la a uma ordem de produção, concedendo-lhe portanto um
lugar na obra de arte. O movimento forçado de grande amplitude é uma máquina
que produz o efeito de recuo ou a idéia de morte; e, neste efeito, é o próprio
tempo que se torna sensível: "O tempo ordinariamente invisível, que, para
deixar de sê-Io, vive à cata dos corpos e, maIos encontra, logo deles se
apodera a fim de exibir a sua lanterna mágica", dividindo os pedaços e os
traços de um rosto que envelhece, conforme sua "dimensão inconcebíve1."31
Uma máquina de terceira ordem vem juntar-se às duas precedentes, que produz o
movimento forçado e, por meio desse, a idéia de morte.
Que se passou na lembrança da avó? Um movimento forçado
se conectou com uma ressonância. A amplitude portadora da idéia de morte varreu
os instantes ressonantes como tais. Mas a contradição tão violenta entre o tempo
redes coberto e o tempo perdido se resolve desde que se ligue cada um dos dois
à sua ordem de produção. Na produção do Livro, a Recherche põe
29.TR 201.
30.TR 251.
31.TR 162-163.
152
em ação três espécies de máquinas: máquinas de objetos parciais (pulsães), máquinas de ressonância (Eras),
máquinas de movimento forçado (Thanatos). Cada uma produz verdades,
pois é próprio da verdade ser produzida, e ser produzida como um efeito de
tempo. O tempo perdido, por fragmentação dos objetos parciais, o tempo redescoberto,
por ressonância, o tempo perdido de uma outra maneira, por amplitude do
movimento forçado, essa perda se dando então na obra e se tornando a condição
de sua forma.
153
Capítulo
V
O Estilo
Qual é essa forma e como são organizadas as ordens de produção
ou de verdade, as máquinas umas nas outras? Nenhuma tem função de totalização.
O essencial é que as partes da Recherche permanecem divididas, fragmentadas, sem que nada lhes falte: partes eternamente parciais
levadas pelo tempo, caixas entreabertas e vasos fechados, sem formar nem supor
um todo, sem nada faltar nessa divisão, e denunciando de antemão toda unidade
orgânica que se queira introduzir. Quando Proust compara sua obra a uma
catedral ou a um vestido não é para defender um lagos com bela totalidade, mas, ao contrário, para defender o
direito ao inacabado, às costuras e aos remendos.l O tempo não é um
todo, pela simples razão de ser a instância que impede o todo. O mundo não tem
conteúdos significantes, pelos quais se poderia sistematizá-lo, nem
significações ideais, pelas quais se poderia ordená-Io, hierarquizá-Io.
Tampouco o sujeito possui uma cadeia associativa que possa contornar o mundo ou
conferir-lhe unidade. Voltar-se para o sujeito não é mais proveitoso do que
observar o objeto: o "interpretar" anula tanto um quanto o outro.
Mais ainda, toda cadeia associativa se rompe dando lugar a um ponto de vista
superior ao sujeito. Por sua vez, esses pontos de vista sobre o mundo,
verdadeiras essên-
1. TR 240-241.
154
cias, nem formam uma unidade nem uma totalidade:
dir-se-ia que um universo corresponde a cada um, não se comunicando com os
outros, afirmando sua diferença irredutível, tão profunda quanto a dos mundos
astronômicos. Mesmo na arte, em que os pontos de vista são os mais puros,
"cada artista parece assim como que o cidadão de uma pátria desconhecida,
esquecida dele próprio, diferente daquele donde virá, rumo à terra, outro grande artista."2 Parece-nos que é exatamente
isto que define o estatuto da Essência: ponto de vista individuante, superior
aos próprios indivíduos, em ruptura com suas cadeias de associações, ela
aparece ao lado dessas cadeias, encarnada em uma
parte fechada, adjacente ao que
ela domina, contígua ao que
ela mostra. Até mesmo a igreja, ponto de vista superior à paisagem, tem como efeito compartimentar essa paisagem e surge, ela própria,
numa sinuosidade da estrada, como última parte compartimentada, adjacente à série que por ela é definida. É o mesmo
que dizer que as essências, como as leis, não têm o poder de se unificar, nem
de se totalizar. "Um rio que corre por baixo das pontes de uma cidade era
apanhado de tal maneira que aparecia totalmente deslocado, aqui espraiando-se
em lago, ali feito filetes, noutra parte rompido pela interposição de uma
colina encimada por árvores onde à noite
vai a gente tomar a fresca; e o ritmo dessa revolta cidade estava tão-somente
assegurado pela vertical inflexível dos campanários, que não subiam, mas antes,
conforme o prumo da gravidade, marcando a cadência como numa marcha triunfal,
pareciam ter em suspenso, abaixo
P 217. É mesmo a potência da arte: "Só pela arte
podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso,
cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as porventura existentes na Lua.
Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e
dispomos de tantos mundos quantos artistas originais existem, mais diversos
entre si do que os que rolam no infinito... " (TR 142).
155
deles, toda a massa, mais confusa, das casas escalonadas
na bruma, ao longo do rio esmagado e desfeito."3
O problema foi colocado por Proust em vários níveis. O
que constitui a unidade de uma obra? O que nos faz "comunicar" com
uma obra? O que constitui a unidade da arte, se é que existe uma? Desistimos da
procura de uma unidade que unificasse as partes, de um todo que totalizasse os
fragmentos, porque é da própria natureza das partes e dos fragmentos excluir o lagos, tanto como unidade lógica quanto como totalidade
orgânica. Mas há, deve haver, uma unidade que é a unidade desse múltiplo, dessa multiplicidade,
como também um todo desses fragmentos;
um Uno e um Todo que não seriam princípio, mas, ao contrário, "o
efeito" do múltiplo e de suas partes fragmentadas; Uno e Todo que funcionariam
como efeito, efeito de máquinas, ao invés de agirem como princípios. Uma
comunicação que não seria colocada como princípio, mas que resultaria do jogo
das máquinas e de suas peças separadas, de suas partes não comunicantes. Do
ponto de vista filosófico, foi Leibniz quem pela primeira vez formulou o
problema de uma comunicação resultante de partes isoladas ou de coisas que não
se comunicam: como conceber a comunicação das mônadas, que não têm portas nem
janelas? A resposta enganadora de Leibniz é que as mônadas fechadas dispõem
todas elas de um estoque, envolvendo e exprimindo o mesmo mundo na série
infinita de seus predicados, cada qual se contentando em ter uma região de
expressão clara, distinta da das outras, sendo todas portanto pontos de vista
diferentes sobre o mesmo mundo que Deus as fez envolver. A resposta de Leibniz restaura assim uma unidade e uma totalidade prévias,
sob a forma de um Deus que introduz em cada mônada o mesmo estoque de mundo ou
de informação ("harmonia preestabelecida"), e que cria entre suas
solidões uma "corres-
3. RF 330.
156
pondência" espontânea. Não é este, entretanto, o
pensamento de Proust, para quem diversos mundos correspondem aos pontos de
vista sobre o mundo, e para quem unidade, totalidade e comunicação só podem
resultar das máquinas e nunca constituir um estoque preestabelecido.4
O problema da obra de arte é, insistamos, o de
uma unidade e de uma totalidade que não seriam nem lógicas nem orgânicas, isto
é, que não seriam nem pressupostas pelas partes, como unidade perdida ou
totalidade fragmentada, nem formadas ou prefiguradas por elas no curso de um
desenvolvimento lógico ou de uma evolução orgânica. Proust era tão consciente
desse problema que chegou a assinalar-lhe a origem: foi Balzac quem soube
colocá-lo e que, por essa razão, soube criar um novo tipo de obra de arte. Pois
é um mesmo contra-senso, uma mesma incompreensão da genialidade de Balzac, que
nos faz acreditar que ele já tivesse uma vaga idéia lógica da unidade de A comédia humana ou que essa unidade se tivesse formado
organicamente à medida que a obra crescia. Na verdade, a unidade é um resultado
e foi descoberta por Balza.c como um efeito de seus
livros. Um "efeito" não é uma ilusão: "Considerou subitamente,
ao projetar sobre eles uma iluminação retrospectiva, que ficariam mais belos
reunidos num ciclo em que as mesmas personagens reaparecessem e acrescentou à
sua obra, nesse trabalho de coordenação, uma pincelada, a última e a mais
sublime. Unidade ulterior e não factícia... não fictícia, talvez até mais real
por ser ulterior... "5 O erro seria acreditar que a consciência ou a descoberta da unidade, vindo
após, não mudasse a natureza e a fun-
4.Certamente Proust leu Leibniz,
pelo menos nas aulas de filosofia: Saint.Loup, em sua teoria da guerra e da
estratégia, invoca um ponto de vista preciso da doutrina leibniziana
("você se lembra daquele livro de filosofia que líamos juntos em Balbec...
"), CG 85-86. De modo geral, pareceu-nos que as essências singulares de
Proust estavam mais próximas das mônadas leibnizianas do que das essências
platônicas.
5.P 135.
157
ção desse Uno. O uno ou o todo de Balzac são tão
especiais que resultam das partes sem alterar-lhes a fragmentação ou a disparidade,
e, como os dragões de Balbec ou a frase musical de Vinteuil, eles próprios
valem como uma parte ao lado das outras, adjacente às outras – a unidade
"surge (desta vez aplicando-se ao conjunto) como um trecho composto à
parte", como uma última pincelada localizada, não como um vemissage geral. Assim, de certo modo Balzac não tem estilo; não que ele diga "tudo", como acreditava
Sainte-Beuve, mas as partes de silêncio e de palavra, o que ele diz e o que não
diz, se distribuem numa fragmentação que o todo vem confirmar, visto que é um
resultado, e não corrigir ou ultrapassar. "Em Balzac coexistem, não digeridos, não ainda transformados, todos os elementos
necessários a vir a ser um estilo que não existe. O estilo não sugere, não
reflete – ele explica. Explica,
aliás, com a ajuda das mais surpreendentes imagens, não fundidas com o resto, que fazem
com que se compreenda o que ele quer dizer, tal como acontece quando se tem uma
conversa genial, pão se preocupando com a harmonia, nem tampouco em
intervir."6
Pode-se dizer que também Proust não tem estilo? É possível dizer que a frase de Proust, inimitável ou muito facilmente imitável,
em todo caso sempre reconhecível, possuidora de uma sintaxe e um vocabulário
bastante específicos, produtora de efeitos que devem ser designados pelo nome
próprio de Proust, seja, no entanto, sem estilo? Como se explica que a ausência
de estilo se torne com ele a força genial de uma nova literatura? Seria
necessário comparar o conjunto final do tempo redesco'berto com o Prefácio de
Balzac: o sistema das plantas substituiu o que era para Balzac o Animal: os
mundos substituíram o meio; as essências substituíram os caracteres; a
interpretação silencio-
6.Cono'e
Sainte-Bueve, ps. 207 -208. E p. 216: "estilo inorganizado".
Todo o capítulo insiste nos efeitos de literatura, análogos a
verdadeiros efeitos óticos.
158
sa substituiu a "conversa genial". Mas a
"desordem assustadora", sobretudo não preocupada com o todo nem com
a harmonia, é conservada e elevada a um novo valor. Em Proust o estilo não se
propõe descrever nem sugerir: como em Balzac, ele é explicativo, ele explica
através de imagens. É um nãoestilo porque se confunde com o
"interpretar" puro e sem sujeito, e porque multiplica os pontos de
vista sobre a frase, no interior da frase. Esta é como o rio que aparece
"totalmente deslocado, aqui espraiando-se em lago, ali feito filetes,
noutra parte rompido pela interposição de uma colina". O estilo é a
explicação dos signos em diferentes velocidades de desenvolvimento, segundo as
cadeias associativas que lhes são próprias, atingindo em cada um deles o ponto
de ruptura da essência como ponto de vista; daí o papel dos incidentes, das
subordinadas, das comparações que exprimem numa imagem o processo de explicação,
a imagem sendo boa quando explica bem, sempre explosiva, sem nunca se
sacrificar à pretensa beleza do
conjunto. Ou melhor, o estilo começa com dois objetos diferentes, distantes, mesmo quando são contíguos; pode ser que
esses dois objetos se pareçam objetivamente, sejam do mesmo gênero; pode ser
que eles sejam ligados subjetivamente por uma cadeia de associação. O estilo
terá de arrastar tudo isso, como um rio que carreia os materiais de seu leito.
Mas isso não é o essencial. O essencial é quando a frase atinge um ponto de
vista próprio a cada um dos dois objetos, mas precisamente um ponto de vista que
se deve dizer próprio ao objeto porque o objeto já foi deslocado por ele, como
se o ponto de vista se dividisse' em mil pontos de vista diversos
não-comunicantes, de modo que, a mesma operação se fazendo com o outro objeto,
os pontos de vista podem inserir-se uns nos outros, ressoar uns com os outros,
mais ou menos como o mar e a terra trocam seus pontos de vista nos quadros de
Elstir. Eis "o efeito" de estilo explicativo: sendo dados dois objetos,
ele produz objetos parciais (os produz
como objetos parciais
159
inseridos um no outro), produz
efeitos de ressonância, produz movimentos
forçados. Esta é a imagem, o produto do estilo. Produção em estado
puro, que é encontrada na arte – pintura, literatura ou música, sobretudd na
música. À medida que se descem os níveis da essência, dos
signos da arte aos signos da natureza, do amor ou mesmo do mundo, reintroduz-se
um mínimo de necessidade da descrição objetiva e da sugestão associativaj mas
isto acontece apenas pelo fato de que a essência tem então condições de
encarnação materiais que substituem as livres condições espirituais artísticas,
como dizia Joyce. 7 O estilo nunca é do homem, é sempre da essência
(não-estilo). Ele nunca é próprio de um ponto de vista, é feito da
coexistência, numa mesma frase, de uma série
infinita de pontos de vista peJos -quais o objeto se desloca, repercute ou se
amplifica.
Não é, portanto, o estilo que garante a unidade, pois ele
deve receber de outra parte sua própria unidade: nem tampouco é a essência,
visto que esta, como ponto de vista, está perpetuamente fragmentando e sendo
fragmentada. Qual é, então, essa modalidade tão especial de unidade irredutível
a qualquer "unificação", unidade tão especial que só surge
posteriormente, que assegura a troca dos pontos de vista e a comunicação das
essências, e que surge, segundo a lei da essência, como uma parte ao lado das
outras, pincelada final ou fragmento localizado?
7, Seria necessário comparar a concepção proustiana da imagem com outras
concepções pós-simbolistas: a epifania de Joyce, por exemplo, ou o imagismo e
o "vorticismo" de Ezra Pound. Os seguintes traços parecem comuns: a
imagem como elo autônomo entre dois objetos concretos considerados como
diferentes (a imagem, equação concreta); o estilo com multiplicidade de pontos
de vista sobre um mesmo objeto e como troca de pontos de vista sobre vários
objetos; a linguagem como integrando e compreendendo suas próprias variações
constitutivas de uma história universal e fazendo com que cada fragmento fale
por sua própria voz; a literatura como produção, como ação de máquinas
produtoras de efeitos; a explicação, não como intenção didática, mas como
técnica de enrolamento, a escritura como processo ideogramatical (várias vezes invocada por Proust),
160
Eis a resposta: num mundo reduzido a uma multiplicidade
de caos, somente a estrutura formal da obra de arte, na medida em que não
remete a outra coisa, pode servir de unidade – posterior (ou, como dizia
Umberto Eco,"a obra como um todo propõe novas convenções lingüísticas a que
ela se submete, e se torna a chave de seu próprio código"). Mas todo o
problema reside em saber em que se baseia essa estrutura formal e como ela dá
às partes e ao estilo uma unidade que, sem ela, não teriam. Ora, vimos
anteriormente, nas mais diversas direções, a importância de uma dimensão transversal na obra de Proust: a transversalidade.8
É ela que permite, num trem, não unificar os pontos de vista de uma paisagem,
mas fazê-los comunicar segundo sua dimensão própria, em sua dimensão própria,
enquanto eles permanecem não-comunicantes segundo as deles. É ela que constitui a unidade e a totalidade singulares do caminho de
Méséglise e do caminho de Guermantes, sem suprimir-lhes a diferença ou a
distância: "entre esses dois caminhos, transversais se estabeleciam."9
É ela que funda as profanações e é freqüentada pelo zangão, o inseto
transversal que estabelece a comunicação dos sexos, em si mesmos
compartimentados. É ela que permite a transmissão de um raio de luz
entre dois universos tão diferentes quanto o são os mundos astronômicos. A
transversalidade é, portanto, a nova convenção lingüística, a estrutura
formarda obra, que atravessa toda a frase, vai de uma frase a outra por todo o
livro, chegando até mesmo a unir o livro de Proust aos de quem ele tanto
gostava, como Nerval, Chateaubriand, Balzac... Pois se uma obra de arte entra
em comunicação com o público e, mais que isso, o suscita, se entra em
comunicação com as
8.Como resultado de pesquisas psicanalíticas, Felix
Guattari formulou um conceito muito profundo de "transversalidade"
para dar conta das comunicações e relações do inconsciente: Cf. "La
transversalité", Psychothérapie
institutionnelle, nº 1.
9.TR 237.
161
outras obras do mesmo artista e as suscita, se entra em
comunicação com outras obras de outros artistas suscitando-lhes o despertar,
é sempre nessa dimensão de transversalidade, em que a unidade e a totalidade se
organizam por si mesmas sem unificar nem totalizar objetos ou sujeitos.l0Dimensão
suplementar que se acrescenta àquelas que ocupam as personagens, os acontecimentos
e as partes da Recherche – dimensão
no tempo sem medida comum com as dimensões que eles ocupam no espaço. Ela mistura
os pontos de vista; faz com que os vasos fechados se comuniquem sem deixar de
ser fechados: Odette com Swann, a mãe com o narrador, Albertina com o narrador,
e depois, como última "pincelada", a velha Odette com o duque de
Guermantes – cada uma prisioneira, mas todas se comunicando transversalmente.ll
Assim é o tempo, a dimensão do narrador, que tem o poder de ser o todo dessas partes, sem totalizá-las, a unidade de todas essas
partes, sem unificá-las.
10.Cf. as grandes passagens sobre a
arte, na Recherche: a comunicação de uma obra com um
público (TR 141-143); a comunicação entre duas obras de um mesmo autor, como,
por exemplo, a sonata e o septeto (P 210- 221); a comunicação entre artistas
diferentes (CG 254, P 132-133).
11.TR 237.
162
Conclusão
Presença e Função da Loucura. A Aranha
Não tem muito sentido colocar o problema da arte e da loucura
na obra de Proust. Muito menos formular a questão sobre se Proust era louco.
Pretendemos tratar da presença da loucura em sua obra e da distribuição, do uso
ou da função dessa presença.
Pois a loucura aparece e funciona, sob diferentes
modalidades, em pelo menos dois personagens principais: Charlus e Albertina.
Desde as primeiras aparições de Charlus, seu olhar estranho, seus olhos são
descritos como os de um espião, de um ladrão, de um negociante, de um policial
ou de um louco.1 No final, Morel sente um justificável pavor com a idéia
de que Charlus seja movido contra ele por uma loucura criminosa.2
Durante todo o tempo as pessoas pressentem em Charlus a presença de uma loucura
que o torna muito mais assustador do que se ele fosse apenas imoral ou
perverso, culpado ou responsável. Os maus costumes "... assustam porque
sentimos que raiam pela loucura, muito mais do que por serem imorais. A Sra. de
Surgis tinha um sentimento moral nada desenvolvido, e teria admitido qualquer
procedimento dos filhos manchado e explicado pelo interesse, compreensível a
toda a gente! Mas proibiu-lhes
1.F 259.
2.TR 75-77.
163
que continuassem a freqüentar o Sr. de Charlus ao saber
que, por uma espécie de mecanismo de repetição, era este como que fatalmente
levado, em cada visita, a beliscar-lhes o queixo e a fazer que se beliscassem
da mesma maneira. Experimentou ela aquele sentimento inquieto do mistério
físico que nos leva a perguntar a nós mesmos se o vizinho com quem mantínhamos
boas relações não estará atacado de antropofagia, e às repetidas perguntas do
barão: "Quanto verei de novo os rapazes?" respondeu, ciente das
tempestades a que se expunha, que eles andavam muito ocupados com as aulas, os
preparativos de uma viagem etc. A irresponsabilidade agravava os erros e até
mesmo os crimes, digam o que disserem. Landru (admitido que ele tenha
realmente matado suas mulheres), se o fez por interesse, coisa que se pode
tolerar, pode ser perdoado, mas não se foi por um sadismo intolerável."3
Além da responsabilidade pelos erros, a loucura como inocência do crime.
Que Charlus seja louco é uma probabilidade desde o início
e uma quase certeza no final. No caso de Albertina, é uma eventualidade póstuma
que projeta retrospectivamente sobre seus gestos e suas palavras, sobre toda a
sua vida, uma nova luz inquietante em que Morel ainda está envolvido. "No
fundo, sentia que era uma espécie de loucura criminosa, e muitas vezes fiquei
pensando se não teria sido depois de uma coisa dessas, tendo provocado um
suicídio em certa família, que ela própria se matou."4 Que
mistura é essa de loucura-crime-irresponsabilidade-sexualidade, que passa sem
dúvida pelo tema do parricídio, tão caro a Proust, mas que entretanto não se
reduz ao esquema edipiano tão conhecido? Uma espécie de inocência no crime em
razão da loucura, tanto mais insuportável que leva ao suicídio?
3.Pl72-173.
4. F 143 (uma das versões de Andréa).
164
Vejamos, em primeiro lugar, o caso de Charlus. Este se
apresenta imediatamente como uma forte personalidade, uma individualidade
imperial. Justamente essa individualidade é um império, uma nebulosa que oculta
e contém várias coisas desconhecidas. Qual é o segredo de Charlus? A nebulosa
se forma em torno de dois pontos singulares brilhantes: os olhos e a voz. Os
olhos ora são trespassados por clarões dominadores, ora percorridos por
movimentos bisbilhoteiros, ora com atividade febril, ora com melancólica
indiferença. A voz mistura o conteúdo viril do
discurso com o maneirismo efeminado da expressão. Charlus aparece como um
enorme signo cintilante, como uma grande caixa ótica e vocal; quem o ouve ou
enfrenta seu olhar se acha diante de um segredo a decifrar, de um mistério a
desvendar, a interpretar, que se pressente desde o início como algo que pode
ir até a loucura. E a necessidade de interpretar Charlus se baseia no fato de
que o próprio Charlus interpreta, não pára de interpretar, como se isso fosse
sua loucura, como se esse fosse seu delírio, delírio de interpretação.
*
Da nebulosa-Charlus jorra uma série de discursos ritmados
pelo olhar vacilante. Três grandes discursos ao
narrador, que têm como motivação os signos que Charlus interpreta, como profeta
e adivinho, e que têm como destino os signos que Charlus propõe ao narrador,
reduzido ao papel de discípulo ou de aluno. O essencial dos discursos está, no
entanto, em outra parte: nas palavras voluntariamente organizadas, nas frases
soberanamente organizadas, em um logos que
calcula e transcende os signos de que se serve. Charlus é o mestre do logos. E desse ponto de vista resulta uma estrutura comum aos
três grandes discursos, apesar de suas diferenças de ritmo e de intensidade. Há
um primeiro momento de denegação em que Charlus diz ao narrador: você não me
interessa, não creia que possa me interessar, mas... Um
165
segundo momento de distanciamento: entre mim e você a distância
é infinita, mas justamente podemos nos completar, eu lhe ofereço um contrato...
Um terceiro momento, inesperado, como que um descarrilhamento repentino do logos, é atravessado por algo que não mais se deixa organizar. É suscitado por uma potência de outra espécie – cólera, injúria, provocação,
profanação, fantasma sádico, gesto de demência, irrupção da loucura. Isso
acontece desde o primeiro discurso, todo ele feito de nobre ternura, mas que
tem seu desfecho absurdo, no dia seguinte na praia, na observação canalha e
profética do Sr. de Charlus: – "Afinal, você está pouco ligando para a
vovó, hem, seu malandrinho?" O segundo discurso reveza com uma fantasia
de Charlus, imaginando uma cena ridícula em que Bloch surraria o próprio pai e
esbofetearia a crápula de sua mãe: "Ao dizer essas coisas horríveis e
quase loucas, o Sr. de Charlus me apertava o braço até fazê-la doer." O
terceiro discurso, finalmente, se precipitava na violenta prova do chapéu
pisoteado e destruído. É verdade que desta vez não foi Charlus mas o próprio
narrador quem pisoteou o chapéu; todavia, veremos como o narrador evidencia uma
loucura que vale por todas as outras, ora se comunicando com a de Charlus, ora
com a de Albertina, podendo anteceder-lhes ou aumentar-lhes os efeitos.5
Se Charlus é o senhor aparente do logos, seus discursos não são menos agitados por signos
involuntários que resistem à organização
soberana da linguagem, que não se deixam dominar nas palavras e nas frases, mas
fazem desaparecer o logos e nos levam
para um outro campo. "Por mais belas que fossem as palavras com que
coloria seus ódios, sentia-se que, mesmo que ele tivesse, ora o orgulho
ultrajado, ora um amor frustrado, ou um rancor, um sadismo, uma impertinência,
uma idéia fixa, esse
5. Os três discursos de Charlus: RF 270-272; CG 222-230; CG 431-441.
166
homem seria capaz de assassinar... " Signos de
violência e loucura que constituem todo um pathos contra e
sob os signos voluntários organizados pela "lógica e pela beleza da
linguagem". É esse pathos que agora
vai se revelar nas aparições em que Charlus fala cada vez menos do alto de sua
soberana organização e se trai cada vez mais no curso de uma longa decomposição
social e física. Não é mais o mundo dos discursos e de suas comunicações
verticais exprimindo uma hierarquia de regras e posições, mas o mundo dos
encontros anárquicos, dos acasos violentos, com suas aberrantes comunicações
transversais. É o encontro Charlus-Jupien, em que se desvenda o tão
esperado segredo de Charlus: a homossexualidade. Mas será que é esse o segredo?
Pois o que é descoberto é menos a homossexualidade, de há muito previsível e
adivinhada, do que um regime geral que faz dessa homossexualidade um caso
particular de uma loucura universal mais profunda, em que se entrelaçam de
todos os modos a inocência e o crime. O que é descoberto é o mundo onde não
mais se fala, um silencioso universo vegetal, a loucura das Flores, cujo tema
fragmentado vem ritmar o encontro com Jupien.
O logos é um
imenso animal cujas partes se reúnem em um todo e se unificam soE um princípio
ou idéia diretriz; mas o pathos é um
vegetal composto de partes compartimentadas que só se comunicãin indiretamente
numa parte infinitamente à parte de tal
modo que nenhuma totalização, nenhuma unificação, pode reunir esse mundo cujos
últimos pedaços não têm falta de mais nada. É o
universo esquizóide das caixas fechadas, das partes compartimentadas, em que a
própria contigüidade é uma distância: o mundo do sexo. É isso que
nos ensina Charlus para além de seus discursos. Em cada indivíduo que traz em
si os dois sexos "separados por um compartimento" devemos fazer
intervir um nebuloso conjunto de oito elementos, em que a parte masculina ou a
parte feminina de um homem ou de uma
167
mulher pode relacionar-se com a parte feminina ou a parte
masculina de uma outra mulher ou de um outro homem (dez combinações para os oito
elementos).6 Relações aberrantes entre vasos fechados; zangão que faz
a comunicação entre as flores e que perde seu valor animal próprio para ser,
com relação a elas, apenas um pedaço composto à parte, elemento disparatado num aparelho de reprodução vegetal.
Talvez exista uma composição que sempre se encontra na Recherche: parte-se de uma primeira nebulosa que forma um conjunto
aparentemente circunscrito, unificável e totalizável. Uma ou várias séries se
desligam desse primeiro conjunto, desembocando, por sua vez, numa nova
nebulosa, dessa vez descentralizada ou excêntrica, feita de caixas fechadas
giratórias, pedaços móveis disparatados, que seguem as linhas de fuga
transversais. No caso de Charlus, a primeira nebulosa em que brilham seus
olhos, sua voz; depois, a série dos discursos; finalmente, o último mundo
inquietante dos signos e das caixas, dos signos encaixados e desenéaixados que
compõem Charlus e que se deixam entreabrir ou interpretar pela linha de fuga de
um astro declinante e de seus satélites ("O Sr. de Charlus que vinha
navegando em direção a nós com seu corpo enorme, arrastando sem querer, através
de si, um desses apaches ou mendigos que agora à sua
passagem surgia infalivelmente até das esquinas aparentemente mais desertas...").7
A mesma composição rege a história de Albertina: a nebulosa das jovens de
onde Albertina se destaca lentamente; a grande série dos dois ciúmes sucessivos
com relação a ela; finalmente, a coexistência de todas as
6.Uma combinação elementar será
definida pelo encontro de uma parte masculina ou feminina
de um indivíduo com a parte masculina ou feminina
de um outro. Teremos, pois: p.m. de um homem e p.f. de uma mulher, mas também,
p.m. de uma mulher e p.f. de um homem, p.m. de um homem e p.f. de outro homem,
p.m. de um homem e p.m. de outro homem etc.
7.P 172.
168
caixas em que Albertina se aprisiona em suas mentiras,
mas também é aprisionada pelo narrador, nova nebulosa que, a seu modo, recompõe
a primeira, visto que o final do amor é como que um retorno à indivisão inicial
das jovens. E a linha de fuga de Albertina é comparável à de Charlus. Mais
ainda, na exemplar passagem do beijo em Albertina, o narrador, à espreita,
parte do rosto de Albertina, conjunto móvel onde brilha uma pinta como ponto
singular; depois, à medida que os lábios do narrador se aproximam da face, o
rosto desejado passa por uma série de planos sucessivos a que correspondem
várias Albertinas, a pinta passando de um para outro; por último, a mistura
final em que o rosto de Albertina se desencaixa e se desfaz e em que o narrador,
ao perder o uso dos lábios, dos olhos, do nariz, reconhece "nesses signos
detestáveis" que está beijando o ser amado.
Essa grande lei de composição e decomposição vale tanto
para Albertina quanto para Charlus por ser a lei dos amores e da sexualidade.
Os amores intersexuais, especialmente o do narrador por Albertina, não são
absolutamente uma aparência, sob a qual Proust esconderia sua própria
homossexualidade. Muito pelo contrário, esses amores formam o conjunto inicial,
de onde sairão, em segundo lugar, as duas séries homossexuais representadas
por Albertina e Charlus ("os dois sexos morrerão cada um para seu
lado"). Mas estas séries, por sua vez, desembocam em um universo transexual
onde os sexos compartimentados, encaixados, se reagrupam em cada um para
comunicar com os de outro segundo vias transversais aberrantes. Se é verdade
que uma espécie de normalidade de superfície caracteriza o primeiro nível ou o
primeiro conjunto, as séries que dele se desligam no segundo nível são
marcadas por todos os sofrimentos, angústias e culpabilidades daquilo a que
chamamos neurose: maldição de Édipo e profecia de Sansão. Mas o terceiro nível
restabelece uma inocência vegetal na decomposição, conferindo à loucura sua
função absolutória num mundo em que as caixas explodem ou tornam a se fechar,
crimes e seqüestros que constituem "a
169
comédia humana" à maneira de Proust, através da qual
se desenvolve uma nova e última potência que transforma todas as outras, uma
potência muito louca, a da própria Recherche, na medida
em que ela reúne o policial e o louco, o espião e o comerciante, o intérprete
e o reivindicador.
Não obstante a história de Albertina e a de Charlus obedecerem
à mesma lei geral, a loucura tem, nos dois casos, uma forma e uma função muito
diferentes e não se distribui da mesma maneira. Vemos entre a loucura-Charlus e
a loucura-Albertina três grandes diferenças. A primeira é que Charlus dispõe de
uma individuação superior, bem como de uma individualidade imperial. A
perturbação de Charlus diz respeito à comunicação: as questões "que
esconde Charlus?", "quais são as caixas secretas que ele oculta em
sua individualidade?" remetem às comunicações que estão por serem
descobertas, à aberração dessas comunicações, de sorte que a loucura-Charlus só
pode se manifestar, interpretar e interpretar-se a si mesma graças aos violentos
encontros casuais, com rela.ção aos novoS ambientes em que Charlus imergiu e
que agirão como reveladores, indutores, comunicadores (encontros com o
narrador, encontro com Jupien, encontro com os Verdurin, encontro no bordel). O
caso de Albertina é diferente porque sua perturbação diz respeito à própria
individuação: qual das jovens do grupo ela é? Como extraí-la e selecioná-la do
grupo indiviso das jovens? Dir-se-ia, neste caso, que suas comunicações são a
princípio dadas, mas que o oculto é exatamente o mistério de sua individuação;
e que esse mistério só pode ser desvendado na medida em que as comunicações
são interrompidas, imobilizadas à força, Albertina aprisionada, enclausurada,
seqüestrada. Dessa primeira diferença decorre uma segunda: Charlus é o mestre
do discurso; nele tudo acontece através da palavra, mas, em compensação, nada
acontece na palavra. Seus investimentos são antes de tudo verbais, de tal modo
que as coisas ou os objetos se apresentam como signos involuntários voltados
contra o discurso, ora
170
tornando-o disparatado, ora formando uma contralinguagem
que se desenvolve no silêncio e no mutismo dos encontros. A relação de
Albertina com a linguagem é, ao contrário, estabelecida através de mentiras
humildes e nunca de desvarios aristocráticos. É que nela
o investimento permanece um investimento de coisa ou de objeto que vai se
exprimir na própria linguagem, à condição de fragmentar seus signos
voluntários e de submetê-los às leis da mentira que neles inserem o
involuntário: tudo pode, então, acontecer na linguagem (inclusive o silêncio),
exatamente porque nada acontece pela linguagem.
Finalmente, há uma terceira grande diferença. Em fins do
século XIX e início do século XX, a psiquiatria estabelecia uma distinção muito
interessante entre duas espécies de delírios dos signos: os delírios de
interpretação do tipo paranóia e os delírios de reivindicação do tipo
erotomania ou ciúme. Os primeiros apresentam um começo insidioso e um
desenvolvimento progressivo que dependem essencialmente de forças endógenas,
estendendo-se numa rede geral que mobiliza o conjunto dos investimentos
verbais. Os segundos têm um início muito mais brusco e estão ligados a ocasiões
exteriores reais ou imaginadas; dependem de uma espécie de
"postulado" concernente a determinado objeto e entram em
constelações limitadas; são menos delírio de idéias, que passam pelo sistema em
extensão dos investimentos verbais, do que delírio de ato, animado por um
investimento intensivo de objeto (a erotomania, por exemplo, se apresenta muito
mais como uma delirante perseguição ao ser amado do que como uma ilusão
delirante de ser amado). Esses segundos delírios
formam uma sucessão de processos
lineares finitos, ao passo que os primeiros formavam conjuntos circulares irradian·· teso Não
queremos dizer, certamente, que Proust aplica às suas personagens uma distinção
psiquiátrica que estava sendo elaborada em seu tempo. Mas Charlus e Albertina,
respectivamente, percorrem caminhos na Recherche que
correspondem de maneira muito precisa a essa distinção. Foi o que tentamos demonstrar
no que se refere a Charlus, grande paranóico cujas
171
primeiras aparições são insidiosas e cujo desenvolvimento
e precipitação do delírio revelam terríveis forças endógenas, e que recobre,
como toda a sua demência verbal interpretativa, os mais misteriosos signos de
uma não-linguagem que o trabalha: em suma, a imensa rede Charlus. Do outro
lado está Albertina, ela própria objeto ou perseguidora de objetos; lançando
postulados que lhe são familiares, ou colocada pelo narrador num beco sem saída
de que não pode escapar (Albertina a priori e necessariamente culpada, amar sem ser amado, ser severo, cruel e pérfido com quem se ama). Erotômana
e ciumenta, embora o narrador também, e sobretudo ele, assim se mostre a seu
respeito. E a série dos dois ciúmes com relação a Albertina, inseparáveis em
cada caso da ocasião exterior, constituindo processos sucessivos. E os signos
da linguagem e da não-linguagem se inserem uns nos outros, formando as
constelações limitadas da mentira. Todo um delírio de ação e de reivindicação
que difere do delírio de idéias e de interpretação de Charlus.
Mas por que confundir num mesmo caso Albertina e as atitudes
do narrador com relação a Albertina? Na verdade, tudo nos indica que o ciúme do
narrador recai sobre uma Albertina profundamente ciumenta no que diz respeito a
seus próprios "objetos". E a erotomania do narrador com relação a
Albertina (a delirante perseguição do amante sem ilusão de ser amado) reveza
com a erotomania da própria Albertina, durante muito tempo apenas suspeitada,
mas depois confirmada como o segredo que suscitava o ciúme do narrador. E a
reivindicação do narrador de aprisionar, de enclausurar Albertina, disfarça as
reivindicações de Albertina, adivinhadas tarde demais. Na verdade, o caso de
Charlus é análogo: não há possibilidade de distinguir o trabalho de delírio de
interpretação de Charlus do longo trabalho de interpretação do delírio que o
narrador elabora com relação a Charlus. Perguntamos precisamente de onde vem a
necessidade dessas interpretações parciais e qual é a sua função na Recherche.
172
Ciumento com relação a Albertina, intérprete de Charlus,
o que é afinal o narrador?Absolutamente não cremos na necessidade de
distinguir o narrador e o herói como dois sujeitos (sujeito de enunciação e
sujeito de enunciado), porque seria remeter a Recherche a um sistema de subjetividades (sujeito desdobrado
fendido) que lhe é totalmente estranho.8 Há muito menos um narrador
do que uma máquina da Recherche e
muito menos um herói do que agenciamentos em que a máquina funciona como esta
ou aquela configuração, de acordo com esta ou aquela articulação, para este ou
aquele uso, para determinada produção. É apenas
nesse sentido que podemos indagar o que é o narrador-herói, que não funciona
como sujeito. Deve impressionar ao leitor o fato de Proust insistentemente
apresentar o narrador como incapaz de ver, de perceber, de lembrar-se, de
compreender... É a grande oposição ao
método Goncourt ou Sainte-Beuve. Esse é um tema constante da Recherche que culmina no campo, na casa
dos Verdurin ("vejo que gosta das correntes de ar..."). 9
Na verdade o narrador não possui órgãos, ou pelo menos aqueles que lhe seriam
necessários ou que gostaria de possuir, conforme ele mesmo diz na cena do
primeiro beijo em Albertina, quando lamenta a falta de órgão adequado para
exercer uma tal atividade que preenche nossos lábios, obstrui nosso nariz e
fecha nossos olhos. O narrador é, na realidade, um enorme corpo sem órgãos.
Mas o que é um corpo sem órgãos? Também a aranha nada vê,
nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua
teia ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de
grande intensidade e que a faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz,
sem
8.Sobre a distinção herói-narrador
na Recherche, d. Genette, Figures, m, Ed. du
Seuil, ps. 259 e segs. – Genette introduz, entretanto, numerosas correções nessa
distinção.
9.SG 272.
173
boca, a aranha responde unicamente aos signos e é
atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda e a faz pular
sobre a presa. A Recherche não
foi construída como uma catedral nem como um vestido, mas como uma teia. O
narrador-aranha, cuja teia é a Recherche que
se faz, que se tece com cada fio movimentado por este ou aquele signo: a teia e
a aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. O narrador pode ser dotado de
uma extrema sensibilidade, de uma prodigiosa memória: ele não possui órgãos no
sentido em que é privado de todo uso voluntário e organizado de suas
faculdades. Em contrapartida, uma faculdade se exerce nele quando é coagida e
forçada a fazê-lo; e o órgão correspondente vem situar-se nele, mas como um esboço intensivo despertado pelas ondas
que lhe provocam o uso involuntário. Sensibilidade involuntária, memória
involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do
corpo sem órgãos a signos de diversas naturezas. Esse corpo-teia-aranha se
agita para entreabrir ou fechar cada uma das pequenas caixas que vêm deparar-se
com um fio viscoso da Recherche. Estranha
plasticidade do narrador. Esse corpo-aranha do narrador, o espião, o policial,
o ciumento, o intérprete e o reivindicador – o louco – o esquizofrênico universal
vai estender um fio até Charlus, o paranóico, um outro até Albertina, a
erotômana, para fazê-los marionetes de seu próprio delírio, potências
intensivas de seu corpo sem órgãos, perfis de sua própria loucura.