quarta-feira, 14 de dezembro de 2016
L. RUAS - APARIÇÃO DO CLOWN
L. RUAS
APARIÇÃO DO CLOWN
descoberta
foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque − tempo não maduro –
que encontrei o sempiterno clown.
queria ver-lhe a face. e sua face
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.
queria ver seu corpo – um chafariz
era seu corpo de barro modelado
aljofrando de estrelas e de pérolas
o céu e o chão banhados em azul.
apenas vi o velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava.
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.
e vendo ser inútil o meu esforço
de descobrir integralmente o clown
eu suplicante lhe falei assim
discurso
faz mistério palhaço
e ri teu riso esbandalhado.
gargalha palhaço e faz sofrer
os que contigo riem e sofrem
e vivem.
canta a tua ideologia tirânica
ó clown sentenciado
para fazer chorar os que riem.
ninguém entende tua vida mascarado
que se esconde atrás da cortina
das pinturas e das vestes.
onde está tua face palhaço onde?
além do além do horizonte
nas nuvens ou atrás da máscara?
onde está teu riso palhaço onde?
no pranto que improvisas
ou na dor que não gargalhas?
palhaço.
interrogação verde no cenário de carmim.
palhaço. olha o palhaço.
havia inocência e terror pureza e crime
em teus olhos abertos para o mundo.
luzes.
as luzes da ribalta não revelam
o que não dizem também
nem as cores nem os saltos nem as cambalhotas
que fazes no trapézio longínquo.
palhaço. quem já viu tua face
tua única face?
aquela que não é partida
aquela que não é pintada?
quem já beijou tua boca verdadeira?
as bailarinas beijam a boca mentirosa
a que canta a que ri a que chora
mas ninguém beijará o teu silêncio.
e tuas mãos palhaço e tuas mãos rosa
tuas mãos disfarce que nos enganam e alegram.
a bailarina lhe disse chorando – eu te amo.
ele riu. palmas. a cortina cerrou-se.
e se vestiu de nobre e deu esmola
para encobrir com seda e ouro o adultério.
palhaço. ri teu riso e oferece-nos teu almoço.
dá-nos o ridículo banquete onde comemos
rosas e suspiros e sorrisos.
e deixa-nos sonhar depois e depois chorar
tudo aquilo que não nos revelaste
a flor ainda em botão
não desabrochada não vituperada.
ninguém te vaia palhaço
todos riem somente da face mentirosa
da escandalosa face que nos ofereces
dizendo que é vinho.
todos beberiam porém teu sangue
seiva das árvores água dos rios lama das sarjetas
e comeriam tua carne que não ofereces.
carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho.
a estrela pousou – sombra de sonho – em seu ombro
– venho do céu. vi o mundo nascer. sou como tu
eterna.
sou a mais antiga das estrelas de todas as estrelas.
dou-te todo o meu brilho se disseres
porque ris tanto se és tão triste assim.
– ora. vamos dançar.
e saiu para o palco dançando e cantando.
ninguém viu a lágrima que lhe molhou os olhos
ocultos.
palhaço.
flor-de-lis onde bimbalham chocalhos.
inocência e maldade água e sangue
azul e preto
lama e sapo.
ri palhaço que ansiamos por te ver no picadeiro
árvore estranha esquisita flor
não sabemos de que país ou de que planeta.
de onde vens palhaço? quê nos queres dizer?
fala que te espiamos cientista da vida.
tu gargalhas no palco o que choramos na vida.
embora te odiemos te amamos
pois te pareces com o menino que somos
e com o inferno que não deixamos de ser.
poeta de risos e de cabriolas
diametralmente opostas
teus trejeitos são a mais perfeita rima
que já encontrei para os poemas
que não escreverei.
somos crianças palhaço diante de ti
sou criança que não aprendi ainda
o que é o belo e o feio
o pranto e a galhofa.
o que é ser e o que é não ser.
pois tu és homem palhaço tu és homem.
clown desengraçado
bicho fantasiado de deus
em quem não assentam
nem
rabo de macaco
nem
auréola de arcanjo.
tu és verdadeiramente homem
pois tu somente revelas o segredo
honra e vergonha
que todos ocultamos.
palhaços dos anjos e dos homens
mito de farsa e de verdade
palco e vida
gargalhada e pranto
seres partidos
dois olhos
duas pernas
duas mãos
paralíticos
cegos e loucos.
apagaram-se as luzes?
ou as rosas morreram?
resposta
apenas vemos sombras
sem conhecermos a luz.
percebemos a chaga
não tocamos a alma.
brasa em negro fogo consumida
semente bipartida.
julgas possuir toda ciência
se sabes rir apenas
quando é preciso rir
é mister no entanto descobrir
que também no muito riso há pranto.
a máscara sustem dois olhos
um é cego porém. de fato
só um olho vê. por isso
conheces silhuetas
e não a dimensão total
aquela dimensão que
por ser transdimensional
entre todas
é mais constante e mais real.
a caverna de platão.
que sabes das rosas renascidas?
Das estrelas em luz desfalecidas?
da liberdade e do amor?
ser livre em essência é ser cativo.
aviso
quando vires o pássaro ferido
vagando antes que surja a madrugada
não o tanjas nem o chames
deixa-o voar. não te apiades
deixa o pássaro voar.
ele comeu a estrela
e conserva no desenho do seu vôo
as dimensões incontidas
dos humildes gestos perdidos para sempre.
não chames o pássaro ferido.
não te ouvirá pois não sabes os seus nomes.
e ninguém há de estancar o vôo
que jorra eternamente
de suas vísceras fecundadas
pela essência intocada da estrela
sua prisioneira e amor.
uma estrela de fogo e de basalto.
de basalto e fogo, não esqueças.
e o pássaro mais ferido pela luz
do que pelas cinco pontas da estrela
sempre voará.
deixa o pássaro voar. quando ouvires
o tatalar – apenas ritmo – cansado
mas não vencido
de suas penas molhadas de arrebol
deixa o pássaro voar. não tentes
prendê-lo. a ilusão é mais mortífera
do que a desesperança.
o pássaro é essencialmente livre
muito embora suas penas estejam prenhes
de luz e sangue misturados.
se vires por acaso o pássaro voando
não o chames para o teu silêncio
pois o pássaro é muito bom – é bom demais –
para que tu sombra e demência
o possas possuir.
nem te deixes seduzir pelo seu canto
que o canto das sereias de ulisses
diante do cantar do pássaro ferido
é apenas ritmo – apenas esboçado.
mas não odeies o pássaro
ama-o de longe. pois é forte
apenas um amor de morte.
puccini ouviu o pássaro cantar.
e eu também eu palhaço o ouvi.
ouvi sua lenda e seu martírio
a tortura da estrela e saí
no ontem no hoje e no amanhã
a procurá-lo.
fruto do bem e do mal.
romance
a estrela de fogo e de basalto tem cinco
chifres e se parece com a rosa.
de sangue.
aberta ferida gotejante
no peito espalmado e branco deste pássaro em vôo.
de ouro e de basalto.
de basalto da etiópia e de neve da antártida.
quando o pássaro raptou a estrela
ela estava sendo devorada por um peixe.
que adianta mais? ser comida por um peixe
ou amada por um pássaro. ser ou não ser comido.
esta é a questão. hamlet tinha razão.
para além para muito além de todo sonho
o pássaro levou a estrela devorada
e mais alto do que as águias o pássaro voou.
mas quando o pássaro quis partir
para a aventura sem rota
por mares nunca antes navegados
por espaços nunca antes habitados
para plantar no barro e na luz
um reino instável e efêmero
onde imperaram
o gênio, a arte, a poesia e a flor
foi então que nasceu o mais profundo humor –
– o pássaro devorou a estrela
e a estrela o pássaro gerou. o palhaço dos homens.
martírio
a serpente a maçã a figueira e o lírio
todos cantaram pela voz do pássaro
nascido prometeu.
não prometeu acorrentado um dia
no deserto e na montanha.
prometeu não morre é apenas devorado.
continuamente devorado prometeu continuamente vivo.
comem-lhe o sexo e a alma
a carne e o sangue e prometeu não morre
prometeu acorrentado um dia
do amor na eterna penedia.
o amor nos prende e nos tortura. mas não mata.
o pássaro ferido tem sete bicos
sete línguas de fogo sete olhos sete chagas.
tem olhos e não vê. ouvidos e não ouve. está ferido.
suas asas sangrando sempre banham o mundo inteiro.
às vezes é de mansinho que eles chegam
os sete amores filhos do amor.
ágape feriu eros letalmente. terminou a comédia.
júpiter destronado. mas beethoven está cantando.
ou é o pássaro ferido?
os trigais estão maduros para a ceifa.
que importa a primavera?
mefistófeles zombou do doutor fausto
e o venceu. mistério e luz.
ouve o pranto da estrela solitária
que se desfaz em canto.
canção
se eu chorasse
estas sombras
e estes símbolos
morreriam
os diamantes quebrariam
as arestas
e os vulcões se extinguiriam
se eu chorasse
dormiria logo
e cedo sonharia
o lago dos cisnes
se eu chorasse
o cavalo branco
que cavalga morto
comeria as rosas
e a rosa de barro
murcharia no jarro
em ângulos obtusos
não digais ao mar
a dor das pedras frias
não digais à mariposa
a tortura da luz
o meu amado é
um pássaro ferido
não choro sua dor
nem curo seu amor
a maçã é muito branca
o peixe é muito branco
o lírio é muito branco
não é branco o amor
eu cantei uma canção
baixinho ao meu amado
– “não chores pequenino
não chores que eu te amo” –
eu andei por longas ruas
e por cidades perdidas
em busca do meu amor
procurava uma rosa
so encontrei dissabor
perguntei aos que passavam
onde andava meu amor
mas todos olhavam atentos
para as mãos de um senhor
que fazia jogos engraçados
e ninguém me respondeu
onde estava meu amor
eu andei por teus caminhos
em busca do meu amor
os palhaços tristemente
despetalavam uma flor.
viagem
foi então que cheguei ao cais
e as barcaças estavam todas
amarradas ancoradas.
caronte me disse amargamente
– “não voltarão mais nem dante nem virgílio.
nem será dado a orfeu
ir salvar eurídice
a passagem está vedada
e as barcaças ancoradas
não mais navegarão por mares ignotos” –
quando olhei para o mar vi na praia
os escombros da batalha.
pontas de lança arcos flechas
corpos destroçados almas insepultas.
uma criança brincava com as conchas
e com a caveira de um herói
– se não me engano era de aquiles –
seus olhos eram de fogo
e suas mãos de lírio.
a criança então me disse – “depois
que a serpente me feriu no calcanhar
nunca mais fui ao deserto nem
ao mar.
as águas não me sustentam mais
e somente caminho na praia
pois temo naufragar.
espero o pássaro ferido
e se quiseres esperar comigo
senta-te na praia e não vás ao mar.
o mar é muito vasto e fera enraivecida.
já engoliu noivos e pescadores
e seduziu o pássaro ferido.
não te lembras do mar de suas pompas
e de seus sedutores artifícios?
de seus cantos falazes e dos apelos sedutores
com os quais arrasta para o abismo
do seu próprio nada os navegantes
inexperientes e desprevenidos?
não procures no mar no buliço das vagas
a sombra do teu amor.
eu mandei prender as barcas
e aguardo o pássaro ferido.
canta uma canção ao teu amor.”
como cantarei cantos de amor
nesta solidão?
os cantos nascem apenas da união
do brilho da estrela com o ritmo do vôo.
como hei de cantar canções de amor
se ainda estou peregrinando
por essas praias de vidro?
a criança então cantou assim –
apóstrofe
em vão hás de voar pássaro triste
buscando o fruto verde não sepulto
nas praias naufragadas onde existe
a concha nacarada – peixe inculto
além de tuas patas espalmadas
o mar é brisa calma e mata bruta
as asas que se abrem limitadas
mergulham sem tocar na doce fruta
em curvas linhas retas canto e arte
te vejo entre o céu e o barro forte
comendo espaço e tempo sul e norte
buscando em vão o fruto que te farte.
quem sabe? pode ser que noutros mares
sacies teu desejo. é bom tentares.
o dragão e a flor
vi que a criança fabricava
uma espada que cortava suas mãos.
perguntei-lhe – por que fazes esta espada?
respondeu-me – é para matar o cordeiro
que será servido no banquete
do encontro da estrela com o pássaro.
o mar tranqüilo e frio como o desamor
a praia de vidro. caronte preso.
cupido sem flechas na aljava
a antiga simetria de vênus lamentava
que a beleza da estrela avantajava.
então compreendi porque a esperar
estava a criança tão sozinha
o regresso do pássaro ferido.
neste momento entre fumo e fogo de inferno
surgiu do mar profundo um dragão.
o mar como gigante enfurecido
uivava em contorções
espadanando seus peixes e todas suas pérolas
que vinham espatifar-se loucamente
na polida face da praia de cristal.
ó desencanto das palavras que não chegam.
uivava o mar qual leão acorrentado
sob o peso imponderável do amor
do dragão que perseguia a flor.
a flor tinha redolências de mulher
e era pura como um anjo.
oh. as flores que aninhei em minhas mãos
trêmulas como úteros maternos.
oh. as flores perdidas para sempre
nos longínquos perfumes ressequidos.
“– não mais verás o encanto fenecido
do dia e da noite
não mais terás ó lírio amortecido
as brisas leves do teu vale.
não mais.
não mais que vênus está extinta
e a estrela rediviva”.
assim cantou o dragão enraivecido
então a criança correu para meus braços
gritando – “não deixes o dragão me seduzir”.
“– que posso fazer criança que não sou
poderei salvar por acaso o eterno jogo
se habitas a praia sem dimensões
sem sol e sem luar?
por que me buscas se possues espada
e mãos de sonho e olhos de rubi?
sou apenas sopro vento vaidade nada
pó perfume cor sonoridade luz.
que mistério é este que sugeres
tentando penetrar nestas entranhas
fecundadas pelo canto do pássaro ferido?
então o mar partiu-se lado a lado
como um véu por invisíveis mãos rasgado
e engoliu o dragão.
prelúdio
quatro cavalos passaram galopando
em asas de águias sustentados
relinchando como se fossem trombetas sua voz
ou ribombar de trovões enlouquecidos.
olhei. estava só na praia. o mar quieto.
uma brisa dançava sobre as ondas
o prelúdio que chopin tocava soluçando.
depois vieram ninfas volitando
ao som de músicas ligeiras.
sumiram-se depois nas gotas do orvalho.
oh. a crosta espessa das palavras
que mal revelam o fulcro luminoso
da consistência do mistério vislumbrado.
quem está cantando perguntei são as rosas?
rosas?
quem está cantando é o coro dos palhaços.
coral
vigiai vigiai.
preparai a veste
acendei o círio
acendei a ribalta
ressuscitai as rosas
e aguardai no amor
que o pássaro virá.
nênia
mas se o pássaro não vier como será?
os trigais deixarão cair – inútil esmola –
os grãos de ouro no chão incandescido.
as flores murcharão – flores de pedra –
pontiagudas como espinhos secos.
as fontes coalharão suas águas
e teu sorriso morrerá qual fruto podre.
se o pássaro não vier
será a noite sem estrelas
e o sol não bordará mais de ouro e púrpura
as régias fímbrias do manto da aurora.
tuas mãos inutilmente chamarão os pirilampos
para os bailes feéricos no seio da floresta
se o pássaro não vier
a musica silenciará
na última corda partida
de paganini.
o basilisco e as víboras dominarão os caminhos
e ficará deserto e frio o último dos ninhos.
não mais
não mais terás o meu carinho
pois teu rosto de mármore será
estulto como estátua de museu.
se o pássaro não vier
inutilmente serás.
serás o quê? ser o quê se o pássaro não vem?
ser o quê se não há mais flor?
ser o quê se não há mais ninho?
ressurreição do baile
mas
escuta
que vozes serão essas?
de onde vêm? para onde vão?
olha.
as flores ressuscitam.
olha.
as estrelas se acendem.
olha o mar. olha a estrela de basalto e ouro
olha.
não vês ó triste cego o deserto reflorido
e as amendoeiras do japão e as borboletas?
olha o exército pronto para a guerra.
olha os coros dos serafins e dos arcanjos.
olha os noivos enfeitados para as bodas.
olha a brisa dançando na folhagem.
é na brisa que o pássaro virá.
virá com as línguas de fogo
e os cornos septiformes. olha as luzes.
vê as cores. ouve os sons.
tudo recomeça a vibrar e a dançar.
é o tempo.
olha a estrela de ouro e de basalto.
o pássaro ferido está chegando.
retorno
ele voltou dançando o mesmo balé antigo.
“– quem és tu esquisito ser luxuriante?
e estes guizos pendentes de teus dedos
e estas chamas febris em teu olhar de ave?
quem és tu? perguntei – “e o fantasma
não me olhou sequer. subia e descia
em ritmo veloz e às vezes calmamente.
“– quem és tu? –“ perguntei impaciente
que o medo o pavor o riso a loucura
já de mim se apossavam. e o demente
anjo respondeu-me indiferentemente
“– de onde venho não sei nem mesmo sei
se algum dia nasci ou se apenas sempre nasço.
quem sou? rosa anjo fagulha do inferno
semideus apenas gesto luz ou noite?
por que perguntas isso? por que queres saber
quem sou se eu mesmo não o sei? repara.
quando aqui chegaste a noite era nova
e já a estrela da manhã desfolha
uma a uma humildemente suas pétalas de luz.
não te direi quem sou. dorme e sonha.
acorda viaja estuda raciocina dorme.
não és homem por acaso não possues
uma centelha divina ardendo viva
dentro do teu mais misterioso mar?
não direi meu nome a homem algum porém
podes muito bem descobri-lo. sabes que a lua
é um satélite da terra. que o sol é uma estrela.
que tudo é relativo e três as dimensões do espaço.
que os corpos se compõem de átomos e moléculas.
conheces a inflexível lei da gravidade
que arrasta para o chão o barro do teu corpo.
descobriste no âmago das coisas íons e elétrons
o positivo e o negativo
forças que se atraem e se repelem.
conheces as rotas dos planetas e o caminho
das marítimas correntes dos ventos e das aves
e não sabes ainda balbuciar meu nome verdadeiro.
e eu não direi. espia bem esta paisagem.
lê de novo o poema. desce. vai ao fundo.
sobe depois. evola-te. transforma-te
depois em fumaça e em luz. não te afadigues.
o ritmo do meu nome é longo. majestoso.
quando souberes quantas rosas floriram
na paisagem perdida e de novo descobrires
o sonho inquieto e a aurora pranteada
alegra-te então. pois caminhas certo
rumo ao mistério inexprimível do meu nome.
agora olha bem para dentro de meus olhos.
que são eles? abismos caricias ou perdição?
fogo água tranqüilidade ou medo?
e meus pés? vês? são pés de fauno grego
ou de arcanjo bizantino? não sabes?
não sabes decifrar o indevassável enigma
dos meus pés sempre velados?
não sabes entender a linguagem dos meus olhos?
sou demente sim. sou ilógico. hiperlógico. paralógico.
sou problema e sombra. queres saber meu nome?
queres me amar talvez ou odiar talvez.
sou vida esperdiçada ou morte indesejável.
e meu corpo se corpo chamar se pode
a esta mistura de feno e melodia
é tão instável como a dança histérica das chamas.
sou ar fogo umidade terra e água.
os quatro elementos? ah. os infinitos elementos.
sou móvel motor força motriz mobilidade extrema
e ao mesmo tempo sou suprema paz e quietude.
olha a lagoa onde revoam pássaros cansados.
olha as canaranas frágeis baloiçando
e os aguapés dormindo brancamente.
olha as águas das lagoas diluídas
os cetáceos as serpes os palmípedes
e as ondas profundas que despertam
e uma a uma vão morrer nas margens.
e perguntas meu nome. sabê-lo não desejes.
à noite venho ver-te e te acalento
no sono solitário e tão estrangulado.
fabrico sonhos e ao meu rude comando
as estrelas despenham-se e os planetas giram
na luminosidade sempre nova das noites consteladas.
não percebes o uivar dos ventos nas mangueiras
e na bonina que se abre como o ventre
da primeira mãe ainda virgem que já foi?
e meu nome não sabes. fui presente
nas metamorfoses de virgílio e na comédia de dante
iluminei camões e lorde byron
shakespeare foi meu fâmulo. joão da cruz meu senhor.
ensinei davi a dedilhar a lira
o outro joão eu visitei em patmos
e o bateau ivre era meu. dei-o a rimbaud.
sou chama e alma rio e danço
no fogo rubro amarelo azul e verde.
quando olhares o fogo observa bem
que lá estou como também estou
na palidez da lua sempre fria
e dentro de ti mesmo a conduzir
tua mão quando escreves os poemas
e sentes a tortura de dizer belezas.
pareço mau às vezes quando prendo a pena
e estrangulo a luz justamente no momento
em que começa a palpitar dentro de ti.
mas se o faço é para despertar em ti
a sede onímoda de conseguir o mais.
agora vê. me vou. deixo-te agora.
vou como vim. apaga a luz
fecha os olhos e me verás no sonho
o mesmo balé inicial dançando.
foi assim que partiu o tresloucado
pois como os amantes é hostil
à luz do sol. é sombra seu império.
não trevas. mas a luz azul
que não é dia não é noite.
é luar.
legado
asas somente isso. angústia
de fugir ao destino das raízes.
túrgidas velas singrando aberto espaço.
velas do destino de colombo
partindo em quilhas quase loucas para
o mistério das virgens descobertas.
asas de ícaro vencidas pelo sol
incauto icaro não sabias que
não é dado a palhaços ver o sol?
ah. o vôo de icaro presente
na dança de nijinski.
asas, somente isso. desespero
de ser barro e ao mesmo tempo seta.
asas apenas sugeridas
nas curvas nos voejos nas volutas
nos mantos e nas vestes do barroco.
asas de anjos de querubins de touros
assírios. asas custódias da arca da aliança.
asas nos calcanhares de mercúrio.
asas romanas. gregas. bizantinas asas.
asas egípcias. asas de papel crepon
dos anjinhos meninas das procissões.
asas até sim asas de avião.
asas do padre bartolomeu de gusmão.
asas em queda.
pois até para cair é mister possuí-las.
belzebu tem asas. sim. belzebu tem asas.
no céu e no inferno ruído de asas tatalando.
asas nos pés da bailarina tola do café noturno.
antigo sonho. desejo antigo. eterna tentação.
asas. panos soltos ao vento. gazes leves.
e os braços que se erguem as mãos que gesticulam
asas as torres ogivais as fadas e as bruxas.
asas sonoras sibilando esses
verdes azuis amarelas incolores
brilhantes e opacas grandes e pequenas
das borboletas das garças das abelhas
das plumas dos polens do orvalho
asas imponderáveis e asas de granito
dos arcanjos que guardam mausoléus.
asas. geometria rude esboço mal riscado
pelos bandos erradios de pássaros selvagens.
asas no chão. asas no céu.
asas ensaiando vôo. é somente isso
o rebento verdolengo ao romper
a espessa placenta da terra dura e seca.
asas de águia em vôos altaneiros.
asas quietas pousadas em silêncio.
doutrina
sou cativo do pássaro ferido
pois ouvindo sua lenda e seu martírio
por legado recebi este desejo
e da estrela tornei-me companheiro.
ó poeta não queiras pois é morte
e cativeiro conhecer a face do palhaço.
há milênios caminho sem cessar
sem ver o sol. apenas o luar
e a luz indecisa das estrelas
recriam esta máscara e fonte
do riso e da tristeza que oculta
o meu rosto e corpo verdadeiros.
e assim caminharei eternamente
peregrino sempre sempre marinheiro
carregando meu fado torturante
– semente feto messe em promissão –
de ser ave sem poder voar
de ser clown isto é ser e não ser.
mas tu poeta enquanto não puderes
te unir totalmente com o mistério
que te foge das mãos feitas de som
une-te intensamente
às formas aos sons e às cores simples.
modela sem cessar
a chama que te queima a alma e as mãos.
não deixes que se perca uma só
destas fagulhas.
pois uma delas pode ser a luz
que salvará tua face passageira
quando raiar o sempiterno dia.
despedida
e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória.
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L. RUAS - APARIÇÃO DO CLOWN
domingo, 4 de dezembro de 2016
VICTOR HUGO
DEUS SONHA
O dia acorda. Deus, por uma fresta
Das nuvens a espreitar, ri-se. A floresta,
O campo, o inseto, o ninho sussurrante,
A aldeia, o sol que finge a serrania...
Tudo isso acorda, quando acorda o dia
No fresco banho de ouro do Levante.
Deus sonha. Vaza os olhos d’água; pica
As artérias da terra; o lis fabrica,
E da matéria sonda o fundo ovário.
Pinta as rosas de branco e de vermelho,
E faz das asas vis do escaravelho
A surpresa do mundo planetário.
Homens! As férreas naus de velas largas
Monstros revéis, formidolosas cargas,
Do bruto oceano arfando as insolências
Extenuando os ventos, e nos flancos.
Largo enxame a arrastar de flocos brancos
De escuma, e raios e fosforescências...
Os estandartes de arrogantes pregas;
As batalhas, os choques, as refregas;
Náuseas de fogo de canhões sangrentos;
Feroz carnificina de ferozes
Batalhões - bando espesso de albatrozes
De asa espalmada e aberta aos quatro ventos...
Comburentes, flamívomas bombardas,
Ígnea selva de canos de espingardas,
Estampidos, estrépitos, clangores,
E, bêbedo de pólvora e fumaça,
Napoleão que galopando passa,
Ao ruflar de frenéticos tambores;
A guerra, o saque, as convulsões, o espanto;
Sebastopol em chamas, de Lepanto
A vau de lanças e clarins repleto...
Homens! Tudo isso, enquanto recolhido
Deus sonha, passa e soa ao seu ouvido
Como o rumor das asas de um inseto!
(Trad. de Raimundo Correia)
OH! NÃO INSULTEIS...
Oh! não insulteis nunca uma mulher perdida!
Quem sabe qual o transe em que ela foi vencida?
Quem sabe se foi longo o seu combate rude,
Entre as mil privações que assaltam a virtude?
Se o vento das paixões soprou com violência,
Quem já viu a mulher, que prendia a inocência
Nas pequeninas mãos cruzadas sobre o seio,
Não ir no turbilhão, gritando, com receio?...
Tal a gota de chuva, - pérola da rama: -
Brilha ao passar do vento, oscila e cai na lama!
A culpa é nossa; é tua, ó rico! é do teu ouro!
Mas, no lodo é que o mar esconde o seu tesouro...
Para que o pingo d’água erga-se da poeira,
Com o vivo esplendor e a limpidez primeira.
Já que as transformações se operam pra melhor,
Dai-lhe um raio de sol! dai-lhe um raio de amor!
(Trad. de Múcio Teixeira)
A AMOR
Pois que a beber me deste em taça transbordante,
E a fronte no teu colo eu tenho reclinado,
E respirei da tu’alma o hálito inebriante,
- Misterioso perfume à sombra derramado;
Visto que te escutei tanto segredo, tanto!
Que vem do coração, dos íntimos refolhos,
E tive o teu sorriso e enxuguei o teu pranto,
- A boca em minha boca e os olhos nos meus olhos;
Pois que um raio senti do teu astro, querida,
Dissipar-me da fronte as densas brumas frias,
Desde que vi cair na onda da minha vida
A pétala de rosa arrancada aos teus dias...
Posso agora dizer ao tempo, em seus rigores:
- Não envelheço, não! podeis correr, sem calma,
Levando na torrente as vossas murchas flores
Ninguém há de colher a flor que eu tenho n’alma!
Podeis com a asa bater, tentando, sem efeito,
A taça derramar em que me dessedento:
Do que cinzas em vós há mais fogo em meu peito;
E, em mim, há mais amor que em vós esquecimento!
(Trad. de Alvaro Reis)
DEPOIS DA BATALHA
Meu pai, aquele herói de riso sempre aberto,
Seguido de um “hussard” que estimava, decerto,
Mais que os outros, por ser um bravo ante a metralha,
Percorria, a cavalo, após uma batalha,
O campo do combate envolto pelo véu
Da noite; nisto um ruído a escuridão rompeu:
Era um belo espanhol do exército vencido
Que, à beira do caminho, exânime, vencido
Gemia agonizante, exausto e sem socorro,
E que a custo dizia: “Água! Água que eu morro!”
Meu pai magoado, estende ao seu “hussard”, então,
A cabaça do rum pendurada no arção,
E diz-lhe: - “Toma lá, dá-lha ao pobre ferido”.
De repente, no instante em que o “hussard”, pendido,
O ia socorrer, ele, um tipo de mouro,
Que inda agarrava a arma, arremessa um pelouro,
À fronte de meu pai, exclamando: “caramba!”
Tão perto lhe zune o tiro, que descamba
O chapéu, e o cavalo acua e se retrai.
“Vá, dá-lhe de beber, embora!” diz meu pai.
(Trad. de Silva Ramos)
sábado, 3 de dezembro de 2016
IRANÁRIS FERREIRA DA SILVA
IRANÁRIS FERREIRA DA SILVA
Um poeta morreu
Bilhete a Rogel Samuel
por Flávio Bittencourt
"Brasília, 25.9.2009
Mestre Rogel:
Entristecido, verifico, lendo notícia de sua lavra, que Iranáris - "(...) [que foi] jornalista no Rio (A noite) e professor de matemática na Escola Técnica de Manaus (...), como você informa - . faleceu.
Ao lado dos também escritores Homero de Miranda Leão e Ramayana de Chevalier - e meu pai, Ulysses Bittencourt, era quase um irmão do pai de Stanley, Scarlet e Ronald Chevalier, o célebre Roniquito -, vejo, em pesquisa no Google, que Iranáris foi suplente de deputado estadual, como os Drs. Homero e Ramayana também o foram, pela UDN do Amazonas, nas eleições de 3.10.1958,
1958, vale lembrar, de acordo com Joaquim Ferreira dos Santos, foi "o ano que não deveria terminar",
http://www.editoras.com/record/05185.htm.
Em 1975, no funeral de Pier Paolo Pasolini, pronunciou Alberto Moravia:
"(...) Hoje morreu um poeta. E um poeta é uma coisa rara. Só aparecem dois ou três poetas em cada século. O poeta deveria ser sagrado. (...)"
Transmita as minhas condolências, por favor, à família enlutada do seu amigo, o poeta amazonense
Iranáris Ferreira da Silva (1912 - 2009).
IRANÁRIS FERREIRA DA SILVA
(Iran Fersil)
Iran Fersil
Rogel Samuel
Morreu hoje, às 15 horas, no Rio de Janeiro, o poeta amasonense IRANÁRIS FERREIRA DA SILVA (Manaus 4 de abril 1912 - 24 de setembro 2009), o Iran Fersil. Ele foi jornalista no Rio (A noite) e professor de matemática na Escola Técnica de Manaus.
Ele tinha 97 anos e meio e era casado há 75 anos com sua esposa, Eulice Esteves da Silva, já falecida. Morreu dormindo, de parada cardíaca. Deixou os filhos Maíra Esteves, Nicolino Marinho D'Antona, Renata D'Antona e duas netas, a conhecida escritora Eulícia Esteves (Coordenadora de Música Popular da Funarte) e Isabela Esteves Albrecht, arquiteta, que mora em Paris.
Iranáris era meu amigo há 50 anos. Sua produção poética é muito grande, mas toda publicada nos jornais de Manaus. Ele nunca publicou um só livro. Ele dizia que sua mãe era uma índia Baré.
Era do nosso Grêmio Gregório de Matos. Leia:
POUCO SONHO E MUITO AMOR
Diz-me baixinho, amor; diz, segredando,
palavras de afeto e de carinho,
para que eu vá dormindo de mansinho,
depois desperter mais e mais te amando.
Vem em meus olhos, lado a lado, andando,
para que eu não me sinta tão sozinho;
vem, sem receio, que eu serei bonzinho,
porque sem ti me quedarei chorando.
E nosso par será mui venturoso:
símbolo de amor, de gozo e de ventura
que tanta inveja então há de causar.
Serás feliz, querida, eu bem ditoso,
no lindo sonho cheio de ternura
que de tão belo não devia findar!
VOLTA!
Você voltou! Por que você voltou?
Melhor seria sempre ser ausente.
Pois que mudada está, mui diferente,
não parecendo aquela que me amou.
Perdeu, mesmo, o jeito de inocente
que, noutros tempos, tanto me encantou...
Sorriso, fala... em fim tudo mudou. .
Como possível foi, tão de repente?
Volta! Já não desejo ter agora
o mesmo amor que tive outrora,
que fêz minhalma desvairada, louca.
Vai! Segue, em paz, seus floridos caminhos!...
Que outros possam colher os seus carinhos,
que de o fazer minha vontade é pouca!
MINHA VIDA
É minha vida um grã vergel talhado
por fortes ventos das desilusões;
os flóreos ramos com que hei sonhado
brotam flôres de decepções.
Nos seus canteiros, já não há trinado
a passarada, tão belas canções...
somente anum, em canto magoado,
toca de perto os nossos corações.
Minhalma errante, passa, preocupada,
colhendo, aqui, ali, pétalas caídas
que já não têm um pouco de perfume...
Assim, meu coração, de caminhada,
está deserto de amizades tidas,
guardando um resto de feral ciúme...
POUCO SONHO E MUITO AMOR
Diz-me baixinho, amor; diz, segredando,
palavras de afeto e de carinho,
para que eu vá dormindo de mansinho,
depois desperte mais e mais te amando.
Vem em meus sonhos, lado a lado, andando,
para que eu não me sinta tão sôzinho;
vem, sem receio, que eu serei bonzinho,
porque sem ti me quedarei chorando.
E nosso par será mui venturoso:
simb’lo de amor, de gôzo e de ventura
que tanta inveja então há-de causar.
Serás feliz, querida, eu bem ditoso,
no lindo sonho cheio de ternura
que de tão belo não devia findar!
A MORENA E A ROSA
Dei-lhe uma rosa perfumada e bela
colhida há pouco num dos meus jardins
tenho açucenas cravos e jasmins
mas nenhum’outra se compara a ela.
Nem todas flôres têm felizes fins
mas minha rosa que destino o dela:
iluminando o peito da donzela
dando realce a todos os seus quindins.
No lindo quadro se nos afigura
uma bela e meiga, outra linda e pura
que enfim nos deixa a alma duvidosa
pois entre a flor e a escultural pequena
não sei se a rosa que enfeita a morena
ou se a morena que realça a rosa.
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