quinta-feira, 12 de março de 2009

Gabriela Mistral (1889-1957)












Dá-me tua mão


Gabriela Mistral (1889-1957)

Dá-me tua mão e dançaremos;
dá-me tua mão e me amarás.
Uma flor única seremos,
uma só flor, e nada mais.

O mesmo verso cantaremos,
ao mesmo passo bailarás;
como uma espiga ondularemos,
como uma espiga, e nada mais.

Te chamas Rosa e eu Esperança,
porém teu nome esquecerás,
porque seremos uma dança
pela colina, e nada mais.

(Trad. Zemaria Pinto)



O pensador de Rodin






Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne da cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.

E tremeu de amor toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O "havemos de morrer" passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.

E na angústia seus músculos se fendem sofredores.
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte

Que o reclama nos bronzes. Não há árvore torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte.

(Trad. Manuel Bandeira).


Eu não Sinto a Solidão




É a noite desamparo
das montanhas ao oceano.
Porém eu, a que te ama,
eu não sinto a solidão.
É todo o céu desamparo,
mergulha a lua nas ondas.
Porém eu, a que te embala,
eu não sinto a solidão.
É o mundo desamparo,
triste a carne em abandono
Porém eu, a que te embala,
eu não sinto a solidão.



Ceras Eternas



Ah! nunca mais conhecerá tua boca
a vergonha do beijo que espumava
concupiscência como espessa lava!
Voltam a ser duas pétalas nascentes
impregnadas de novo mel, os lábios
que sonhei inocentes.
Ah! nunca mais conhecerão teus braços
o mundo horrível que em meus dias pôs
escuro horror: o nó de um outro abraço.
Pelo sossego puro
sob a terra ficaram estendidos
já, Deus meu! Seguros.
Agora cegas, nunca mais tuas pupilas
terão um rosto impudente e rubro
de lascívia, nos seus espelhos refletidos!
Benditas ceras fortes,
ceras geladas, ceras eternais
e duras, da morte!
Bendito toque sábio
com que selaram olhos, com que amarraram braços,
com que juntaram lábios!
Benditas ceras!
já não brasa de beijos luxuriosos
que vos quebrem, desgastem ou derretam!




Canção das Meninas Mortas



E essas pobres meninas mortas,
escamoteadas em abril,
as que surgiram e afundaram-se
como nas ondas o delfim?
Onde é que foram e se encontram,
a custo contendo o riso,
ou escondidas esperando
voz de um amante que seguir?
Diluindo-se como desenhos
que deus deixou de colorir,
pouco a pouco afogadas como
em suas fontes um jardim?
À vezes procuram nas águas
ir recompondo seu perfil
e nas carnudas rosas róseas
quase começam a sorrir.
Nos campos elas acomodam
o talhe, o vulto quebradiço.
e quase logram que uma nuvem
lhes dê seu corpo num ardil.
Juntam-se quase as desmembradas,
quase chegam ao sol feliz.
quase desfazem seu trajeto
recordando que eram daqui.
Quase anulam sua traição
e caminham para o redil.
e quase vemos ao crepúsculo
o divino milhão surgir!




O Encontro



Encontrei-o no caminho.
A água não turvou seu sonho,
nem se abriram mais as rosas.
Mas o assombro entrou-me na alma.
E uma pobre mulher tem
o rosto banhado em lágrimas.
Levava um canto ligeiro
sua boca descuidada;
ao olhar-me se tornou
profundo o canto que entoava.
Contemplei a senda, achei-a
estranha, transfigurada.
Tive na alba de diamante
o rosto banhado em lágrimas.
Continuou a andar cantando
e levou os meus olhares.
Então já não foram mais
azuis e esbeltas as salvas.
Que importa! Ficou nos ares
estremecida minha alma.
Ninguém me feriu mas tenho
o rosto banhado em lágrimas.
Essa noite não velou
assim como eu junto à lâmpada;
Longe seu peito de nardo
minha aflição não atinge.
Porém talvez por seu sonho
passe um perfume de acácia,
que uma pobre mulher tem
o rosto banhado em lágrimas.
Ia só e não temia.
Tinha sede e não chorava
Mas desde que o vi passar,
Deus revestiu-me de chagas.
Minha mãe reza por mim
a sua oração confiada.
Mas eu terei para sempre
o rosto banhado em lágrimas.



Ausência
(Tala, 1938)




Se vai de ti meu corpo gota a gota.
Se vai minha cara no óleo surdo;
Se vão minhas mãos em mercúrio solto;
Se vão meus pés em dois tempos de pó.
Se vai minha voz, que te fazia sino
fechada a quanto não somos nós.
Se vão meus gestos, que se enovelam,
em lanças, diante de teus olhos.
E se te vai o olhar que entrega,
quando te olha, o zimbro e o olmo.
Vou-me de ti com teus mesmos alentos:
como umidade de teu corpo evaporo.
Vou-me de ti com vigília e com sono,
e em tua recordação mais fiel já me borro.
e em tua memória volto como esses
que não nasceram nem em planos nem em bosques
Sangue seria e me fosse nas palmas
de teu trabalho e em tua boca de sumo.
Tua entranha fosse e seria queimada
em marchas tuas que nunca mais ouço,
e em tua paixão que retumba na noite,
como demência de mares sós.
Se nos vai tudo, se nos vai tudo!

Tradução - Maria Teresa Almeida Pina



Riqueza



Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
Uma assim como a rosa,
a outra assim como espinho.
Não me prejudicou
o roubo que sofri.
Tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
E estou rica de púrpura
e de melancolia.
Como é amada a rosa,
como é amante o espinho!
Tal num duplo contorno
frutas gêmeas unidas,
tenho a fortuna fiel
e a fortuna perdida.
Dois Anjos
Não é um anjo apenas
que me afeiçoa e guia.
Como embalam as duas
orlas ao mar, embalam-me
o anjo que traz o gozo
e o que traz a agonia;
o que tem asas voantes
e o que tem asas fixas.
Eu sei, quando amanhece,
qual vai reger-me o dia,
se o anjo cor de chama,
se o anjo cor de cinza.
E dou-me a eles como
alga às ondas, contrita.
Voaram uma só vez
com asas unidas:
foi o dia do amor,
o da epifania.
Fundiram-se numa asa
as asas inimigas
e apertaram o nó
que junta à morte a vida.




A casa

A mesa, filho, está posta
em brancura quieta de nata,
e em quatro muros que mostram sua cor azul
dando brilhos, a cerâmica.
Este é o sal, este o azeite
e ao centro o Pão que quase fala.
Ouro mais lindo que ouro do Pão
não está nem em fruta nem em retama,
e do seu cheiro de espiga e forno
uma fortuna que nunca sacia.
O partimos, filhinho, juntos,
com dedos duros e palma branda,
e tu o olhas assombrada
de terra preta que dá flor branca.
Abaixada a mão de comer,
que tua mãe também a abaixa.
Os trigos, filho, são do ar,
e são do sol e da enxada;
porém este Pão "cara de Deus"*
não chega as mesas das casas;
e se outras crianças não o tem,
melhor, meu filho, não o tocares,
e não tomá-lo melhor seria
com mão e mão envergonhadas
*No Chile, o povo chama ao pão de "cara de Deus"




Apegado a mim



Floco de lã de minha carne,
que em minha entranha eu teci,
floco de lã friorento,
dorme apegado a mim!
A perdiz dorme no trevo
escutando-o latir:
não te perturbem meus alentos,
dorme apegado a mim!
Ervazinha assustada
assombrada de viver,
não te soltes de meu peito:
dorme apegado a mim!
Eu que tudo o hei perdido
agora tremo de dormir.
Não escorregues de meu braço:
dorme apegado a mim!

Tradução - Maria Teresa Almeida Pina


DESOLACIÓN




La bruma espesa, eterna, para que olvide dónde
me ha arrojado la mar en su ola de salmuera.
La tierra a la que vine no tiene primavera:
tiene su noche larga que cual madre me esconde.

El viento hace a mi casa su ronda de sollozos
y de alarido, y quiebra, como un cristal, mi grito.
Y en la llanura blanca, de horizonte infinito,
miro morir intensos ocasos dolorosos.

¿A quién podrá llamar la que hasta aquàha venido
si más lejos que ella sólo fueron los muertos?
¡Tan sólo ellos contemplan un mar callado y yerto
crecer entre sus brazos y los brazos queridos!

Los barcos cuyas velas blanquean en el puerto
vienen de tierras donde no están los que son míos;
y traen frutos pálidos, sin la luz de mis huertos,
sus hombres de ojos claros no conocen mis ríos.

Y la interrogación que sube a mi garganta
al mirarlos pasar, me desciende, vencida:
hablan extrañas lenguas y no la conmovida
lengua que en tierras de oro mi vieja madre canta.

Miro bajar la nieve como el polvo en la huesa;
miro crecer la niebla como el agonizante,
y por no enloquecer no encuentro los instantes,
porque la "noche larga" ahora tan solo empieza.

Miro el llano extasiado y recojo su duelo,
que vine para ver los paisajes mortales.
La nieve es el semblante que asoma a mis cristales;
¡siempre será su altura bajando de los cielos!

Siempre ella, silenciosa, como la gran mirada
de Dios sobre mí; siempre su azahar sobre mi casa;
siempre, como el destino que ni mengua ni pasa,
descenderá a cubrirme, terrible y extasiada.




Coisas




Amo as coisas que nunca tive
como as outras que já não tenho;



Eu toco a água silenciosa,
parada em pastos friorentos
que sem um vento tiritava
no horto que era meu horto.



Se a vejo como a via antes,

me vem um estranho pensamento;

e brinco, devagar, com essa água,

qual um peixe ou um mistério.



Penso no início, onde deixei

passos alegres que já não carrego,

e no umbral vejo uma chaga

cheia de musgo e de silêncio.



Me procuro num verso que perdi,
que aos sete anos me disseram.
Era uma mulher fazendo o pão
e eu ainda sua santa boca vejo.



Vem um aroma rompendo em rajadas;
sou muito ditosa, sei o que sinto;
de tão delicado não é aroma,
senão o cheiro das amêndoas.



Me fazem criança, de novo, os sentidos;

busco um nome mas não o encontro,

e cheiro o ar e os lugares,
procurando amêndoas mas não acho...



Há um rio barulhento sempre perto.
Faz quarenta anos que o escuto.
É cantoria no meu sangue
ou bem um ritmo que me deram.



Ou é o rio Elqui de minha infância,
onde em suas águas bóio e me deixo levar.
Nunca o perco; peito a peito, como
duas crianças, nos pertencemos.



Quando sonho com a Cordilheira,
caminho por desfiladeiros,
que vou ouvindo sem parar,

um assobio, quase um juramento.



Vejo à linha do Pacífico,
Golpeando, meu arquipélago,
e de uma ilha só me restou
um cheiro acre de pássaro morto...



Um dorso, um dorso sério e doce,
arremata o sonho que estou tendo.
É o final do meu caminho
e nele descanso quando chego.



É um tronco morto ou é meu pai,
o vago dorso cinzento...
Eu não pergunto, não o incomodo.
Sentindo-o perto, calo e durmo.



Amo uma pedra de Oaxaca
ou Guatemala, sou parecida com ela,
vermelha e séria como minha cara
e cuja abertura me dá alento.



Quando adormeço ela fica nua;
não sei porque eu a persigo.
Acho que nunca a tive
e é o meu sepulcro o que vejo...



Versão e adaptação:

Marilena Trujillo








Cosas





Amo las cosas que nunca tuve
con las otras que ya no tengo;

Yo toco un agua silenciosa,
parada en pastos friolentos,
que sin un viento tiritaba
en el huerto que era mi huerto.

La miro como la miraba;
me da un extraño pensamiento,
y juego, lenta, con esa agua
como con pez o con misterio.

Pienso en umbral donde deje
pasos alegres que ya no llevo,
y en el umbral veo una llaga
llena de musgo y de silencio.

Me busco un verso que he perdido,
que a los siete años me dijeron.
Fue una mujer haciendo el pan
y yo su santa boca veo.

Viene un aroma roto en ráfagas;
soy muy dichosa si lo siento;
de tan delgado no es aroma,
siendo el olor de los almendros.

Me vuelve niño los sentidos;
le busco un nombre y no lo acierto,
y huelo el aire y los lugares
buscando almendros que no encuentro...

Un río suena siempre cerca.
Ha cuarenta años que lo siento.
Es canturía de mi sangre
o bien un ritmo que me dieron.

O el río Elqui de mi infancia
que me repecho y me vadeo.
Nunca lo pierdo; pecho a pecho,
como dos niños, nos tenemos.

Cuando sueño la Cordillera,
camino por desfiladeros,
y voy oyéndoles, sin tregua,
un silbo casi juramento.

Veo al remate del Pacífico
amoratado mi archipiélago,
y de una isla me ha quedado
un olor acre de alción muerto...

Un dorso, un dorso grave y dulce,
remata el sueño que yo sueño.
Es al final de mi camino
y me descanso cuando llego.

Es tronco muerto o es mi padre,
el vago dorso ceniciento.
Yo no pregunto, no lo turbo,
me tiendo junto, callo y duermo.

Amo una piedra de Oaxaca
o Guatemala, a que me acerco,
roja y fija como mi cara
y cuya grieta da un aliento.

Al dormirme queda desnuda;
no se por qué yo la volteo.
Y tal vez nunca la he tenido
y es mi sepulcro lo que veo...








terça-feira, 10 de março de 2009

ERNEST CASSIRER


ERNEST CASSIRER

UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO HOMEM: O SíMBOLO

O BIOLOGISTA Johannes von Uexkül1 escreveu um livro em que procede a uma revisão crítica dos princípios da biologia. De acordo com UexküI (NOTA l), a biologia é uma ciência natural, que precisa ser desenvolvida por meio dos métodos empíricos usuais - os da observação 'e experimentação. O pensamento biológico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do pensamento físico ou do químico. Uexküll é um resoluto campeão do vitalismo, defendendo o princípio da autonomia da vida. A vida é uma realidade final e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem explicada em termos de física ou de química. Partindo deste ponto de vista, Uexküll desenvolve um novo esquema geral de pesquisa biológica. Como filósofo, é idealista ou fenomenalista. Mas seu fenomenalismo não se baseia em considerações metafísicas ou epistemológicas, mas, antes, em princípios empíricos. Como ele assinala, seria de um dogmatismo muito ingênuo a presunção de que existe uma realidade absoluta de coisas, idêntica para todos os seres vivos. A realidade não é uma coisa única e homogênea; imensamente diversificada, possui' tantos padrões e planos diferentes quantos são os organismos diferentes. Todo organismo, por assim dizer, é um ser monadário. Tem um mundo próprio, porque tem uma experiência própria. Os fenômenos que encontramos na vida de certas espécies biológicas não são transferíveis para nenhuma outra espécie. As experiências - e portanto as realidades - de dois organismos diferentes são incomensuráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz UexküIl, só encontramos "coisas de moscas"; no mundo de um ouriço do mar só encontramos "coisas de ouriços do mar".
Partindo desta pressuposição geral, Uexküll desenvolve um plano originalíssimo e engenhoso do mundo biológico. Desejando evitar todas as interpretações psicológicas, segue um método inteiramente objetivo ou behaviorista. A única chave para a vida animal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia comparada. Se conhecermos a estrutura anatômica de uma espécie animal, possuiremos todos os dados necessários à reconstrução de seu modo especial de experiência. Um estudo cuidadoso da estrutura do corpo animal, do número, da qualidade e da distribuição dos vários órgãos dos sentidos e das condições do sistema nervoso, nos dará uma imagem perfeita do mundo interior e exterior do organismo. Uexküll principia suas investigações com um estudo dos organismos inferiores; estendeu-as gradativamente a todas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, recusa-se a falar em formas inferiores ou superiores de vida. A vida é perfeita em toda parte; é idêntica, tanto no menor como no maior dos círculos. Todo organismo, até o mais rudimentar, não só se acha adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, mas também inteiramente coordenado ( eingepasst) com seu ambiente.
De acordo com sua estrutura anatômica, possui certo Merknetz e certo Wirknetz - um sistema receptor e um sistema destinado a responder à estimulação. Sem a cooperação e o equilíbrio destes sistemas o organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os estímulos externos e o sistema pelo qual reage a ele estão, em todos os casos, intimamente interligados. São elos da mesma cadeia, descrita por Uexküll como o círculo funcional (Funktionskreis) do animal. (Veja Johannes von Uexktill, Theoretische Biologie (2.' edição, Berlim, 1938); Umwelt und Innenwelt der Tiere 0909; 2.' edição, Berlim, 1921).

Não posso entrar aqui na discussão dos princípios biológicos de UexküIl. Referi-me tão-somente aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de formular uma pergunta geral. Será possível utilizar o plano proposto por Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? É evidente que este mundo não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inequívoca entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento. A primeira vista, este atraso pode parecer uma vantagem. muito discutível. Inúmeros filósofos lançaram advertências contra este pretenso progresso. "L'homme qui médite", diz Rousseau, "est un animal dépravé": não se aprimora, mas se deteriora a natureza humana quando ultrapassa as fronteiras da vida orgânica. Entretanto, não existe remédio contra essa inversão da ordem natural. O homem não pode fugir à própria consecução. Não pode deixar de adotar as condições da própria vida. Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao homem enfrentar imediatamente a realidade; não pode vê-Ia, por a~sim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo. Envolveu-se por tal maneira em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o homem num mundo de fatos indisputáveis, ou de acordo com suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes no meio de emoções imaginárias, entre esperanças, temores, ilusões e desilusões, em seus sonhos e fantasias. "O que perturba e alarma o homem", diz Epicteto, "não são as coisas, são suas opiniões e fantasias a respeito das coisas".
Do ponto de vista a que acabamos de chegar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do homem. A despeito de todos os esforços do irracionalismo moderno, a definição do homem como animal rationale não perdeu sua força. A racionalidade, com efeito, é uma característica inerente a todas as atividades humanas. A própria mitologia não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é puramente caótica, pois possui forma sistemática ou conceitual. (Veja Cassirer, Die Begrittstorm im mythischen Denken (Lipsia, 1921). Mas, por outro lado, fora impossível caracterizar como racional a estrutura do mito. A linguagem foi freqüentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que esta concepção não consegue abarcar todo o campo. É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a linguagem emocional; lado a lado com a linguagem lógica ou científica há a linguagem da imaginação poética. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições. E até uma religião "dentro dos limites da razão pura", como a concebeu e elaborou Kant, não é mais que uma simples abstração. Transmite apenas a configuração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida religiosa. Os grandes pensadores que definiram o homem como um animal rationale não eram empiristas, nem jamais tentaram oferecer uma explicação empírica da natureza humana. Por meio desta definição, expressavam antes um imperativo moral fundamental. Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale, deveríamos defini-Io como um animal symbolicum. Deste modo, podemos designar sua diferença específica, e podemos compreender o novo caminho aberto ao homem: o da civilização.
(1. Veja Cassirer, Die Begrittstorm im mythischen Denken (Lipsia, 1921).

MANUEL MAURICIO DE ALBUQUERQUE



A ESCRAVIDÃO AFRICANA

POR MANUEL MAURICIO DE ALBUQUERQUE

O escravo africano chegava ao Brasil como mercadoria e, como tal, sujeito à conseqüente seleção que o tornava mão-de-obra mais qualificada e, portanto, de maior valor. Sendo portadores de técnicas mais desenvolvidas do que os indígenas, os que resistiam ao alto índice de mortalidade durante as viagens ofereciam condições de sobrevivência física e de rentabilidade muito lucrativas para a classe escravista. Na África, já existiam estruturas sociais onde as forças produtivas haviam alcançado um nível de desenvolvimento capaz de produzir excedentes. Essas organizações sociais onde já se detectavam relações de classe dispunham de força de trabalho mais capacitada a enfrentar o desgaste do trabalho escravo.
A obtenção do escravo na África se fazia, comumente, pela troca com as formações sociais escravistas como os Reinos de Mali e do Congo. Este escravo que resultava de processos repressivos diversos para sua obtenção era transformado em valor de troca como efeito da intervenção comercial e político-militar européia nas formações sociais africanas aliada aos setores dominantes nestas sociedades. No caso das formações sociais que se organizavam feudalmente, como o Daomé e nas de tipo asiático, como o Império de Gana, o intercâmbio com o setor mercantil negreiro estimulou práticas escravistas complementares. A busca de escravos não estava articulada às necessidades produtivas locais, mas sim às relações de intercâmbio. Portanto, os contatos com os comerciantes de escravos e com os agentes político-militares que defendiam os interesses colonialistas determinou uma dominação escravista que favorecia a acumulação de riqueza nos setores dominantes dos sistema feudal e asiático. A posse de escravos disponíveis como mercadoria condicionava a aquisição de produtos estrangeiros, notadamente os tecidos, as miçangas, as armas, as jóias, além do ouro, cobre, algodão, tabaco, cachaça e zinbo ou búzio. Este último, abundante nas praias da Bahia, era exportado para a África onde servia como moeda e objeto religioso.
Também ocorria na África o apresamento direto como o que se praticava no Brasil. Esse processo era mais empregado nos ataques às comunidades primitivas africanas. No entanto, os escravos assim obtidos não eram mercadoria imediatamente exportável, porque a sua rentabilidade apresentava as mesmas desvantagens que a classe proprietária enfrentava na exploração do escravo indígena.
A necessidade de garantir o abastecimento contínuo de força de trabalho escrava principalmente destinada à América, produziu práticas de alianças políticas entre os representantes dos interesses coloniais e os diversos Estados africanos. Esta política africana foi iniciada pelo Reino de Portugal a partir do século XV e tinha como suporte principal a celebração de acordos comerciais e políticos. Estes ajustes, em geral, previam a regularização das trocas mercantis, a permissão para o estabelecimento de feitorias e fortalezas e a liberdade de ação para os missionários catequistas. Um bom exemplo desta política foram as relações estabelecidas com o Reino do Congo e que determinaram sobre esta unidade política africana um amplo processo de dominação colonial. Ainda que, em última instância, os contatos com a África se realizassem sob o controle do Estado Português, a importância crescente da economia brasileira como consumidora de escravos e de outros produtos africanos não tardou a se fazer sentir. O tráfico direto entre os portos negreiros africanos e os receptadores brasileiros passou a assumir uma importância crescente. Mais de uma embaixada vinda da África buscou entendimentos diretos com autoridades sediadas no Brasil, uma delas, a que o Rei do Congo enviou ao Conde de Nassau-Siegen em 1643. Nos séculos segiuntes (1750, 1795 e 1805) chegaram à Bahia com destino a Portugal emissários de soberanos do Daomé, outra importante área escravista.
Aos poucos o monopólio português no tráfico negreiro começou a ser limitado pelas investidas concorrenciais de outros Estados Europeus, notadamente pelos representantes das burguesias comerciais holandesa, inglesa e francesa. A partir do século XVII, as áreas fornecedoras de escravos controladas pela burguesia portuguesa foram se tornando cada vez mais reduzidas, principalmente depois que o asiento negreiro foi concedido pelo Estado Espanhol aos holandeses e mais tarde aos ingleses. Somente Angola e Moçambique permaneceram como centros fornecedores de escravos dominados colonialmente pelo Estado Português.
O recurso à exploração do escravo africano não suscitou as mesmas dúvidas quanto à sua legitimidade como ocorreu em relação às populações indígenas da América. Quando da chegada a Portugal dos primeiros africanos capturados, o Infante D. Henrique reclamou os cativos que lhe cabiam na qualidade de Grão-Mestre da Ordem de Cristo. Na medida em que a importância do trabalhador direto escravo crescia, de início articulado à estrutura econômica das Ilhas do Atlântico e posteriormente à do Brasil, o problema do seu cativeiro legal tornou-se ponto pacífico. Em geral, argumentava- se que era mercadoria estrangeira, adquirida legitimamente a autoridades bárbaras e pagãs que a vendiam em obediência a normas jurídicas próprias. Por isso, o Bispo Azeredo Coutinho, além de invocar as leis portuguesas e as bulas pontifícias, pôde escrever em sua obra, Análise sobre a jurisdição do comércio de resgate. da Costa da África (1808): "OS escravos que se compram na costa da África são homens pretos, nascidos no meio de nações bárbaras e idólatras, condenados pelas leis do seu país à escravidão perpétua e onde as leis não protegem nem mesmo a vida dos inocentes... "
A partir do descobrimento da América aumentou enormemente a busca de escravos africanos, determinando que as diversas burguesias européias procurassem garantir a sua dominância sobre as áreas fornecedoras. Os efeitos dessa dominância sobre as formações sociais africanas cresceram na razão direta em que se processava a sua subordinação a partir da dependência comercial. A demanda contínua de escravos ultrapassou rapidamente a capacidade decisória das autoridades locais cujo campo de autonomia transformou- se, ao se confinar aos limites ditados pelas exigências do tráfico negreiro. A guerra, como solução escravizadora, dimensionou as antigas rivalidades locais imprimindo-lhes uma amplitude destrutiva e acelerada dos contingentes demográficos africanos. Calcula-se que, entre os séculos XVI e XIX, somente para a América viera vinte milhões de escravos constituindo- se essa transferência forçada no exemplo mais importante de emigração compulsória que se conhece. Regiões houve, como em certas áreas de Angola no século XVII, que ficaram reduzidas a virtuais desertos. Ao mesmo tempo, por exemplo, as práticas jurídico-políticas, próprias dessa sociedade articuladas ao comércio de escravos, passaram a ser ajustadas à nova conjuntura, cominando-se a pena de perda da liberdade em grau muito mais extenso do que era previsto pelo direito tradicional antes vigente.
No Brasil, o escravo africano e seus descendentes foram utilizados prioritariamente não apenas nas atividades realizadoras de produtos destinados à exportação, como na agro-manufatura do açúcar, no plantio do algodão, do café, no extrativismo mineral. Foi também a força de trabalho explorada no artesanato, nas manufaturas, na prestação de serviços e, em menor escala, na pecuária. Pode-se, assim, afirmar que o trabalhador escravo de origem africana foi a força de trabalho fundamental até a segunda metade do século XIX, quando se iniciou a transição do Escravismo para o Capitalismo. Diferentemente do que ocorreu com o Indígena, o escravo africano não mereceu a mesma defesa da Igreja. Esta última não apenas o explorou como trabalhador, semelhantemente aos proprietários escravistas leigos, como ainda participou das rendas do comércio negreiro na África. A esse respeito é muito útil a leitura de Relações Raciais no Império Português de Charles Boxer, bem como as informações contidas em Os Jesuítas no Grão-Pará e a História de Antônio Vieira, ambos de João Lúcio de Azevedo. Este pesquisador português oferece material empírico principalmente para a análise da posição dos inacianos em relação à escravidão de africanos.
A esse respeito, o 14.0 Sermão do Rosário, pronunciado por Antônio Vieira, é bem elucidativo. Depois de comparar a atividade dos escravos na produção do açúcar aos padecimentos do Cristo e de equiparar o engenho ao próprio inferno, ele conclui, no entanto, que: "Deveis dar infinitas graças a Deus, por vos haver dado conhecimento de si e por vos haver tirado de vossas terras. onde vossos pais e vós vivíeis como gentios; e vos ter trazido a esta, onde instruídos na fé vi vais como cristãos e vos salveis". Essa mesma peça de oratória nos informa sobre o critério de discriminação racial que presidia a formação das agremiações religiosas. Vieira censura os mulatos por se reunirem na Irmandade de Nossa Senhora de Guadalupe, desprezando a do Rosário organizada por negros.
Devido à importância da exploração do produtor direto escravo, foram raras as manifestações em sua defesa durante a etapa dominada pelas práticas mercantilistas. Um dos poucos exemplos foi o do Pe. Manuel da Rocha, autor do livro Etíope resgatado, sustentado, corrigido, instruído e libertado, publicado em 1757. Os de terminantes econômicos impuseram também, ~m última instância, o abandono das práticas de organização familiar da massa escrava, na medida em que a exigência de um casamento cristão dificultava as operações de compra e venda de que era objeto a propriedade escrava. Mesmo Antonil, um defensor da ordem escravista, censurava a pouca instrução religiosa dos trabalhadores escravos que se limitava a práticas ritualísticas maquinais. O mesmo Autor alude, imprecisamente, à feitiçaria como recurso vindicativo do escravo, informação essa que se constitui em uma das referências mais antigas à manutenção no Brasil de procedimentos religiosos africanos.
Para o Brasil vieram representantes de dois grandes grupos lingüísticos: o sudanês e o banto e, em menor quantidade, os que empregavam o idioma árabe. Dentre as formações sociais sudanesas encontravam- se as que se organizavam nos Estados de Gana e do Mali, ambos fortemente articulados ao intercâmbio transaariano com o Magreb, como fornecedores de ouro, cobre, marfim e escravos. A partir do século XV abriu-se nova rota comercial que unia os diversos Estados-sudaneses à Tunísia e à Líbia atuais. Entre os povos classificados como sudaneses vieram para o Brasil representantes dos contingentes iorubás, gêges, hauçás e minas; dos bantos, foram introduzidos os angolas e cabindas.
Os principais centros receptores e distribuidores de escravos foram Salvador, Recife e Rio de Janeiro. No século XVIII, nada menos de dez mil escravos importados eram considerados indispensáveis às atividades mineradora, agromanufatureira do açúcar e principalmente do cultivo do algodão. O tráfico negreiro recrutava pelo menos vinte embarcações de nacionalidade portuguesa que demandavam, anualmente, aqueles portos brasileiros, em particular o de Salvador. Nessa última cidade desenvolviam- se estaleiros, havia condições técnicas para providenciar reparos aos navios e as plantações do Recôncavo forneciam o tabaco que era valor de troca extremamente valorizado na África.
O Rio de Janeiro teve importância menor, embora desde o século XVII já exportasse escravos para a América Espanhola através de Buenos Aires. No século XVIII, com o ascenso da atividade extrativa mineradora, cresceu a importância regional do Rio de Janeiro que passou a receber e a distribuir escravos para abastecer as necessidades econômicas locais e as que se processavam em Minas Gerais, Goiás e Mato-Grosso.
Originários, em sua maior parte, dos centros fornecedores do litoral africano, os escravos eram negociados por armadores e comerciantes especializados, os pombeiros e taganhões em estreita articulação com os agentes da Fazenda Real localizados em diversos pontos do litoral africano como São João Batista de Ajudá, São Tomé, São Filipe de Benguela, São Paulo de Luanda e outros. No século XVI, domina.ram as remessas de escravos fornecidas pelo chamado ciclo de Guiné, superado nos dois séculos seguintes pelos ciclos de Angola e Congo e o da Costa da Mina, respectivamente. Esse intercâmbio representava uma massa considerável de capital que ao se deslocar favorecia o enriquecimento da burguesia comercial traficante de escravos. Dessa forma, esse setor de classe reforçava a sua dominância sobre os proprietários eScravistas do Brasil, dentro dos objetivos repressivos do Sistema Colonial. Isso produziu reclamações constantes dos prejudicados que muitas vezes chegaram à franca rebeldia como ocorreu com os senhores de engenho do Maranhão ao promoverem a Revolta de Beckman (1684-1685).
A importância do tráfico de escravos africanos constituiu a principal fonte de reprodução dessa força de trabalho.
Com efeito, o período de vida útil do escravo produtor direto era bastante baixo, oscilando em entre se e dez anos,
Segundo Simosem. Certas atividades eram particularmente letais, entre elas o extrativismo do ouro e do diamante, o trabalho nas salinas, nas armações de pesca e de beneficiamento da baleia e nas fases de produção intensiva de açúcar. A alta mortalidade dos escravos diretamente ocupados nas atividades produtivas era ainda aumentada pelo excesso de trabalho, a má alimentação, enfermidades, castigos e outros elementos congêneres. Por outro lado, não havia estímulo ao crescimento vegetativo da população escrava na medida em que tal iniciativa implicava em uma diminuição da exploração do trabalhador direto escravo. Devido às condições em que se desenvolveu a estrutura econômica escravista colonial, o investimento na escrava grávida e na criança escrava era considerado antieconômico em função dos interesses da classe proprietária. Diferente, no entanto, era a situação do escravo prestador de serviços, em particular os que estavam adstritos às lides domésticas e os pretos de ganho, geralmente' trabalhadores urbanos e especializados e cuja atividade era alugada pelos seus proprietários.
O tráfico negreiro constituiu importante fonte de renda para o Estado Absolutista. De início, o comércio de escravos era livre, sujeito apenas a um tributo variável cobrado por cabeça de escravo exportado para o Brasil. Em certos períodos, o Estado monopolizou diretamente o tráfico, como ocorreu a partir da publicação da Carta Régia de 1697, que oficializava essa atividade. Certas companhias de comércio privilegiadas - a do Estado do Maranhão, no século XVII, a do Estado do Grao-Pará e Maranhão e a de Pernambuco e Paraíba no século seguinte - receberam o monopólio do comércio de escravos, limitado a áreas determinadas do Brasil.
Os comerciantes também pagavam impostos ao adquirirem à Fazenda Real escravos desembarcados, o mesmo ocorrendo quando se tratava de trabalhadores transferidos de uma região para outra. Isso aconteceu principalmente na
etapa dominada pelo extrativismo mineral cujas exigências promoveram deslocamentos constantes de escravos do Nordeste e da Bahia para zonas mineradoras. A capitação era o imposto unitário cobrado aos proprietários de acordo com o número de escravos ocupados nas minas de ouro e na extração de diamantes.
O intercâmbio com a África, além de enriquecer a burguesia comercial, promoveu a abertura de mercados para a
produção brasileira ou a que era reexportada através do Brasil. Com isso diminuía a dependência da classe dominante colonial em relação ao principal mercado de consumo que era o europeu.
Quanto à quantidade de escravos importados durante a Etapa Colonial, o que existem são cálculos aproximados,
sujeitos a reservas. A necessidade de escravos era contínua, sobretudo porque o período de vida útil desse trabalhador era inferior às necessidades econômicas, o que implicava numa demanda constante de reposição da força de trabalho. De acordo com Afonso Taunay os números prováveis de escravos africanos, desembarcados na etapa anterior à instalação do Estado Português no Brasil (1808), foram os seguintes:
Século XVI ............ ... 100.000
Século XVII ............ ... 600.000
Século XVIII ............ ... 1.300.000
As duas primeiras cifras correspondem ao desenvolvimento da atividade produtora de açúcar, a que se juntaram, no século XVIII, o extrativismo mineral e o cultivo do algodão, principalmente.
Na Etapa Colonial, a exploração do escravo africano e de seus descendentes nascidos no Brasil, os chamados crioulos, não deixou de desenvolver práticas racistas que discriminavam os negros e os mestiços, mesmo que fossem juridicamente livres. É verdade, no entanto, que a ideologia racista aqui foi menos violenta do que em outras áreas escravistas da América. A mestiçagem se desenvolveu expressivamente e não havia impedimentos legais à compra de liberdade ou alforria, embora essas práticas fossem de iniciativa da classe proprietária.
Negros e mulatos organizavam- se em separado, tanto nas atividades econômicas, como em práticas jurídico-políticas e mesmo nas ideológicas. Essas informações podem ser ilustradas pelo Regimento dos Henriques e pelas Irmandades de Nossa Senhora do Rosário, de São Benedito e outras.
Embora legalizasse as práticas escravistas, o Estado Absolutista Português mais de uma vez legislou no sentido de coibir os maus tratos de que eram vítimas os escravos. Um dos exemplos foi a Carta-Régia de D. Pedro II de Portugal, em 1700, se bem que se possa afirmar que essas medidas tinham alcance e prática muito limitados. As Ordenações Filipinas atribuíam as penas de morte ou de mutilação ao escravo que atacasse o seu proprietário e autorizavam o emprego do açoite como recurso para obter declarações sobre a localização de escravos fugidos.
Durante toda a Etapa Colonial pode-se observar várias práticas de resistência dos escravos. Esses conflitos em geral assumiam formas de solução individual, tais como fugas, suicídio ou assassínio de feitores e de proprietários. Mais importantes foram as revoltas e as fugas coletivas para a formação de quilombos como os do Rio de Janeiro, o da Bahia, o de Palmares, em Alagoas e Pernambuco atuais, todos organizados no século XVII. No século seguinte, entre outros, formaram-se os do Rio das Mortes, em Minas Gerais, e o da Carlota, em Mato Grosso, sendo que a maioria deles foi destruí da por expedições oficiais financiadas direta ou indiretamente pela classe proprietária. Já no início do século XIX, além da formação de novos quilombos, começaram a se registrar rebeliões urbanas, das quais, uma das mais importantes foi a de escravos hauçás que uniu escravos de Salvador e do Recôncavo em 1807.
O chamado sincretismo religioso, conjunto de práticas ideológicas afro-católicas também se constituiu em um recurso de preservação de identidade social, inicialmente limitado aos escravos e depois a seus descendentes inclusive os juridicamente livres. A dominação do Catolicismo que se impunha à população escrava foi por ela reinterpretada numa aparente conversão na qual puderam ser conservados valores e comportamentos originalmente africanos. Nesse sentido, as práticas rituais afro-brasileiras foram um aspecto particular da luta social, de vez que a situação de escravo o impedia de ter condições de resistência legal aos níveis econômico e político. A concentração da resistência ao nível das práticas ideológico-religiosa s adquiriu, assim, enorme importância. O universo ideológico passou a se constituir e a produzir os elementos quase que exclusivos de uma coesão social possível.
A dominância do pensamento religioso pelo seu próprio associacionismo intrínseco facilitava, em certa medida, a superação da permanência das rivalidades que dividiam a população escrava.
Por ser uma forma de resistência limitada e, portanto, menos perigosa para a classe proprietária, as reuniões religiosas sofreram perseguições menos ostensivas, sem deixar por isso de se desenvolverem em semiclandestinidade . O Estado apoiou a Igreja na repressão a essas práticas não-católicas e estimulou a formação de irmandades que incorporavam a população de cor, escrava ou livre, aos quadros sociais controlados oficialmente. Nessas irmandades não somente se mantinham as separações por critérios de cor (negros, mulatos), como por situação jurídica (trabalhadores livres e escravos) e mesmo por lugar de origem na África. Aliás, esse último recurso foi largamente empregado pelas autoridades para impedir sublevações de escravos. A este respeito, o testemunho de Luís dos Santos Vilhena na sua Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas, datada de 1802, é bastante eloqüente:
"Por outro principio não parece ser muito acerto em política. o tolerar que pelas ruas e terreiros da cidade (do Salvador)
façam multidões de negros de um e outro sexo, os seus batuques bárbaros a toques de muitos e horrorosos atabaques, dançando desonestamente e cantando canções gentílicas, falando línguas diversas e isto, com alaridos tão horrendos e dissonantes que causam medo e estranheza, ainda aos mais afoitos, na ponderação de conseqüências que dali podem provir, atendendo ao já referido número de escravos que há na Bahia. corpo ração temível e digna de bastante atenção, a não intervir a rivalidade que há entre crioulos e os que não o são; assim como entre as diversas nações de que se compõe a escravatura vinda das costas da África."
A advertência de Vilhena foi, posteriormente, bem atendida pela comunicação do 80 Conde dos Arcos, o último Vice-Rei do Estado do Brasil e depois Governador e Capitão-General da Bahia, onde organizou a repressão ao movimento revolucionário pernambucano de 1817:
« o governo... olha para os batuques como para um ato que obriga os negros, insensível e maquinalmente, de oito em oito dias, a renovar as idéias de aversão recíproca que lhes eram naturais e que todavia vão se apagando, pouco a pouco, com a desgraça comum...»
Embora limitadamente, a ideologia liberal-burguesa também contribuiu para a organização da resistência de grupos sociais nos quais se incluíam trabalhadores negros e mestiços, muitos deles escravos. Sua participação pode ser assinalada especialmente na Conspiração Baiana de 1798, cujo caráter mais popular oferece contraste flagrante com as Conspirações Mineira e do Rio de Janeiro e com o movimento revolucionário nordestino de 1817.
Ainda que no projeto contestatório de 1798 dominem as reivindicações que conduzissem à autonomia política da Colônia ou, mais imediatamente, de uma de suas partes, a Capitania da Bahia, já existe a proposta de uma forma efetiva de cidadania. Assim é que se defendem o livre acesso aos empregos, a extinção dos preconceitos raciais e, sem tanta
unidade, a abolição da escravatura. Depondo perante o Tribunal da Relação da Bahia, um dos acusados, Manuel Faustino dos Santos, alcunhado o Lira, declarou que os conspiradores pretendiam instalar:
" . .. um governo de igualdade, entrando nele brancos, pretos e pardos; sem distinção de cores, somente de capacidade para mandar e governar". O mesmo conspirador havia confidenciado a um escravo, Luís da França Pires, também aliciado como conjurado:
«. . que estava projetado um levante nesta Cidade, o qual se executava daí a um ou dois meses, a fim de serem libertos todos os pretos e pardos cativos'. I
Ao lavrar a sentença condenatória, aliás bastante severa no tocante aos escravos, artesãos e soldados, os juízes capitulavam como agravantes:
«. .. as imaginosas vantagens de uma República Democrática, ' onde todos serão iguais, onde os acessos e lugares representativos serão comuns, sem diferença de cor, nem de condição'.»

(in PEQUENA HISTORIA DA FORMACAO SOCIAL BRASILEIRA)