domingo, 3 de abril de 2011
PEDRO CALMON
LEIA TAMBÉM O BELO ELOGIO A PEDRO CALMON POR JOSUÉ MONTELLO, SEU AMIGO DE LONGA DATA, AQUI
PEDRO CALMON
Rogel Samuel
No salão da Biblioteca da Faculdade de Letras. Há mesas espalhadas, algumas poltronas. Eu prefiro as mesas. O ambiente não é completamente silencioso. De um lado, o escritório da Polícia Federal, com quem partilhamos o prédio. Do outro, algumas salas de aulas, no primeiro andar. Os "tiras" não olham para nós (era antes da ditadura militar), mas nossos colegas conversam alto. Até mesmo Ivete, diretora da Biblioteca, tagarela. Mas sentíamo-nos em casa. Ali se passaram fatos dignos de nota.
Estava tentando concentrar-me na leitura quando pressenti que alguém me observava, por trás, de pé:
- Menino - disse-me a voz aguda, aflautada, afrancesada daquele senhor bem vestido e empinado. "Menino, o que você está lendo?"
Era o Reitor Pedro Calmon. Eu era menino (tinha uns 19 anos, cara de criança, franzino, magro e assustado). Me levantei. Depois de alguma conversa, ordenou: "Venha comigo". Perguntou de onde eu era, se vivia sozinho no Rio de Janeiro, que viesse almoçar em sua casa, onde encontraria melhor alimentação. Deu-me cartão de visitas (que nunca usei). Indagou se eu sentia falta de meus pais, que recorresse a ele no caso de necessidade ou doença. "Tenha-me como seu pai", me disse.
Levou-me até a Academia de Letras, onde ia reunir-se. Lá, mostrou-me a Biblioteca, apresentou-me. "É uma Biblioteca de alta indagação", falou.
Durante a greve dos estudantes, Pedro Calmon nos recebeu no seu gabinete. Pequeno demais para cabermos todos lá. Sala repleta de obras de arte, caríssimas, pessoais, de sua propriedade. Na parede, um gigantesco painel de espelhos. Dizem que quando saiu da Reitoria, deixou várias obras. Valiosíssimas. Ele era assim, generoso e rico. Rico sob todos os aspectos, não apenas material. Grande advogado (Direito Naval, me parece), escritor, historiador, orador. Tudo nele era magnífico. Como o título. Tomava o automóvel da reitoria apenas para atravessar a rua. Ia almoçar no Iate Clube todos os dias, em frente. Nunca entrava numa loja, para fazer compras: o alfaiate, ou vendedor, vinham à sua casa. Dizem que toda força vinha da esposa, D. Hermínia, que conheci, pois era seu vizinho na Rua Santa Clara, em Copacabana. "Pedro, você tem escrito? Pedro, você deve ir. Pedro, para quem você está telefonando? Pedro, e seu novo livro, como está?" Ela cobrava, puxava o marido. Conseguiu que fosse Ministro, Catedrático de Direito, Reitor. Conseguiu que representassem o Brasil na coroação da Rainha Elizabeth. Já muito idoso, obrigou-o a participar de congresso na Europa. Ele era membro da maioria das grandes academias européias, recebera a maioria das comendas e condecorações. Sua "História do Brasil" tem 7 volumes. Respeitava-o a esquerda, que o citava. Mas ele era assim: aparecia, a pé, sem segurança, sozinho, no meio de uma passeata, no centro de uma assembléia de alunos. Circulava entre nós. E, apesar de tudo, sentíamos que era um dos nossos, que estava do nosso lado. Admitia críticas até grosseiras de frente, a que reagia com firmeza, mas nunca revelava ódio. Resistiu, o quanto pôde, ao cerco. Proibiu o Exército de entrar na Universidade, pondo-se no portão, com a famosa frase: "Aqui só se entra com vestibular!"
Seu vocabulário, mesmo no cotidiano, era requintado, especial, encantador, sublime. Ele encarnava a figura perfeita do "homem de letras". Na elegância do vestir, do andar, na dignidade gestual, no sorriso, no aristocrático porém simpático olhar. Impulsivo, arrebatado, emocional. Um dia, vindo em seu automóvel (sempre com chofer) na Cinelândia, a caminho do Instituto Histórico, viu um policial espancando um garoto.
"Pare o carro!" - grita para o chofer - e precipitou-se para o guarda aos berros: "Não faça isso! Não faça isso! Ele é apenas uma criança!"
Eu vi (claramente visto, e não creio que a vista me enganava, ali estava Tônia Carreiro e outros) durante uma das passeatas estudantis, na Avenida Rio Branco, sob estrondosas vaias, Pedro Calmon tentando fazer parar a passeata, e em prantos, chorando verdadeiramente, gritava: "Parem! Não provoquem! Não vamos radicalizar a crise". Tinha ele razão?
Quando morreu, nenhum jornal noticiou. Ou melhor, só o obituário. Eu senti a dor. Senti que morria algo ali, algo de nossa geração, algo meu. Era reacionário? Talvez até mais do que isto: ele era um aristocrata. Mas ninguém mais cortês, mais afável, mais bondoso, mais interessado nos outros. No bem-estar dos outros. Os presidentes militares jantavam em sua casa, ele era a própria elite em pessoa. Mas era uma pessoa boa. Que importa mais?
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VESPUCCI
Americus Vespucci, florentino de gênio que utilizou nos largos mares a ciência de Toscanelli, teve sobre os seus companheiros das viagens descobridoras a vantagem de um talento literário inquieto e ousado.
Na era dos nautas discretos - os grandes silenciosos da História - ele manejou um estilo. A sua rude mão de piloto a serviço de Espanha e Portugal empunhou, com a mesma naturalidade, o timão do barco e a pena das cartas noticiosas, que deram fama e curso aos seus feitos ilustres. A injustiça que amargaria Colombo, vendo chamar-se "América" o continente que achara, não é ingratidão de contemporâneos desatentos, porém êxito de escritor imaginoso. No começo do século XVI, Vespucci foi o Marco Polo do Ocidente. A relação epistolar de suas quatro expedições inspirou a Waldseemuller, geógrafo loreno, a proposta entusiasta e benévola de se lhe dar o nome ao "mundus novus". A idéia não prevaleceria não fora a sugestão, forte e amável, daquelas missivas bem traçadas, que em italiano, em latim, alvoroçavam pelas universidades os espíritos jovens e sonhadores. Assim apareceu a América. Usurpação visível duma propriedade: a do genovês que pudera desencantar o mistério do oceano sem amolecer o coração dos homens. Mas sucesso esplêndido duma literatura: a ênfase romanesca do navegador.
Roma consagrou-lhe os méritos. Francesco de Albertini, no "Opusculoum de mirabilibus novae & veteris urbs Romae", publicado em 1510, afirma ser Vespucci quem "primeiro descobriu ilhas e países ignotos"... Parece que os portugueses não concordam plenamente com esses títulos: tanto que, em 1507, se deixou ele atrair de novo pelo rei espanhol, indo amadurecer em Sevilha o plano, que Fernão de Magalhães realizaria na década seguinte, de procurar pelo sul do Novo Mundo a passagem marítima para as Molucas.
Iludir-se-ão - é certo - os que presumirem que o marinheiro de Florença era um impostor, um fútil ou um novelista.
A sua verdadeira fisionomia transparece da carta inédita que recentemente lhe divulgou Roberto Ridolfi (Una lettera inedita de Amerigo Vespucci, Firenze 1937, e Ancora sopra la lettera, Firenze, 1938).
Refere-se à sua terceira viagem, a de 1501, exatamente a que trouxe pela primeira vez às costas do Brasil e da Patagônia. Revela-o cosmógrafo erudito, senhor dos miúdos segredos da profissão dos físicos do mar (astrólogos práticos da balestilha e da observação das estrelas), antecipando-se até aos conhecimentos de sua época, nos cálculos da variação da agulha e das longitudes pelas conjunções lunares... Cita o rei Afonso o Sábio, Giovanni de Montereggio, Blanchino e Abraão Zacuto, cujos almanachs os pilotos de Lagos e Lisboa tinham posto nas mãos dos outros mareantes. O que nos espanta nos preparativos da grossa viagem de Magalhães, a altura de leste-oeste graças aos ensinamentos do português Rui Faleiro, capaz de esclarecer a rota do circunavegador através dos oceanos, dir-se-ia familiar a Vespucci, na maneira como se exprime: "dico et per iscuxarmi dal detto de malivoli dico averlo conosciuto nelli eclixi nelle congniunzione della luna colli pianeti..." Matemático das travessias, com a coragem de experimentar as suas idéias e o bom gosto de as versar numa linguagem humanista e galharda, o que lhe faltava era a constância. Supriu-lha a sorte. Foi o mais afortunado entre os pilotos que conduziram os estandartes católicos para estas plagas. E o mais célebre...
Em 1503, após ter percorrido o litoral da América do Sul de alto a baixo, deixou no Brasil vinte e quatro soldados numa feitoria, como guardiães da soberania lusitana ao pau de tinturaria, que os franceses já nos vinham disputar.
Ignora-se o exato sítio e o destino do estabelecimento.
Que fim tiveram os 24 companheiros de Americus?
Por não haver mais documento ou informação que deles diga, até às expedições de reconhecimento e polícia que el-rei D. Manuel mandou ao Brasil, é de crer que não resistissem aos índios hostis. Acabaram obscuramente na terra do seu exílio. O poderoso monarca não pôde ou não quis retirá-los da sua pobre "feitoria": e desapareceram com ela. O sombrio drama ficará para sempre ignorado.
As cartas de Vespucci, entretanto, impressionaram desigualmente as inteligências do seu tempo.
(Figuras de azulejo, 1939.)
ESPUMAS FLUTUANTES
Confessava outro e real amor, que não era a ela... "O sonho que os cadáveres renova, - o amor que o Lázaro arrancou da cova..." não era desejo de mulher, paixão ou desengano em braços egoístas. Metafísico e tardio, chamava-se... a Liberdade. Compreendessem-no: a Arte. Tudo isto queria dizer em linguagem que Leonídia perceberia com dificuldade - que tinha de retomar o caminho, e recolher-se à Bahia onde o esperava o livro. O livro e o túmulo.
Lampejos de melhora e esperança davam-lhe por vezes ímpetos formidáveis: assim foi o plano de consagrar à "república de Palmares" uma ilíada que começaria pela "Saudação", escrita em Santa Isabel, como um exercício de retórica.1 Mas por nada deste mundo lá ficaria, convalescente, enquanto os clarins da fama iam despertar o país, com o seu livro!
Leonídia e Franklin não lograram dissuadi-lo da viagem, que seria a última. Voltaram melancolicamente para o Curralinho. Em 30 de setembro, já da Bahia, contava a Luís Cornélio:
"Eis-me chegado do sertão. Estou melhor. Breve te mando o meu livro e com ele o meu retrato. Escrevo-te duas palavras quando tenho um livro que escrever-te. Recebi tua carta no sertão. Que prazer ela meu deu! Nem o imaginas. Ter um amigo como tu é ter duas vidas."
As Espumas flutuantes entraram para o prelo a 8 de julho (como neste dia lhe comunicara Augusto). O papel superava o da edição de Álvares de Azevedo; corriam prospetos, confiados a amigos, do Recife a S. Paulo; e andavam por 150 as assinaturas agenciadas por Francisco Lopes Guimarães: seria um triunfo!
A distribuição do bonito volume começou a 3 de novembro, primeiro para Luís Cornélio, depois para José de Alencar - com carta florida -, para o primo Dionísio Cerqueira, para o Dr. Mateus de Andrade, os colegas de S. Paulo e do Recife, que reconheceriam em muitos daqueles versos a lágrima e o sorriso que tinham testemunhado outrora. O retrato (da oficina de Alberto Henschel) saíra excelente: "Não pelo simples desejo de mostrar obra de autor de frontispício; mas para lhes provar que, apesar de tantas e tão boas, ainda não tenho as feições de um doente". Exultava. Parecia-lhe recompensada a vida de tantas e tão boas com o seu livro, a imortalidade do seu sentimento, o suor e o sangue misturados nesses cantos de seis anos de devaneio, alucinação, profecia e revolta. E como temia que lho atacassem! O seu coração batia nessas páginas mais sofridas do que escritas, em que se lhe desfiara a vida em pérolas soltas; não era apenas arte, porque também alma, e dor...
Enchera de amigos, em outubro, as salas do sobrado da Rua do Sodré: os de 1867, e novos, como João de Brito - que ia reeditar a Bahia Ilustrada , Eunápio Deiró, o Dr. Luís Álvares dos Santos, gente do Grêmio Literário, da Sociedade Abolicionista 7 de Setembro... "Depois da leitura de um poema" - em sessão literária - in prompto - (2 de outubro de 1870) são duas estrofes de Castro Alves produzidas num desses saraus, em que leu vários trechos de "Os Escravos" e cruzaram motes. O Dr. Luís Álvares pedia mote. E Castro:
O gênio é o Anteu moderno
Que eleva aos céus um país!
João de Brito glosou-o. Propôs Franco Meireles:
Ao ouvir-te deixa Apolo
A sua lira de tanger.
Acudiu o Dr. Luís Álvares. Versejaram mais Ernesto Carneiro e João Batista de Castro Rebelo Júnior.2 Era o "outeiro". Dava-lhe, com o calor da amizade que conforta, a ressonância de que precisava. Reapareceu no teatro a 14 de outubro - benefício do Grêmio Literário para ouvir José Joaquim da Palma recitar por ele a "Deusa incruenta", antítese que na véspera compusera à "Terribilis dea", de Pedro Luís.3 Publicada no ano anterior, como uma forte poesia belicosa ("Impressões de Riachuelo"), nesta trovejavam os hinos do triunfo. Outra guerra, porém, acabava de declarar-se, e agora, sem mais reservas, entre o germânico e o romano... como na era de Augusto. As primeiras notícias chegavam, tumultuárias: o delírio patriótico em Paris onde, como num sismo, a "marselhesa" sacudira o boulevard; a visagem dos couraceiros, dos batalhões azuis, da artilharia a rolar, em parada, pelas avenidas, como um sonho de império invencível: e entre nuvens de bombardeio o César eqüestre... Por quê? La france s’ennuie. O país morria de tédio; e desembaraçou-se dele aceitando como uma rude demonstração de vida a guerra fácil sem aliados, sem usinas Krupp e sem confiança política. La débâcle... O que o poeta, porém, não compreendia, era o primado da força, quando o século era ilustre, Hugo vaticinava a paz universal; e tinham a imprensa. A "deusa incruenta" é a imprensa;: curiosa circunstância, viera de leste.
Quando Ela se alteou das brumas da Alemanha,
Alva, grande, ideal, lavada em luz estranha,
Na destra suspendendo a estrela da manhã...
O espasmo de um fuzil correu nos horizontes...
Clareou-se o perfil dos alvacentos montes,
Das cimas do Peru às grimpas do Indostã.
Tinha na mão brilhante a trompa bronzeada!
Vestia o longo véu da vestal inspirada!
Era Palas talvez!... talvez um serafim!...
O albor de Beatriz, no imaginar do Dante!...
O olhar da Pitonisa em trípode gigante!
Do mundo Anjo da guarda enorme querubim!
Ergueu-se! Olhou de roda os planos do Universo...
No peito das nações seu braço longo, imenso
Palmou-lhe o estrepitar do estoso coração!...
Gênio e santa! a mulher um grito ergueu profundo.
Abriu braços de mãe pra acalentar o mundo,
Asas de sarafim abrigar a amplidão.
Rugiram de terror ao ver-lhe o rir sublime...
O sátrapa, o chacal, a tirania, o crime...
O abutre, o antro, o mocho, o erro, a escravidão!...
Disse a gruta pra o céu: "Que deusa é esta ingente?"
O espaço respondeu: "E a diva do ocidente!...
A consciência do mundo! O Eu da criação!"
Pregava ingenuamente aquela paz impossível: e antepunha aos exércitos os poetas. Toda a sua cólera de filho do espírito latino, de cidadão ideal do Olimpo em que os românticos, seus mestres, tinham tronos enfeitados de pâmpanos e uva, explodiria em fevereiro, ao converter-se o equívoco de 1870 no desastre de 1871. A França não podia morrer!
De outubro ainda são as poesias "para o livrinho de Iaiá Brasília" "A cestinha de costura", que tem a delicadeza do "laço de fita", e para o álbum de D. Maria Joaquina da Silva Freire, "Menina-e-Moça".4 Fatiga-se com as remessas do seu volume; sujeita-se às prescrições higiênicas que o Dr. Souto lhe receita; e sai às tardes a cavalo, o seu bonito cavalo "Richelieu", em passeios longos, olhado com admiração pelas moçoilas, saudado com respeito pelos transeuntes. Por que chamara assim o animal? Lembrava a tirania, cavalgada pelo gênio; ou simplesmente o Duque de Richelieu de um dos últimos papéis de Eugênia (que galantemente o representava) no Fênix, do Rio de Janeiro? Surpreendia; e isto bastava. A sua glória é então definitiva. Os críticos malévolos calavam-se. À noite, das janelas do Sodré se projetava na rua a claridade do salão literário freqüentado pelos jovens poetas, e estes, chegando ao gradil, veriam com melancolia que não havia luz na casa dos Amzalacks. As judias se tinham casado; ou viajavam. Augusto, aliás, prevenira-o, irônico: "Estive hoje na oficina fotográfica do Henschel. Vi lá uns sujeitos que me apontaram como i promessi sposi das duas pombas de esperanças no teu amar de escolhos, mau gosto tiveram as meninas! São uns lagartos que se vão colocar nos tais lírios dos vales orientais. Dou-te os sinceros pêsames, ou parabéns, porque deve ser uma consolação para os desprezados verem os seus anjos de luzes desposados com ruins marmanjos" (carta de 12 de fevereiro). Modelava-se no seu crepúsculo, feito de raios oblíquos, da luz que se extingue, e da penumbra que sobe, o fantasma de um amor derradeiro e casto.5 Chamava-se Agnese; era professora de canto de Adelaide, italiana de boas letras, vida honesta, quase bela, e que, à falta do marido, de quem se separara, tinha consigo a mãe velha. Mas gostava que lhe atribuíssem aventuras galantes, casos novelescos, namoros inconseqüentes que acompanhavam humildemente a sua trajetória de "Dom Juan"... Dissimulava a tosse; a jaqueta negra destacava a palidez fúnebre do rosto emagrecido; dava ao bigode fino um retoque petulante, de janota, torcendo-lhe as guias sobre o lábio exangue; e se achava belo. Havia uma viúva bonita na Rua do Areal, uma rapariga da vizinhança...6
Na sua janela da Rua do Bangala, faceira e inconstante, esperava-o Iaiá Brasília. Já velhinha, repetiria, como a sonhar, mostrando a janela vazia, aberta sobre uma ladeira triste: "Ali Castro Alves conversou várias vezes comigo, montado a cavalo, quando saía a passeio." 7 Ia até ao Rosário da Itapagipe, e ao luar cantarolava o Gondoleiro do Amor.8
1. D. Adelaide Castro Alves Guimarães muito no falou desse projeto, que o poeta acariciava nos últimos dias, dizendo ser a grande obra que já não podia fazer. Mas Augusto Guimarães, Gazeta Literária citada, disse ser um romance não um poema sobre a epopéia negra.
2. Xavier Marques, Vida de Castro Alves p. 157, porém dando a data de 22 de outubro, que substituímos por 2 de outubro, tendo em vista as duas estrofes "Depois da leitura de um poema", com a alusão explícita, "em sessão literária", cf. Afrânio Peixoto, Obras, p. 225.
3. Diário da Bahia, 15 de outubro de 1870: "Num dos intervalos um consócio presta-se a recitar uma brilhante poesia do festejado poeta nacional Castro Alves, expressamente composta para ser oferecida ao Grêmio intitulada "Deusa incruenta". E Diário de 18: "Recitaram também poesias apropriadas os Srs. Silva Lima, João de Brito e Vicente Ferreira de Sousa, além da poesia oferecida ao Grêmio Literário pelo Sr. Castro Alves, recitada pelo Sr. Palma. Foi uma belíssima noite."
4. Filha do Major Antonio de Sousa Vieira e de D. Ana Joaquina Vieira, nasceu Brasília na Bahia, a 28 de maio de 1847, e aí morreu, solteira, a 27 de setembro de 1927 (Alberto Silva, A musa dos níveos dedos, in A primeira cidade do Brasil, Bahia, 1952).
D. Maria Joaquina da Silva Freire foi depois mulher do Desembargador Cândido Leão, magistrado de muita autoridade, e senhora de largo prestígio social na Bahia de há meio século.
A primeira, Iaiá Brasília, foi namorada de Castro Alves. Acusava-a, risonhamente, de colecionadora de corações. Contava D. Adelaide que, no mármore de uma mesa, desenhou ele um leque, em cada uma das varetas o retrato de um dos seus namorados... Incluía-se na série. Morava ela na Rua do Bangala, como diremos.
5. "Era uma jovem e formosa italiana, atriz que viera com uma companhia lírica e na sociedade da Bahia ficara a ensinar piano e canto", Afrânio Peixoto, Castro Alves, D. Adelaide de Castro Alves Guimarães, sua discípula e amiga, nô-la descreveu com as cores simpáticas, da amizade grata. Fábio Luz (comunicação à Academia Carioca de Letras, 3 de janeiro de 1937), comentando o que a propósito escrevemos, fez algumas revelações sobre a vida íntima da cantora, na Bahia, em 1869-70, antes de a conhecer Castro: explicariam a sua residência ali.
6. Nas comemorações do decenário da morte do poeta, Belarmino Barreto, adversário teimoso, surgiu intempestivamente pela imprensa com a novidade, de que deixara uma filha, arredada das festas, e desvalida... Foi em O Monitor, 17 de julho de 1881, que se saiu o jornalista com esta história: "Havia ainda uma coisa que se devia ter feito a Castro Alves e não se fez. O poeta baiano deixou uma filha, hoje linda e pobre menina de onze para doze anos de idade. Não era natural que ela fosse aquinhoada com algum benefício nas demonstrações de entusiasmo que desperta o nome de seu pai, de que ela é herdeira?" Augusto Guimarães contestou formalmente pelo Diário da Bahia, de 19 de julho: "... Castro Alves nunca disse ter filha, nem a pessoa alguma de sua família, nem a qualquer de seus amigos, entre os quais tive a fortuna de ser considerado o mais íntimo. Devo também declarar que, durante o período não pequeno de dez anos, nunca a família de Castro Alves teve conhecimento da existência dessa filha, que asseveram ter o poeta deixado." Insistiu Belarmino a 20: "Essa menina chama-se Virgínia, reside à Ladeira de Santa Teresa, em companhia de sua mãe, e como filha de Castro Alves é reconhecida por muitas pessoas criteriosas." Augusto revidou-lhe a 21; e o outro patético, a 30, porém sem testemunhos ou papéis que se esclarecessem a reivindicação assim inconseqüente e, com isto, estranha à "vida histórica de Castro Alves". A alusão aos namoros do poeta devemos a D. Adelaide, sua irmã dileta, que sempre considerou infundada a notícia dada por Belarmino Barreto.
Virgínia casou-se em 1896, usando o sobrenome de Castro Alves, porém com a indicação apenas da filiação materna, Virgínia Hugo... (Certidões ms. de casamento, e batizado de uma filha, Alzira, cm. por D. Anfrísia Santiago). Por estes documentos se vê que a menina, apresentada a público por Belarmino, persistiu em considerar-se do sangue do Poeta. Este nada dissera!
7. Alberto Silva, A primeira cidade do Brasil, p. 183.
8. Valdemar Matos, op. cit., p. 120.
(A vida de Castro Alves, 1947.)
16 DE NOVEMBRO
FUGA PARA O MAR
Pela madrugada, na orla do cais, espocaram tiros. Um conflito, inconseqüente, de marinheiros e soldados da ronda. "No dia 16 [escreve Isabel] ainda entravam e saíram pessoas do palácio, mas os guardas aumentam, e não haviam meio de se reunirem grupos à roda do paço. Constantemente ouvem-se correrias de cavalaria em torno para espalhar a gente. Pelas 10 horas já ninguém podia penetrar, nem mesmo senhoras. Vimos por vezes, ainda que pouco chegássemos às janelas, alguns conhecidos que de longe nos cumprimentavam."1 O Conde d’Eu identificou alguns: "Paranaguá, Saraiva, Paulino, Correia, o ministro do Chile, que desde a véspera tinha oferecido os seus préstimos, Corumbá, pendurado a uma árvore". 2 Sinimbu conta ao amigo: "quando na manhã de 16 constou-me que a Família Imperial estava no Paço da Cidade, para lá me dirigi acompanhado de uma das minhas filhas. O palácio está cercado de tropas e a comunicação vedada. Debalde pedi ao comandante da força que me deixasse entrar. Foi-me isso peremptoriamente vedado. Felizmente chegou à varanda do paço o Marquês de Tamandaré, a quem pedi que se tornasse medianeiro de meus respeitosos cumprimentos à Família Imperial, voltando à minha residência com o coração triste e amargurado."3 Ao ministro de Inglaterra, o oficial da guarda objetou: "o presidente da República ainda não tinha chegado..."4 "All communication denied and the Imperial Family ordered to leave Brazil in 14 hours", informou o ministro americano.5 "L’Empereur Dom Pedro et la Famille Impériale sont gardés au Palais. Personne n’est admis à y entrer", avisou ao Quai d’Orsay Amelot de Chaillou. O ministro português perguntou urgentemente para Lisboa "se podia oferecer ao Imperador a hospitalidade do seu país" (soube-o às 5 da tarde de 16 de novembro o agente britânico George Petre).6
Um dos últimos a entrarem foi Moreira Pinto; apesar da jubilação controvertida; dizendo de sua gratidão ao imperador. "... Quando vi a sua fisionomia traduzindo a dor que lhe torturava a alma; quando vi a sua barba e os seus cabelos mal cuidados e embranquecidos pelos anos e pelos sofrimentos físicos e morais; quando vi aquele homem que durante sessenta anos presidira com patriotismo inexcedível os destinos deste país, cercado apenas por alguns amigos" (dirá Moreira Pinto), esteve a ponto de cair; quis beijar-lhe a mão, que retirou, num movimento delicado; e saiu "com os olhos marejados de lágrimas". 7
Boatejou-se, seriam transferidos para o Solimões, pequeno couraçado, que navegava meio submerso. As senhoras horrorizaram-se.
Foi quando apareceram os Carapebus, que tinham entrado sem ser vistos, pela porta dos fundos, aberta em segredo sobre o quintal vizinho. Era uma passagem oculta, por onde poderiam evadir-se, ganhando o porto, a dois passos; e o barco chileno que Villamil Blanco e o Comandante Bannen punham à disposição!
As opiniões divergiram. Mota Maia (segundo o Conde d’Eu) instava, que escapassem por mar, mas não para o navio estrangeiro; para Petrópolis, onde o imperador esperaria os recados de Saraiva. De lá se retiraria, se necessário, para Minas Gerais.
Era o plano da primeira hora, arejado pela porta que se abrira!
Carapebus preferia o Almirante Cochrane; a exemplo de D. Pedro I na nau inglesa, sem saber que em breve o fantasma da nau inglesa estenderia, pelas vibrações do telégrafo, a promessa inútil.
Confirma Muritiba, a idéia do asilo lhe foi levada "mas ele nobremente recusou a anuir a essa proposta".8 Que a idéia seduziu os circunstantes, mostra a minuta do Manifesto que chegou a ser feito, por Loreto e Muritiba.
"Aos Brasileiros! Até hoje de manhã esperava poder me conservar em paz no país que tanto amo. Infelizmente desde poucas horas acho-me sob o peso da profunda mágoa de ver-me privado da liberdade de ação que nunca neguei a nenhum brasileiro. Assim, tratado como um culpado, e tolhido na liberdade de ação que sempre encareci como direito garantido por nossas leis a todos os cidadãos, entendi não dever conservar-me em posição tão afrontosa. Busquei abrigo sob o pavilhão de uma nação amiga, enquanto não me é dado tomar outra deliberação."9
É imaginar o efeito que teria essa palavra, atirada de bordo do couraçado do Chile; sobretudo no meio internacional... Pois proibiu que lhe falassem nisso "com indignação" (remata o Conde d’Eu). "Passara grande parte do tempo a ler as suas pequenas revistas científicas", enquanto os conselheiros, apressados, escreviam o Manifesto. Não fugia! Pressentia que o mandariam embora. E como se iria embora sem dois livros ao menos? Disseram-lhe que podia escrever a Ramiz, em Petrópolis. Porque havia a porta... Escreveu-lhe, a lápis. "Dê-me a edição antiga de Camões que está numa caixa; também uma memória escrita pelo Castilho [José Feliciano] que a acompanha, e a edição francesa do Decameron de Boccacio."10
Para a ocasião contentar-se-ia com essas preciosidades; sobretudo o seu volume de Camões, que há quarenta e três anos o frade miguelista lhe mandara de Santa Catarina; com o autógrafo trêmulo do Poeta; o melhor que dele se pôde salvar; como diz Garrett!
Nem o humilde lugar onde repousam
As cinzas de Camões conhece o Luso.
"À VISTA DA REPRESENTAÇÃO"
"A Imperatriz deixou-se cair numa cadeira enquanto se ouviam gritos nervosos de uma de suas criadas de quarto [recordará o Conde d’Eu]. Isabel e quase todas as damas se puseram a chorar. Dória tratou de redigir a resposta que o Imperador devia dar, e chamou-se o major, a quem, depois de um largo tempo, foi ela entregue pelo Imperador, copiada e assinada de sua mão. Nesse momento o cordão das sentinelas foi retirado. Cuidou cada um de tomar as suas disposições."11
A resposta tinha de repassar-se de "tristeza e amor ao Brasil", pondera o ministro francês.12
Era solene:
"À vista da representação que me foi entregue hoje às 3 horas da tarde, resolvo, cedendo ao império das circunstâncias, partir, com toda a minha família, para a Europa, amanhã, deixando esta Pátria de nós estremecida, à qual me esforcei por dar constantes testemunhos de entranhado amor e dedicação, durante quase meio século em que desempenhei o cargo de chefe de Estado. Ausentando-me, pois, eu com todas as pessoas da minha família, conservarei do Brasil a mais saudosa lembrança, fazendo ardentes votos por sua grandeza e prosperidade."13
NA CALADA DA NOITE
Embarcariam no dia seguinte. Às 3 da tarde, informou Mota Maia para Petrópolis, em recado telegráfico à esposa. "Espero-te amanhã sem falta oito horas da manhã, embarcar Europa três horas da tarde."14
O Conde d’Eu telegrafou a Ramiz, descesse "amanhã de manhã com os meninos para este Paço da Cidade com toda bagagem prontos para seguir para a Europa".15 Comandada pelo Major Sólon, a guarda tomara o saguão do palácio. Linhas de sentinelas fechavam-lhe os acessos. Coadas através do cordão de armas embaladas, as notícias que chegavam eram de perplexidade e resignação; com fatos pitorescos. Que à janela da Câmara ao meio-dia de 15 (hora em que os batalhões voltavam aos quartéis), César Zama gritara à rua vazia, viva o Imperador!16 E na sessão preparatória do Senado, Lima Duarte esboçara o protesto. Paulino, da curul presidencial, interrompeu-o. "Mantendo hoje como sempre a estrita legalidade constitucional e observando o Regimento como me cumpre, não posso consentir debate que não seja restrito à constituição desta Câmara." Cansado de combater gloriosas ilegalidades, que o tinham espoliado e vencido na velha província, não condescenderia com aquela, em desagravo de... Ouro Preto! Encerrando a frustra sessão de 16 de novembro marcou a seguinte, para o primeiro dia útil... 18 de novembro! Na rua, como lhe sussurrassem que a revolução acabava também com o regime e o Senado! rematou a contrariedade com a sua ponta de chiste: Tudo isso era muito inconstitucional!
Distantes, confusos, esgueirando-se, entre os curiosos que no Largo do Paço contemplavam o prédio cercado e silencioso, surgiam políticos conhecidos. Alguns queriam fazer valer os títulos, a condição, a idade; e esbarravam na indiferença das sentinelas que os não deixavam passar. De positivo, havia a hospitalidade portuguesa. Foi o que às 11 e 30 de 17 de novembro Lord Salisbury comunicou à Rainha Vitória: "morning received from Mr. Wyndham dated yesterday. Portuguese Governement has offered hospitality to Imperial Family who are pratically prisionners in Palace". 17 Uma hipótese, seria a nau inglesa...
1. Apontamentos da princesa, ms. cit.
2. O Conde d’Eu à Barral, 19 de nov.
3. Sinimbu a Neto, dez. de 1889, ms. arq. do A.
4. 17 de nov. de 1889, ms. RA-de Windsor.
5. Despacho de Roberto Adams, 17 de nov. de 1889, Manuel Cardozo, Anuário do Museu Imperial, XV, p. 35. Também Lawrence F. Hill, Diplomatic Relations between the United States and Brazil, pp. 363 e segs., 1932.
6. Petre a Salisbury, ms. RA-de Windsor.
7. Leite Cordeiro, Rev. do Inst. Hist., vol. 196, p. 260. Simoens da Silva escreve o que viu então no paço, Rev. do Inst. Hist., vol. 194, p. 128 (1949).
8. 2o Barão de Muritiba, "Apontamentos", Rev. do Inst. Hist., vol. 252, p. 308.
9. Projeto de Manifesto, ms. A.C.I. A minuta corresponde à frustrada combinação da fuga pela porta secreta, de que falaram o Conde d’Eu, carta a Barral, e Muritiba, apontamentos referidos.
10. Bilhete a lápis, doado ao Inst. Hist. pelo Barão de Ramiz, que anotou: de D. Pedro II a ele Ramiz, 15 de nov. de 1889; colado à caixa que guarda o volume de Camões, no Inst. Hist.
11. Carta do Conde d’Eu, 19 de nov.
12. Ofício de 19 de nov., ms. Quai d’Orsay.
13. Original, na Casa de Rui Barbosa. Antes, o imperador tentou duas ou três vezes copiar; e esses borrões guardam-se no Museu Histórico Nacional. A minuta da resposta é da letra do Barão de Loreto (confirmando o que diz o Conde d’Eu), ms. A.C.I.
14. Manuel A. Velho da Mota Maia, O Conde de Mota Maia, p. 237.
15. W. de S. Ramiz Wright, Jornal do Comércio, 17 de mar. de 1940.
16. Afonso Celso, Oito Anos de Parlamento, p. 154.
17. George Petre, de Lisboa, a Lord Salisbury, ms. RA-de Windsor. "Confidential. The Minister of Foreign Office informs me that a telegram has been received from the Portuguese Minister asking if he may offer the hospitality of Portugal to the Emperor..." Do Rio, o ministro Wyndham confirmou: o governo português daria ao imperador a hospitalidade sugerida pelo seu representantes no Rio (ms. RA-de Windsor).
(História de D. Pedro II, 4o vol., capítulo XXXIV, 1975.)
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