segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

JORGE TUFIC





























RETRATO DE MÃE


Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?


Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.



Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?


Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.


Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.



Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?




Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.




Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?



Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.



Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.




Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.





Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro




Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.




RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA

Rogel Samuel



É um tema banal, popular, mesmo vulgar. A mãe, já tão gasto motivo dos cadernos poéticos e saudades, pois todos nós tivemos ou temos a mãe a saudar, a lembrar, a louvar, a chorar.

Mas Jorge Tufic é um poeta excepcional: com que realizou sua obra-prima, sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe, ou da personagem mãe.

O livro todo está no blog
http://jorge-tufic.blogspot.com/
O pequeno livro é uma obra-prima em quinze sonetos. Começa por uma invocação.
O que lemos aí é a invocação de um sabor (de um saber), de um elemento gustativo, a maçã, o trigo, me o visual, fios de luz, e o táctil elemento do vento, e os aromas, a paisagem, a planície, os montes e as noites, a pedra, a febre, o martírio.


Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios


Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, vem em fragmentos, pouco nítida, mas forte, sentida, ou pressentida, sim, começa ele a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe e que logo todos nós assumimos como nossa (quem consegue falar de sua mãe morta sem tornar-se piegas?), conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, a Fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.

Tema freudiano, pois.
E no segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso?

É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro. No livro há citações, pós-modernidade. Ou seja, a obra se diz: “Calma, eu sou apenas uma obra literária”.
A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança. A fonte do pão, do leite, da flor, do fruto. Mãe que é para “amar depois de perder”, como no verso de Drummond. Na verdade, Tufic, só de lembrá-la um soluço arrebenta-nos a crítica.

Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

Depois vem a casa, a cozinha, as comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, que a Mãe preparava... mas tudo isso passou. Onde estão as comidas, os pratos de lentilha, a terrina de azeite para as coalhadas, as cebolas fritas? Tudo passou... Como, ao redor da casa, o vento. Como passou o vento do tempo. Também passam a cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantantes, e passaram. E o que passa é aquele Calendário sem datas, o chão do passado, o que passa. A casa da mãe. O que passa. O chiar da frigideira. Os convites. O passado convida o leitor no seu chamado culinário: a mãe é aquela cozinheira das almas, das afetividades, da fraternidade, da ternura, o amor recende dessa mãe cozinheira, que ainda manda seus recados e canta, é assim que ela aparece, suada e infinitamente bela e luminosa, centro da vida familiar. Social.
A mãe é o corpo da “vida privada”.
O que significa vida familiar, vida privada?

A palavra “social” é de origem romana. Os gregos não a conheceram. Societas significava, para os romanos, uma aliança entre pessoas para um fim específico, “como quando os homens se organizavam para dominar outros ou para cometer um crime”.
O pensamento grego era diretamente oposto a esta organização “social”: essa associação natural cujo centro é constituído pela casa e pela família.
A pólis marcava a destruição de todas essas unidades organizadas à base do parentesco. A sociedade representa a família. O ser político, o viver na pólis “significava que tudo era decidido mediante palavras e persuasão, e não através da força ou violência” (ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.). Para os gregos, forçar alguém mediante a violência, ordenar ao invés de persuadir eram modos pré-políticos de lidar com as pessoas, típicos da vida fora da “pólis”, característica do lar e da família, na qual o chefe da família imperava com poderes despóticos; caracterizava a vida dos “bárbaros”, cuja organização era comparada à doméstica.
Toymbee analisou este estado de coisa no seu livro Helenismo (TOYNBEE, Arnold J. Helenismo. Rio de Janeiro, Zahar, 1963. 232p.), em que mostra como a vida familiar era considerada pelos gregos como um lugar onde os participantes estavam sujeitos à perda da liberdade, e à descaracterização de suas individualidades. A vida familiar, diz ele, mantém os homens presos a um elemento por que não optaram e a que não podiam renunciar sem uma violação à própria natureza.
Diz Toynbee:
A vida familiar mantém a humanidade como serva de uma Natureza não-humana. No seio da família, o ser humano não é personalidade independente, com um espírito e uma vontade próprios — é um rebento na arvore da família, que por sua vez e um ramo da árvore evolucionária da vida, cujas raízes mergulham nos abismos do subconsciente (p.55).

A tradução latina do homem como animal rationale é um erro de interpretação. Para Aristóteles (ver PETERS, F.E. Termos filosóficos gregos. Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1977. 273p.), o que elevava o homem não era a razão, mas o nous (p.163), isto é, a capacidade de contemplação cujo conteúdo não pode ser expresso por palavras. Todos que viviam fora da pólis eram aneu logou, destituídos não da faculdade de falar, mas de um modo de vida no qual só o discurso tinha valor e sentido, e não a compulsão, não a violência, característica dos povos bárbaros.

Hoje o mundo ocidental vive a nostalgia do antigo mundo grego. Pois na pólis, a mais hábil arma era a capacidade de discorrer uns com os outros, e de argumentar com palavras e não com a ação violenta. Neste sentido vive o mundo moderno fora da pólis, num estado pré-político, em estranha regressão.
Da pólis para a sociedade opera-se uma mudança de pensamento político. Na sociedade, o pensamento político já não é arte política, mas economia, economia social. O que chamamos sociedade passa a ser um conjunto de famílias organizadas do ponto de vista hoje burguês, num ser estrutural chamado Estado. Para os gregos, tudo que fosse econômico não era político, mas estava relacionado à esfera do apolítico da vida privada (isto é, privada de liberdade) da família. A vida privada era o lugar doméstico, privado por definição do espaço público, onde o dialogo era franco. Não é sem razão que os textos de Platão se chamam diálogos, isto é, através do logos. Na vida pública estava o espaço da liberdade dos homens livres, não da dependência, da interdependência. E os escravos eram considerados seres desprezíveis não porque estivessem na condição escrava, mas porque se sujeitavam à escravidão, não preferindo a morte, o suicídio, e não tendo a necessária coragem para a vida de risco e de perigo que constituía a vida dos homens livres, onde o perigo apesar de tudo estava sempre presente: pois outro conceito grego eminente era de que a liberdade — supremo bem a atingir — não significava segurança (inferior condição de sujeição a que estavam sujeitas as crianças e as mulheres), mas perigo e aventura, característica dos heróis.

A literatura grega é uma longa série de batalhas e de mortes, uma ampla apologia da aventura do espaço, da não resignação do homem com qualquer restrição ao seu existir. Homero, pois, principalmente, foi o pai da ética grega. E um herói grego estava na antítese de um moderno burguês.
Portanto, na organização da moderna sociedade burguesa reina o domínio da necessidade, não o espaço da liberdade.
O moderno é, por definição, passivamente adaptável, resignado e satisfeito com a sociedade e bem-estar que esta pode proporcionar-lhe. Um ser descaracterizado. A política da pólis não se mostrava meio de segurança social. As sociedades que se seguiram à pólis grega representaram um conjunto de interesses; seja a sociedade feudal, seja a sociedade burguesa, seja a sociedade socialista.
A liberdade, até o avento da sociedade moderna, significa não a liberdade individual, mas a liberdade social, o que começa a mudar no comportamento pós-moderno.
A força da violência está desempenhada atualmente pelo Estado, encarregado de vigiar e punir.
A força e a violência nascem, portanto, universalidade, da raiz da sobrevivência.
Para os gregos, toda forma de governo, tal como o entendemos hoje, representava um estágio totalitário, pré-político, em que predominam a submissão e a falta de espaço, formas desprezíveis de viver.
A vida familiar centralizada ao redor da “mãe”, assim como a vida pública, o espaço público, se refere à vida fora de casa, no espaço da cidade, manifestada pela figura paterna.
A vida familiar é o regaço, materno. O colo, o abrigo. Nela somos todos infantes.



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As noites voadoras de Jorge Tufic

Rogel Samuel

Na poesia de Tufic tudo voa, são estrelas, cintilam caminham no céu daquela Amazônia mítica, luas várias luas que se contam com as mãos, narrativas dos nossos mitos, viagem dos Desâna, canoas de cristal, transformadoras, estórias e sabenças de quem vive sozinho no meio do mato, faro de onça, muirakitãs da lua nua, que se despe na entressafra do amor,

despenca uma folha
e o verão estremece

Passarinhos que ouvem nossas conversas, na terra macia escrevemos nossos textos (nunca se sabe, tampouco, - porque se chama de vazio – o espaço da natureza).

Que será de ti, Amazônia? Cavidades, rangidos

Subitamente sou árvore,
flor, pássaro e livro.
Um livro cujas páginas
tomaram a cor e o risco
da música e da pedra.

..........
cinzel que não fere,
da jaula inconsútil.

(Texto escrito com “Quando as noites voavam”, de Jorge Tufic – Fortaleza, 2011.
Ele é o grande cantor da Amazônia!)










Pacote poético



Rogel Samuel






Recebo um pacote pelo correio, um pacote amarelo que apalpo e que sinto, há objetos dentro, possivelmente livros: sim, são cinco novos livros de Jorge Tufic que eu lhe pedi pelo telefone e eu fico me lembrando que, há quarenta e três anos atrás, ele publicava o seu já clássico Varanda de pássaros.

Como pode Jorge Tufic manter 43 anos ininterruptos de poesia apesar da crise por que passa a produção cultural brasileira e a amazonense em particular? Porque depois daquele grupo do Clube da madrugada muito pouco produziu a poesia de Manaus.

Eu adolescente e Tufic já era dono de uma poderosa lira que se afirmava principalmente nos seus sonetos extraordinariamente inovadores. Na década de 80 nós nos correspondíamos, depois ele se foi para Fortaleza e o perdi de vista. Soube que foi homenageado no Rio de Janeiro, onde moro, mas não o vi porque estava viajando.

A última vez que o encontrei foi no ano passado, em Manaus, no Galo carijó, onde gosto de almoçar sempre que estou em Manaus (também deparei ali com o Thiago de Melo, donde se conclui ser aquele bar um ponto da poesia presente).

Agora, além de seus cinco livros, vieram várias pequenas publicações, entre as quais o belíssimo Agendário de sombras, uma coleção de sonetos dos quais cito, ao acaso:

Necessito do rio e da paisagem
que me vira partir quando menino.
da visão surpreendida ou desse quanto
pode haver em redor do meu destino.
eram coisas e seres do meu tempo,
partes de mim que a vida, em seu balanço,
foi deixando passar, nuvem sujeita
aos ventos, matéria sujeita ao ranço,
rubros sóis de verão, coleita breve
de azeitonas e ocasos, também contam.
Soldado entregue ao chumbo dos brinquedos,
ao som, talvez, das águas deste inverno,
quero sentir na pele evanescente
como eu seria agora, antigamente.

Ao poetas menores como eu, Tufic humilha, com a força da sua Linguagem: mas como pessoa ele tem a gentileza dos mais nobres corações e nos brindou com imerecidas dedicatórias.

Dentre sua produção recente, no ano passado ele publicou Sinos de papel, um delicioso livro de haikais que bastaria para o consagrar:

Paineira caiada
Por uma lua de espuma
Tão cheia de nada.

Jorge Alaúzo Tufic nasceu no dia 13 de agosto de 1930 e publicou seu primeiro livro aos 25 anos. A Amazônia dele se orgulha.


(Rio, 30 de setembro de 1999)





alguns dos "sinos de papel"





Jorge Tufic








oculto no dom
de não ser ninguém
o grilo é som...



pétalas de mim
cultivo num jarro velho
que já foi jardim



em tantra medito
o saber é uma pedra
a mulher, o seu grito



ah, delicadeza
a mosca, senhora tosca
baila sobre a mesa


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ODE À AMÉRICA DO SUL


Que o boné de Pablo Neruda
e a lágrima fluvial de Santos Chocano,
e o grito de Allende
(enquanto os fuzis do terror e do medo
repetiam o massacre da liberdade),
venham flocar este chão consagrado
por tantos modos e cantos diferentes,
oh América do Sul.
Os cravos de tuas noites mergulham
na plumagem das Cordilheiras,
e os ramos da paz que te ilumina
e o relincho das pedras que desenham
bisontes e tempestades,
pousam como fósseis alados
em tuas crinas de esmeralda.
De Santa Marta à Terra do Fogo
tuas espigas rebentam colares de jade
e cintilam nas máscaras de ouro
roubadas aos templos do sol
e às pirâmides da lua.
E ao sopro nativo da flauta
exilada entre colméias,
um tesouro de vasos, borboletas
e animais de uma fauna imaginária,
sacode o pó da argila e do granito
em suaves movimentos.
Atlantes e Laoccontes
vigiam tuas muralhas indormidas,
mas deixam livres as fronteiras do sonho.


















II

Com a espada de Bolívar
e a prosa rubra e latejante de Sarmiento;
com as vestes de Antonio Conselheiro
e a nervura semântica de Euclides da Cunha;
com a suavidade de um verso de Lugones
e os contos gauchescos de Simões Lopes Neto;
com os arcos e flechas dos incas e aimarás
e a clepsidra das ruínas de Zaculén;
com as cinzas do uirapuru do Amazonas
e os depurados muirakitãs do Espelho da Lua,
eu te louvo, América do Sul,
agora que revejo tua cerâmica do Marajó,
tuas matas e teus rios,
tuas cidades e tuas pontes,
teus barcos possantes, tuas fábricas
e tuas manchetes; e ouço a voz
dos teus regatos, as canções de teus povos
e vejo, deslumbrado,
que uma ciranda feita de arrulhos e girassóis
te enlaça, constantemente,
do Atlântico semeado de praias
ao Pacífico de pássaros
e fontes azuladas.

























III


Quantos martírios e sucessos
pontilham tuas manchas ocres
em cada solo ferido ou conquistado!
Lembras-te, por acaso, dos gestos em forma de dança
de teus ancestrais caribenhos?
Do milho cor de cereja dos Aruakes?
Dos artefatos barrancoides dos Walpés?
Dos dialetos tecidos com a envira do silêncio
e a toada dos riachos verdejando os caminhos?
Da antigüidade seletiva dos tucanos,
muras e cambebas?
Lembras-te, por acaso,
da bola de sernambi que estes últimos
te deram, ainda em pleno século XVII,
e do jogo que eles jogavam
num campo sem traves e sem torcidas?


Numa rede de dormir
os brancos degustam teu massacre
mas olvidam o teu legado,
esse imenso legado que sucedera ao jugo,
impiedoso e cruel,
daqueles teus primeiros habitantes,
plantadores de sombras,
raízes da terra.
Guitarras, malária, devastação e confisco,
eles trouxeram de tudo.
Mas tomam caxiri no delicado suporte
de uma cuia rústica ou pitinga;
alimentam-se de farinha de mandioca
e têm muito de si no caboclo que se espreguiça
para não ir ao trabalho;
e têm muito de si na mestiça que se vende
por las calles y los pueblos;
e têm muito de si, também,
nessa fusão de sons e melodias
que fizeram do nheengatu das águas pretas
a língua franca dos mitos
e do lendário esquecido.








IV

Imitas um coração populoso e tranqüilo.
Tens a forma de harpa ou alaúde
com doze cordas festivas.
E ainda podes ser vista como um rosto enigmático
voltado para si mesmo.
Desigualdades e semelhanças predominam
assim, de um lado e de outro,
entre vales, planícies e altiplanos.
Em qualquer Atlas se lê, por exemplo,
que há fome na Bolívia,
que há tango, festas e greves na Argentina,
que o Chile exporta minérios e vinhos,
que o Brasil é o maior destes países,
que o Equador tem reservas de prata e ouro,
que o Peru não se expande,
que o Paraguai continua bloqueado
sem saídas para o mar.
Em teu próprio nome, oh América do Sul,
e em nome da história que te deram,
hás de entender, no entanto,
que ninguém pode ser feliz
quando está cercado pela miséria,
seja a miséria do egoísmo,
seja a miséria das guerras;
que ninguém pode ter paz
quando há golpes e matanças
do outro lado de suas fronteiras.
Hás de saber entrementes que,
por cima da fala dos caudilhos,
paira a linguagem fluida ou tormentosa
daqueles que te celebram;
inclusive daqueles que apodrecem em tuas mansardas
ou se debruçam nas torres de vidro;
ou daqueles, ainda, que se confundem
com os traços das telas que azedam em teus sótãos
e em tuas águas-furtadas.
Estes homens de letras ou picassos anônimos
entregues à corrosão que desfigura
e ao abandono que mata.












V

Quantos equívocos te cercam
antes e após a descoberta, por ti,
do torno do oleiro, da roda e do arado?
Que simpáticas figuras transoceânicas
poderiam ter-te doado,
oh América do Sul,
carrinhos votivos de cerâmica,
travesseiros de barro
e selos em forma de bujarronas?
E as tuas escritas?
Terão sido trazidas por quem
- fenícios, gregos, romanos –
se colocam na origem de teus índios?
Fascina acreditar, em vez disso,
que provenhas, isto sim,
de alguma centelha que se fez Avalon,
Atlântida ou Atlas,
segundo escrevem as aves migratórias
quando te buscam nos pélagos,
e adivinham teus ecos profundos
nas cavidades do espanto.





























VI

A cidade perdida dos incas
são tantas cidades quanto as portadas
que levam à presença do sol;
e dali ao rio de espelhos e cardumes intactos,
e dali às cavernas talhadas a ouro,
e dali aos túmulos daqueles que sucumbiram
ao peso dos colossos que protegem a montanha
das patas ecoantes de Espanha.

Em cada milímetro quadrado
das alturas que saltaram de mares incalculáveis,
Amarus confundem a inteligência
dos homens de Pizarro.
Labirintos ficaram, boiunas coleiam
na ouriversaria das auroras.
E ninguém poderá decifrá-las.

Para Iucay se evadira Manco.
E uma das primeiras guerrilhas da história
consegue fazer das trilhas enganosas
o desgastante baralho das Cordilheiras.
A imagem de raios solares
com mais de cem toneladas,
em que leito de Vilcabamba
terá se consumido em miríades de estrelas?

Em Cajamarca, enfim, morrera Atahualpa.
Em Viticos, chega a vez de Manco Inca.
Sayri Tupã e Tito Cusi também foram imolados.
Tupac Amaru expira em Cuzco
levando no olhar a música do império.

















VII

Grande é o solar do tempo nesta aldeia
onde um galope nunca se interrompe.
Este chão de Pizarro em Guamachucho
de lavas contraídas pelo medo.
Escarpas traçam rápidas figuras,
pousam brilhos de séculos vencidos.
E um velho terremoto, agora fóssil,
arroja um tigre do alto de um penedo.
A noite é um vinho branco. Mas o sangue
que transborda do lago, não descansa:
quer vingar a cobiça, o fogo e a traição,
estes três assassinos de Atahualpa,
daquele em cujo peito o sol dos incas
despedaça o seu último clarão.


VIII

Nos porões soterrados debaixo
das cidades, deuses animais de terracota
aparecem ao lado da serpente,
e ao lado da serpente
paradigmas antropomórficos.
Foi assim que teus nativos,
pescadores de Valdívia,
dominaram os ornatos circulares:
perfis abstratos,
bizarras entidades híbridas
sobressaem nos relevos celestes;
e ao lado destes, ardósias cônicas,
traçados olmecas.

Um portal contendo símbolos xamãs
e sarcófagos dourados,
torna visível o silêncio dos mortos
na estática de teus músculos altivos
prateados de neve.

A Quinta Era, afirmam ali,
pertence a Tonatiú, o deus Sol,
habitante dos leques das palmeiras;
e há de ser confirmada por graves,
extensos abalos.
Pumas alertam para as ameaças que sobem
das Ilhas Arqueanas.





IX (a lição dos rios)

Tentando lavar este sangue
inutilmente derramado,
de cinco mil metros de altura despenca o Vilcanota;
ele vai mudando de nomes
até unir-se às águas revoltas
do lendário Urubamba.
Este, por sua vez, se socorre do Apurimac,
quando formam, juntos,
o Rio Amazonas.

Muito tarde, porém.
Um grande exemplo despercebido.

Esses rumores até hoje incessantes,
este chamado das vertentes comuns,
somente os poetas o sabem distinguir
na diversidade que amalgama
e na dor que ensina.
































X (balada enquanto seja)

Ao contrário de outras águas,
nosso rio é movimento,
serpe andina em debandada
vai ele em busca do mar;
desde que nasce de um fio
por ondas rola barrento,
vem à tona e vira vento,
é estirão que sai do nada.

Rio de lendas ficou,
matreiro, curvo e norato,
seu berço de concha e lua,
com três nomes de batismo,
três caminhos sete bocas
por onde bebe a tormenta;
mas tem mágicas, puçangas,
e a cada estória, se aumenta.

Pântano cósmico, diz-se
por quem o lê pelo avesso,
por quem ouve a queixa inata,
por quem adentra seus peixes,
por quem taboca faz beiço
e sopra o fogo da enchente,
pois este rio é começo
da febre que torra a gente.

Ao contrário de outras águas,
o Amazonas, como um todo,
pode tornar a seu fio
como náufrago do lodo.


















XI (Thiago de Mello)

Por caminhos de San Tiago,
volta o poeta das angras
a quem doara o seu canto
pela causa dos humildes.

Levara o corpo sadio,
como quem leva a esperança
marcada a fogo no brigue
que, novo, se lança ao mar.

Os Estatutos do Homem
riscando o teto da noite
com seus mastros decididos,
quantos vilões não cegaram!

Mas, igual à copa náutica
das sapopemas gigantes,
que pelas vias de Tiago
desprendem flocos de sonho,

retorna, depois da luta
para o feno das raízes:
a copa – rica de estrelas,
o tronco – de cicatrizes.


























XII (a Pedra do Reino)


Como então esquecer,
neste painel de teus milagres,
oh América do Sul,
a oficina armorial desse múltiplo Ariano Suassuna,
a poesia e a prosa que se deixam fundir
em seu romance d´A Pedra do Reino?
Assim também, igualmente,
como esquecer os poemas de Carlos Newton Júnior,
a cerâmica de Côca,
as lâminas e os palimpsestos de Virgílio Maia
ou a tenda agreste, mística e versátil de Audifax Rios?
E como esquecer as andanças dos ¨padeiros¨cearenses
em busca das cacimbas,
do aboio crepuscular,
do alpendre de seus avós e da espada
de algum rei com sua túnica de abelhas?
Pois é das artes desse Ariano vulcânico
e de seus valerosos cavaleiros,
as surpreendentes iluminogravuras,
diante das quais apenas o arco-íris, o novilúnio
e as doze talhas apócrifas da Via Dolorosa,
não são réplicas inúteis.

























XIII (entrefala e louvação)


Deixemos, portanto, as amoras,
o etéreo veludo celeste, o filme vazio,
a novela das oito
e as ruas por onde não passaram
bandeiras despedaçadas por um grito maior
que a esperança dos mortos.

Deixemos de lado as violetas
que ardem nos versos prematuros
daqueles que nunca percebem o gemido
das salamandras
nem a fuga dos girassóis alucinados.

Deixemos de lado o jarro de Matisse,
a gôndola que imita o cisne de Isolda,
as olheiras roxas das janelas caiadas
pelo terror dos massacres.

Louvemos Neruda que, em sorvos miúdos,
provara do vinho amassado com a terra,
o suor e as lágrimas de quantos,
no Chile, na Espanha e na Turquia,
conseguiram, em seus momentos finais,
erguer a face do entulho e da lama,
cuspir na bota dos tiranos.

Louvemos Neruda pelos gestos perenes
de salvar um carneiro da morte,
uma rosa da escuridão e muitos,
centenas de amigos,
do cárcere infecto e da bofetada humilhante.

Saudemos Neruda
com uma taça de beija-flores.














XIV (sursum corda habemus)


O giro vesperal das andorinhas
sobrevoa os transcursos das cordilheiras;
paira, depois, sobre os telhados gastos
pelo mofo dos armários vazios
e o esquecimento das chuvas.
Elas tomam as sereias de tuas falanges,
dedilham a ira dos terremotos.
Mais do que nunca teu coração vacila,
mas sente-se pleno em curtir a polêmica união
entre o Ocidente dos filósofos
e a pátria dos cardos ensolarados.
Terá sido esta a pausa dos monumentos,
o tremor que se estabiliza nos ossos,
a reflexão que se deixou cair das pálpebras de água
no enterro dos navios.

Uma sombra te acompanha desde que nasceste,
orográfico e triste,
de pais que vestiam a paisagem dos trens de ferro
com os andrajos da mulher de Bolívar,
a insepulta de Paita.
Teus versos são lições de uma geografia da alma,
rochedos floridos de ternura.
Soltos na madrugada,
eles rastreiam fragrâncias, matizes,
números e signos gravados na espuma
e no cansaço das festas.
São metáforas da hora incalculável,
a incrível marca do passageiro.

Depois das estradas, Neruda,
o amor te concedera uma pausa,
um silêncio neutro que irrompe dos tanques
cobertos pelo trigo;
uma pausa que pergunta a cada coisa
se tem algo mais. E a cada palavra
endereça uma rosa. Neruda épico, lírico,
e que tampouco deixa de seguir os passos noturnos
de Lautrèamont, de Pascal e dos Três Mosqueteiros.


Teus cantos são cantarias de luar,
pólens de ouro e neblina.
Oh América do Sul


(Publicado no jornal O PÃO de Fortaleza-CE, Ano V-No. 36-em 13-12-1996). Atualizado em 2008)..




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Guimarães e Tufic



O ilustre poeta e ensaísta Jorge Tufic, como membro do Clube da Madrugada, recepcionou e foi hostess do escritor Guimarães Rosa quando este esteve pela primeira e única vez em Manaus, em 15 de janeiro de 1967. É sobre esse encontro, ocorrido há 42 anos, que Tufic nos conta um pouco.



Revista Literária – O que Guimarães Rosa veio fazer em Manaus naquele ano de 1967?

Jorge Tufic: Guimarães Rosa esteve em Manaus de passagem para uma reunião diplomática, se não me engano, em Bogotá, na Colômbia. Questões lindeiras.



RL – De quais atividades, culturais ou não, ele participou na cidade?

JT: Não houve tempo para isso. GR nos dera a impressão de que estava querendo aproveitar os dois dias que passaria em Manaus, a) conhecendo o Clube da Madrugada e b) ultimando questões diplomáticas do Itamarati (ao mesmo tempo em que se empenhava em experimentar um suco de taperebá). Tentei ajudá-lo nesse último desejo, mas, lamentavelmente, ainda não era época da fruta.



RL – A vinda do escritor famoso mexeu com a comunidade literária de Manaus? Cite nomes de quem participou da estada dele na cidade.

JT: De fato, mexeu com a turma do Clube. O restante dos intelectuais e escritores da terra, visceralmente apegados à tradição acadêmica, ficara à distância. Tanto que não houve imprensa nem fotógrafo no jantar que lhe fora oferecido pelo Clube da Madrugada, ali na Peixaria do Balaio, ou do velho Francisco, ao lado fluvial da Igreja dos Educandos. O Clube em peso compareceu ao ágape: Aluisio Sampaio, Ernesto Pinho Filho, Afrânio Castro, Saul Benchimol, Francisco Batista, Sebastião Norões, Farias de Carvalho, todos, enfim, com algumas exceções. Vale informar que ele, o grande Guimarães Rosa, ficou na berlinda diante de seus mais aferrados leitores, como Ernesto Pinho e Aluisio Sampaio, dando respostas breves, contudo substanciais quanto às personagens realmente polêmicas de seus romances, a exemplo de Grande Sertão Veredas e Sagarana. Outro fato histórico nessa sua rápida passagem por Manaus: dali a uma semana o nosso ilustre visitante tomaria posse na Academia Brasileira de Letras. Logo a seguir, se “encantaria”.



RL – Que impressões, em você, ficaram dele?
JT: Impressões indefiníveis só comparáveis a um prêmio que eu tivesse recebido, ainda sem o merecer. GR era um ser todo afeto, carinho verbal, solicitude, companheirismo nas andanças por onde quer que o levássemos, talvez para demonstrar com isso a plenitude da criatura, antes do criador. Quanta saudade ainda hoje sinto dele, quase uma falta, apesar das poucas horas de nosso contato.



João Guimarães Rosa, mais conhecido como Guimarães Rosa, nasceu em Cordisburgo, Minas Gerais, em 27 de junho de 1908. Foi um dos mais importantes escritores brasileiros de todos os tempos, bem como médico e diplomata.

Os contos e romances escritos por Guimarães Rosa ambientam-se quase todos no chamado sertão brasileiro. A sua obra destaca-se, sobretudo, pelas inovações de linguagem, sendo marcada pela influência de falares populares e regionais. Tudo isso, somado a sua erudição, permitiu a criação de inúmeros vocábulos a partir de arcaísmos e palavras populares, invenções e intervenções semânticas e sintáticas.

O escritor morreu de infarto, dez meses depois de ter vindo a Manaus, em 19 de novembro de 1967, no Rio de Janeiro.

Guimarães Rosa em Manaus

Jorge Tufic, jorgetufic@hotmail.com



Considero imperdoável a omissão de um fotógrafo no jantar, a céu aberto, que o Clube da Madrugada ofereceu ao romancista João Guimarães Rosa, em sua única visita a Manaus, ocorrida a 15 de janeiro de 1967. Vinha o escritor em missão diplomática, mas a primeira coisa lembrada por ele não foram os pontos turísticos nem os homens de letras. Foi um refresco de taperebá. Pronunciava o nome da fruta com a mesma ênfase, o mesmo carinho ácido, a mesma teimosia infantil com que dava ao buriti de seu lugar de nascimento o feitio acabado de uma personagem de suas novelas. Este episódio tipicamente roseano é aludido pelo ensaísta Ítalo Gurgel, no estudo admirável que publica sobre “João: Um Vaqueiro de Cartola”: “As alusões ao buriti tornam-se, às vezes, quase obsessivas, como neste trecho do conto “Cara-de-Bronze”: “... e água, e alegre relva arrozã, só nos transvales, cada qual, se refletem, orlantes, o cheiroso sassafrás, a buritirana espinhosa, e os buritis, os ramilhetes dos buritizais, os buritizais, os buritizais, os buritis bebentes”. E Carlos Drumond de Andrade, mineiro como o nosso ex-diplomata, indaga num poema dedicado ao conterrâneo: “Tinha pastos, buritis plantados/ no apartamento?/ no peito?”.



(Trecho de uma crônica de Jorge Tufic, no seu livro “Tio José”, sobre a primeira e única vinda de Guimarães Rosa a Manaus, há 42 anos).


AO FINGIDOR


Jorge Tufic

Revejo a praça, o bar, o teatro, a igreja.
A tarde deixa o dia ali na esquina.
Logo chega o Simão, e a noite ensina
que antes do papo venha uma cerveja.

Agora o bar do Armando é uma oficina.
Em cada peito um fingidor lateja...
Zemaria sussurra, alguém troveja,
mas tudo é festa, brinde, serpentina.

Que seria de nós ou da Poesia,
se além da “crise” bar virasse banco,
praça, estacionamento, o que seria

das estrelas, do nimbo e do luar,
se de repente um verso – azul ou branco –
já não tivesse mais onde pousar?

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QUASE TEATRO – PURO CINEMA




Almir Gomes de Castro lança um livro surpreendente –Kuriquiã --,biografia romanceada, de sopro épico. É a vida, na região acreana do Alto Purus, de imigrantes da família do brilhante poeta Jorge Tufic, que lá abriu os olhos para o mundo e viveu a infância e além dela, transferindo-se depois para Manaus. Vale-se Almir da primeira pessoa, como se o poeta contasse essa odisséia dos que vieram de longe, além mar, nordestinos e habitantes da selva, com os seus segredos, sustos, dura realidade e lendas, em amostragem um tanto teatral e cinematográfica. Surpreendente como o autor praticamente tudo transferiu para o campo das falas, exsurgindo disto uma visão bastante impressionista das personagens e da região. O narrativo, com isto, comanda a história, e o descritivo tornou-se quase elíptico, sem perder nenhuma qualidade criadora ou desvirtuamento da verdade. E o curioso vai mais longe: o poeta Jorge Tufic, personagem principal, narrador, pouco aparece, mas está presente nas entrelinhas como uma sombra quase palpável, e o drama e a trama da história fogem do caminho estreito e se ampliam na vida das personagens e da região.
Eu sabia palidamente das origens acreanas do grande poeta Jorge Tufic. E agora, neste livro, vi, palpitando, em que mundo ele nasceu ,cresceu e absorveu desse mundo real e encantado, sem perder os liames seculares dos seus. A ótica narrativa abre-se muito, com suas tramas difusas e ao mesmo tempo unas, trazendo ao vivo a vida das personagens, e ele, o poeta, parecendo se resguardar, não fica em segundo plano, eis que é um espelho acompanhando tudo de perto.
A ascensão do poeta na vida, em Manaus, e projetando-se nacionalmente, vem em fulguração rápida. O livro é um recado: este é o seu passado, estas as suas raízes, laboratório da sua caminhada. E aqui chegou com nova arte poética, respeitada e admirada no país inteiro.
Este livro é cinema. Daria um belo filme.
Almir Gomes de Castro soube treliçar e destreliçar os cordéis para escrevê-lo. E o poeta é mais do que merecedor desta quase prece.
É tão fácil tirar a prova... Bastará ler o livro.


Caio Porfírio Carneiro



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