quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

LUIZ BACELLAR












LUIZ BACELLAR
Rogel Samuel



Ele é o poeta maior da Amazônia. Escreveu pouco. Retrata tardes
manauaras, quentes, ensolaradas, vazias, quase inúteis. Fala de
quintais, saputilheira, dos sanhaçus, da prata das aranhas. Da infância,
da "PORTA PARA O QUINTAL":

Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...

Ele já viveu numa casa brasileira bem grande. Bem interiorana. Conhece a
porta, sua paisagem - o quintal, árvores, varais, infâncias, o passado.
A porta para o quintal dá para vida voltada sobre si mesma, para dentro,
o recolhido, uterino. Não a porta do espaço público. Mas do interno. A
rua difere, como no "rondel da cana":

caba - colete
rolete - cana
danças na rua
tua pavana,
dança que a tua
dança é geral
dançada ao vento
do canavial

Há uma hierarquia metafísica na poesia, na poética do seu encontro com
sua cidade. A poesia de unidade, de tempo, aquela cidade ficava uma
pacata província pós-moderna (moderno foi o extrativismo da borracha),
pós-modernismo decadentista, o da econômica crise dos 50 anos - de 1912
a 1962.
No texto fragmentos do passado recente, destruído pela civilização de
shopping da "zona franca". Manaus devagar, tudo se centralizava na
Avenida Eduardo Ribeiro e poucas mais. Manaus de chafarizes, estatuária
afrancesados. Manaus das tacacazeiras. Da lembrança.

Ponha, numa cuia açu
ou numa cuia mirim
burnida de cumatê:
camarões secos, com casca,
folhas de jambu cozido
e goma de tapioca.
Sirva fervendo, pelando,
o caldo de tucupi,
depois tempere a seu gosto:
um pouco de sal, pimenta
malagueta ou murupi.
Quem beber mais de 3 cuias
bebe fogo de velório.
Se você gostar me espere
na esquina do purgatório.
(Receita de tacacá)

Às vezes o poema se inventa clássico, como no "rondel do sapoti":

pardo mamilo
de cunhatã
que aromatizas
o ar da manhã
tua rosa polpa
destila mel
poma leitosa
doce farnel

tuas duras folhas
verdes espelhos
bisando o sol
a passarada
te faz varanda
para o arrebol

Quando vou a Manaus, das primeiras pessoas que encontro é Bacellar. Ele
aparece, fidalgo (que é), sai da moldura de um quadro de símbolos
antigos: pontes, feiras, S. Jorge, Cachoeirinha, São Sebastião. Sai com
seus "Sonetos provincianos", "Três noturnos municipais", "Romanceiro
suburbano", "Sol de feira". Existe um caso de amor com aaquela cidade
em cada poema. Ele a ama, e nela se reconhece:

Como um prisioneiro
a lua me espia pelas
grades do banheiro.





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7 HAIKU

L Bacellar


Névoa da manhã
e o pio do caboré
com frio.

Alguidar de barro
deixado ao relento.
Nadam girinos.


Esse vento que tem
gosto de melaço,vem
lá do canavial.

Ah... pingos frios
Sobre as pêonias.
Garoa noturna.


Um barulho mole
depois esse cheiro...
Caiu uma jaca!


Um novelo
desmancha outro novelo.
Um gatinho.

Sempre atarefado
o vento frio do outono
varre folhas secas.




Um Pincel de Barba


Estava ali
sobre o muro
do pátio ao sol.
Para esterilizar
e secar
depois de eu ter rapada
a cara.

Blairreau,
objeto de luxo,
pêlos de texugo
(o guaxinim nordestino
que pesca caranguejo
enfiando o rabo nos buracos do mangue,
e fica ganindo baixinho, esperando
o ataque das pinças
para puxá-lo,
lavá-lo e
comê-lo.)

E veio aquela
violenta ventania
o transforma num cometa:
peluda cauda esparramada,
o cabo de lucite faiscante,
— semente de dente-de-leão
ao vento abrindo o pára-quedas natural —
vai cair do vizinho
no quintal.

Então
vem-me a tentação
de deixá-lo por ali
sobre o monturo
qual numa semente cristalina uma
flor.





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Soneto da Caixa de Fósforos


Minha cápsula de incêndios,
meu cofre de labaredas!
Meu pelotão de alva farda
e altas barretinas pretas:
se só num níquel quem vende-os
lhes aquilata o valor,
teus granadeiros da guarda
não se inflamam de pudor!
Fiat Lux do meu verso,
símbolo vivo do amor:
qualquer fricção te incendeia,

te arranca estrelas de dor,
minha gaveta de chamas
com sementes de calor.





("Frauta de Barro", 1963)



Balada das 13 Casas


São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.

E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.

Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.

Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e "elegante"
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.

Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem "viveu" outra idade
das 13 casas da rua.

Senhora Dona Donana
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.





( "Frauta de Barro", 1963)




O lírio levanta
no meio da noite
seu copo de leite


Se o laço do obi
voasse ao ikebana.
Borboleta azul?



Formigas na porta
carregam o corpo
da cigarra morta.



Se mira na poça
de lama do pátio
a lua vaidosa



Choveu de manhã:
as lagartas abrem trilhas
na folha de urtiga



Como um prisioneiro
a lua me espia pelas
grades do banheiro







PORTA PARA O QUINTAL


Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.

As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando

quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...

Flauta de barro





Receita de tacacá


(para Umberto Calderaro Filho)





Ponha, numa cuia açu
ou numa cuia mirim
burnida de cumatê:
camarões secos, com casca,
folhas de jambu cozido
e goma de tapioca.
Sirva fervendo, pelando,
o caldo de tucupi,
depois tempere a seu gosto:
um pouco de sal, pimenta
malagueta ou murupi.
Quem beber mais de 3 cuias
bebe fogo de velório.
Se você gostar me espere
na esquina do purgatório.





alguns 'haiku'

de satori





luiz bacellar








sempre perseguido
o grilo fica tranquilo
cantando escondido




na mira da poça
de lama do pátio
a lua vaidosa




o barulho d'água
caindo no tanque vazio
refrigera a alma




rajadas de chuva
sobre o teto de alumínio:
sons da lua fria






Balada das 13 Casas


São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.

E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.

Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.

Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e "elegante"
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.

Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem "viveu" outra idade
das 13 casas da rua.

Senhora Dona Donana
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.





( "Frauta de Barro", 1963)




Noturno do Bairro dos Tocos


Há tanta angústia antiga em cada prédio!
Em cada pedra nua e gasta. E agora
em necessário pranto que demora
o amargo verso vem como remédio
pelos sonhos frustrados em cada hora
da ingaia infância. Madurando o tédio
nos becos turvos, porque exige e pede-o
inquieta solidão que assiste e mora

em cada tronco e raiz, calçada e muro:
Chora-Vintém, O-Pau-Não-Cessa* . Impuro
se derrama um palor de lua morta

nas crinas tristes, no anguloso flanco:
memória e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.




Três haicais inéditos de Luiz Bacellar


por Zemaria Pinto


Em meio a tanta miséria intelectual, ganhei do amigo Luiz Bacellar um presente sublime: a honra de publicar três poemas inéditos seus – de uma vez. E quero divulgar o fato em primeiríssima mão (sei do cacófato) aqui, com você.



A mão firme do poeta: poesia de altíssima tensão.
Em primeiro lugar, só para colocar a todos no mesmo nível (ó pedantismo, teu nome é professor!), vamos falar rapidamente sobre o haicai, uma forma poética tipicamente japonesa, surgida no século XVI, como um jogo de salão. Infelizmente, alguns haijins (é assim que se chamam os fazedores de haicais), maus poetas, continuam a tratar a forma como se fosse um mero jogo e não poesia.

Alguns pontos: o haicai não admite sentimentalismo – nada de dor de cotovelo ou de chifres. Sobretudo, o haicai não prescinde de uma boa dose de humor – não o humor cômico, cearense, zombeteiro, mas a graça, a presença de espírito. A relação com o zen-budismo, que, em sã consciência, nenhum haijin admite (para não misturar alhos com bugalhos, afinal poesia e religião não combinam), está nas raízes do haicai: tudo no mundo é transitório, impermanente, efêmero. Por outro lado, o zen não se admite como um ser isolado, mas como parte indissociável de um todo. Assim, podemos concluir que a característica primordial do haicai é a observação da natureza e seu ciclo essencial: nascimento, vida, morte. Simples, não?

Mas vamos ao Bacellar, o primeiro a divulgar a forma no Amazonas, em seu livro Frauta de Barro, de 1963.

Luar de agosto.

No alheio telhado ao lado

concerto de gatos.

O primeiro poema descreve uma alegre fornicação felina. O luar de agosto nos informa que é noite de verão (para nós, amazônidas). Noite quente. O toque sutil ocorre em nominar a algazarra como “concerto”.

Búfalos na estrada.

A lua viaja nos

lombos da manada.

O segundo poema é de uma plasticidade extraordinária. Abstraia: uma viagem noturna de búfalos. As sombras negras se movimentam, levando com elas a lua “nos lombos da manada”.

Noite de piracema.

A lua indiscreta mostra

a rota do cardume.

O terceiro poema nasceu na minha frente, documentado na foto acima. De novo, a plasticidade ímpar: o cardume, de encontro à nascente, brilha à luz da lua.

Os três poemas, você percebeu, são instantâneos que refletem o eternamente contínuo e o instante único, relampejante. Luar de agosto, búfalos na estrada, noite de piracema representam a condição geral (temporal e/ou espacial) do poema. Não há poesia, ou melhor, há apenas uma poesia natural. A poesia enquanto criação explode mesmo é na sequência das imagens.

O haicai é uma arte difícil dentro da sua simplicidade. Talvez por isso as crianças têm enorme facilidade para apreender o que os haicaístas chamam de “espírito do haicai”: uma poesia antiliterária, surpreendente como um artefato capaz de fazer brotar a beleza a partir da banal (e miserável) realidade cotidiana.

Zemaria Pinto é professor de Teoria da Literatura e de Literatura Brasileira, membro da Academia Amazonense de Letras e faz parte do novo projeto de mídia de Manaus, anunciado aqui, e que ganha as ruas em poucos dias.



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Carpintaria poética

Adrino Aragão


Luiz Bacellar é, dentre os expressivos poetas amazonenses, o mais aclamado pelas elites, estudantes e populares de Manaus. Mas, ao contrário do que possa parecer, sua poesia não é tão simples, de fácil consumo. Artesão da palavra, carpinteiro do verso, Bacellar constrói cada poema com rigor formal e forte densidade temática, numa linguagem refinada, primorosa.
Como explicar o sucesso de um poeta sério como Luiz Bacellar que não faz poesia em função do mercado? Mistérios da poesia, da arte? Talvez. Quem sabe uma resposta ao mercado do livro que aí está: a boa literatura brasileira existe; há, sim, leitores para a poesia, o conto, o romance, a novela de nossos escritores.
A verdade é que são 50 anos de trabalho poético de Luiz Bacellar. Frauta de barro, seu livro de estréia, na correta afirmação do poeta e crítico literário professor Tenório Telles, “é um marco na evolução da literatura que se faz no Amazonas”.
De formação clássica e espírito de renovação estética modernista, Bacellar pôde construir, com admirável liberdade (já a partir desse livro) algo de novo na dicção lírica de sua poesia. E que haveria de se ampliar em livros posteriores. Canta o poeta em “Variações sobre um prólogo”: “Em menino achei um dia/ bem no fundo de um surrão/ um frio tubo de argila/ e fui feliz desde então; // rude e doce melodia/ quando me pus a soprá-lo/ jorrou límpida e tranqüila/ como água por um gargalo. // E mesmo que toda a gente/ fique rindo, duvidando/ destas estórias que narro, // não me importo: vou contente/ toscamente improvisando/ na minha frauta de barro.// É o tema recomeçado/ na minha vária canção.”
Enquanto muitos destroem o passado com a ânsia de criar o novo, o moderno, o poeta Luiz Bacellar mantém forte diálogo com a tradição, elege a memória como tema em muitos de seus textos poéticos. Sem saudosismos. O passado tem o sentido de memória, de registro - seja de denúncia ou crítica (quase sempre bem-humorada) contra o silêncio do descaso, do abandono, da “insanidade de um presente” que flagela e aniquila as fontes de nossa história. Como nos versos de “Balada da rua da Conceição”: “Vão derrubar vinte casas/ na rua da Conceição./ Vão derrubar as mangueiras/ e as fachadas de azulejo/ da rua da Conceição./ (Onde irão morar os ratos/ de ventre gordo e pelado?/ e a saparia canora da rua da Conceição?” O poeta, por vezes, estende o olhar sobre gentes humildes, os esquecidos, como em “Lavadeiras”, poema do mais fino lirismo, comparável a de um Jorge de Lima: “A roupa nos varais panda flutuando,/ com seus laivos de anil coando a brisa,/ até parece ávida nau cortando/ o mar azul que a leve espuma frisa.// O vento timoneiro vai guiando/ e o sol nas bolhas de sabão se irisa/ enquanto as lavadeiras vão cantando/ a torcer e a bater na tábua lisa”. Aliás, como um Midas, Bacellar consegue transformar em filigranas de poesia as coisas mais comuns, por exemplo, um simples isqueiro, vejam: “Se, na pedra, acordo estrelas/ com um golpe do polegar,/ a chama, só para vê-las,/ já se levanta a bailar”.

Frauta de barro tem ainda outro mérito. Deu ao poeta Luiz Bacellar o prêmio Olavo Bilac, da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro (1959). Na comissão julgadora do concurso estavam dois dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira. Pode haver reconhecimento maior que este, para qualquer escritor?

Mas Luiz Bacellar não é poeta de um livro só. Outros foram publicados. Cada um deles revela, de modo surpreendente, a performance desse poeta que tece poesia de altíssima qualidade.

Sol de feira é outro grande momento literário de Luiz Bacellar. Para início, o tema é originalíssimo, senão inusitado, na poética brasileira. Professor Ernesto Renan Freitas Pinto considerou o livro um “pomar real” que “nos ensina a admirar e saborear a rica coleção dos frutos da terra”. Vejo-o como telas do mais belo impressionismo. Mas, às vezes, parece escorrer, do rondel de cada fruta, um sumo mágico de canções: é quando me sinto arrebatado pelos acordes de uma sinfonia de Bach ou Handel. Por que não de Villa-Lobos? Como nos versos de “rondel da pitanga”: “Gracioso arbusto/ de folhas breves/ todo adornado/ de frutos leves/ como as caboclas/ do meu torrão/ e as notas loucas/ do meu violão// rubras miçangas/ rubis talhados/ de viva cor/ sois vós pitangas/ cristalizados/ beijos de amor”.

Há mais, muito mais. Por exemplo, um belíssimo poema musical longo, dividido em 33 partes – ou, como declara o poeta, sonata em si bemol menor para flauta, fagote, clarinete e oboé. Inclusive uma boa safra de haicais, em que o poeta reafirma o seu talento criativo. “Rajadas de chuva/ sobre o teto de alumínio:/ sons da lua cheia.” “Como um prisioneiro/ a lua me espia pelas/ grades do banheiro.” “Água resmungona.../ No tanque limoso/ o pulo da rã.” (Bashô)

A editora Valer publicou (1998) as obras de Luiz Bacellar, reunidas em um só volume, com o título de Quarteto.

Vale a pena ler Luiz Bacellar. E conhecer, através de seus poemas, a trajetória luminosa do poeta amazonense, que atingiu o estado de excelência na poesia brasileira. Mais que isto. Ultrapassou a barreira do preestabelecido: ao lidar com elementos tradicionais, aprofunda o exato conceito de modernidade.


Rondel do Cupuaçu (XXVI)



Luiz Bacellar



cupuaçu

és soberano

do pomolário

americano

num cofre pardo

guardas com ciúmes

raros sabores

vivos perfumes



urna selvagem,

ubre silvestre,

moreno seio,

tanta delícia

tua curva crosta

retém no meio






Carta Lunar – Adágio (XX)



Luiz Bacellar



O meu verso é um fragor: desmoronar-

me sinto quando escrevo. E o ruído é tanto

que vou com passo incerto no meu canto

como se caminhasse à beira-mar

num dia de ressaca sob um luar

como o de agora (a Via Láctea é um manto

salpicado de sal, de prata e pranto)

em que as horas se esquecem de passar.

Meu verso é um natural correr de pena

que rasga, que destrói, mutila e mata

minhalma que é de espuma e de verbena:

é um vestido deixado sobre a cama,

vazio de um corpo amado. E me arrebata

no vácuo intenso do meu próprio drama.







haicais inéditos


Luiz Bacellar


Meus haicais –
voando como satélites
pelo mundo…


As teias de aranha
(rotas bandeiras de guerra)
voam no vasculho.


Grande estardalhaço:
o ouriço da castanheira
estronda no chão.


A porta arrombada…
e os ladrões levaram
toda a vaidade.


Céu pentagramado –
na pauta das nuvens
a clave de sol.


E a bolinha de ping
pong dança no topo
do chafariz da pracinha.


Topo do repuxo –
borboletinha amarela
tenta em vão pousar.


Tentando pousar
no topo do chafariz
a borboleta amarela.


E o Jacques Costeau?
Afrescalhou o nosso
bravo delfim roxo…


Com o ipê florido
uma chuva (e de ouro)
entope a sarjeta.








haicais inéditos



Luiz Bacellar


Luar de agosto.
No alheio telhado ao lado
concerto de gatos.


Búfalos na estrada.
A lua viaja nos
lombos da manada.


Noite de piracema.
A lua indiscreta mostra
a rota do cardume.


A araponga bate
na bigorna do tempo
estilhaços de luz.


O gato interroga
com o olhar malandro
o voo da libélula.


O peixe cospe
pra fora do lago
uma bolha d'água.






O poeta veste-se



Luiz Bacellar

Com seu paletó de brumas
e suas calças de pedra,
vai o poeta.

E sobre a cambraia fina
da camisa de neblina,
o arco-íris em gravata
vai atado em nó singelo.

(Um plátano, sobre a prata
da água tranqüila do lago,
se debruça só por vê-lo).

Ele leva sobre os ombros
a cachoeira do lago
(cachecol à moda russa)
levemente debruada
de um fino raio de sol.

Vai o poeta
a caminhar pelas serras.

(pelos montes friorentos
mal se espreguiça a manhã)

com seu pull over cinzento
(feito com lã das colinas)

com seus sapatos de musgo
(camurça verde dos muros)

com seu chapéu de abas largas
(grande cumulus escuro).

Mas algo ainda lhe falta
para a elegância completa:

súbito pára, se curva,
num gesto sóbrio e perfeito,

um breve floco de nuvens
colhe e prende na lapela.







Rondel do tucumã (XLVIII)



Luiz Bacellar



do teu minúsculo coquinho
relatam lendas milenárias
brotaram sono, amor, carinho,
a lua e as outras luminárias;
onças e pássaros noturnos,
quando em teu bojo se escondia
dele fugiu com ares soturnos
enquanto o breu se derretia;

tu foste a caixa de Pandora
das tribos bárbaras de outrora
e a cor das asas da graúna
saiu de ti como um trovão
para que a filha da boiúna
pudesse amar na escuridão

Platônica VI

Francisca de Lourdes Souza Louro


Muitas lembranças são frustrantes e muitas dores desperdiçadas. Algumas são revividas e rapidamente postas de lado, enquanto outras, recebem a permissão de se dilatarem e encherem muitas páginas. Assim é lembrado o Amigo Bacellar se assim o posso considerar. Falar dele fez-me evocar sentimentos ao lembrar a figura miúda em que a velhice o transformou.

De volta ao “muito tempo atrás”, quando se joga a rede no passado, a memória faz uma seleção estreita, arbitrária do que relatar, mas, em se falando de Bacellar, o prazer será invocar, mais que descrever. Tenho em mente que, após certo ponto, quando os esforços de uma pessoa redundaram em uma obra, o escritor experimenta a si mesmo como o Dr. Frankenstein e também como o monstro. Bacellar sabia que o ato de escrever era por a si mesmo em julgamento. Porém, lembrarei o homem, somente.

O primeiro contato com o homem Bacellar foi no Colégio D. Pedro II (Colégio Estadual do Amazonas), ele, professor, eu, aluna, não dele, mas o conheci por causa de um fato inusitado que ocorreu com o mesmo, no Cine Polytheama. Ainda lembro-me do filme e do ator, era o mexicano Cantinflas.

Já com o poeta (ele odiava essa palavra) foi através dos livros em tempos de estudante do curso de Letras na UFAM. Por seus textos logo se vê um escritor com características próprias, de uma verve que deixa os leitores em plena magia e encantamento, pela especialidade e transformação que dá à palavra.

Depois, tive encontros casuais com o já“velho” homem Bacelar, sempre acompanhado de Tainá/Giele e Zemaria Pinto, os escudeiros amigos, inseparáveis, com os quais sempre pôde contar nesta fase da vida. Assim, é mais fácil definir o homem, pois o poeta só o encontro nas páginas dos livros, em poesia. Essa é a magia da existência de todos que nascem humanos e se tornam poetas.

Encontrei Bacellar em diversos momentos bons de sua vida avançada. No Shopping Manauara podia encontrá-lo sempre às tardes, escolhia um livro, sentava em uma das poltronas e lia-o, até terminar (claro, sem pagar). Isso foi ele mesmo quem me confessou, e sugeriu-me a fazer o mesmo. Nessas tardes de leituras, uma paradinha na lanchonete para um chá, isso eu vivi, foi mágico receber o convite e participar daquele momento. No encontro o risinho maroto, pegava a mão e com mesura de Dom Juan, beijava-a, um carinho desnecessário, mas que dava asas à imaginação. Um Lord..

Ter Bacellar num sábado para o almoço, foi a oportunidade que tive de estar mais perto e saborear, não só os sabores do prato servido, bacalhau acompanhado de um bom vinho, isso ele apreciava muito, mas também das conversas, esse era o momento que aproveitava para exibir a cultura, falando em francês, japonês e, se sabia de verdade, isso ele levou. Chegava de bengala, jaqueta e chapéu, mais parecia um Dândi. Fomos ao restaurante Pina, na Joaquim Nabuco, para encontrar os amigos, os encontros com o Zemaria e Tainá/Giele eram para comemorar a amizade, saudar a vida.

Em outras oportunidades, foi na Livraria Valer, pela manhã onde há encontro de intelectuais para lançamentos de obras, e neste, especialmente foi o relançamento de 50 anos do Frauta de Barro, nona edição, onde reuniu pessoas para o congraçamento poético do irônico Bacellar. Intimamente ele era um homem azedo, introspectivo, calado, mas observador,talvez pela vida solitária que levava e assim se tenha transformado, não gostava de adulações, exortava os bajuladores da vida acadêmica. Embora se comportasse com delicadeza, porém, com esses, ficava evidente em suas respostas a fúria contida em si.

Na doença, vi um homem debilitado no corpo, mas também, nunca o vi mais forte, porém era como um Hércules, e sua força era a palavra. No fim, sucumbiu ao sono eterno, a morte da carne, pois o espírito permanece despojado, irreverente como o pomar poético que deixou a todos nós.

Bacellar era avesso às atitudes mesquinhas do ser, mas em ocasiões oportunas pude perceber que não contemplava alguns outros do mesmo ofício, e eu me questionava: despeito? Nunca; Inveja? Jamais. Bacellar não quis ser Estrela, não quis o Céu, mas, talvez esteja lá fazendo graça, e rindo, mesmo com um risinho sinistro, fechando os olhinhos miúdos, para os que ficaram por aqui a querer exaltá-lo.

Não ria de mim, POETA, pois, ao pronunciar-me diante destas lembranças, tive em mente, somente, a satisfação da rememoração afetiva que o convívio contigo me deixou. Ou melhor, ainda me acompanha no prazer de te ler, de ter-te ouvido, olhado, te contemplado em exposições poéticas e, um dia, até me ajoelhado no chão à procura do que dizias ter perdido (um relógio) que não encontrei. Isso foi na morada provisória antes da morte do escritor. Não perdeste nada, ganhaste na memória dos que aqui estão o propósito de ainda permanecer vivo na lembrança, na saudade que os teus poemas nos proporcionam, não só de ti, mas da cidade que neles contém, pois te despojas em mansidão, porém, franco no desejo de proporcionar sabor do grande drama que é ser Poeta. E por ti, para ti, viva o Poeta, ele não morreu.

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