segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
METAMORFOSES DE OVIDIO
Metamorfoses em Tradução
Raimundo Nonato Barbosa de Carvalho
Livro I (TRECHO)
Faz-me o estro dizer formas em novos corpos
mudadas. Deuses, já que as mudastes também,
inspirai-me a empresa e, da origem do mundo
ao meu tempo, guiai este canto perpétuo.
Antes do mar, da terra e céu que tudo cobre, 5
a natureza tinha, em todo o orbe, um só rosto
a que chamaram Caos, massa rude e indigesta;
nada havia, a não ser o peso inerte e díspares
sementes mal dispostas de coisas sem nexo.
Inda nenhum Titã iluminava o mundo, 10
nem Febe, no crescente, os chifres renovava,
nem a terra pendia no ar circunfuso,
suspensa no seu peso, nem, por longas margens,
os seus braços havia espraiado Anfitrite.
E como ali houvesse terra e mar e ar, 15
instável era a terra, a onda inavegável
e o ar sem luz; a nada aderia uma forma,
e cada coisa obstava outras, pois num só corpo
o frio combatia o quente, o seco o úmido,
o mole o duro, e o peso o que não tinha peso. 20
Deus ou douta natura esta luta sanou,
pois do céu separou a terra, e desta as ondas,
e do ar espesso um céu límpido discerniu.
E depois que os tirou do disforme conjunto,
cada qual num lugar ligou, em paz concorde. 25
Do céu convexo, força ígnea e sem peso
surgiu e se alocou no mais alto da abóbada;
o ar, dela, se aproxima em leveza e lugar;
mais densa, a terra atrai os elementos grandes
e é premida por seu peso; a água circunfluida 30
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ocupou o restante e cercou o orbe sólido.
Assim aquele deus, fosse qual fosse, a massa,
primeiro, dividiu em lotes e ordenou,
para que igual ficasse em toda a parte, dando
à terra a aparência de um imenso orbe. 35
Então o mar romper-se com os ventos rápidos
mandou e circundar os litorais da terra.
Reuniu pântanos, fontes e grandes lagoas,
por entre sinuosas margens cingiu rios,
que em parte se absorvem em vários locais, 40
em parte vão ao mar, e acolhidos no campo
de águas livres, em vez de margens, tocam praias.
Mandou dilatar campos, vales abaixar,
selvas cobrir de folha, erguer montes rochosos.
E, como há no céu duas zonas à direita 45
e outro tanto à esquerda e uma quinta mais tórrida,
assim um deus zeloso o globo dividiu
por igual, e outras tantas plagas tem a terra.
Por causa do calor, não se habita a mediana,
cobre duas a neve; entre ambas pôs as outras, 50
que, misturando fogo ao frio, temperou.
Cobre-as o ar, que tanto é mais leve que a terra
e a água, quanto mais pesado do que o fogo.
Lá as névoas, e lá as nuvens, pendurar
mandou, também trovões que aterram mente humana 55
e os ventos que, com raios, rabiscam relâmpagos.
O criador do mundo, entanto, não lhes deu
a posse do ar ao léu; a custo, agora, impede-os
- embora cada qual assopre em sua rota -
de o mundo varrer, pois grande é a rixa entre irmãos. 60
Euro se foi à Aurora, aos reinos nabateus,
à Pérsia e às montanhas sob luz matutina;
Vésper e as praias, mornas pelo sol poente,
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de Zéfiro estão perto; a Cítia e o Setentrião
Bóreas frio invadiu; a região contrária 65
se umedece de chuva e assíduas nuvens de Austro.
Em cima pôs o éter límpido e sem peso,
que nenhuma impureza terrena contém.
Logo que dispôs tudo em seus limites certos,
estrelas, muito tempo sob profundas trevas, 70
põem-se a cintilar na vastidão do céu.
Para que não houvesse lugar sem ser vivo,
astros e deuses moram em solo celeste,
coube aos peixes brilhantes habitar as ondas,
às feras coube a terra, o ágil ar às aves. 75
Um animal mais nobre e mais inteligente,
que dominasse os outros, ainda faltava.
Nasceu o homem, ou fê-lo com sêmen divino
o autor de tudo, origem de um mundo melhor,
ou a terra recém-separada do alto 80
éter retinha o sêmen do céu, seu irmão;
misturando-a à chuva, o nascido de Jápeto
plasmou-a à imagem de deuses potentes;
os outros animais, curvos, miram a terra,
ao homem, dando olhar sublime, o céu mirar 85
mandou e dirigi-lo, o porte ereto, aos astros.
Assim a terra, há pouco rude e disforme,
transformou-se em figuras inéditas de homens.
Primeva, a idade de ouro, sem ultor nem lei,
cultivava o direito e a fé espontaneamente. 90
Faltos de pena e medo, em bronze não se liam
ameaças, nem, súplice, a turba temia
juiz, mas, sem ultor, sentiam-se seguros.
Dos montes não descera ainda o pinho às ondas,
visitando o estranho orbe, e mortal algum 95
dos outros litorais sabia, fora o seu.
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Fossos fundos ainda não cingiam muros;
não havia clarim reto ou curva corneta,
nem capacete e espada; e, sem usar polícia,
as pessoas em paz fruíam doces ócios. 100
A terra mesma tudo dava, sem impostos,
intacta de rastelo ou arados quaisquer;
contentes com os frutos dados sem esforço,
colhiam o medronho e morangos silvestres,
as cerejas e amoras nas moitas de espinho 105
e as landes que caíam da árvore de Júpiter.
A primavera era eterna e em sopros tépidos
afagavam incultas flores calmos Zéfiros.
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