domingo, 22 de novembro de 2015

PAULO JACOB




PAULO JACOB

Primeiro capítulo de «Chuva branca» (Rio de Janeiro, Ed. Nórdica, 1981. 2º ed.)


É sempre esse rio rolando, cheias, vazantes. O barro carregado nas águas, amarelas. Pedaços de paus, tronqueiras, galhadas, matupás, canaranas membecas, murerus, correndo na correnteza, rodopiando nos remansos, nas enseadas. Menino ainda, aqui mesmo, nessa vida, mão no remo, puxando bons surubins, dos pintados, caparari. Dando adjutório no roçado, os pais ai, carregando maniva no jamaxi, basculho, roçando, limpando o terreiro. Desde menino a mesma vida, apertura que nem hoje. Tinha companheiro, nos quatro anos por ai assim. Brincadeira, era olhar o rio, jogar aninga pra jacaré, o bicho alvoriçado, a boca trancada. Agarrar urubu no anzol, arpoar boto, gostar da arrancada do bicho arrastando a igarité. Andar nos lagos, armar irapuca, apanhar rolinha, trucau, inambu. Flechar peixe, nadar quando maior. Contar vantagem de marisco, de casco bom pra furar lago, de canoa ronceira. Madeira para isso e para aquilo. Trepar nas árvores, tirar frutas, não por brincadeira, fome isto sim. Zé Pretinho também mariscava, pegava mas era só mandi. Menino entanguido, dois dentes faltando na frente, cara amargosa, empambado. Um dia o jacaré jogou o rabo no cedro, aparou o bichinho na boca. Lã se foi o companheiro. Bubuiou o sangue, a água era vermelha. A água era vermelha, cor de miséria, assim magino sempre. Na baixa das águas, pedaços de ossos se viu, branquinhos como garça. A mãe ajeitou a ossada, enterrou no aceiro da casa. Senti a ausência, mais do sangue lembrava, o tempo esqueceu. Se curumim, assinzinho, maior por dizer nada, morre por coisa pouca. Derréia, secando, o corpo descaindo, é vê cara de macaco. Afogado, defluxo, febre, desaparecido sem como se saiba. Muitas dessas. Nas cheias, a mata afogada na água. É secar, fica o barreiro na beira. Vem o sol tosta tudo, raxa. A terra é frestada e quente, esfumaça no sol. Aquela distância de lavrado, igual terreiro varrido, duro, escaldando. Primeiros dias. Azulando aos poucos, depois, o que a vista der é verde fechado. Só miséria, cor de sangue. Não fosse o lago, no tempo de carestia. .. Despensa do pessoal todo por aqui, vizinhança. Do que digo vizinhos, uma barraca aqui outra acolá naquela lonjura, curva de rio, lago, igarapé. Barro amarelo, ruim, ingrato, pobre também. Ingrato é, só dá mais é malícia, matapasto. Farinha, alguns alqueires, e só. Tentar aproveitar o eito, vá rasgar a terra, macaxeira mirrada, outra quadra a trabalhar. Esta não dá mais, cansou. Terra firme é pobre. Nessa nesga de varge, coisinha melhor. Lavada nas grandes águas, fartura se vê no plantio. É tudo assim. A mata aí confronto ao aceiro, comendo o terreiro, a capoeira engrossando. A barraca distiorada, o mato chegando perto. Telhado aberto que só renda, as estrelas entrando pela cumeeira. Respinga, mas chuva mesmo é quase um nada. Serena, sem molhar. O caminho do porto, fundo, roçado, furado de pés de tantos anos. Mulher, dois filhos, só na necessidade. Nascidos ao Deus dará, servindo de parteira à mulher. Mais o Tiririca, ossudo, pirento, cachorro bom. Alarma tudo, avisa até calango passando no terreiro. Com a onça arrepia, gane, rosna, late mas não enfrenta. É olhar um lado vê matinha de varge, ligada a matão fechado. O descampado é roça, farinha pelo menos. Chá, café às vezes, e beiju. Fome, chuva miúda, tristeza de inverno. Miséria tem cor de sangue. Deveras! Pode até ser, dar de esbarro com a anta. Rasto fresquinho vi dias passados, cortando o varadouro da terra firme. Avezou-se a comer piolhos do buriti. Não custa tentar. Até quem sabe Luís Chato. Dias sem nada em casa, na farinha com água. A meninada pedindo comer, o pessoal na fraqueza. Diabo de inverno, chuveiro danado, dificultando peixe. As águas tomando as restingas, avançando nas terras, os bichos metidos no igapó. Tem lá quem fisgue um esse que seja. Na fartura de comida lá pra eles, arisco em pegar anzol. Quando escasseia a despensa, a coisa não anda boa. Deveras, o melhor é vasculhar o vestígio da bicha, se voltou ao buritizal.
-  Mulher vou ao mato, quem sabe se dá na sorte de pegar a anta.

O mais tardar à tardinha, volto. Saiu logo aí detrás do cagador cresce a mata alta, terra disconforme. Na comidia deve de estar, enquanto fruta cair não abandona. Duas ou três vezes vi rasto dela, vindo daquela direção. O rumo é este, beirando o igarapé até cruzar o primeiro afluente. Aquele do lado de lá, servindo de ponte o pau caído. Daí é centrar na terra alta, depois cortar pelo atalho da mãe-do-rio. No cuidado em centrar, com terras gerais ninguém brinca. O sol mal-a-mal dando sinal de claro de vir daquelas bandas. A ciência é não tirar vista da posição da picada. Tem outra melhor, mas muito pisada, um atoleiro dos infernos. Ainda assim é um bordejo, vai sair muito acima do buritizal comidia dela. Caminhada mais longa, arriscado espantar a bicha ao tomar chegada. Andando destabocado, distante de casa é coisa muita, pelo claro se vê. Mas deveras mesmo, o certo é especular as pegadas na travessia do varadouro, aqui ao lado. Eita! tou na sorte. Passou cedo por aqui. Terra molhada, pegada nova. Cala a boca, Luís Chato, o animal num de repente cisma, cai mata afora. Uma baitela fêmea, rasto aberto não engana. Maior que essa, só vi matar compadre Juvenal. Mas cuidado é que é, falando alto não vai prestar. E olhe só, aqui comeu a imbaúba, resina fresca escorrendo. Dessa vez, pego. Sustou seguida, rasgou o cacho do croatá. Assustou-se, cismou, que teria de havido? Afundou o pé no tijuco chega esparramou. Se anda corrida de onça, nem o diabo vai encontrar. Graças a Deus, como pensei não era, saiu devagar. Foi até ali, bordejou acolá, tomou direção naquela paragem mais entaniçada. É um fechado de cipó a atrapalhar qualquer um. Firmou caminhada nesse rumo. Com a ajuda de Deus, não passa de hoje. Começou a voltear, deve de estar deitada. Apitei, não respondeu. Andando sempre devagar, calcando leve o terreno. Ainda falsear o pé chato de merda, fez zoada. No calado, vai longe o estrupício. Se arisca, toma por outros lados. Amaciar o pé, o mais e mais. Tinha dito, dizia bem. Deitou-se, mas já se arriou de centro. Tomar reparo na cama. Fria, nem mosca por perto. Quando foi lã isso que deitou. É andar, andar, bicha danada pra rasgar mata.

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PAULO JACOB

Rogel Samuel

Sob vários aspectos, ele é o maior romancista da Amazônia.
Não é muito lido, conhecido, porque autor difícil, sofisticado.
Sua morte, no dia 7 de abril do ano passado, abre questão grave quanto à divulgação da cultura nacional brasileira.
Sua morte não chamou atenção.
Não se soube.
Eu mesmo, amazonense de Manaus, onde morava o escritor, não tive conhecimento.


*    *    *

Vim a ouvir da boca de um chofer de táxi, em Manaus, no dia 18 de junho.
Dizia-me ele:
- ...Por ali , na rua onde morava aquele desembargador, que morreu no ano passado...
A rua, cujo nome não me ocorre, fica ao lado do Igarapé.
A casa, em frente ao igarapé, exibe a vocação de Paulo Jacob. Em Manaus, mas sempre voltado para a Floresta. Que ele conheceu bem, pois foi juiz em Canutama, no rio Purus, em 1952, e durante 10 anos viajou pelo Amazonas.
Até que, nos anos 60, foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça.


*    *    *

Paulo Jacob escreveu muito. Muito. Cerca de 10 romances bem trabalhados.
Quase ganhou o maior prêmio nacional de literatura da sua época, o Walmap, em 1969, com «Dos ditos passados nos acercador do Cassianã», 2º lugar. Excelente livro, imenso, denso, 359 páginas de um tipo pequeno, corpo 10 (Rio de Janeiro, Bloch, 1969).  
O Walmap tinha juízes como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antônio Olinto.
Os três deram o 4º lugar para «Chuva branca», em 1967, um dos seus mais belos livros. Outro livro, «Vila rica das queimadas», título bem atual, ecológico, também ficou entre os finalistas do Walmap.  O título denuncia, como o livro: «O coração da mata, dos rios, dos igarapés e dos igapós morrendo», sobre o desmatamento. «Chãos de Maíconã» também «menção honrosa» do Concurso Walmap.


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Festejado foi pela crítica, Paulo Jacob.
Leila Miccolis o considera «o Guimarães Rosa da Amazônia». 
Guimarães Rosa ficou entusiasmado com «Chuva branca».
Aguinaldo Silva diz que ele fez «o primeiro grande romance da Amazônia».
Assis Brasil compara «Chuva branca» a «Sagarana» de Rosa e a «The wild palms» de Willian Faulkner.

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Ler Paulo Jacob é dificuldade. Chega que ele, em «Chãos de Maíconã», anexou um vocabulário da língua ianoname, no fim do livro.
De um «Dicionário da língua popular da Amazônia» também ele é autor

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Paulo Jacob nasceu em 24 de fevereiro de 1921 e faleceu no dia 7 de abril de 2004. Escreveu ainda: Muralha verde (1964), Andirá (1965), Estirão de mundo (1979), A noite cobria o rio caminhando (1983), O gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987), além dos citados acima.


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Em «Chuva branca», o personagem vai-se adentrando, vai-se assimilando na floresta, vai-se afastando da civilização, até que no fim parece que nem existiu - vira mito. No fim, na morte, ele tira a roupa, fica nu, perdido na mata, integrado nela, sabendo que vai morrer, perdido e integrado, no mitificado.


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« O gaiola tirante rumo do rio da borracha» narra a viagem de um navio, um gaiola, um barco a vapor, saindo de Belém até o outro lado da Amazônia, no rio Purus até subir o rio Iaco, onde o navio naufragou e ali se soube que o preço da borracha despencara, de quinze mil réis caiu para oito, pondo na falência todos os coronéis. O personagem é o Comandante Antonio Damasceno.

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Paulo Jacob foi professor universitário e Presidente do Tribunal de Justiça. Como Presidente de tribunal chegou a assumir o Governo do estado, em 1982. Sua morte deixa aberta a vaga de melhor romancista da região Norte.


O INFERNO DE DANTE



DANTE – O INFERNO




CANTO I


DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
3 Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
6 Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
9 De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
12 Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
15 Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
18 Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
21 Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
24 Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
27 Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
30 Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
33 Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
36 Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
39 Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
42 Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
45 Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
48 Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
51 Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
54 Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
57 Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
60 Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
63 Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
66 “Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
69 Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
72 Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
75 Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
78 Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
81 Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
84 Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
87 O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
90 Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
93 Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
96 Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
99 E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
102 Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
105 Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
108 Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
111 Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
114 Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
117 Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
120 De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
123 Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
126 Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
129 Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
132 Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

136 Move-se o Vate então, após o sigo.



1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebrosa etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro, símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro. — 122. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.


A DIVINA COMÉDIA
— INFERNO —
DANTE ALIGHIERI
http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/inferno.html#I1
Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882
Ilustrações de Gustave Doré
1832-1883

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DE
D. GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO: ATENA EDITORA
RUA JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO - 1955

© 2003 — Dante Alighieri

Nota Editorial
     Aqui está uma obra que deveria figurar na “cesta básica” de qualquer estudante. E não apenas por ser a famosa “Comédia” de Dante Alighieri, a que os pósteros houveram por bem acrescentar, por seus méritos tantos, “A Divina”.
     A tradução, feita pelo brasileiro José Pedro Xavier Pinheiro, enobrece a língua portuguesa e, em particular, as letras pátrias. Mas isso o leitor irá constatar por si mesmo.
     Nela, gastou Xavier Pinheiro anos de sua vida. Seu filho, J. A. Xavier Pinheiro, acrescentou-lhe um Rimário, para uma segunda edição editada por Jacintho Ribeiro dos Santos, nos anos 10 do século passado, enriquecida com as gravuras de Gustave Doré, em folhas à parte.
     Por que cito tais fatos? Porque a única finalidade que movia os Xavier Pinheiro, pai e filho, era contribuir para o enriquecimento cultural de nossa gente, sem subsídios como condição prévia e sem láureas ou pecúnia como retribuição.
     A presente edição em eBook, infelizmente, não preserva o Rimário, que não consta da edição digitalizada, editada pela Atena Editora, que, com sua Biblioteca Clássica, ainda encontrada nos bons sebos, familiarizou gerações com o que havia de melhor nas letras e no pensamento universais. E, não é demais salientar, sem os ranços de nacionalismos estreitos, freqüentemente disfarçando interesses outros em nome da “defesa dos autores nacionais”, mas cujo único resultado é distanciar nossa gente do pensamento universal, que nunca teve, nem jamais terá outra barreira que não o da língua.
     É exatamente esta barreira que, no caso, Xavier Pinheiro transpôs, com sua tradução.
     Na presente versão para eBook, tentamos fazer justiça aos esforço do tradutor, cuidando ao máximo da revisão. Infelizmente, como quem quer que já tenha feito uma digitalização sabe, ao digitalizar 516 páginas, aqui e ali sempre passará algum “gato”. Esperamos que os que tenham passado não miem muito...
     Atualizamos a grafia, preservando, contudo, as apócopes e as elisões do tradutor que, com tais recursos, evidentemente visava conservar o sabor e a métrica originais. Para facilitar a leitura, apenas para isso, adicionamos acentos. Por exemplo, quando na fonte digital estava cir’clo, adicionamos o acento círc’lo, como apoio à leitura.
     Como não temos preocupação com economia de papel, separamos os tercetos de forma mais clara, acompanhando a edição digital da LiberLiber (www.liberliber.it). A numeração dos versos foi preservada para facilitar a consulta às notas e para a leitura em determinados formatos em tela pequena. As notas não foram “lincadas” e estão ao fim de cada Canto, como na edição digitalizada. Alguns, como eu, sentirão a falta deste recurso que só é possível nas edições digitais... Mas...
     E apenas ilustramos esta edição com as gravuras de Doré. Na internet, o leitor mais interessado poderá encontrar recursos para aprofundar seu conhecimento da obra em pelo menos quatro excelente websites:

     1. Destaque especial para o esforço individual de Helder da Rocha com seu site “A Divina Comédia”: www.ibpinet.net/helder/dante
     2. O Dante Digital da Columbia University: http://dante.ilt.columbia.edu/
     3. Dante On Line: www.danteonline.it (em italiano) com direito a ver na tela alguns manuscritos... sem ter que fazer download de nenhum recurso extra...
     4. www.divinecomedy.org/ (nem sempre disponível)
     E todos os mais que o google pode lhe indicar.

     Boa leitura!

     Uma nota final (já ia me esquecendo): A presente edição em eBook pode ser distribuída à vontade, sob uma única condição: todo uso comercial é PROIBIDO, além de obviamente INDECENTE. Quem fizer — se alguém fizer, melhor diria, restasse em mim alguma esperança na honestidade pátria, caso em que nem colocaria a nota — é melhor ler este volume para ir se acostumando com o cenário.

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terça-feira, 10 de novembro de 2015

AUTA DE SOUZA



Auta de Souza 



Na Primeira Página 
da 
“Imitação de Cristo” 
Vinde a mim todos os que estais fatigados  
e oprimidos, e eu vos consolarei. 
                            IMIT. DE CRISTO L. IV. cap. I 
(Macaíba - Março de 1899) 

Quando meu pobre coração doente, 
Cheio de mágoas, desolado e aflito, 
Sinto bater descompassadamente, 
Abro este livro então: leio e medito. 
Leio e medito nesta voz celeste 
Quem vem do Além, qual mensageiro santo, 
Trazer um ramo de oliveira agreste 
Aos que navegam sobre o mar do pranto.  
Meus pobres olhos sempre rasos d’água, 
Por um instante deixam de chorar; 
E nas asas da Prece a minha mágoa 
Vai-se um momento para além do Mar.  
E d’entro d’alma, nua de esperança, 
Eu penso ouvir como n’um sonho doce 
Alguém que fala numa voz tão mansa 
Como se o eco de um suspiro fosse:  
“Vem a mim se padeces: no meu seio 
Corre a fonte serena da Alegria... 
Eu sou Aquele que sorrindo veio 
Dourar as trevas da Melancolia.  
Eu sou um branco e pálido sorriso 
Iluminando a tua solidão: 
Faze de minha Cruz um Paraíso 
E do meu Coração teu coração.  
Faze-te humilde, humilde e pequenina, 
Como as crianças, como os passarinhos... 
Escuta e guarda a minha lei divina, 
No sacrário ideal dos meus carinhos.  
Não sabes quanto padeci no Horto, 
Por ti, por teu amor, filha querida? 
Eu sou o Anjo formoso do conforto, 
Venho trazer o bálsamo à ferida.  
Carrega a tua Cruz e vem comigo 
Pela estrada da Dor e do Tormento. 
Eu serei teu irmão, teu sol, o amigo 
Que em lírios mudará o sofrimento.  
Venho trazer a Paz... Longe da terra 
A Paz habita... Ao pé do Santuário, 
Ó minha filha, a doce paz se encerra 
Dentro da Hóstia, dentro do Sacrário.  
Felizes os que sofrem e no meu seio 
Recolhem suas queixas como preces; 
Volta o pesar ao Céu de onde ele veio... 
Feliz, ó sim! feliz tu que padeces!”  
E a mesma voz escuto, o mesmo canto, 
De cada vez que o meu olhar ungido 
Cai docemente n’este livro santo, 
Lembrança amiga de um irmão querido.  
Amo tanto o meu livro, ele é tão puro, 
Consola tanto o coração aflito! 
Ah! desta vida no caminho escuro 
Ele será meu talismã bendito!  
E se ele entreabre, a rir, a boca ingênua e pura, 
Casta como da rosa o seio imaculado: 
“Abrem-se, par em par, - meu coração murmura - 
As portas de coral de um palácio encantado!”  
Ah! como fico alegre e como canto ao vê-lo! 
Foge-me até do seio a sombra do Desgosto. 
Inclino-me de leve e beijo-lhe o cabelo 
Enquanto o Sol se ajoelha e vem beijar-lhe o rosto...  
Ó lírio perfumado! Ó manso cordeirinho 
Que guardas a Quimera em teu sorriso em flor... 
Vive feliz, ó santo, e que jamais o espinho 
Da mágoa te atormente, ó pequenino amor!  
Que o meu Verso te leve, açucena bendita, 
Nas asas de cristal, as brancas esperanças... 
E o afeto sagrado e a ternura infinita 
Que minh’alma consagra a todas as crianças!  



  
BENDITA


Bendita sejas, minha mãe, bendito 
Seja o teu seio, imaculado e santo, 
Onde derrama as gotas de seu pranto 
Meu dolorido coração aflito. 
Ó minha mãe, ó anjo sacrossanto, 
Bendito seja o teu amor, bendito! 
Ouve do Céu o amargurado grito 
Cheio da dor de quem soluça tanto. 
E deixa que repouse em teus joelhos 
A minha fronte, ouvindo os teus conselhos 
Longe do mundo, ó sempiterna dita! 
Envia lá do céu no teu sorriso 
A morte que levou-te ao Paraíso... 
Bendita sejas, minha mãe, bendita! 
  
  
  

À ALMA DE MINHA MÃE
  
  

Partiu-se o fio branco e delicado 
Dos sonhos de minh'alma desditosa... 
E as contas do rosário assim quebrado 
Caíram como folhas de uma rosa. 
Debalde eu as procuro lacrimosa, 
Estas doces relíquias do Passado, 
Para guardá-las na urna perfumosa, 
Do meu seio no cofre imaculado. 
Aí! se eu ao menos uma só pudesse 
D'estas contas achar que me fizesse 
Lembrar um mundo de alegrias doidas... 
Feliz seria... Mas minh'alma atenta 
Em vão procura uma continha benta: 
Quando partiste m'as levaste todas! 
  
  
  
  
  
   A MINHA AVÓ 


Minh'alma vai cantar, alma sagrada! 
Raio de sol dos meus primeiros dias... 
Gota de luz nas regiões sombrias 
De minha vida triste e amargurada. 
Minh'alma vai cantar, velhinha amada! 
Rio onde correm minhas alegrias... 
Anjo bendito que me refugias 
Nas tuas asas contra a sina irada! 
Minh'alma vai cantar... Transforma o seio 
N'um cofre santo de carícias cheio, 
Para este livro todo o meu tesouro...  
Eu quero vê-lo, em desejada calma, 
No rico santuário de tu'alma... 
— Hóstia guardada n'um cibório de ouro! — 
  
  
  

REGINA MARTYRUM


  Lírio do Céu, sagrada criatura, 
Mãe das crianças e dos pecadores, 
Alma divina como a luz e as flores 
Das virgens castas a mais casta e pura; 
Do Azul imenso, d'essa imensa altura 
Para onde voam nossas grandes dores, 
Desce os teus olhos cheios de fulgores 
Sobre os meus olhos cheios de amargura! 
Na dor sem termo pela negra estrada 
Vou caminhando a sós, desatinada, 
— Ai! pobre cega sem amparo ou guia! — 
Sê tu a mão que me conduza ao porto... 
Ó doce mãe da luz e do conforto, 
Ilumina o terror d'esta agonia! 
  
   
  AO PÉ DE UM BERÇO 

A Leopoldina Monteiro. 

Pensei em ti, Leopoldina, escrevendo estes versos; quero 
que os cantes embalando o teu Milton. 

Dorme, dorme, pequenino 
Encanto de meu amor; 
Que o sono doce e divino 
Cerre-te as folhas, ó flor! 

Fecha os olhos, meu filhinho; 
E pede ao sono que leve 
Ao céu, em faixas de linho. 
Tu’alma da cor da neve. 

Mas não demores, meu filho, 
Volta nas asas do amor, 
Traz a meus olhos o brilho, 
Traz a meu seio o calor. 

Meu coração é um ramo 
Onde teci o teu ninho; 
Dorme nele, gaturamo, 
Ó sonho branco de arminho! 

Dorme, dorme; de mansinho 
Vou te embalando a cantar... 
Esconde as asas no ninho, 
Não quero ouvir-te chorar. 

Fecha os olhos docemente 
E voa longe da terra, 
Dorme o teu sono inocente, 
Ó nívea pomba da serra! 

Dorme, santinho, as estrelas 
Virão cobrir-te com um véu; 
Não chores se queres vê-las 
Fazer de teu berço um céu. 

Foge da noite aos abrolhos 
Neste celeste abandono; 
Eu guardo um sonho nos olhos 
Para dourar o teu sono. 

Olha, meu santo, Jesus, 
Que tanto amava os meninos, 
Vela sorrindo da cruz 
O sono dos pequeninos. 

E a mãe do céu, nos espaços 
Deixando de luz um trilho, 
Traz o filhinho nos braços 
Para beijar-te, meu filho! 

Recebe o carinho amigo 
E pede ao rei do Universo 
Que fique a sonhar contigo, 
Dormindo no mesmo berço. 

Às duas mães, n’um sorriso, 
Sobre o ninho velarão... 
E eu direi ao Paraíso, 
Baixinho, no coração: 

Qual dos dois mais luz encerra, 
Envoltos no mesmo véu: 
O filho da mãe da terra? 
O filho da mãe do Céu? 

Dorme, bonina nevada, 
Enquanto eu velo a cantar; 
Guia-me à pátria adorada, 
Ó doce estrela do Mar! 

Dorme e não chores, criança! 
A Lua do Céu sorri - 
Na vida sem esperança 
Eu hei de chorar por ti.
  

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

MARILENA CHAUÍ 13

Convite à Filosofia
De Marilena Chaui
Ed. Ática, São Paulo, 2000.
Unidade 3
A verdade
Capítulo 3
As concepções da verdade
Grego, latim e hebraico
Nossa idéia da verdade foi construída ao longo dos séculos, a partir de três concepções diferentes, vindas da língua grega, da latina e da hebraica.
Em grego, verdade se diz aletheia, significando: não-oculto, não-escondido, não-dissimulado. O verdadeiro é o que se manifesta aos olhos do corpo e do espírito; a verdade é a manifestação daquilo que é ou existe tal como é. O verdadeiro se opõe ao falso, pseudos, que é o encoberto, o escondido, o dissimulado, o que parece ser e não é como parece. O verdadeiro é o evidente ou o plenamente visível para a razão.
Assim, a verdade é uma qualidade das próprias coisas e o verdadeiro está nas próprias coisas. Conhecer é ver e dizer a verdade que está na própria realidade e, portanto, a verdade depende de que a realidade se manifeste, enquanto a falsidade depende de que ela se esconda ou se dissimule em aparências.
Em latim, verdade se diz veritas e se refere à precisão, ao rigor e à exatidão de um relato, no qual se diz com detalhes, pormenores e fidelidade o que aconteceu. Verdadeiro se refere, portanto, à linguagem enquanto narrativa de fatos acontecidos, refere-se a enunciados que dizem fielmente as coisas tais como foram ou aconteceram. Um relato é veraz ou dotado de veracidade quando a linguagem enuncia os fatos reais.
A verdade depende, de um lado, da veracidade, da memória e da acuidade mental de quem fala e, de outro, de que o enunciado corresponda aos fatos acontecidos. A verdade não se refere às próprias coisas e aos próprios fatos (como acontece com a aletheia), mas ao relato e ao enunciado, à linguagem. Seu oposto, portanto, é a mentira ou a falsificação. As coisas e os fatos não são reais ou imaginários; os relatos e enunciados sobre eles é que são verdadeiros ou falsos.
Em hebraico verdade se diz emunah e significa confiança. Agora são as pessoas e é Deus quem são verdadeiros. Um Deus verdadeiro ou um amigo verdadeiro são aqueles que cumprem o que prometem, são fiéis à palavra dada ou a um pacto feito; enfim, não traem a confiança.
A verdade se relaciona com a presença, com a espera de que aquilo que foi prometido ou pactuado irá cumprir-se ou acontecer. Emunah é uma palavra de mesma origem que amém, que significa: assim seja. A verdade é uma crença fundada na esperança e na confiança, referidas ao futuro, ao que será ou virá. Sua forma mais elevada é a revelação divina e sua expressão mais perfeita é a profecia.
Aletheia se refere ao que as coisas são; veritas se refere aos fatos que foram; emunah se refere às ações e as coisas que serão. A nossa concepção da verdade é uma síntese dessas três fontes e por isso se refere às coisas presentes (como na aletheia), aos fatos passados (como na veritas) e às coisas futuras (como na emunah). Também se refere à própria realidade (como na aletheia), à linguagem (como na veritas) e à confiança-esperança (como na emunah).
Palavras como “averiguar” e “verificar” indicam buscar a verdade; “veredicto” é pronunciar um julgamento verdadeiro, dizer um juízo veraz; “verossímil” e “verossimilhante” significam: ser parecido com a verdade, ter traços semelhantes aos de algo verdadeiro.
Diferentes teorias sobre a verdade
Existem diferentes concepções filosóficas sobre a natureza do conhecimento verdadeiro, dependendo de qual das três idéias originais da verdade predomine no pensamento de um ou de alguns filósofos.
Assim, quando predomina a aletheia, considera-se que a verdade está nas próprias coisas ou na própria realidade e o conhecimento verdadeiro é a percepção intelectual e racional dessa verdade. A marca do conhecimento verdadeiro é a evidência, isto é, a visão intelectual e racional da realidade tal como é em si mesma e alcançada pelas operações de nossa razão ou de nosso intelecto. Uma idéia é verdadeira quando corresponde à coisa que é seu conteúdo e que existe fora de nosso espírito ou de nosso pensamento. A teoria da evidência e da correspondência afirma que o critério da verdade é a adequação do nosso intelecto à coisa, ou da coisa ao nosso intelecto.
Quando predomina a veritas, considera-se que a verdade depende do rigor e da precisão na criação e no uso de regras de linguagem, que devem exprimir, ao mesmo tempo, nosso pensamento ou nossas idéias e os acontecimentos ou fatos exteriores a nós e que nossas idéias relatam ou narram em nossa mente.
Agora, não se diz que uma coisa é verdadeira porque corresponde a uma realidade externa, mas se diz que ela corresponde à realidade externa porque é verdadeira. O critério da verdade é dado pela coerência interna ou pela coerência lógica das idéias e das cadeias de idéias que formam um raciocínio, coerência que depende da obediência às regras e leis dos enunciados corretos. A marca do verdadeiro é a validade lógica de seus argumentos.
Finalmente, quando predomina a emunah, considera-se que a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança entre os pesquisadores, que definem um conjunto de convenções universais sobre o conhecimento verdadeiro e que devem sempre ser respeitadas por todos. A verdade se funda, portanto, no consenso e na confiança recíproca entre os membros de uma comunidade de pesquisadores e estudiosos.
O consenso se estabelece baseado em três princípios que serão respeitados por todos:
1. que somos seres racionais e nosso pensamento obedece aos quatro princípios da razão (identidade, não-contradição, terceiro-excluído e razão suficiente ou causalidade);
2. que somos seres dotados de linguagem e que ela funciona segundo regras lógicas convencionadas e aceitas por uma comunidade;
3. que os resultados de uma investigação devem ser submetidos à discussão e avaliação pelos membros da comunidade de investigadores que lhe atribuirão ou não o valor de verdade.
Existe ainda uma quarta teoria da verdade que se distingue das anteriores porque define o conhecimento verdadeiro por um critério que não é teórico e sim prático. Trata-se da teoria pragmática, para a qual um conhecimento é verdadeiro por seus resultados e suas aplicações práticas, sendo verificado pela experimentação e pela experiência. A marca do verdadeiro é a verificabilidade dos resultados.
Essa concepção da verdade está muito próxima da teoria da correspondência entre coisa e idéia (aletheia), entre realidade e pensamento, que julga que o resultado prático, na maioria das vezes, é conseguido porque o conhecimento alcançou as próprias coisas e pode agir sobre elas.
Em contrapartida, a teoria da convenção ou do consenso (emunah) está mais próxima da teoria da coerência interna (veritas), pois as convenções ou consensos verdadeiros costumam ser baseados em princípios e argumentos lingüísticos e lógicos, princípios e argumentos da linguagem, do discurso e da comunicação.
Na primeira teoria (aletheia/correspondência), as coisas e as idéias são consideradas verdadeiras ou falsas; na segunda (veritas/coerência) e na terceira (emunah/consenso), os enunciados, os argumentos e as idéias é que são julgados verdadeiros ou falsos; na quarta (pragmática), são os resultados que recebem a denominação de verdadeiros ou falsos.
Na primeira e na quarta teoria, a verdade é o acordo entre o pensamento e a realidade. Na segunda e na terceira teoria, a verdade é o acordo do pensamento e da linguagem consigo mesmos, a partir de regras e princípios que o pensamento e a linguagem deram a si mesmos, em conformidade com sua natureza própria, que é a mesma para todos os seres humanos (ou definida como a mesma para todos por um consenso).
A verdade como evidência e correspondência
Se observarmos a concepção grega da verdade (aletheia), notaremos que nela as coisas ou o Ser é o verdadeiro ou a verdade. Isto é, o que existe e manifesta sua existência para nossa percepção e para nosso pensamento é verdade ou verdadeiro. Por esse motivo, os filósofos gregos perguntam: Como o erro, o falso e a mentira são possíveis? Em outras palavras, como podemos pensar naquilo que não é, não existe, não tem realidade, pois o erro, o falso e a mentira só podem referir-se ao não-Ser? O Ser é o manifesto, o visível para os olhos do corpo e do espírito, o evidente. Errar, falsear ou mentir, portanto, é não ver os seres tais como são, é não falar deles tais como são. Como é isso possível?
A resposta dos gregos é dupla:
1. o erro, o falso e a mentira se referem à aparência superficial e ilusória das coisas ou dos seres e surgem quando não conseguimos alcançar a essência das realidades (como no poema de Mário de Andrade, em que a garoa-neblina cria um véu que encobre, oculta e dissimula as coisas e as torna confusas, indistintas); são um defeito ou uma falha de nossa percepção sensorial ou intelectual;
2. o erro, o falso e a mentira surgem quando dizemos de algum ser aquilo que ele não é, quando lhe atribuímos qualidades ou propriedades que ele não possui ou quando lhe negamos qualidades ou propriedades que ele possui. Nesse caso, o erro, o falso e a mentira se alojam na linguagem e acontecem no momento em que fazemos afirmações ou negações que não correspondem à essência de alguma coisa. O erro, o falso e a mentira são um acontecimento do juízo ou do enunciado. [Juízo é uma proposição afirmativa (“S é P”) ou negativa (“S não é P”) pela qual atribuo ou nego a um sujeito S um predicado P. O predicado é um atributo afirmado ou negado do sujeito e faz parte (ou não) de sua essência.]
Se eu formular o seguinte juízo: “Sócrates é imortal”, o erro se encontra na atribuição do predicado “imortal” a um sujeito “Sócrates”, que não possui a qualidade ou a propriedade da imortalidade. O erro é um engano do juízo quando desconhecemos a essência de um ser. O falso e a mentira, porém, são juízos deliberadamente errados, isto é, conhecemos a essência de alguma coisa, mas deliberadamente emitimos um juízo errado sobre ela.
O que é a verdade? É a conformidade entre nosso pensamento e nosso juízo e as coisas pensadas ou formuladas. Qual a condição para o conhecimento verdadeiro? A evidência, isto é, a visão intelectual da essência de um ser. Para formular um juízo verdadeiro precisamos, portanto, primeiro conhecer a essência, e a conhecemos ou por intuição, ou por dedução, ou por indução.
A verdade exige que nos libertemos das aparências das coisas; exige, portanto, que nos libertemos das opiniões estabelecidas e das ilusões de nossos órgãos dos sentidos. Em outras palavras, a verdade sendo o conhecimento da essência real e profunda dos seres é sempre universal e necessária, enquanto as opiniões variam de lugar para lugar, de época para época, de sociedade para sociedade, de pessoa para pessoa. Essa variabilidade e inconstância das opiniões provam que a essência dos seres não está conhecida e, por isso, se nos mantivermos no plano das opiniões, nunca alcançaremos a verdade.
O mesmo deve ser dito sobre nossas impressões sensoriais, que variam conforme o estado do nosso corpo, as disposições de nosso espírito e as condições em que as coisas nos aparecem. Pelo mesmo motivo, devemos ou abandonar as idéias formadas a partir de nossa percepção, ou encontrar os aspectos universais e necessários da experiência sensorial que alcancem parte da essência real das coisas. No primeiro caso, somente o intelecto (espírito) vê o Ser verdadeiro. No segundo caso, o intelecto purifica o testemunho sensorial.
Por exemplo, posso perceber que uma flor é branca, mas se eu estiver doente, a verei amarela; percebo o Sol muito menor do que a Terra, embora ele seja maior do que ela. Apesar desses enganos perceptivos, observo que toda percepção percebe qualidades nas coisas (cor, tamanho, por exemplo) e, portanto, as qualidades pertencem à essência das próprias coisas e fazem parte da verdade delas.
Quando, porém, examinamos a idéia latina da verdade como veracidade de um relato, observamos que, agora, o problema da verdade e do erro, do falso e da mentira deslocou-se diretamente para o campo da linguagem. O verdadeiro e o falso estão menos no ato de ver (com os olhos do corpo ou com os olhos do espírito) e mais no ato de dizer. Por isso, a pergunta dos filósofos, agora, é exatamente contrária à anterior, ou seja, pergunta-se: Como a verdade é possível?
De fato, se a verdade está no discurso ou na linguagem, não depende apenas do pensamento e das próprias coisas, mas também de nossa vontade para dizê-la, silenciá-la ou deformá-la. O verdadeiro continua sendo tomado como conformidade entre a idéia e as coisas – no caso, entre o discurso ou relato e os fatos acontecidos que estão sendo relatados -, mas depende também de nosso querer.
Esse aspecto voluntário da verdade torna-se de grande importância com o surgimento da Filosofia cristã porque, com ela, é introduzida a idéia de vontade livre ou de livre-arbítrio, de modo que a verdade está na dependência não só da conformidade entre relato e fato, mas também da boa-vontade ou da vontade que deseja o verdadeiro.
Ora, o cristianismo afirma que a vontade livre foi responsável pelo pecado original e que a vontade foi pervertida e tornou-se má-vontade. Assim sendo, a mentira, o erro e o falso tenderiam a prevalecer contra a verdade. Nosso intelecto ou nosso pensamento é mais fraco do que nossa vontade e esta pode forçá-lo ao erro e ao falso.
Essas questões foram posteriormente examinadas pelos filósofos modernos, os filósofos do Grande Racionalismo Clássico, que introduzirão a exigência de começar a Filosofia pelo exame de nossa consciência – vontade, intelecto, imaginação, memória -, para saber o que podemos conhecer realmente e quais os auxílios que devem ser oferecidos ao nosso intelecto para que controle e domine nossa vontade e a submeta ao verdadeiro.
É preciso começar liberando nossa consciência dos preconceitos, dos dogmatismos da opinião e da experiência cotidiana. Essa consciência purificada, que é o sujeito do conhecimento, poderá, então, alcançar as evidências (por intuição, dedução ou indução) e formular juízos verdadeiros aos quais a vontade deverá submeter-se.
Tanto os antigos quanto os modernos afirmam que:
1. a verdade é conhecida por evidência (a evidência pode ser obtida por intuição, dedução ou indução);
2. a verdade se exprime no juízo, onde a idéia está em conformidade com o ser das coisas ou com os fatos;
3. o erro, o falso e a mentira se alojam no juízo (quando afirmamos de uma coisa algo que não pertence à sua essência ou natureza, ou quando lhe negamos algo que pertence necessariamente à sua essência ou natureza);
4. as causas do erro e do falso são as opiniões preconcebidas, os hábitos, os enganos da percepção e da memória;
5. a causa do falso e da mentira, para os modernos, também se encontra na vontade, que é mais poderosa do que o intelecto ou o pensamento, e precisa ser controlada por ele;
6. uma verdade, por referir-se à essência das coisas ou dos seres, é sempre universal e necessária e distingue-se da aparência, pois esta é sempre particular, individual, instável e mutável;
7. o pensamento se submete a uma única autoridade: a dele própria com capacidade para o verdadeiro.
Quando os filósofos antigos e modernos afirmam que a verdade é conformidade ou correspondência entre a idéia e a coisa e entre a coisa e a idéia (ou entre a idéia e o ideado), não estão dizendo que uma idéia verdadeira é uma cópia, um papel carbono, um “xerox” da coisa verdadeira. Idéia e coisa, conceito e ser, juízo e fato não são entidades de mesma natureza e não há entre eles uma relação de cópia. O que os filósofos afirmam é que a idéia conhece a estrutura da coisa, conhece as relações internas necessárias que constituem a essência da coisa e as relações e nexos necessários que ela mantém com outras. Como disse um filósofo, a idéia de cão não late e a de açúcar não é doce. A idéia é um ato intelectual; o ideado, uma realidade externa conhecida pelo intelecto.
A idéia verdadeira é o conhecimento das causas, qualidades, propriedades e relações da coisa conhecida, e da essência dela ou de seu ser íntimo e necessário. Quando o pensamento conhece, por exemplo, o fenômeno da queda livre dos corpos (formulado pela física de Galileu), isto não significa que o pensamento se torne um corpo caindo no vácuo, mas sim que conhece as causas desse movimento e as formula em conceitos verdadeiros, isto é, formula as leis do movimento.
Uma outra teoria da verdade
Quando estudamos a razão, vimos os problemas criados pelo inatismo e pelo empirismo. Vimos também a “revolução copernicana” de Kant, distinguindo as estruturas ou formas e categorias da razão e os conteúdos trazidos a ela pela experiência, isto é, a distinção entre os elementos a priori e a posteriori no conhecimento.
Com a revolução copernicana kantiana, uma distinção muito importante passou a ser feita na Filosofia: a distinção entre juízos analíticos e juízos sintéticos.
Um juízo é analítico quando o predicado ou os predicados do enunciado nada mais são do que a explicitação do conteúdo do sujeito do enunciado. Por exemplo: quando digo que o triângulo é uma figura de três lados, o predicado “três lados” nada mais é do que a análise ou a explicitação do sujeito “triângulo”.
Quando, porém, entre o sujeito e o predicado se estabelece uma relação na qual o predicado me dá informações novas sobre o sujeito, o juízo é sintético, isto é, formula uma síntese entre um predicado e um sujeito. Assim, por exemplo, quando digo que o calor é a causa da dilatação dos corpos, o predicado “causa da dilatação” não está analiticamente contido no sujeito “calor”. Se eu dissesse que o calor é uma medida de temperatura dos corpos, o juízo seria analítico, mas quando estabeleço uma relação causal entre o sujeito e o predicado, como no caso da relação entre “calor” e “dilatação dos corpos”, tenho uma síntese, algo novo me é dito sobre o sujeito através do predicado.
Para Kant, os juízos analíticos são as verdades de razão de Leibniz, mas os juízos sintéticos teriam que ser considerados verdades de fato. No entanto, vimos que os fatos estão sob a suspeita de Hume, isto é, fatos seriam hábitos associativos e repetitivos de nossa mente, baseados na experiência sensível e, portanto, um juízo sintético jamais poderia pretender ser verdadeiro de modo universal e necessário.
Que faz Kant? Introduz a idéia de juízos sintéticos a priori, isto é, de juízos sintéticos cuja síntese depende da estrutura universal e necessária de nossa razão e não da variabilidade individual de nossas experiências. Os juízos sintéticos a priori exprimem o modo como necessariamente nosso pensamento relaciona e conhece a realidade. A causalidade, por exemplo, é uma síntese a priori que nosso entendimento formula para as ligações universais e necessárias entre causas e efeitos, independentemente de hábitos psíquicos associativos.
Todavia, vimos também que Kant afirma que a realidade que conhecemos filosoficamente e cientificamente não é a realidade em si das coisas, mas a realidade tal como é estruturada por nossa razão, tal como é organizada, explicada e interpretada pelas estruturas a priori do sujeito do conhecimento. A realidade são nossas idéias verdadeiras e o kantismo é um idealismo.
Vimos também, ao estudar a Filosofia contemporânea, que o filósofo Husserl criou uma filosofia chamada fenomenologia. Essa palavra vem diretamente da filosofia kantiana. Com efeito, Kant usa duas palavras gregas para referir-se à realidade: a palavra noumenon, que significa a realidade em si, racional em si, inteligível em si; e a palavra phainomenon (fenômeno), que significa a realidade tal como se mostra ou se manifesta para nossa razão ou para nossa consciência. Kant afirma que só podemos conhecer o fenômeno (o que se apresenta para a consciência, de acordo com a estrutura a priori da própria consciência) e que não podemos conhecer o noumenon (a coisa em si). Fenomenologia significa: conhecimento daquilo que se manifesta para nossa consciência, daquilo que está presente para a consciência ou para a razão, daquilo que é organizado e explicado a partir da própria estrutura da consciência. A verdade se refere aos fenômenos e os fenômenos são o que a consciência conhece.
Ora, pergunta Husserl, o que é o fenômeno? O que é que se manifesta para a consciência? A própria consciência. Conhecer os fenômenos e conhecer a estrutura e o funcionamento necessário da consciência são uma só e mesma coisa, pois é a própria consciência que constitui os fenômenos.
Como ela os constitui? Dando sentido às coisas. Conhecer é conhecer o sentido ou a significação das coisas tal como esse sentido foi produzido ou essa significação foi produzida pela consciência. O sentido, ou significação, quando universal e necessário, é a essência das coisas. A verdade é o conhecimento das essências universais e necessárias ou o conhecimento das significações constituídas pela consciência reflexiva ou pela razão reflexiva.
Na perspectiva idealista, seja ela kantiana ou husserliana, não podemos mais dizer que a verdade é a conformidade do pensamento com as coisas ou a correspondência entre a idéia e o objeto. A verdade será o encadeamento interno e rigoroso das idéias ou dos conceitos (Kant) ou das significações (Husserl), sua coerência lógica e sua necessidade. A verdade é um acontecimento interno ao nosso intelecto ou à nossa consciência.
Para Kant e para Husserl, o erro e a falsidade encontram-se no realismo, isto é, na suposição de que os conceitos ou as significações se refiram a uma realidade em si, independente do sujeito do conhecimento. Esse erro e essa falsidade, Kant chamou de dogmatismo e Husserl, de atitude natural ou tese natural do mundo.
Uma terceira concepção da verdade
Quando falamos sobre Filosofia contemporânea, fizemos referência a um tipo de filosofia conhecida como filosofia analítica.
A filosofia analítica dedicou-se prioritariamente aos estudos da linguagem e da lógica e por isso situou a verdade como um fato ou um acontecimento lingüístico e lógico, isto é, como um fato da linguagem. A teoria da verdade, nessa filosofia, passou por duas grandes etapas.
Na primeira, os filósofos consideravam que a linguagem produz enunciados sobre as coisas – há os enunciados do senso-comum ou da vida cotidiana e os enunciados lógicos formulados pelas ciências. A pretensão da linguagem, nos dois casos, seria a de produzir enunciados em conformidade com a própria realidade, de modo que a verdade seria tal conformidade ou correspondência entre os enunciados e os fatos e coisas.
Essa conformidade ou correspondência seria inadequada e imprecisa na linguagem natural ou comum (nossa linguagem cotidiana) e seria adequada, rigorosa e precisa na linguagem lógica das ciências. Por isso, a ciência foi definida como “linguagem bem feita” e concebida como descrição e “pintura” do mundo.
No entanto, inúmeros problemas tornaram essa concepção insustentável. Por exemplo, se eu disser “estrela da manhã” e “estrela da tarde”, terei dois enunciados diferentes e duas pinturas diferentes do mundo. Acontece, porém, que esses dois enunciados se referem ao mesmo objeto, o planeta Vênus. Como posso ter dois enunciados diferentes para significar o mesmo objeto ou a mesma coisa?
Um outro exemplo, conhecido com o nome de “paradoxo do catálogo”, também pode ilustrar as dificuldades da teoria da verdade como correspondência entre enunciado e coisa, em que a correspondência é uma “pintura” da realidade feita pelas idéias.
Se eu disser que existe o catálogo de todos os catálogos, onde devo colocar o “catálogo dos catálogos”? Isto é, o catálogo dos catálogos é um catálogo catalogado por ele mesmo junto com os outros catálogos, ou é um catálogo que não faz parte de nenhum catálogo? Se estiver catalogado, não pode ser catálogo de todos os catálogos, pois será necessário um outro catálogo que o contenha; mas se não estiver catalogado, não é o catálogo de todos os catálogos, pois em tal catálogo está faltando ele próprio.
O que se percebeu nesse paradoxo é que a estrutura e o funcionamento da linguagem não correspondem exatamente à estrutura e ao funcionamento das coisas. Essa descoberta conduziu a filosofia analítica à idéia da verdade como algo puramente lingüístico e lógico, isto é, a verdade é a coerência interna de uma linguagem que oferece axiomas, postulados e regras para os enunciados e que é verdadeira ou falsa conforme respeite ou desrespeite as normas de seu próprio funcionamento.
Cada campo do conhecimento cria sua própria linguagem, seus axiomas, seus postulados, suas regras de demonstração e de verificação de seus resultados e é a coerência interna entre os procedimentos e os resultados com os princípios que fundamentam um certo campo de conhecimento que define o verdadeiro e o falso. Verdade e falsidade não estão nas coisas nem nas idéias, mas são valores dos enunciados, segundo o critério da coerência lógica.
A concepção pragmática da verdade
Os filósofos empiristas tendem a considerar que os critérios anteriores são puramente teóricos e que, para decidir sobre a verdade de um fato ou de uma idéia, eles não são suficientes e podem gerar ceticismo, isto é, como há variados critérios e como há mudanças históricas no conceito da verdade, acaba-se julgando que a verdade não existe ou é inalcançável pelos seres humanos.
Para muitos filósofos empiristas, a verdade, além de ser sempre verdade de fato e de ser obtida por indução e por experimentação, deve ter como critério sua eficácia ou utilidade. Um conhecimento é verdadeiro não só quando explica alguma coisa ou algum fato, mas sobretudo quando permite retirar conseqüências práticas e aplicáveis. Por considerarem como critério da verdade a eficácia e a utilidade, essa concepção é chamada de pragmática e a corrente filosófica que a defende, de pragmatismo.
As concepções da verdade e a História
As várias concepções da verdade que foram expostas estão articuladas com mudanças históricas, tanto no sentido de mudanças na estrutura e organização das sociedades, como quanto no sentido de mudanças no interior da própria Filosofia.
Assim, por exemplo, nas sociedades antigas, baseadas no trabalho escravo, a idéia da verdade como utilidade e eficácia prática não poderia aparecer, pois a verdade é considerada a forma superior do espírito humano, portanto, desligada do trabalho e das técnicas, e tomada como um valor autônomo do conhecimento enquanto pura contemplação da realidade, isto é, como theoria.
Nas sociedades nascidas com o capitalismo, em que o trabalho escravo e servil é substituído pelo trabalho livre e em que é elaborada a idéia de indivíduo como um átomo social, isto é, como um ser que pode ser conhecido e pensado por si mesmo e sem os outros, a verdade tenderá a ser concebida como dependendo exclusivamente das operações do sujeito do conhecimento ou da consciência de si reflexiva autônoma.
Também nas sociedades capitalistas, regidas pelo princípio do crescimento ou acumulação do capital por meio do crescimento das forças produtivas (trabalho e técnicas) e por meio do aumento da capacidade industrial para dominar e controlar as forças da Natureza e a sociedade, a verdade tenderá a aparecer como utilidade e eficácia, ou seja, como algo que tenha uso prático e verificável. Assim como o trabalho deve produzir lucro, também o conhecimento deve produzir resultados úteis.
Numa sociedade altamente tecnológica, como a do século XX ocidental europeu e norte-americano, em que as pesquisas científicas tendem a criar nos laboratórios o próprio objeto do conhecimento, isto é, em que o objeto do conhecimento é uma construção do pensamento científico ou um constructus produzido pelas teorias e pelas experimentações, a verdade tende a ser considerada a forma lógica e coerente assumida pela própria teoria, bem como a ser considerada como o consenso teórico estabelecido entre os membros das comunidades de pesquisadores.
A verdade, portanto, como a razão, está na História e é histórica.
Também as transformações internas à própria Filosofia modificam a concepção da verdade. A teoria da verdade como correspondência entre coisa e idéia, ou fato e idéia, liga-se à concepção realista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do objeto do conhecimento, ou realidade, sobre o sujeito do conhecimento. Ao contrário, a concepção da verdade como coerência interna e lógica das idéias ou dos conceitos liga-se à concepção idealista da razão e do conhecimento, isto é, à prioridade do sujeito do conhecimento ou do pensamento sobre o objeto a ser conhecido.
As concepções históricas e as transformações internas ao conhecimento mostram que as várias concepções da verdade não são arbitrárias nem casuais ou acidentais, mas possuem causas e motivos que as explicam, e que a cada formação social e a cada mudança interna do conhecimento surge a exigência de reformular a concepção da verdade para que o saber possa realizar-se.
As verdades (os conteúdos conhecidos) mudam, a idéia da verdade (a forma de conhecer) muda, mas não muda a busca do verdadeiro, isto é, permanece a exigência de vencer o senso-comum, o dogmatismo, a atitude natural e seus preconceitos. É a procura da verdade e o desejo de estar no verdadeiro que permanecem. A verdade se conserva, portanto, como o valor mais alto a que aspira o pensamento.
As exigências fundamentais da verdade
Se examinarmos as diferentes concepções da verdade, notaremos que algumas exigências fundamentais são conservadas em todas elas e constituem o campo da busca do verdadeiro:
1. compreender as causas da diferença entre o parecer e o ser das coisas ou dos erros;
2. compreender as causas da existência e das formas de existência dos seres;
3. compreender os princípios necessários e universais do conhecimento racional;
4. compreender as causas e os princípios da transformação dos próprios conhecimentos;
5. separar preconceitos e hábitos do senso comum e a atitude crítica do conhecimento;
6. explicitar com todos os detalhes os procedimentos empregados para o conhecimento e os critérios de sua realização;
7. liberdade de pensamento para investigar o sentido ou a significação da realidade que nos circunda e da qual fazemos parte;
8. comunicabilidade, isto é, os critérios, os princípios, os procedimentos, os percursos realizados, os resultados obtidos devem poder ser conhecidos e compreendidos por todos os seres racionais. Como escreve o filósofo Espinosa, o Bem Verdadeiro é aquele capaz de comunicar-se a todos e ser compartilhado por todos;
9. transmissibilidade, isto é, os critérios, princípios, procedimentos, percursos e resultados do conhecimento devem poder ser ensinados e discutidos em público. Como diz Kant, temos o direito ao uso público da razão;
10. veracidade, isto é, o conhecimento não pode ser ideologia, ou, em outras palavras, não pode ser máscara e véu para dissimular e ocultar a realidade servindo aos interesses da exploração e da dominação entre os homens. Assim como a verdade exige a liberdade de pensamento para o conhecimento, também exige que seus frutos propiciem a liberdade de todos e a emancipação de todos;
11. a verdade deve ser objetiva, isto é, deve ser compreendida e aceita universal e necessariamente, sem que isso signifique que ela seja “neutra” ou “imparcial”, pois o sujeito do conhecimento está vitalmente envolvido na atividade do conhecimento e o conhecimento adquirido pode resultar em mudanças que afetem a realidade natural, social e cultural.
Como disseram os filósofos Sartre e Merleau-Ponty, somos “seres em situação” e a verdade está sempre situada nas condições objetivas em que foi alcançada e está sempre voltada para compreender e interpretar a situação na qual nasceu e à qual volta para trazer transformações. Não escolhemos o país, a data, a família e a classe social em que nascemos – isso é nossa situação -, mas podemos escolher o que fazer com isso, conhecendo nossa situação e indagando se merece ou não ser mantida.
A verdade é, ao mesmo tempo, frágil e poderosa. Frágil porque os poderes estabelecidos podem destruí-la, assim como mudanças teóricas podem substituí-la por outra. Poderosa, porque a exigência do verdadeiro é o que dá sentido à existência humana. Um texto do filósofo Pascal nos mostra essa fragilidade-força do desejo do verdadeiro:
O homem é apenas um caniço, o mais fraco da Natureza: mas é um caniço pensante. Não é preciso que o Universo inteiro se arme para esmagá-lo: um vapor, uma gota de água são suficientes para matá-lo. Mas, mesmo que o Universo o esmagasse, o homem seria ainda mais nobre do que aquilo que o mata, porque ele sabe que morre e conhece a vantagem do Universo sobre ele; mas disso o Universo nada sabe. Toda nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É a partir dele que nos devemos elevar e não do espaço e do tempo, que não saberíamos ocupar.