Primeiro capítulo de «Chuva branca» (Rio de Janeiro, Ed. Nórdica, 1981.
2º ed.)
É sempre esse rio rolando, cheias, vazantes. O barro
carregado nas águas, amarelas. Pedaços de paus, tronqueiras, galhadas, matupás,
canaranas membecas, murerus, correndo na correnteza, rodopiando nos remansos,
nas enseadas. Menino ainda, aqui mesmo, nessa vida, mão no remo, puxando bons
surubins, dos pintados, caparari. Dando adjutório no roçado, os pais ai,
carregando maniva no jamaxi, basculho, roçando, limpando o terreiro. Desde
menino a mesma vida, apertura que nem hoje. Tinha companheiro, nos quatro anos
por ai assim. Brincadeira, era olhar o rio, jogar aninga pra jacaré, o bicho
alvoriçado, a boca trancada. Agarrar urubu no anzol, arpoar boto, gostar da arrancada
do bicho arrastando a igarité. Andar nos lagos, armar irapuca, apanhar rolinha,
trucau, inambu. Flechar peixe, nadar quando maior. Contar vantagem de marisco,
de casco bom pra furar lago, de canoa ronceira. Madeira para isso e para
aquilo. Trepar nas árvores, tirar frutas, não por brincadeira, fome isto sim.
Zé Pretinho também mariscava, pegava mas era só mandi. Menino entanguido, dois
dentes faltando na frente, cara amargosa, empambado. Um dia o jacaré jogou o
rabo no cedro, aparou o bichinho na boca. Lã se foi o companheiro. Bubuiou o
sangue, a água era vermelha. A água era vermelha, cor de miséria, assim magino
sempre. Na baixa das águas, pedaços de ossos se viu, branquinhos como garça. A
mãe ajeitou a ossada, enterrou no aceiro da casa. Senti a ausência, mais do
sangue lembrava, o tempo esqueceu. Se curumim, assinzinho, maior por dizer
nada, morre por coisa pouca. Derréia, secando, o corpo descaindo, é vê cara de
macaco. Afogado, defluxo, febre, desaparecido sem como se saiba. Muitas dessas.
Nas cheias, a mata afogada na água. É secar, fica o barreiro na beira. Vem o
sol tosta tudo, raxa. A terra é frestada e quente, esfumaça no sol. Aquela
distância de lavrado, igual terreiro varrido, duro, escaldando. Primeiros dias.
Azulando aos poucos, depois, o que a vista der é verde fechado. Só miséria, cor
de sangue. Não fosse o lago, no tempo de carestia. .. Despensa do pessoal todo
por aqui, vizinhança. Do que digo vizinhos, uma barraca aqui outra acolá
naquela lonjura, curva de rio, lago, igarapé. Barro amarelo, ruim, ingrato,
pobre também. Ingrato é, só dá mais é malícia, matapasto. Farinha, alguns
alqueires, e só. Tentar aproveitar o eito, vá rasgar a terra, macaxeira
mirrada, outra quadra a trabalhar. Esta não dá mais, cansou. Terra firme é
pobre. Nessa nesga de varge, coisinha melhor. Lavada nas grandes águas, fartura
se vê no plantio. É tudo assim. A mata aí confronto ao aceiro, comendo o
terreiro, a capoeira engrossando. A barraca distiorada, o mato chegando perto.
Telhado aberto que só renda, as estrelas entrando pela cumeeira. Respinga, mas
chuva mesmo é quase um nada. Serena, sem molhar. O caminho do porto, fundo,
roçado, furado de pés de tantos anos. Mulher, dois filhos, só na necessidade.
Nascidos ao Deus dará, servindo de parteira à mulher. Mais o Tiririca, ossudo,
pirento, cachorro bom. Alarma tudo, avisa até calango passando no terreiro. Com
a onça arrepia, gane, rosna, late mas não enfrenta. É olhar um lado vê matinha
de varge, ligada a matão fechado. O descampado é roça, farinha pelo menos. Chá,
café às vezes, e beiju. Fome, chuva miúda, tristeza de inverno. Miséria tem cor
de sangue. Deveras! Pode até ser, dar de esbarro com a anta. Rasto fresquinho
vi dias passados, cortando o varadouro da terra firme. Avezou-se a comer
piolhos do buriti. Não custa tentar. Até quem sabe Luís Chato. Dias sem nada em
casa, na farinha com água. A meninada pedindo comer, o pessoal na fraqueza.
Diabo de inverno, chuveiro danado, dificultando peixe. As águas tomando as
restingas, avançando nas terras, os bichos metidos no igapó. Tem lá quem fisgue
um esse que seja. Na fartura de comida lá pra eles, arisco em pegar anzol.
Quando escasseia a despensa, a coisa não anda boa. Deveras, o melhor é
vasculhar o vestígio da bicha, se voltou ao buritizal.
- Mulher vou ao
mato, quem sabe se dá na sorte de pegar a anta.
O mais tardar à tardinha, volto. Saiu logo aí detrás
do cagador cresce a mata alta, terra disconforme. Na comidia deve de estar,
enquanto fruta cair não abandona. Duas ou três vezes vi rasto dela, vindo
daquela direção. O rumo é este, beirando o igarapé até cruzar o primeiro
afluente. Aquele do lado de lá, servindo de ponte o pau caído. Daí é centrar na
terra alta, depois cortar pelo atalho da mãe-do-rio. No cuidado em centrar, com
terras gerais ninguém brinca. O sol mal-a-mal dando sinal de claro de vir
daquelas bandas. A ciência é não tirar vista da posição da picada. Tem outra
melhor, mas muito pisada, um atoleiro dos infernos. Ainda assim é um bordejo,
vai sair muito acima do buritizal comidia dela. Caminhada mais longa, arriscado
espantar a bicha ao tomar chegada. Andando destabocado, distante de casa é
coisa muita, pelo claro se vê. Mas deveras mesmo, o certo é especular as
pegadas na travessia do varadouro, aqui ao lado. Eita! tou na sorte. Passou
cedo por aqui. Terra molhada, pegada nova. Cala a boca, Luís Chato, o animal
num de repente cisma, cai mata afora. Uma baitela fêmea, rasto aberto não
engana. Maior que essa, só vi matar compadre Juvenal. Mas cuidado é que é,
falando alto não vai prestar. E olhe só, aqui comeu a imbaúba, resina fresca
escorrendo. Dessa vez, pego. Sustou seguida, rasgou o cacho do croatá.
Assustou-se, cismou, que teria de havido? Afundou o pé no tijuco chega
esparramou. Se anda corrida de onça, nem o diabo vai encontrar. Graças a Deus, como
pensei não era, saiu devagar. Foi até ali, bordejou acolá, tomou direção
naquela paragem mais entaniçada. É um fechado de cipó a atrapalhar qualquer um.
Firmou caminhada nesse rumo. Com a ajuda de Deus, não passa de hoje. Começou a
voltear, deve de estar deitada. Apitei, não respondeu. Andando sempre devagar,
calcando leve o terreno. Ainda falsear o pé chato de merda, fez zoada. No
calado, vai longe o estrupício. Se arisca, toma por outros lados. Amaciar o pé,
o mais e mais. Tinha dito, dizia bem. Deitou-se, mas já se arriou de centro.
Tomar reparo na cama. Fria, nem mosca por perto. Quando foi lã isso que deitou.
É andar, andar, bicha danada pra rasgar mata.
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PAULO
JACOB
Rogel
Samuel
Sob vários aspectos, ele é o maior romancista da
Amazônia.
Não é muito lido, conhecido, porque autor difícil,
sofisticado.
Sua morte, no dia 7 de abril do ano passado, abre
questão grave quanto à divulgação da cultura nacional brasileira.
Sua morte não chamou atenção.
Não se soube.
Eu mesmo, amazonense de Manaus, onde morava o
escritor, não tive conhecimento.
* * *
Vim a ouvir da boca de um chofer de táxi, em Manaus,
no dia 18 de junho.
Dizia-me ele:
- ...Por ali , na rua onde morava aquele
desembargador, que morreu no ano passado...
A rua, cujo nome não me ocorre, fica ao lado do
Igarapé.
A casa, em frente ao igarapé, exibe a vocação de Paulo
Jacob. Em Manaus, mas sempre voltado para a Floresta. Que ele conheceu bem,
pois foi juiz em Canutama, no rio Purus, em 1952, e durante 10 anos viajou pelo
Amazonas.
Até que, nos anos 60, foi promovido a desembargador do
Tribunal de Justiça.
* * *
Paulo Jacob escreveu muito. Muito. Cerca de 10
romances bem trabalhados.
Quase ganhou o maior prêmio nacional de literatura da
sua época, o Walmap, em 1969, com «Dos ditos passados nos acercador do
Cassianã», 2º lugar. Excelente livro, imenso, denso, 359 páginas de um tipo
pequeno, corpo 10 (Rio de Janeiro, Bloch, 1969).
O Walmap tinha juízes como Jorge Amado, Guimarães Rosa
e Antônio Olinto.
Os três deram o 4º lugar para «Chuva branca», em 1967,
um dos seus mais belos livros. Outro livro, «Vila rica das queimadas», título
bem atual, ecológico, também ficou entre os finalistas do Walmap. O título denuncia, como o livro: «O coração
da mata, dos rios, dos igarapés e dos igapós morrendo», sobre o desmatamento.
«Chãos de Maíconã» também «menção honrosa» do Concurso Walmap.
* * *
Festejado foi pela crítica, Paulo Jacob.
Leila Miccolis o considera «o Guimarães Rosa da
Amazônia».
Guimarães Rosa ficou entusiasmado com «Chuva branca».
Aguinaldo Silva diz que ele fez «o primeiro grande
romance da Amazônia».
Assis Brasil compara «Chuva branca» a «Sagarana» de
Rosa e a «The wild palms» de Willian Faulkner.
* * *
Ler Paulo Jacob é dificuldade. Chega que ele, em
«Chãos de Maíconã», anexou um vocabulário da língua ianoname, no fim do livro.
De um «Dicionário da língua popular da Amazônia»
também ele é autor
* * *
Paulo Jacob nasceu em 24 de fevereiro de 1921 e
faleceu no dia 7 de abril de 2004. Escreveu ainda: Muralha verde (1964), Andirá
(1965), Estirão de mundo (1979), A noite cobria o rio caminhando (1983), O
gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987), além dos citados acima.
* * *
Em «Chuva branca», o personagem vai-se adentrando,
vai-se assimilando na floresta, vai-se afastando da civilização, até que no fim
parece que nem existiu - vira mito. No fim, na morte, ele tira a roupa, fica
nu, perdido na mata, integrado nela, sabendo que vai morrer, perdido e
integrado, no mitificado.
* * *
« O gaiola tirante rumo do rio da borracha» narra a
viagem de um navio, um gaiola, um barco a vapor, saindo de Belém até o outro
lado da Amazônia, no rio Purus até subir o rio Iaco, onde o navio naufragou e
ali se soube que o preço da borracha despencara, de quinze mil réis caiu para
oito, pondo na falência todos os coronéis. O personagem é o Comandante Antonio
Damasceno.
* * *
Paulo Jacob foi professor universitário e Presidente
do Tribunal de Justiça. Como Presidente de tribunal chegou a assumir o Governo
do estado, em 1982. Sua morte deixa aberta a vaga de melhor romancista da
região Norte.
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