quinta-feira, 24 de março de 2011

MACHADO DE ASSIS: OCIDENTAIS




Ocidentais




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Texto-fonte:

Obra Completa, Machado de Assis, vol. III,

Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1994.



Publicado originalmente em Poesias Completas, Rio de Janeiro: Garnier, 1901.









ÍNDICE


O DESFECHO



CÍRCULO VICIOSO



UMA CRIATURA



A ARTUR DE OLIVEIRA, ENFERMO



MUNDO INTERIOR



O CORVO



PERGUNTAS SEM RESPOSTA



TO BE OR NOT TO BE



LINDÓIA



SUAVE MARI MAGNO



A MOSCA AZUL



ANTONIO JOSÉ



ESPINOSA



GONÇALVES CRESPO



ALENCAR



CAMÕES



JOSÉ DE ANCHIETA



SONETO DE NATAL



OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE



DANTE



A FELÍCIO DOS SANTOS



MARIA



A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS



CLÓDIA



NO ALTO















O DESFECHO



Prometeu sacudiu os braços manietados

E súplice pediu a eterna compaixão,

Ao ver o desfilar dos séculos que vão

Pausadamente, como um dobre de finados.



Mais dez, mais cem, mais mil e mais um bilião,

Uns cingidos de luz, outros ensangüentados...

Súbito, sacudindo as asas de tufão,

Fita-lhe a água em cima os olhos espantados.



Pela primeira vez a víscera do herói,

Que a imensa ave do céu perpetuamente rói,

Deixou de renascer às raivas que a consomem.



Uma invisível mão as cadeias dilui;

Frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;

Acabara o suplício e acabara o homem.







CÍRCULO VICIOSO



Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:

— "Quem me dera que fosse aquela loura estrela,

Que arde no eterno azul, como uma eterna vela!"

Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:



— "Pudesse eu copiar o transparente lume,

Que, da grega coluna à gótica janela,

Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela!"

Mas a lua, fitando o sol, com azedume:



— "Mísera! tivesse eu aquela enorme, àquela

Claridade imortal, que toda a luz resume!"

Mas o sol, inclinando a rútila capela:



— "Pesa-me esta brilhante auréola de nume...

Enfara-me esta azul e desmedida umbela...

Por que não nasci eu um simples vaga-lume?"





UMA CRIATURA



Sei de uma criatura antiga e formidável,

Que a si mesma devora os membros e as entranhas

Com a sofreguidão da fome insaciável.



Habita juntamente os vales e as montanhas;

E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,

Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.



Traz impresso na fronte o obscuro despotismo;

Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,

Parece uma expansão de amor e de egoísmo.



Friamente contempla o desespero e o gozo,

Gosta do colibri, como gosta do verme,

E cinge ao coração o belo e o monstruoso.



Para ela o chacal é, como a rola, inerme;

E caminha na terra imperturbável, como

Pelo vasto areal um vasto paquiderme.



Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo

Vem a folha, que lento e lento se desdobra,

Depois a flor, depois o suspirado pomo.



Pois essa criatura está em toda a obra:

Cresta o seio da flor e corrompe-lhe o fruto;

E é nesse destruir que as suas forças dobra.



Ama de igual amor o poluto e o impoluto;

Começa e recomeça uma perpétua lida,

E sorrindo obedece ao divino estatuto.

Tu dirás que é a Morte; eu direi que é a Vida.





A ARTUR DE OLIVEIRA, ENFERMO



Sabes tu de um poeta enorme

Que andar não usa

No chão, e cuja estranha musa,

Que nunca dorme,



Calça o pé, melindroso e leve,

Como uma pluma,

De folha e flor, de sol e neve,

Cristal e espuma;



E mergulha, como Leandro,

A forma rara

No Pó, no Sena, em Guanabara

E no Escamandro;



Ouve a Tupã e escuta a Momo,

Sem controvérsia,

E tanto ama o trabalho, como

Adora a inércia;



Ora do fuste, ora da ogiva,

Sair parece;

Ora o Deus do ocidente esquece

Pelo deus Siva;



Gosta do estrépito infinito,

Gosta das longas

Solidões em que se ouve o grito

Das arapongas;



E, se ama o lépido besouro,

Que zumbe, zumbe,

E a mariposa que sucumbe

Na flama de ouro,



Vaga-lumes e borboletas,

Da cor da chama,

Roxas, brancas, rajadas, pretas,

Não menos ama



Os hipopótamos tranqüilos,

E os elefantes,

E mais os búfalos nadantes

E os crocodilos,



Como as girafas e as panteras,

Onças, condores,

Toda a casta de bestas-feras

E voadores.



Se não sabes quem ele seja

Trepa de um salto,

Azul acima, onde mais alto

A águia negreja;



Onde morre o clamor iníquo

Dos violentos,

Onde não chega o riso oblíquo

Dos fraudulentos;



Então, olha de cima posto

Para o oceano,

Verás num longo rosto humano

Teu próprio rosto.



E hás de rir, não do riso antigo,

Potente e largo,

Riso de eterno moço amigo,

Mas de outro amargo,



Como o riso de um deus enfermo

Que se aborrece

Da divindade, e que apetece

Também um termo...





MUNDO INTERIOR



Ouço que a Natureza é uma lauda eterna

De pompa, de fulgor, de movimento e lida,

Uma escala de luz, uma escala de vida

De sol à ínfima luzerna.



Ouço que a natureza, — a natureza externa, —

Tem o olhar que namora, e o gesto que intimida

Feiticeira que ceva uma hidra de Lerna

Entre as flores da bela Armida.



E contudo, se fecho os olhos, e mergulho

Dentro em mim, vejo à luz de outro sol, outro abismo

Em que um mundo mais vasto, armado de outro orgulho,



Rola a vida imortal e o eterno cataclismo,

E, como o outro, guarda em seu âmbito enorme,

Um segredo que atrai, que desafia — e dorme.





O CORVO



(EDGAR POE)



Em certo dia, à hora, à hora

Da meia-noite que apavora,

Eu, caindo de sono e exausto de fadiga,

Ao pé de muita lauda antiga,

De uma velha doutrina, agora morta,

Ia pensando, quando ouvi à porta

Do meu quarto um soar devagarinho,

E disse estas palavras tais:

"É alguém que me bate à porta de mansinho;

Há de ser isso e nada mais."



Ah! bem me lembro! bem me lembro!

Era no glacial dezembro;

Cada brasa do lar sobre o chão refletia

A sua última agonia.

Eu, ansioso pelo sol, buscava

Sacar daqueles livros que estudava

Repouso (em vão!) à dor esmagadora

Destas saudades imortais

Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora.

E que ninguém chamará mais.



E o rumor triste, vago, brando

Das cortinas ia acordando

Dentro em meu coração um rumor não sabido,

Nunca por ele padecido.

Enfim, por aplacá-lo aqui no peito,

Levantei-me de pronto, e: "Com efeito,

(Disse) é visita amiga e retardada

Que bate a estas horas tais.

É visita que pede à minha porta entrada:

Há de ser isso e nada mais."



Minh'alma então sentiu-se forte;

Não mais vacilo e desta sorte

Falo: "Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,

Me desculpeis tanta demora.

Mas como eu, precisando de descanso,

Já cochilava, e tão de manso e manso

Batestes, não fui logo, prestemente,

Certificar-me que aí estais."

Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,

Somente a noite, e nada mais.



Com longo olhar escruto a sombra,

Que me amedronta, que me assombra,

E sonho o que nenhum mortal há já sonhado,

Mas o silêncio amplo e calado,

Calado fica; a quietação quieta;

Só tu, palavra única e dileta,

Lenora, tu, como um suspiro escasso,

Da minha triste boca sais;

E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;

Foi isso apenas, nada mais.



Entro coa alma incendiada.

Logo depois outra pancada

Soa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ela:

"Seguramente, há na janela

Alguma cousa que sussurra. Abramos,

Eia, fora o temor, eia, vejamos

A explicação do caso misterioso

Dessas duas pancadas tais.

Devolvamos a paz ao coração medroso,

Obra do vento e nada mais."



Abro a janela, e de repente,

Vejo tumultuosamente

Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.

Não despendeu em cortesias

Um minuto, um instante. Tinha o aspecto

De um lord ou de uma lady. E pronto e reto,

Movendo no ar as suas negras alas,

Acima voa dos portais,

Trepa, no alto da porta, em um busto de Palas;

Trepado fica, e nada mais.



Diante da ave feia e escura,

Naquela rígida postura,

Com o gesto severo, — o triste pensamento

Sorriu-me ali por um momento,

E eu disse: "O tu que das noturnas plagas

Vens, embora a cabeça nua tragas,

Sem topete, não és ave medrosa,

Dize os teus nomes senhoriais;

Como te chamas tu na grande noite umbrosa?"

E o corvo disse: "Nunca mais".



Vendo que o pássaro entendia

A pergunta que lhe eu fazia,

Fico atônito, embora a resposta que dera

Dificilmente lha entendera.

Na verdade, jamais homem há visto

Cousa na terra semelhante a isto:

Uma ave negra, friamente posta

Num busto, acima dos portais,

Ouvir uma pergunta e dizer em resposta

Que este é seu nome: "Nunca mais".



No entanto, o corvo solitário

Não teve outro vocabulário,

Como se essa palavra escassa que ali disse

Toda a sua alma resumisse.

Nenhuma outra proferiu, nenhuma,

Não chegou a mexer uma só pluma,

Até que eu murmurei: "Perdi outrora

Tantos amigos tão leais!

Perderei também este em regressando a aurora."

E o corvo disse: "Nunca mais!"



Estremeço. A resposta ouvida

É tão exata! é tão cabida!

"Certamente, digo eu, essa é toda a ciência

Que ele trouxe da convivência

De algum mestre infeliz e acabrunhado

Que o implacável destino há castigado

Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,

Que dos seus cantos usuais

Só lhe ficou, na amarga e última cantiga,

Esse estribilho: "Nunca mais".



Segunda vez, nesse momento,

Sorriu-me o triste pensamento;

Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;

E mergulhando no veludo

Da poltrona que eu mesmo ali trouxera

Achar procuro a lúgubre quimera,

A alma, o sentido, o pávido segredo

Daquelas sílabas fatais,

Entender o que quis dizer a ave do medo

Grasnando a frase: "Nunca mais".



Assim posto, devaneando,

Meditando, conjeturando,

Não lhe falava mais; mas, se lhe não falava,

Sentia o olhar que me abrasava.

Conjeturando fui, tranqüilo a gosto,

Com a cabeça no macio encosto

Onde os raios da lâmpada caíam,

Onde as tranças angelicais

De outra cabeça outrora ali se desparziam,

E agora não se esparzem mais.



Supus então que o ar, mais denso,

Todo se enchia de um incenso,

Obra de serafins que, pelo chão roçando

Do quarto, estavam meneando

Um ligeiro turíbulo invisível;

E eu exclamei então: "Um Deus sensível

Manda repouso à dor que te devora

Destas saudades imortais.

Eia, esquece, eia, olvida essa extinta Lenora."

E o corvo disse: "Nunca mais".



“Profeta, ou o que quer que sejas!

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno

Onde reside o mal eterno,

Ou simplesmente náufrago escapado

Venhas do temporal que te há lançado

Nesta casa onde o Horror, o Horror profundo

Tem os seus lares triunfais,

Dize-me: existe acaso um bálsamo no mundo?"

E o corvo disse: "Nunca mais".



“Profeta, ou o que quer que sejas!

Ave ou demônio que negrejas!

Profeta sempre, escuta, atende, escuta, atende!

Por esse céu que além se estende,

Pelo Deus que ambos adoramos, fala,

Dize a esta alma se é dado inda escutá-la

No éden celeste a virgem que ela chora

Nestes retiros sepulcrais,

Essa que ora nos céus anjos chamam Lenora!”

E o corvo disse: "Nunca mais".



“Ave ou demônio que negrejas!

Profeta, ou o que quer que sejas!

Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!

Regressa ao temporal, regressa

À tua noite, deixa-me comigo.

Vai-te, não fique no meu casto abrigo

Pluma que lembre essa mentira tua.

Tira-me ao peito essas fatais

Garras que abrindo vão a minha dor já crua."

E o corvo disse: "Nunca mais".



E o corvo aí fica; ei-lo trepado

No branco mármore lavrado

Da antiga Palas; ei-lo imutável, ferrenho.

Parece, ao ver-lhe o duro cenho,

Um demônio sonhando. A luz caída

Do lampião sobre a ave aborrecida

No chão espraia a triste sombra; e, fora

Daquelas linhas funerais

Que flutuam no chão, a minha alma que chora

Não sai mais, nunca, nunca mais!





PERGUNTAS SEM RESPOSTA



Vênus Formosa, Vênus fulgurava

No azul do céu da tarde que morria,

Quando à janela os braços encostava

Pálida Maria.



Ao ver o noivo pela rua umbrosa,

Os longos olhos ávidos enfia,

E fica de repente cor-de-rosa

Pálida Maria.



Correndo vinha no cavalo baio,

Que ela de longe apenas distinguia,

Correndo vinha o noivo, como um raio...

Pálida Maria!



Três dias são, três dias são apenas,

Antes que chegue o suspirado dia,

Em que eles porão termo às longas penas...

Pálida Maria!



De confusa, naquele sobressalto,

Que a presença do amado lhe trazia,

Olhos acesos levantou ao alto

Pálida Maria.



E foi subindo, foi subindo acima

No azul do céu da tarde que morria,

A ver se achava uma sonora rima...

Pálida Maria!



Rima de amor, ou rima de ventura,

As mesmas são na escala da harmonia.

Pousa os olhos em Vênus que fulgura

Pálida Maria.



E o coração, que de prazer lhe bate,

Acha no astro a fraterna melodia

Que à natureza inteira dá rebate...

Pálida Maria!



Maria pensa: "Também tu, decerto,

Esperas ver, neste final do dia,

Um noivo amado que cavalga perto,

Pálida Maria?”



Isto dizendo, súbito escutava

Um estrépito, um grito e vozeria,

E logo a frente em ânsias inclinava

Pálida Maria.



Era o cavalo, rábido, arrastando

Pelas pedras o noivo que morria;

Maria o viu e desmaiou gritando...

Pálida Maria!



Sobem o corpo, vestem-lhe a mortalha,

E a mesma noiva, semimorta e fria,

Sobre ele as folhas do noivado espalha.

Pálida Maria!



Cruzam-se as mãos, na derradeira prece

Muda que o homem para cima envia,

Antes que desça à terra em que apodrece.

Pálida Maria!



Seis homens tomam do caixão fechado

E vão levá-lo à cova que se abria;

Terra e cal e um responso recitado...

Pálida Maria!



Quando, três sóis passados, rutilava

A mesma Vênus, no morrer do dia,

Tristes olhos ao alto levantava

Pálida Maria.



E murmurou: "Tens a expressão do goivo,

Tens a mesma roaz melancolia;

Certamente perdeste o amor e o noivo,

Pálida Maria?”



Vênus, porém, Vênus brilhante e bela,

Que nada ouvia, nada respondia,

Deixa rir ou chorar numa janela

Pálida Maria.







TO BE OR NOT TO BE



(SHAKESPEARE)



Ser ou não ser, eis a questão. Acaso

É mais nobre a cerviz curvar aos golpes

Da ultrajosa fortuna, ou já lutando

Extenso mar vencer de acerbos males?

Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,

Que as angústias extingue e à carne a herança

Da nossa dor eternamente acaba,

Sim, cabe ao homem suspirar por ele.

Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!

Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,

Quando o lodo mortal despido houvermos,

Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.

Essa a razão que os lutuosos dias

Alonga do infortúnio. Quem do tempo

Sofrer quisera ultrajes e castigos,

Injúrias da opressão, baldões do orgulho,

Do mal prezado amor choradas mágoas,

Das leis a inércia, dos mandões a afronta,

E o vão desdém que de rasteiras almas

O paciente mérito recebe,

Quem, se na ponta da despida lâmina

Lhe acenara o descanso? Quem ao peso

De uma vida de enfados e misérias

Quereria gemer, se não sentira

Terror de alguma não sabida cousa

Que aguarda o homem para lá da morte,

Esse eterno país misterioso

Donde um viajor sequer há regressado?

Este só pensamento enleia o homem;

Este nos leva a suportar as dores

Já sabidas de nós, em vez de abrirmos

Caminho aos males que o futuro esconde,

E a todos acovarda a consciência.

Assim da reflexão à luz mortiça

A viva cor da decisão desmaia;

E o firme, essencial cometimento,

Que esta idéia abalou, desvia o curso,

Perde-se, até de ação perder o nome.





LINDÓIA



Vem, vem das águas, mísera Moema,

Senta-te aqui. As vozes lastimosas

Troca pelas cantigas deleitosas,

Ao pé da doce e pálida Coema.



Vós, sombras de Iguaçu e de Iracema,

Trazei nas mãos, trazei no colo as rosas

Que o amor desabrochou e fez viçosas

Nas laudas de um poema e outro poema.



Chegai, folgai, cantai. É esta, é esta

De Lindóia, que a voz suave e forte

Do vate celebrou, a alegre festa.



Além do amável, gracioso porte,

Vede o mimo, a ternura que lhe resta.

Tanto inda é bela no seu rosto a morte!





SUAVE MARI MAGNO



Lembra-me que, em certo dia,

Na rua, ao sol de verão,

Envenenado morria

Um pobre cão.



Arfava, espumava e ria,

De um riso espúrio e bufão,

Ventre e pernas sacudia

Na convulsão.



Nenhum, nenhum curioso

Passava, sem se deter,

Silencioso,



Junto ao cão que ia morrer,

Como se lhe desse gozo

Ver padecer.





A MOSCA AZUL



Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,

Filha da China ou do Indostão,

Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,

Em certa noite de verão.



E zumbia, e voava, e voava, e zumbia

Refulgindo ao clarão do sol

E da lua, — melhor do que refulgiria

Um brilhante do Grão-Mogol.



Um poleá que a viu, espantado e tristonho,

Um poleá lhe perguntou:

"Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,

Dize, quem foi que to ensinou?"



Então ela, voando, e revoando, disse:

— "Eu sou a vida, eu sou a flor

Das graças, o padrão da eterna meninice,

E mais a glória, e mais o amor".



E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,

E tranqüilo, como um faquir,

Como alguém que ficou deslembrado de tudo,

Sem comparar, nem refletir.



Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,

Uma cousa lhe pareceu

Que surdia, com todo o resplendor de um paço

E viu um rosto, que era o seu.



Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,

Que tinha sobre o colo nu

Um imenso colar de opala, e uma safira

Tirada do corpo de Vichnu.



Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,

Aos pés dele, no liso chão,

Espreguiçam sorrindo as suas graças finas,

E todo o amor que têm lhe dão.



Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,

Com grandes leques de avestruz,

Refrescam-lhes de manso os aromados seios,

Voluptuosamente nus.



Vinha a glória depois; — quatorze reis vencidos,

E enfim as páreas triunfais

De trezentas nações, e os parabéns unidos

Das coroas ocidentais.



Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto

Das mulheres e dos varões,

Como em água que deixa o fundo descoberto,

Via limpos os corações.



Então ele, estende a mão calosa e tosca,

Afeita a só carpintejar,

Com um gesto pegou na fulgurante mosca,

Curioso de a examinar.



Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.

E, fechando-a na mão, sorriu

De contente, ao pensar que ali tinha um império,

E para casa se partiu.



Alvoroçado chega, examina, e parece

Que se houve nessa ocupação

Miudamente, como um homem que quisesse

Dissecar a sua ilusão.



Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,

Rota, baça, nojenta, vil,

Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela

Visão fantástica e sutil.



Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo

Na cabeça, com ar taful,

Dizem que ensandeceu, e que não sabe como

Perdeu a sua mosca azul.







ANTÔNIO JOSÉ



(21 de outubro de 1739)



Antônio, a sapiência da Escritura

Clama que há para a humana criatura

Tempo de rir e tempo de chorar,

Como há um sol no ocaso, e outro na aurora.

Tu, sangue de Efraim e de Issacar,

Pois que já riste, chora.







ESPINOSA



Gosto de ver-te, grave e solitário,

Sob o fumo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário,

E na cabeça a coruscante idéia.



E enquanto o pensamento delineia

Uma filosofia, o pão diário

A tua mão a labutar granjeia

E achas na independência o teu salário.



Soem cá fora agitações e lutas,

Sibile o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, e executas



Sóbrio, tranqüilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres, e transmutas

O suado labor no prêmio eterno.







GONÇALVES CRESPO



Esta musa da pátria, esta saudosa

Niobe dolorida,

Esquece acaso a vida,

Mas não esquece a morte gloriosa.



E pálida, e chorosa,

Ao Tejo voa, onde no chão caída

Jaz aquela evadida

Lira da nossa América viçosa.



Com ela torna, e, dividindo os ares,

Trépido, mole, doce movimento

Sente nas frouxas cordas singulares.



Não é a asa do vento,

Mas a sombra do filho, no momento

De entrar perpetuamente os pátrios lares.







ALENCAR



Hão de anos volver, — não como as neves

De alheios climas, de geladas cores;

Hão de os anos volver, mas como as flores,

Sobre o teu nome, vívidos e leves...



Tu, cearense musa, que os amores

Meigos e tristes, rústicos e breves,

Da indiana escreveste, — ora os escreves

No volume dos pátrios esplendores.



E ao tornar este sol, que te há levado,

Já não acha a tristeza. Extinto é o dia

Da nossa dor, do nosso amargo espanto.



Porque o tempo implacável e pausado,

Que o homem consumiu na terra fria,

Não consumiu o engenho, a flor, o encanto...







CAMÕES



I



Tu quem és? Sou o século que passa.

Quem somos nós? A multidão fremente.

Que cantamos? A glória resplendente.

De quem? De quem mais soube a força e a graça.



Que cantou ele? A vossa mesma raça.

De que modo? Na lira alta e potente.

A quem amou? A sua forte gente.

Que lhe deram? Penúria, ermo, desgraça.



Nobremente sofreu? Como homem forte.

Esta imensa oblação?... É-lhe devida.

Paga?... Paga-lhe toda a adversa sorte.



Chama-se a isto? A glória apetecida.

Nós, que o cantamos?... Volvereis à morte.

Ele, que é morto?... Vive a eterna vida.



II



Quando, transposta a lúgubre morada

Dos castigos, ascende o florentino

À região onde o clarão divino

Enche de intensa luz a alma nublada,



A saudosa Beatriz, a antiga amada,

A mão lhe estende e guia o peregrino,

E aquele olhar etéreo e cristalino

Rompe agora da pálpebra sagrada.



Tu, que também o Purgatório andaste,

Tu, que rompeste os círculos do Inferno,

Camões, se o teu amor fugir deixaste,



Ora o tens, como um guia alto e superno

Que a Natércia da vida que choraste

Chama-se Glória e tem o amor eterno.



III



Quando, torcendo a chave misteriosa

Que os cancelos fechava do Oriente,

O Gama abriu a nova terra ardente

Aos olhos da companha valorosa,



Talvez uma visão resplandecente

Lhe amostrou no futuro a sonorosa

Tuba, que cantaria a ação famosa

Aos ouvidos da própria e estranha gente.



E disse: "Se já noutra, antiga idade,

Tróia bastou aos homens, ora quero

Mostrar que é mais humana a humanidade.



Pois não serás herói de um canto fero,

Mas vencerás o tempo e a imensidade

Na voz de outro moderno e brando Homero."



IV



Um dia, junto à foz de brando e amigo

Rio de estranhas gentes habitado,

Pelos mares aspérrimos levado,

Salvaste o livro que viveu contigo.



E esse que foi às ondas arrancado,

Já livre agora do mortal perigo,

Serve de arca imortal, de eterno abrigo,

Não só a ti, mas ao teu berço amado.



Assim, um homem só, naquele dia,

Naquele escasso ponto do universo,

Língua, história, nação, armas, poesia,



Salva das frias mãos do tempo adverso.

E tudo aquilo agora o desafia.

E tão sublime preço cabe em verso.







1802-1885



Um dia, celebrando o gênio e a eterna vida,

Victor Hugo escreveu numa página forte

Estes nomes que vão galgando a eterna morte,

Isaías, a voz de bronze, alma saída

Da coxa de Davi; Ésquilo que a Orestes

E a Prometeu, que sofre as vinganças celestes

Deu a nota imortal que abala e persuade,

E transmite o terror, como excita a piedade.

Homero, que cantou a cólera potente

De Aquiles, e colheu as lágrimas troianas

Para glória maior da sua amada gente,

E com ele Virgílio e as graças virgilianas;

Juvenal que marcou com ferro em brasa o ombro

Dos tiranos, e o velho e grave florentino,

Que mergulha no abismo, e caminha no assombro,

Baixa humano ao inferno e regressa divino;

Logo após Calderón, e logo após Cervantes;

Voltaire, que mofava, e Rabelais que ria;

E, para coroar esses nomes vibrantes,

Shakespeare, que resume a universal poesia.



E agora que ele aí vai, galgando a eterna morte,

Pega a História da pena e na página forte,

Para continuar a série interrompida,

Escreve o nome dele, e dá-lhe a eterna vida.







JOSÉ DE ANCHIETA



Esse que as vestes ásperas cingia,

E a viva flor da ardente juventude

Dentro do peito a todos escondia;



Que em páginas de areia vasta e rude

Os versos escrevia e encomendava

À mente, como esforço de virtude;



Esse nos rios de Babel achava,

Jerusalém, os cantos primitivos,

E novamente aos ares os cantava.



Não procedia então como os cativos

De Sião, consumidos de saudade,

Velados de tristeza, e pensativos.



Os cantos de outro clima e de outra idade

Ensinava sorrindo às novas gentes,

Pela língua do amor e da piedade.



E iam caindo os versos excelentes

No abençoado chão, e iam caindo

Do mesmo modo as místicas sementes.



Nas florestas os pássaros, ouvindo

O nome de Jesus e os seus louvores,

Iam cantando o mesmo canto lindo.



Eram as notas como alheias flores

Que verdejam no meio de verduras

De diversas origens e primores.



Anchieta, soltando as vozes puras,

Achas outra Sião neste hemisfério,

E a mesma fé e igual amor apuras.



Certo, ferindo as cordas do saltério,

Unicamente contas divulgá-la

A palavra cristã e o seu mistério.



Trepar não cuidas a luzente escala

Que os heróis cabe e leva à clara esfera

Onde eterna se faz a humana fala.



Onde os tempos não são esta quimera

Que apenas brilha e logo se esvaece,

Como folhas de escassa primavera.



Onde nada se perde nem se esquece,

E no dorso dos séculos trazido

O nome de Anchieta resplandece

Ao vivo nome do Brasil unido.







SONETO DE NATAL



Um homem, — era aquela noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno, —

Ao relembrar os dias de pequeno,

E a viva dança, e a lépida cantiga,



Quis transportar ao verso doce e ameno

As sensações da sua idade antiga,

Naquela mesma velha noite amiga,

Noite cristã, berço do Nazareno.



Escolheu o soneto... A folha branca

Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca.

A pena não acode ao gesto seu.



E, em vão lutando contra o metro adverso,

Só lhe saiu este pequeno verso:

"Mudaria o Natal ou mudei eu?"







OS ANIMAIS ISCADOS DA PESTE



(LA FONTAINE)



Mal que espalha o terror e que a ira celeste

Inventou para castigar

Os pecados do mundo, a peste, em suma, a peste,

Capaz de abastecer o Aqueronte num dia,

Veio entre os animais lavrar;

E, se nem tudo sucumbia,

Certo é que tudo adoecia.

Já nenhum, por dar mate ao moribundo alento,

Catava mais nenhum sustento.

Não havia manjar que o apetite abrisse,

Raposa ou lobo que saísse

Contra a presa inocente e mansa,

Rola que à rola não fugisse,

E onde amor falta, adeus, folgança!

O leão convocou uma assembléia e disse:

"Sócios meus, certamente este infortúnio veio

A castigar-nos de pecados.

Que o mais culpado entre os culpados

Morra por aplacar a cólera divina.

Para a comum saúde esse é, talvez, o meio.

Em casos tais é de uso haver sacrificados;

Assim a história no-lo ensina.

Sem nenhuma ilusão, sem nenhuma indulgência,

Pesquisemos a consciência.

Quanto a mim, por dar mate ao ímpeto glutão,

Devorei muita carneirada.

Em que é que me ofendera? em nada.

E tive mesmo ocasião

De comer igualmente o guarda da manada.

Portanto, se é mister sacrificar-me, pronto.

Mas, assim como me acusei,

Bom é que cada um se acuse, de tal sorte

Que (devemos querê-lo, e é de todo ponto

Justo) caiba ao maior dos culpados a morte."

"— Meu senhor, acudiu a raposa, é ser rei

Bom demais; é provar melindre exagerado.

Pois então devorar carneiros,

Raça lorpa e vilã, pode lá ser pecado?

Não. Vós fizestes-lhes, senhor,

Em os comer, muito favor.

E no que toca aos pegureiros,

Toda a calamidade era bem merecida,

Pois são daquelas gentes tais

Que imaginaram ter posição mais subida

Que a de nós outros animais".

Disse a raposa, e a corte aplaudiu-lhe o discurso.

Ninguém do tigre nem do urso,

Ninguém de outras iguais senhorias do mato,

Inda entre os atos mais daninhos,

Ousava esmerilhar um ato;

E até os últimos rafeiros,

Todos os bichos rezingueiros,

Não eram, no entender geral, mais que uns santinhos.

Eis chega o burro: — "Tenho idéia que no prado

De um convento, indo eu a passar, e picado

Da ocasião, da fome e do capim viçoso,

E pode ser que do tinhoso,

Um bocadinho lambisquei

Da plantação. Foi um abuso, isso é verdade."

Mal o ouviu, a assembléia exclama: "Aqui del-rei!"

Um lobo, algo letrado, arenga e persuade

Que era força imolar esse bicho nefando,

Empesteado autor de tal calamidade;

E o pecadilho foi julgado

Um atentado.

Pois comer erva alheia! ó crime abominando!

Era visto que só a morte

Poderia purgar um pecado tão duro.

E o burro foi ao reino escuro.



Segundo sejas tu miserável ou forte

Áulicos te farão detestável ou puro.







DANTE



(INFERNO, canto XXV)



Acabara o ladrão, e, ao ar erguendo

As mãos em figas, deste modo brada:

"Olha, Deus, para ti o estou fazendo!"



E desde então me foi a serpe amada,

Pois uma vi que o colo lhe prendia,

Como a dizer: "não falarás mais nada!"



Outra os braços na frente lhe cingia

Com tantas voltas e de tal maneira

Que ele fazer um gesto não podia.



Ah! Pistóia, por que numa fogueira

Não ardes tu, se a mais e mais impuros,

Teus filhos vão nessa mortal carreira?



Eu, em todos os círculos escuros

Do inferno, alma não vi tão rebelada.

Nem a que em Tebas resvalou dos muros.



E ele fugiu sem proferir mais nada.

Logo um centauro furioso assoma

A bradar: "Onde, aonde a alma danada?”



Marema não terá tamanha soma

De reptis quanta vi que lhe ouriçava

O dorso inteiro desde a humana coma.



Junto à nuca do monstro se elevava

De asas abertas um dragão que enchia

De fogo a quanto ali se aproximava.



"Aquele é Caco, — o Mestre me dizia, —

Que, sob as rochas do Aventino, ousado

Lagos de sangue tanta vez abria.



Não vai de seus irmãos acompanhado

Porque roubou malicioso o armento

Que ali pascia na campanha ao lado.



Hércules com a maça e golpes cento,

Sem lhe doer um décimo ao nefando,

Pôs remate a tamanho atrevimento."



Ele falava, e o outro foi andando.

No entanto embaixo vinham para nós

Três espíritos que só vimos quando



Atroara este grito: "Quem sois vós?"

Nisto a conversa nossa interrompendo

Ele, como eu, no grupo os olhos pôs.



Eu não os conheci, mas sucedendo,

Como outras vezes suceder é certo,

Que o nome de um estava outro dizendo,



"Cianfa aonde ficou?" Eu, por que esperto

E atento fosse o Mestre em escutá-lo,

Pus sobre a minha boca o dedo aberto.



Leitor, não maravilha que aceitá-lo

Ora te custe o que vais ter presente,

Pois eu, que o vi, mal ouso acreditá-lo.



Eu contemplava, quando uma serpente

De seis pés temerosa se lhe atira

A um dos três e o colhe de repente.



Com os pés do meio o ventre lhe cingira,

Com os da frente os braços lhe peava,

E ambas as faces lhe mordeu com ira.



Os outros dous às coxas lhe alongava,

E entre elas insinua a cauda que ia

Tocar-lhes os rins e dura os apertava.



A hera não se enrosca nem se enfia

Pela árvore, como a horrível fera

Ao pecador os membros envolvia.



Como se fossem derretida cera,

Um só vulto, uma cor iam tomando,

Quais tinham sido nenhum deles era.



Tal o papel, se o fogo o vai queimando,

Antes de negro estar, e já depois

Que o branco perde, fusco vai ficando.



Os outros dous bradavam: "Ora pois,

Agnel, ai triste, que mudança é essa?

Olha que já não és nem um nem dous!"



Faziam ambas uma só cabeça,

E na única face um rosto misto,

Onde eram dous, a aparecer começa.



Dos quatro braços dous restavam, e isto,

Pernas, coxas e o mais ia mudado

Num tal composto que jamais foi visto.



Todo o primeiro aspecto era acabado;

Dous e nenhum era a cruel figura,

E tal se foi a passo demorado.



Qual camaleão, que variar procura

De sebe às horas em que o sol esquenta,

E correndo parece que fulgura,



Tal uma curta serpe se apresenta,

Para o ventre dos dous corre acendida,

Lívida e cor de um bago de pimenta.



E essa parte por onde foi nutrida

Tenra criança antes que à luz saísse,

Num deles morde, e cai toda estendida.



O ferido a encarou, mas nada disse;

Firme nos pés, apenas bocejava,

Qual se de febre ou sono ali caísse.



Frente a frente, um ao outro contemplava,

E à chaga de um, e à boca de outro, forte

Fumo saía e no ar se misturava.



Cale agora Lucano a triste morte

De Sabelo e Nasídio, e atento esteja

Que o que lhe vou dizer é de outra sorte.



Cale-se Ovídio e neste quadro veja

Que, se Aretusa em fonte nos há posto

E Cadmo em serpe, não lhe tenho inveja.



Pois duas naturezas rosto a rosto

Não transmudou, com que elas de repente

Trocassem a matéria e o ser oposto.



Tal era o acordo entre ambas que a serpente

A cauda em duas caudas fez partidas,

E a alma os pés ajuntava estreitamente.



Pernas e coxas vi-as tão unidas

Que nem leve sinal dava a juntura

De que tivessem sido divididas.



Imita a cauda bífida a figura

Que ali se perde, e a pele abranda, ao passo

Que a pele do homem se tornava dura.



Em cada axila vi entrar um braço,

A tempo que iam esticando à fera

Os dous pés que eram de tamanho escasso.



Os pés de trás a serpe os retorcera

Até formarem-lhe a encoberta parte,

Que no infeliz em pés se convertera.



Enquanto o fumo os cobre, e de tal arte

A cor lhes muda e põe à serpe o velo

Que já da pele do homem se lhe parte,



Um caiu, o outro ergueu-se, sem torcê-lo

Aquele torvo olhar com que ambos iam

A trocar entre si o rosto e a vê-lo.



Ao que era em pé as carnes lhe fugiam

Para as fontes, e ali do que abundava

Duas orelhas de homem lhe saíam.



E o que de sobra ainda lhe ficava

O nariz lhe compõe e lhe perfaz

E o lábio lhe engrossou quanto bastava.



A boca estende o que por terra jaz

E as orelhas recolhe na cabeça,

Bem como o caracol às pontas faz.



A língua, que era então de uma só peça,

E prestes a falar, fendida vi-a,

Enquanto a do outro se une, e o fumo cessa.



A alma, que assim tornado em serpe havia,

Pelo vale fugiu assobiando,

E esta lhe ia falando e lhe cuspia.



Logo a recente espádua lhe foi dando

E à outra disse: "Ora com Buoso mudo,

Rasteje, como eu vinha rastejando!"



Assim na cova sétima vi tudo

Mudar e transmudar; a novidade

Me absolva o estilo desornado e rudo.



Mas que um tanto perdesse a claridade

Dos olhos meus, e turva a mente houvesse,

Não fugiram com tanta brevidade,



Nem tão ocultos, que eu não conhecesse

Puccio Sciancato, única ali vinda

Alma que a forma própria não perdesse;

O outro chorá-lo tu, Gaville, ainda.







A FELÍCIO DOS SANTOS



Felício amigo, se eu disser que os anos

Passam correndo ou passam vagarosos,

Segundo são alegres ou penosos,

Tecidos de afeições ou desenganos,



"Filosofia é esta de rançosos!"

Dirás. Mas não há outra entre os humanos.

Não se contam sorrisos pelos danos,

Nem das tristezas desabrocham gozos.



Banal, confesso. O precioso e o raro

É, seja o céu nublado ou seja claro,

Tragam os tempos amargura ou gosto,



Não desdizer do mesmo velho amigo,

Ser com os teus o que eles são contigo,

Ter um só coração, ter um só rosto.







MARIA



Maria, há no seu gesto airoso e nobre,

Nos olhos meigos e no andar tão brando,

Um não sei quê suave que descobre,

Que lembra um grande pássaro marchando.



Quero, às vezes, pedir-lhe que desdobre

As asas, mas não peço, reparando

Que, desdobradas, podem ir voando

Levá-la ao teto azul que a terra cobre.



E penso então, e digo então comigo:

"Ao céu, que vê passar todas as gentes

Bastem outros primores de valia.



Pássaro ou moça, fique o olhar amigo,

O nobre gesto e as graças excelentes

Da nossa cara e lépida Maria."







A UMA SENHORA QUE ME PEDIU VERSOS



Pensa em ti mesma, acharás

Melhor poesia,

Viveza, graça, alegria,

Doçura e paz.



Se já dei flores um dia,

Quando rapaz,

As que ora dou têm assaz

Melancolia.



Uma só das horas tuas

Valem um mês

Das almas já ressequidas.



Os sóis e as luas

Creio bem que Deus os fez

Para outras vidas.







CLÓDIA



Era Clódia a vergôntea ilustre e rara

De uma família antiga. Tez morena,

Como a casca do pêssego, deixava

Transparecer o sangue e a juventude.

Era a romana ardente e imperiosa

Que os ecos fatigou de Roma inteira

Coa narração das longas aventuras.

Nunca mais gentil fronte o sol da Itália

Amoroso beijou, nem mais gracioso

Corpo envolveram túnicas de Tiro.

Sombrios, como a morte, os olhos eram.

A vermelha botina em si guardava

Breve, divino pé. Úmida boca,

Como a rosa que os zéfiros convida,

Os beijos convidava. Era o modelo

Da luxuosa Lâmia, — aquela moça

Que o marido esqueceu, e amou sem pejo

O músico Polião. De mais, fazia

A ilustre Clódia trabalhados versos;

A cabeça curvava pensativa

Sobre as tabelas nuas; invocava

Do clássico Parnaso as musas belas,

E, se não mente linguaruda fama,

Davam-lhe inspiração vadias musas.

O ideal da matrona austera e fria,

Caseira e nada mais, esse acabava.

Bem hajas tu, patrícia desligada

De preconceitos vãos, tu que presides

Ao festim dos rapazes, tu que estendes

Sobre verdes coxins airosas formas,

Enquanto o esposo, consultando os dados,

Perde risonho válidos sestércios...

E tu, viúva mísera, deixada

Na flor dos anos, merencória e triste,

Que seria de ti, se o gozo e o luxo

Não te alegrassem a alma? Cedo esquece

A memória de um óbito. E bem hajas,

Discreto esposo, que morreste a tempo.

Perdes, bem sei, dos teus rivais sem conta

Os custosos presentes, as ceatas,

Os jantares opíparos. Contudo,

Não verás cheia a casa de crianças

Loiras obras de artífices estranhos.



Baias recebe a celebrada moça

Entre festins e júbilos. Faltava

Ao pomposo jardim das lácias flores

Esta rosa de Paestum. Chega; é ela,

É ela, a amável dona. O céu ostenta

A larga face azul, que o sol no ocaso

Coos frouxos raios desmaiado tinge.

Terno e brando abre o mar o espúmeo seio;

Moles respiram virações do golfo.

Clódia chega. Tremei, moças amadas;

Ovelhinhas dos plácidos idílios,

Roma vos manda esta faminta loba.

Prendei, prendei com vínculos de ferro,

Os volúveis amantes, que os não veja

Esta formosa Páris. Inventai-lhes

Um filtro protetor, um filtro ardente,

Que o fogo leve aos corações rendidos,

E aos vossos pés eternamente os prenda;

Clódia... Mas, quem pudera, a frio e a salvo,

Um requebro afrontar daqueles olhos

Ver-lhe o túrgido seio, as mãos, o talhe,

O andar, a voz, ficar mármore frio

Ante as súplices graças? Menor pasmo

Fora, se ao gladiador, em pleno circo,

A pantera africana os pés lambesse,

Ou se, à cauda de indômito cavalo,

Ovantes hostes arrastassem César.



Coroados de rosas os convivas

Entram. Trajam com graça vestes novas

Tafuis de Itália, finos e galhardos

Patrícios da república expirante,

E madamas faceiras. Vem entre eles

Célio, a flor dos vadios, nobre moço,

E opulento, o que é mais. Ambicioso

Quer triunfar na clássica tribuna

E honras aspira até do consulado.

Mais custoso lavor não vestem damas,

Nem aroma melhor do seio exalam.

Tem na altivez do olhar sincero orgulho,

E certo que o merece. Entre os rapazes

Que à noite correm solitárias ruas,

Ou nos jardins de Roma o luxo ostentam,

Nenhum como ele, com mais ternas falas,

Galanteou, vencendo, as raparigas.



Entra: pregam-se nele cobiçosos

Olhos que amor venceu, que amor domina,

Olhos fiéis ao férvido Catulo.

O poeta estremece. Brando e frio,

O marido de Clódia os olhos lança

Ao mancebo, e um sorriso complacente

A boca lhe abre. Imparcial na luta,

Vença Catulo ou Célio, ou vençam ambos.

Não se lhe opõe o dono: o aresto aceita.



Vistes já como as ondas tumultuosas,

Uma após outra, vêm morrer à praia,

E mal se rompe o espúmeo seio àquela.

Já esta corre e expira? Tal no peito

Da calorosa Lésbia nascem, morrem

As volúveis paixões. Vestal do crime,

Dos amores vigia a chama eterna,

Não a deixa apagar; pronto lhe lança

Óleo com que a alimente. Enrubescido

De ternura e desejo o rosto volve

Ao mancebo gentil. Baldado empenho!

Indiferente aos mágicos encantos,

Célio contempla a moça. Olhar mais frio,

Ninguém deitou jamais a graças tantas.

Ela insiste; ele foge-lhe. Vexada,

A moça inclina lânguida a cabeça...

Tu nada vês, desapegado esposo,

Mas o amante vê tudo.



Clódia arranca

Uma rosa da fronte, e as folhas deita

Na taça que enche generoso vinho.

"Célio, um brinde aos amores!" diz, e entrega-lha.

O cortejado moço os olhos lança,

Não à Clódia, que a taça lhe oferece,

Mas a outra não menos afamada,

Dama de igual prosápia e iguais campanhas,

E taça igual lhe aceita. Afronta é esta

Que à moça faz subir o sangue às faces,

Aquele sangue antigo, e raro, e ilustre,

Que atravessou puríssimo e sem mescla

A corrente dos tempos... Uma Clódia!

Tamanha injúria! Ai, não! mais que a vaidade,

Mais que o orgulho de raça, o que te pesa,

O que te faz doer, viciosa dama,

É ver que um rival merece o zelo

Deste pimpão de amores e aventuras.

Pega na taça o néscio esposo e bebe,

Com o vinho, a vergonha. Sombra triste,

Sombra de ocultas e profundas mágoas,

Tolda a fronte ao poeta.



Os mais, alegres,

Vão ruminando a saborosa ceia;

Circula o dito equívoco e chistoso,

Comentam-se os decretos do Senado,

O molho mais da moda, os versos últimos

De Catulo, os leões mandados de África

E as vitórias de César. O epigrama

Rasga a pele ao caudilho triunfante;

Chama-lhe este: "O larápio endividado",

Aquele: "Vênus calva", outro: "O bitínio..."

Oposição de ceias e jantares,

Que a marcha não impede ao crime e à glória.



Sem liteira, nem líbicos escravos,

Clódia vai consultar armênio arúspice.

Quer saber se há de Célio amá-la um dia

Ou desprezá-la sempre. O armênio estava

Meditabundo, à luz escassa e incerta

De uma candeia etrusca; aos ombros dele

Decrépita coruja os olhos abre.

"Velho, aqui tens dinheiro (a moça fala),

Se à tua inspiração é dado agora

Adivinhar as cousas do futuro,

Conta-me..." O resto expõe. Ergue-se o velho

Súbito. Os olhos lança cobiçosos

À fulgente moeda. — "Saber queres

Se te há de amar esse mancebo esquivo?"

— "Sim". — Cochilava a um canto descuidada

A avezinha de Vênus, branca pomba.

Lança mão dela o arúspice, e de um golpe

Das entranhas lhe arranca o sangue e a vida.

Olhos fitos no velho a moça aguarda

A sentença da sorte; empalidece

Ou ri, conforme do ancião no rosto

Ocultas impressões vem debuxar-se.

"Bem haja Vênus! a vitória é tua!

O coração da vítima palpita

Inda que morto já..."

Não eram ditas.

Estas palavras, entra um vulto... É ele?

És tu, cioso amante!

A voz lhes falta

Aos dous (contemplam-se ambos, interrogam-se);

Rompe afinal o lúgubre silêncio...



Quando o vate acabou, tinha nos braços

A namorada moça. Lacrimosa,

Tudo confessa. Tudo lhe perdoa

O desvairado amante. "Nuvem leve

Isto foi; deixa lá memórias tristes,

Erros que te perdôo; amemos, Lésbia;

A vida é nossa; é nossa a juventude."

"Oh! tu és bom!" — "Não sei; amo e mais nada.

Foge o mal donde amor plantou seus lares.

Amar é ser do céu". Súplices olhos

Que a dor umedecera e que umedecem

Lágrimas de ternura, os olhos buscam

Do poeta; um sorriso lhes responde,

E um beijo sela esta aliança nova.



Quem jamais construiu sólida torre

Sobre a areia volúvel? Poucos dias

Decorreram; viçosas esperanças

Súbito renascidas, folha a folha,

Alastraram a terra. Ingrata e fria,

Lésbia esqueceu Catulo. Outro lhe pede

Prêmio à recente, abrasadora chama;

Faz-se agora importuno o que era esquivo.

Vitória é dela; o arúspice acertara.









NO ALTO



O poeta chegara ao alto da montanha,

E quando ia a descer a vertente do oeste,

Viu uma cousa estranha,

Uma figura má.



Então, volvendo o olhar ao sutil, ao celeste,

Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,

Num tom medroso e agreste

Pergunta o que será.



Como se perde no ar um som festivo e doce,

Ou bem como se fosse

Um pensamento vão,



Ariel se desfez sem lhe dar mais resposta.

Para descer a encosta

O outro estendeu-lhe a mão.







FIM



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