quinta-feira, 10 de março de 2011

RIMBAUD









le bateau ivre
(Trad. Augusto de Campos)






Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Eu era indiferente à carga que trazia,
Gente, trigo flamengo ou algodão inglês.
Morta a tripulação e finda a algaravia,
Os Rios para mim se abriram de uma vez.

Imerso no furor do marulho oceânico,
No inverno, eu, surdo como um cérebro infantil,
Deslizava, enquanto as Penínsulas em pânico
Viam turbilhonar marés de verde e anil.



O vento abençoou minhas manhãs marítimas.
Mais leve que uma rolha eu dancei nos lençóis
Das ondas a rolar atrás de suas vítimas,
Dez noites, sem pensar nos olhos dos faróis!

Mais doce que as maçãs parecem aos pequenos,
A água verde infiltrou-se no meu casco ao léu
E das manchas azulejantes dos venenos
E vinhos me lavou, livre de leme e arpéu.

Então eu mergulhei nas águas do poema
Do Mar, sarcófago de estrelas, latescente,
Devorando os azuis, onde às vezes - dilema
Lívido - um afogado afunda lentamente;

Onde, tingindo azulidades com quebrantos
E ritmos lentos sob o rutilante albor,
Mais fortes que o álcool, mas vastas que os nossos prantos,
Fermentam de amargura as rubéolas do amor!

Conheço os céus crivados de clarões, as trombas,
Ressacas e marés: conheço o entardecer,
A aurora em explosão como um bando de pombas,
E algumas vezes vi o que o homem quis ver!

Eu vi o sol baixar, sujo de horrores místicos,
Iluminando os longos túmulos glaciais;
Com atrizes senis em palcos cabalísticos,
Ondas rolando ao longe os frêmitos de umbrais!

Sonhei que a noite verde em neves alvacentas
Beijava, lenta, o olhar dos mares com mil coros,
Soube a circulação das seivas suculentas
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!

Por meses eu segui, tropel de vacarias
Histéricas, o mar estuprando as areias,
Sem esperar que aos pés de ouro das Marias
Esmorecesse o ardor dos Oceanos sem peias.

Cheguei a visitar as Flóridas perdidas
Com olhos de jaguar florindo em epidermes
De homens! Arco-íris tensos como bridas
No horizonte do mar de glaucos paquidermes.

Vi fermentarem pântanos imensos, ansas
Onde apodrecem Liviatãs distantes!
O desmoronamento da água nas bonanças
E abismos a se abrir no caos, cataratantes!

Geleiras, sóis de prata, ondas e céus cadentes!
Naufrágios abissais na tumba dos negrumes,
Onde, pasto de insetos, tombam as serpentes
Dos curvos cipoais, com pérfidos perfumes!

Ah! Se as crianças vissem o dourar das ondas,
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
- Espumas em flor ninaram minhas rondas
E as brisas da ilusão me alaram por instantes.

Mártir de pólos e de zonas misteriosas,
O mar a soluçar cobria os meus artelhos
Com flores fantasmais de pálidas ventosas
E eu, como uma mulher, me punha de joelhos...

Quase ilha a balouçar entre borras e brados
De gralhas tagarelas com olhar de gelo,
Eu vogava, e por minha rede os afogados
Passavam, a dormir, descendo a contrapelo.

Mas eu, barco perdido em baías e danças,
Lançado no ar sem pássaros pela torrente,
De quem os Monitores e os arpões das Hansas
Não teriam pescado o casco de água ardente;

Livre, fumando em meio às virações inquietas,
Eu que furava o céu violáceo como um muro
Que mancham, acepipe raro aos bons poetas,
Líquens de sol e vômitos de azul escuro;

Prancha louca a correr em lúnulas e faíscas
E hipocampos de breu, numa escolta de espuma,
Quando os sóis estivais estilhaçavam em riscas
O céu ultramarino e seus funis de bruma;

Eu que tremia ouvindo, ao longe a estertorar,
O cio dos Behemóts e dos Maeltroms febris,
Fiandeiro sem fim dos marasmos do mar,
Anseio pela Europa e os velhos peitoris!

Eu vi os arquipélagos astrais! e as ilhas
Que o delírio dos céus desvela ao viajor;
- É nas noites sem cor que te esqueces e te ilhas,
Milhão de aves de ouro, ó futuro Vigor?

Sim, chorar eu chorei! São mornas as Auroras!
Toda lua é cruel e todo sol, engano:
O amargo amor opiou de ócios minhas horas.
Ah! que esta quilha rompa! Ah! que me engula o oceano!

Da Europa a água que eu quero é só o charco
Negro e gelado onde, ao crepúsculo violeta,
Um menino tristonho arremesse o seu barco
Trêmulo como a asa de uma borboleta.

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.



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LE BATEAU IVRE
TRAD. HERCULANO DE CARVALHO

(PARTE)



Como descia já dos Rios impassíveis,
Eu não me senti mais guiar pelos sirgadores
Deles fizeram alvo os índios irascíveis,
Depois de os atar nus aos postes de mil cores.

Eu era indiferente a qualquer equipagem,
Portadora de trigo ou de algodão inglês,
Quando meus sirgadores se calaram na margem
Os Rios me deixaram entrar no mar, de vez.

Dentro do marulhar furioso das vagas,
Eu, que mais surdo fui que cérebros de infantes,
Corria agora. E as Penínsulas desligadas
Nunca deram baldões, tombos mais triunfantes.

O vendaval sagrou minhas alvas marítimas.
Mais leve que uma rolha andei nos vagalhões,
A quem chamam fatais balanceiros de vítimas,
Dez noites, sem pensar no olho vão dos faróis.

Mais doce que à criança as ácidas maças,
No meu casco de pinho entrou essa água extreme
E das nódoas de vinho e vómitos infames
Me lavou, dispersando a fateixa e o leme.

E depois, eu sem fim banhei-me no poema
Desse mar a ferver de astros e latescen te,
Sorvendo o verde-azul onde bóia, suprema,
Lívida aparição de um cadáver silente.



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Rimbaud




AS VOGAIS





(Trad. de Onestaldo de Pennafort)





A negro, E, branco, I, rubro, O, turquesino,
vossa origem latente hei-de cantar em breve.
O enxame que a zumbir de um pântano se eleve,
«A”, teu negro veludo esmaltado de ouro fino;



E, brancura ideal das tendas côr de neve,
umbelas de alvos reis, lanças de gêlo alpino;
I, sangue em jorros, I, púrpura em chamas, hino
de cólera que, a rir, num lábio em flor se atreve;



U, círculos do mar nos glaucos horizontes,
verdes pastos sem fim, rugas sulcando as frontes
dos que buscam da ciência os íntimos refolhos;



O, fanfarras, clarins, trons de vitória, brados,
O, silêncios azuis de anjos e sóis povoados,
O, clarão vesperal, violáceo, dos seus olhos!


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VOGAIS


de RIMBAUD


Tradução de AUGUSTO DE CAMPOS




A negro, E branco, I rubro, U verde, O azul, vogais:
Ainda desvendarei seus mistérios latentes:
A, velado voar de moscas reluzentes
Que zumbem ao redor dos acres lodaçais;

E, nívea candidez de tendas e areais,
Lanças de gelo, reis brancos, flores trementes;
I, escarro carmim, rubis a rir nos dentes
Da ira ou da ilusão em tristes bacanais;

U, curvas, vibrações verdes dos oceanos,
Paz de verduras, paz dos pastos, paz dos anos
Que as rugas vão urdindo entre brumas e escolhos;

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos:
-Ó ! Ômega, o sol violeta dos Seus Olhos!


A ETERNIDADE

Tradução: Augusto de Campos

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.


TERCEIRO SONETO DE "LES STUPRA" [Rimbaud, traduzido por José Paulo Paes]

Franzida e obscura como um ilhós violeta,
Ela respira, humilde, entre a relva rociada
Inda do amor que desce a branda rampa das
Alvas nádegas até o coração da greta.

Filamentos iguais a lágrimas de leite
Choraram sob o vento atroz que os arrecada
E os impele através de marnas arruivadas
Até perderem-se na fenda dos deleites.

Beijando-lhe a ventosa, o meu sonho o freqüenta.
A minha alma, do coito material ciumenta,
Qual lacrimal e ninho de soluços usa-a.

É a oliva esvaída e é a flauta agreste,
O tubo pelo qual desce a amêndoa celeste,
Feminil Canaã em seus rocios reclusa.





OS POETAS DE SETE ANOS

Arthur Rimbaud (1854-1891)

Ao Sr. Paul Demeny

OS POETAS DE SETE ANOS

Arthur Rimbaud (1854-1891)

Ao Sr. Paul Demeny

E então a Mãe, fechando o livro de dever,
Lá se ia satisfeita e orgulhosa, sem ver
Em seus olhos azuis, sob as protuberâncias
Da face, a alma do filho entregue a repugnâncias.
O dia inteiro ele suou de obediência; que Inteligente! e entanto, uns tiques maus, um quê Já demonstravam nele acres hipocrisias.
No escuro corredor, junto às tapeçarias Mofadas, estirava a língua, os punhos fundos Nos bolsos e, fechando os olhos, via mundos. Sobre a noite uma porta abria-se: na rampa da Escada, a resmungar, o viam, sob a lâmpada, Como um golfo de luz a pender do teto.
E no Verão, abatido, ar estúpido, o menino Teimava em se trancar no frescor das latrinas Para pensar em paz, arejando as narinas. Quando o jardim de trás da casa se lavava
Dos odores do dia e, no inverno, aluarava, Jazendo ao pé do muro, enterrado na argila, Para atrair visões esfregava a pupila
E ouvia o esturricar das plantas nas treliças. Pobre! para brincar só crianças enfermiças
De fronte nua, olhar vazio que lhes erra
Pela face, escondendo as mãos sujas de terra Nas roupas a cheirar a fezes, todas rotas, Falando com essa voz melosa dos idiotas!
E quando o surpreendia em práticas imundas,
A mãe se horrorizava; o menino, profundas Carícias lhe fazia, a apaziguar-lhe a mente.
Era bom. Ela tinha o olhar azul, — que mente! Aos sete anos compunha histórias sobre a vida No deserto, onde esplende a Liberdade haurida, Florestas, rios, sóis, savanas! Recorria
A revistas nas quais, encabulado, via Italianas a rir e espanholas bonitas.
Quando vinha, olhos maus, louca, em saias de chitas,
A filha — oito anos já! — do operário do lado,
A pirralha infernal, que após lhe haver pulado
Às costas, de algum canto, a sacudir as roupas, Ele por baixo então lhe mordiscava as popas, Porquanto ela jamais andava de calçinha. — Cheio de pontapés e socos, ele vinha
Trazendo esse sabor de carne para o quarto.
Da viuvez invernal dos domingos já farto,
Junto à mesa de mogno, empomadado, a ter de Recitar a Bíblia encadernada em verde
E a sofrer a opressão dos sonhos maus em que arde,
Já não amava Deus; mas os homens, que à tarde,
Via, sujos, chegando em suas casas baixas, Quando vinha o pregoeiro, entre ruflar de caixas,
A ler seus editais entre risos e pragas. — Sonhava as vastidões de prados onde as vagas De luz, perfumes bons, douradas lactescências Se movem calmamente e evolam como essências!
E como saboreava antes de tudo arcanas Coisas, se punha, após baixar as persianas,
A ler no quarto azul, que cheirava a mofado,
Seu romance sem cessa em sonhos meditado, Cheio de plúmbeos céus, florestas, pantanais, Flores de carne viva em bosques siderais, Vertigens, comoções, derrotas, falcatruas! — Enquanto progredia a agitação das ruas Embaixo, — só, deitado entre peças de tela
De lona, a pressentir intensamente a vela!

26 de maio de 1871


RIMBAUD, Arthur. Poesia completa. Tradução, prefácio e notas de Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994. p.144-147

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