sábado, 28 de junho de 2008
A HISTÓRIA DOS AMANTES, 10
Ainda abalado por aquele terrível natal cheguei ao aeroporto, cheguei finalmente ao aeroporto, às quatro e meia, ainda teria de esperar, longo tempo esperar, esperar mais, atraso na partida, o aeroporto fechado para pouso e decolagem, telefono para ela, para Val, compro um jornal censurado, um sanduíche dividido, duas metades, estava sem dormir, desde o dia anterior sem dormir, fiquei naquele pequeno bar do aeroporto, quando Val me descobriu, ali dentro, reapareceu, cabelos pintados de louro, de ouro, enormes óculos escuros, agora, mais que nunca, agora, uma Marylin Monroe brasileira, guerrilheira.
Estava grávida.
Val grávida movia-se com dificuldade, a volumosa, braços e rosto um inchados, no forte calor.
Viera agora, tranqüila, estava sentada, a meu lado, olhava o movimento tumultuoso das pessoas do aeroporto, começava a comer a metade de meu sanduíche, pediu uma coca-cola e bebia.
— Não sei por que você não esquece logo esse negócio de assalto, disse-me ela, ajeitando o cabelo no espelho, como se nada tivesse acontecido comigo.
“Ninguém morreu”, acrescentou, divertida.
Eu nervoso desde que ela chegara, olhava os lados, imaginava um policial que a reconhecesse e viesse prendê-la, soubéramos que era procurada, estava incluída (o que nunca foi confirmado) em não sei que secreta lista (que tudo naquela época era secreto) pessoas que não podiam ausentar-se do pais.
Mas Val comia, bebia, com tranqüilidade, satisfação, e dali mesmo sentado eu podia ver a parede nua onde estava o cartaz sua fotografia se estampava procurada por todos os pontos e cantos do pais.
E Val com um gesto amigo, sentindo-se tão bem ali, como se estivesse no jardim, como se fosse viajar a turismo, os passageiros passando de um para o outro lado, como se o aeroporto fosse seu, passando por perto de nossa mesa, e os poucos empregados atarefadíssimos no balcão, porque havia muitos fregueses ali, poucos os empregados que conseguiram chegar ao trabalho, naquele dia um choque de dois trens na estação de Riachuelo interrompera a linha férrea e muitos morreram e não conseguiram comparecer ao trabalho, os trens parados, e nós bebíamos nossos refrigerantes.
Sentados na bancada alta, à esquerda, e embora com os corpos rijos e os copos nas mãos, um grupo de dois estrangeiros animadamente conversava com um jovem brasileiro, encostado ao balcão, aquém de uma fileira de copos de vidro recém-lavados e ainda molhados. Os homens bebiam uma garrafa de cerveja que era dividida ali (o jovem não bebia nada), dois homens simples, de meia idade, talvez dois turistas italianos, ou dois empregados de alguma empresa estrangeira, ou dois desocupados que estavam viajando juntos e conversavam com um jovem moreno que tinha cara de pertencer a alguma turma de alunos de inglês do IBEU, e eu não conseguia ouvir de que falavam.
Eu tenho as mãos frias. Trêmulas. Desde que Val chegara, talvez pela debilidade do longo jejum, talvez pela excitação do assalto, ou de meu novo livro em São Paulo , para onde estava indo, talvez pela fraqueza e medo de que acontecesse alguma coisa a ela, que eu proibira de sair do esconderijo onde a escondera, que era um apartamento de Copacabana, dividido com um amigo, onde ela ficava comigo em companhia de sua mãe, porque eu temia por sua segurança e naquele tempo a polícia estava caçando comunistas como ratos, arrombando portas, prendendo pessoas, dentro de suas casas, sem maiores explicações, com as mais violentas e obscuras finalidades, qual seja para matá-los. Sim, podiam me prender, mas nada tinham contra mim (o que para eles não significava nada); em Val, porém, nunca teriam conseguido por as mãos: eu a ocultava e protegia de tal forma que vivíamos como foragidos, personagens de filme policial americano. Eu era figura fácil de encontrar, mas minha mulher tinha sumido, ninguém sabia, estava grávida, era com exagerada cautela que eu entrava e saía do apartamento onde nos escondíamos, tantos eram os amigos e amigas de Val que estavam desaparecendo nos últimos meses.
Sentia as mãos frias e trêmulas desde que Val chegara, talvez de um vazio qualquer, que não saberia explicar, enquanto ela comia o seu pedaço de sanduíche, bebia o seu copo de coca com tranqüilidade.
Estava sem fome desde o dia anterior, cheguei no Rio, tomei um apressado banho e parti para o aeroporto.
Eu não queria que Val estivesse ali, eu não queria que Val estivesse em parte alguma, fora de casa, principalmente só, ela estava para dar à luz a seu filho, que devia nascer a qualquer momento, mas era procurada, estava numa desconhecida lista de pessoas que não podiam deixar o pais, lista aliás idiota, conforme vim a saber, pois incluía também humildes operários que nunca tinham ido nem de ônibus ao aeroporto.
Eu não sabia se a mandava para casa ou se teria tempo de a levar, telefonara avisando que o avião não partiria nas próximas horas e só chegaria a São Paulo à noite.
E pensava se não era melhor levá-la para casa, mas discutindo isto com ela me respondeu que estava sentindo-se tão bem que acabei também concordando, me era agradável saber como ela viera da cidade para me fazer companhia e não me deixar esperando, que era como eu me sentiria à noite sozinho em São Paulo , voluntariamente sozinho e cansado, no quarto do hotel em que me hospedava sempre, eu queria voltar naquela mesma noite para o Rio, mas não podia, no dia seguinte tinha um encontro marcado, voluntariamente sozinho e cansado, ainda que, se quisesse, poderia estar cercado de amigos e de pessoas que eu poderia até amar, até levar para cama, amizades que eu tinha em São Paulo , verdadeira família, algo meu, de meu lar paulista, meu segundo lar, aonde me aprazia ir.
Eu não queria levar Val comigo daquela vez, temia passar com ela pelo aeroporto (o que era um medo infantil). A espera longa demais para mim depois de uma noite sem sono. E não, ela deveria voltar logo para casa, eu estava louco para me ver livre dela, nem deveria ter saído de casa, eu não estava mais razoável ou raciocinando bem, o dia tinha sido longo demais para mim, ela podia voltar a passar mal, não devia ter saído, você deve voltar, lhe disse, em casa você tem meios de se comunicar comigo se algo acontecer, as ruas estão engarrafadas, não há trens, você está envolvida, perseguida, procurada, é um milagre que você não tenha sido encontrada no sindicato quando a policia chegou e prendeu todo mundo.
O amor. Rôni via que o amor não podia ser entendido, não podia ser visto com clareza. Entretanto, certamente, era o amor a recompensa das alegrias do amar. Como ela disse, e como ele dissera também e escrevera, bem no meio de um parágrafo do seu novo livro.
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