Sim, tenho de repetir: Nós nos casamos na última luz de uma serena tarde do mês de maio de 1964 - vinte e um dias depois do golpe militar - na presença de um padre, de minha avó Madalena (de preto, elegantíssima), da mãe de Val num discreto tailler, da minha cunhada e alguns amigos.
Já estávamos recebendo os cumprimentos de praxe quando foi chegando o pessoal da família de Val e, do primeiro degrau da escada da igreja - eram oito, ao todo - partimos no carro de Val diretamente para Cabo Frio, onde um barco alugado nos esperava num cais do Canal.
Entretanto choveu, persistentemente. Durante toda a nossa viagem de lua-de-mel - ou de onda-de-mel - Val dizia que ouviríamos pelo resto de nossas vidas aquela música de vento e chuva, nos afogaríamos naqueles golfões de um sentimento mole, maciço, do fundo do mar de nós mesmos.
Bela sensação de claridade no meio da chuva, espaço verde por onde o barco passava, onde nos estabelecemos no horizonte - Val nua.
Posso cantar hoje a mais bela canção de amor que li, mas tenho de avançar com cautela.
Tudo o que significa tem força. Por isso aquela minha temporada com Val me deixava radiante, me empurrando para a glória.
Por fim, a brisa da corrente nos trouxe de volta como se a lancha fosse um veleiro e ficamos no hotel, o colo cheio de jornais, a bebericar um coquetel de frutas sobre as notícias do golpe, os olhos de Val recolhendo os reflexos do mar com aquela sua superioridade de Marilyn Monroe morena e dourada, e como se a vida estivesse em sua homenagem.
E Val no dia seguinte desce do hotel onde nos hospedamos e parte comigo para Búzios, a blusa larga, meio ávida, os seios quase à mostra sobre a curva da anca suave, alguns homens se viravam súbitos ao vê-la - e nem parecia que comigo dormira, ressonando leve no seu cheiro de leite fresco, depois de se debater nos meus ombros na noite anterior.
O veículo soprado pelo vento, íamos ocupar a casa de Búzios que eu tinha alugado e que depois comprei.
Passamos velozes pelo canal.
Val dirigia - e ao longo da estrada litorânea se podia ouvir a areia da estrada de terra batendo na fuselagem, enquanto minha mão se introduzia por entre as suas coxas.
À tarde entramos no mar despidos, com alegria comovida.
Dei uns tiros com o revólver de Val, tirado do porta-luvas, estourando uma cerveja. Depois nos vestimos, pois vinha chegando um garoto com um cão.
Foi somente quando me deitei na areia da praia que os vi, largos, na branca espuma da rebentação, o sol esquentando e as gaivotas em vôo rasantes como aviões em bandos barulhentos. Três jovens estavam nas cristas das ondas do horizonte.
Fechei os olhos por algum tempo. De onde aquele ar familiar? Não me lembro o que pensei nos minutos seguintes, mas a imagem ressurgiu e esvaiu-se, ressaltada no seu fundo azul e era o perfil de alguém que eu conhecera há vários anos. Quando abri os olhos ele se aproximou de mim e eu o reconheci: era o Artur.
Alto, magro, já mais maduro (eu o conheci menino). Sofisticado, adamado. Com ele outros dois rapazes mais jovens. Numa fração de segundo fiquei parado, olhando-o - quase não o reconhecia. Ele ria-se para mim, apertou com força a minha mão e a de Val ao mesmo tempo. Val passou a conversar, animada, com eles.
Jorginho, o garoto mais jovem, teria uns dezoito anos. Carlos, o outro, cerca de vinte e dois, forte como um Apolo de academia e tinha os cabelos densos caídos sobre os olhos, como uma espécie de cão.
Artur, maneiroso, afetado. Minha naturalidade e cortesia com ele era falsa, eu tinha medo de o ferir. Desde aquele encontro ficamos juntos, os cinco, e no dia seguinte os três, que estavam acampados, foram hospedar-se na nossa casa.
No decorrer daqueles dias seguintes a imagem de Val com os rapazes começa a tumultuar minha cabeça.
Como um coice da memória a vejo, variada, dispersa, fumando, ouvindo o metal em fúria daquele rock desconhecido, todos drogados e bêbados.
Carlos, o Apolo, vivia nu pela casa.
Jorginho, surdo dentro de sua música.
Artur, a Potestade, conseguindo arrancar dos limites do viver o transgredir de todas as normas. Vingador, Artur, o irmão da morte na fatalidade de víboras bêbadas. Flagelo de Deus.
Os dois rapazes, seus convictos crentes, viviam às suas expensas.
Porque Artur era das situações limites o holocausto da instauração de um absurdo vivido ali sob os nossos olhos, com o itifálico Carlos sempre à mostra, nossa única vizinhança era a praia defronte, ninguém mais poderia nos ouvir ou ver.
Era o apogeu da era sessenta.
E seres rolavam pelo chão e por debaixo da mesa, sobre a qual restos de uma comida azeda e leite derramado, copos de vidro quebrados entre farelos de pão e esperma, aquilo penetrando no mais fundo do corpo como lâmina oculta e sangrenta.
Ali vivemos o prazer de algo infestado de um apocalíptico efeito, misteriosa deformação mágica, alcoólica, orgiástica.
Foi quando Carlos, atingindo o clímax, à noite arranjou duas meninas na praia e, erguendo o copo, propôs que ensaiássemos uma seção grupal, apagando as luzes da sala onde sobrevivíamos nós.
Mas, apesar dos contatos sentidos e das inesperadas variações de nossas multiplicidades, fomos ficando cada vez mais loucos e solitários - Val desapareceu com Carlos, Artur e Jorginho, não sei, e as duas meninas, ansiando por mim no escuro na respiração da besta de sete cabeças e dez cornos que me possuía com sua sangrenta boca.
No amanhecer ainda vivos relíquias de seres de uma vida que se esvai, livre ou imposta, mas vã e incompreensível.
Foi quando dou um murro, curto, seco, na boca de Val, que se cala e desequilibra sobre a pia do banheiro. Eu tinha caído na pior paranóia. Um botão de sangue brotou e começou a crescer de cada lado de seus lábios, como uma flor, vermelha, ácida.
E Val me olhava com espanto e horror enquanto erguia do chão um lencinho branco e começo a limpá-la, trêmulo, aqueles lábios amados, bati forte, de frente, reto, como um disparo incontrolável, e o fio de sangue se desfia da boca e não conseguia detê-lo, escorria da boca como se a vida se vampirisasse, delirasse. "Meu Deus, que fiz", ainda consegui balbuciar no caos, Val a despejar aquilo de dentro de si, se apoiando nas minhas mãos assassinas a expelir a vida, e abro a torneira e sai dali um jato de água gasosa que se transforma em sangue, escorre e pinta a louça branca, respinga pelos ladrilhos da parede e Val chora, seus soluços escorrem pelo mundo como o jato dágua da torneira aberta com efeito de ducha gasosa.
Foi então que consegui dar-lhe um beijo que cresceu entre nós como se anunciasse que não mais nos amávamos, a pingar o mel do líquido negro do amor como se estivesse pronto para jorrar dentro das nossas carnes daquela boca cheia de sangue.
Trituro o lencinho de sangue debaixo do jato e vou limpando aqueles lábios.
Todavia ela começa a chorar e continua a sangrar, reclinada sobre a pia do banheiro e abandonada, assustada, devastada por aquela violência - seus soluços escorrendo pela água da torneira aberta, por aquele jato único e forte, grosso e gasoso, como coca-cola sangrenta.
Tudo naquele momento parecia desabar.
Eu estava em tão agudo estado de morte que, naquele mesmo dia, introduzo o revólver de Val numa profunda fenda da poltrona da sala, lá onde a minha mão não conseguiria recuperá-lo, para não sucumbir ao forte e desesperador desejo de chacinar a todos.
Hoje nada sei. Tudo mudou. Pois o que me havia ferido foi vê-la, na área de luz de um automóvel distante, entre as pernas daquele homem, aberrante, imoral, desmesurado, em angústia descomunal... Careço de caridade. Alterno, com lealdade, o ódio e o amor. Aquilo em que gastei a vida aparece e desaparece. Desentendo-me, cada vez mais comigo mesmo.
Terei de renunciar a Val? Nunca. Pois se Val viveu aqueles espasmódicos momentos consentidos, invenções minhas. Afinal, nós somos meras máquinas de repetição. Máquinas doentes de alucinada vacuidade. Por eles os amantes saíam um de dentro do outro depois da luta, pegajosos de gosma de saliva e esperma e outros líquidos do corpo, nas situações do mais extremo limite. E não era a primeira vez. E Val não tinha culpa. Era eu quem impelia, inventava aquilo que estava em concordância com o meu caráter pornográfico. Era assim, vendo-a a agredir no orgasmo e na obscenidade que eu conseguia obter a imaginação da matéria, pois em viva ficção criava ali como em laboratório experimental as amostras biológicas e bestiais, eram personagens imaculados, inoculados vivos pelos meus demônios, nas forças da devastação da felicidade humana da minha criação. Eles saíam da minha fantasia concreta, se afogavam como instrumentos da bestialização com que os manipulava, com que eu brincava criá-los, cruelmente.
Pois o gigante que se movia entre as pernas daquele macho e sobre o ventre da minha mulher era o prolongamento da minha criação. Eu necessitava daquilo para viver e indispensável ao prolongamento do meu ser. Eu os amava. E me arrastava no gozo deles.
Mas aos poucos Val se recompunha mas nunca mais foi a mesma depois que Carlos, Jorge e Artur se foram de minha casa, todos com mil desculpas.
Val tentava reunir suas articulações retomando suas estruturas. Ela ainda parecia magoada, pois era como um ser extra-terrestre. Eu não me agüentava mais. Mas tinha de começar a ver a figura de minha mulher nua sobre um colchão negro e revolto.
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