sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 15



Mas eu não sei o que o amor é. Aquilo que eu sentia por Val deveria chamar-se loucura, necessidade ansiosa. O amor de Luisa era calmo, porém vazio, faltava-lhe peso, substância, sangue, algo do delírio que ressoava em Val, uma densidade, um abismo onde eu necessitava mergulhar. Meu casamento com Luisa Chermont tinha a ver com o duradouro, como se ela dissesse sempre: "não me amole, não queira separar-se de mim" - e devia durar a vida inteira, sem interrupções, sem preocupações. Nunca, desde que estávamos juntos, me passou pela cabeça o pensamento de que eu poderia separar-me dela. Não havendo inicialmente grande amor de ambas as partes, eu simplesmente me deixava ficar, e sabia que ela não me amava mais do que o suficiente para convivermos felizes, mas não esperava grandes frustrações, nem grandes dores. Aquela era o que se podia dizer uma relação racional, burguesa, domestica, simples, elegante até, linear, plana. Clara. Certamente ela estava mais interessada em outras coisas do que em mim. Vestidos e festas, por exemplo. Com Luisa não me ocorria pensar se eu era ou não feliz. Nossa vida já continuava suficiente rica - nos dois sentidos - para nos justificar. Pela primeira vez eu experimentava aquilo, e julgava que seria decorrente da maturidade. Nada perturbava nossa vida, nada nos atingia, apesar de eu estar sem trabalhar, vivendo dos rendimentos dela, como empregado dela, mas eu mesmo não me importava com isso, e ela até parecia gostar. E de certo modo eu ainda tinha um nome público como escritor, e isso fazia bem à Luisa, mulher que personificava a elegância, o status, o murmúrio do mundo social para o qual vivia ela. Tínhamos quartos separados, mas freqüentemente dormíamos juntos. Resguardávamos nossas individualidades, preservada em ler durante a noite, ou ver diferentes programas de TV, ou em ter um número de telefone privativo pessoal - ela não me invadia a privacidade, nem eu a sua - e isso só era possível porque não nos amávamos, eu sei, sócios da vida – dávamo-nos bem por isso mesmo o casal perfeito, polido, verdadeiramente civilizado. Elegante.

O meu casamento com Luisa se deu no meio de uma aguda crise sentimental, movida pela saída de Val de minha vida, - e a aparente solidez dessa nova união se dava graças à loucura de meu temperamento amante. A nova solidez estava assegurada pelo caráter de Luisa, que me levantava, avessa ela a toda emotividade pegajosa e impraticável, ao lamento sentimental. Meu novo casamento estava dessa maneira a salvo da desgraça, muito mais “normal”, formal, algo que um par de pessoas maduras poderia ter com tranqüilidade, sem que nada viesse amedrontar, corromper, ameaçar.

Ao nosso casamento nada faltava. A base invisível era sólida e econômica, eu me defrontava com a situação de ter em casa uma pessoa estável como esposa, até muito mais interessante, e fui cortando os laços de dependência do passado, de que fui-me libertando. Luisa não crescia a meu lado, pois era imutável, forte personalidade. A sua vida era "dela", eu não me intrometia ali, não opinava, eu era apenas o marido, ela não era tábua de salvação de ninguém, e se me abandonou depois foi por um fato, não por um processo: Eduardo Castro, o jovem ator que a seduziu, tinha tudo que a poderia seduzir: jovem, famoso, belo, disputado por todas as telespectadoras da novela das sete, enfim, Eduardo era irrecusável na vida de qualquer mulher madura. Para ela, foi uma conquista.
Eduardo era rico, mas vinha da classe operária.

Eu não sofri com a separação. Pela primeira vez não sofri com uma separação. Fiquei só, é claro, mas não sofri. Eu não vivia para ela, como ela não vivia para mim. Marido, para ela, seria algo como um ornamento, traste indispensável a qualquer mulher elegante. Se sofri, quando a perdi, foi mais pela situação financeira em que me encontrava: eu tinha fama de rico, meu sobrenome ajudava e ajudaria se eu quisesse realmente encontrar um emprego. Mas eu não sabia fazer nada. Não queria. Só escrever, e escrever mal.

Enquanto durou nosso casamento foi uma festa. Convivi com ministros, escritores, atrizes. Participei do milagre, do chamado Brasil Grande. Cheguei a freqüentar colunas de sociedade dos jornais.

Eu tinha quase certeza de que Eduardo Castro não ia ser capaz substituir-me. Ele tinha fama de gay, e até creio que era bissexual. Mas para Luisa isso lhe era indiferente. Ela era um tipo elegante à moda antiga, vivia de aparências. Mas depois disso não tive mais esperanças de um retorno de Luisa. Não Luisa, ela nunca se humilharia em voltar para mim.
De certa forma Luisa foi elegante até no tipo de traição: pois recusou-se a permanecer comigo, desde que estava apaixonada por Eduardo. Ela nunca se traiu a si mesmo: e nunca trairia a ninguém.

Luísa não era tão jovem. Mas isso não era impedimento para ela. Só se vive uma vez na vida, dizia ela, sempre na vanguarda do comportamento humano. Eu não vi bem claro o momento em que ela me deixou, e mesmo recusando-me a admitir: ela deixou um rombo na minha vida, um buraco e um vazio, pois toda separação é um desastre, eu já sabia disso, e nunca me acostumei, mas foi um desastre menor, não psicológico, mas prático. Digamos: eu fiquei empregado, tinha de arranjar outra profissão, outra finalidade na vida. Devo a ela isso. Fui obrigado a refazer-me. Tinha de recomeçar a vida para não morrer, ela me empurrou para isso.

Mas foi somente quando Luisa me deixou que eu senti que tinha tido a mulher ideal, um lar que nunca tive e isso não me ocorrera antes com tal nitidez.

Finalmente eu tinha de recomeçar ou continuar agora a escrever a forma definitiva de "A História dos amantes" para não ser esquecido. E arranjar um emprego. Pois eu era até certo ponto conhecido, enquanto estive com Luisa, mulher badalada na crônica social.

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