sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 11


Nada. No dia 19 de dezembro de 1967 Rôni não viu o soberbo pássaro de prateadas penas que fugia apitando furiosamente em desespero, e como uma máquina batia com seu bico de madeira na vidraça antes de a romper, na densa névoa o envolvia: passada a névoa, dali restou o seu perfume e um homem sentado, olhando para fora, interminavelmente olhando, relendo pela madrugada aquele bilhete sem mover-se, abrindo somente os olhos (os olhos apenas, porque o resto do corpo não perdia a imobilidade, prostrada e mortal), ouvindo o vago, o morto, o mutilado — e voltava a ler, ou a adormecer, perdido, solto, madrugada a fora, à mercê da sua tênue sensação de abandono, serenamente imóvel, até que uma beatificação, da plácida corrente do pensar, imóvel, como a sua morte, o envolveu e ele adormeceu sobre aquelas palavras.

Foi dias depois da noite em que Roni e Val foram a um show do Chico e o famoso cantor cantou as músicas preferidas dela, e era como se cantasse para ela, sem disfarce, olhando-a fixo, vivendo-a na canção, desejando-a na fala.
Quando Roni era mais jovem experimentava o fenômeno: fazia as coisas se derreterem ao redor, as paredes se afastavam na clareira do deserto. Era assim: Val não transigia com a vida, perigosamente. "Não amei", disse ela, certa vez. "Só conheci da vida a dor e o prazer".
Lembrando-se disso, Roni refletiu: "Tenho medo de estar sempre escrevendo minha condenação. Me canso".
Roni estava fartamente ligado a ela, mas não pôde suportar quando soube outra coisa.

Val estava ainda mais bonita, naquela época, e naquele dia 19 de dezembro de 1967 ela se foi não sei para onde.

No Correio da Manhã, que Rôni lia e relia, estava escrito:

"O correspondente da France Press escreveu que um novo ataque foi efetuado ontem, contra a capital pela aviação inimiga, desde as l1h 40m até às 12h 05m locais.
"As pontes P. D., nas margens do Rio V., e o setor de G. L. foram os principais objetivos, porém outros ataques de despistamento foram realizados simultaneamente contra vários pontos da região.

"O ataque foi realizado por três ondas de bombardeios, com uma diferença de cinco minutos entre si. Os ataques efetuaram-se a meia altura.
"A primeira e a segunda onda chegaram sobre a cidade por grupos de dois aviões cada uma. Os aviões voaram protegidos pelo sol, que mantinham atrás de si, para que as reverberações molestassem os atiradores em terra.
"Os aparelhos largaram projéteis verticalmente sobre o centro da cidade e era possível ver as bombas picarem em diagonal sobre os objetivos. Depois os aparelhos viravam sobre uma de suas asas, a fim de oferecer a menor superfície possível aos disparos dos canhões antiaéreos.
"Além das bombas e dos foguetes ar-terra, bombas de balas foram disparadas pela terceira onda de aviões. Estas bombas reconhecem-se por sua explosão, que se parece com um fogo de artifício.
Ao explodirem, elas lançam milhares de cubos de metal em todas as direções, são por isso conhecidas como bombas antipessoais.

DEFESA

"A defesa antiaérea foi muito intensa. O alarma começou na capital vários minutos antes da chegada dos aviões, e cada onda de caças-bombardeios era 'anunciada' pelos alto-falantes.
"A jovem anônima, sempre a mesma, que anuncia os alarmas pelo microfone, assinalava aos cidadãos que 'novos piratas do ar penetravam no espaço aéreo da cidade'.
"Ouvia-se então o surdo rugir dos reatores ao longe, e depois os primeiros disparos dos canhões pesados instalados nos arredores da cidade, e imediatamente depois o crepitar de todas as armas, quando os aviões surgiam sobre a cidade.
"De vez em quando a terra estremecia, quando explodia uma bomba de grande calibre.
"Às 12h 05m locais o último fragor dos reatores sumiu ao longe, e em seguida as sirenas anunciaram o final do alarma.
"Nas ruas, as pessoas abandonavam seus refúgios individuais, limpando a roupa, reajustando seus capacetes na cabeça e montavam de novo em suas bicicletas.
"Próximo do rio V., nuvens de pó branco elevavam-se sobre G. L., e o vento as empurravam, em direção da cidade".

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