sexta-feira, 28 de agosto de 2015

PROUST E OS SIGNOS

DELEUZE, Gilles (2003) Proust e os signos. 2.ed. trad. Antonio Piquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003.



Proust e os signos

GILLES DELEUZE

2.ed


Forense Universitária – RJ
 2003






Capítulo I
Os Tipos de SignosEm que consiste a unidade de A la recherche du temps perdu?
Sabemos ao menos que ela não consiste na memória, nem tam­pouco na lembrança, ainda que involuntária. O essencial da Re­cherche não está na madeleine nem no calçamento. Por um lado, a Recherche, a busca, não é simplesmente um esforço de recor­dação, uma exploração da memória: a palavra deve ser tomada em sentido preciso, como na expressão "busca da verdade". Por outro lado, o tempo perdido não é simplesmente o tempo passa­do; é também o tempo que se perde, como na expressão "perder tempo". É certo que a memória intervém como um meio da bus­ca, mas não é o meio mais profundo; e o tempo passado inter­vém como uma estrutura do tempo, mas não é a estrutura mais profunda. Os campanários de Martinville e a pequena frase mu­sical de Vinteuil, que não trazem à memória nenhuma lembran­ça, nenhuma ressurreição do passado, têm, para Proust, muito mais importância do que a madeleine e o calçamento de Veneza, que dependem da memória, e, por isso, remetem ainda a uma "explicação material".l
Não se trata de uma exposição da memória involuntária, mas do relato de um aprendizado – mais precisamente, do aprendizado de um homem de letras.2 O caminho de Méséglise
l.P321.
2. TR 150.

4
e o caminho de Guermantes são muito menos fontes de lem­brança do que matérias-primas, linhas do aprendizado. São os dois caminhos de uma "formação". Proust freqüentemente aborda situações como esta: em dado momento o herói não co­nhece ainda determinado fato que virá a descobrir muito mais tarde, quando se desfizer da ilusão em que vivia. Daí o movi­mento de decepções e revelações que dá ritmo a toda a Recher­che. Pode-se evocar o platonismo de Proust – aprender é ainda relembrar; mas, por mais importante que seja o seu papel, a me­mória só intervém como o meio de um aprendizado que a ultra­passa tanto por seus objetivos quanto por seus princípios. A Recherche é voltada para o futuro e não para o passado.
Aprender diz respeito essencialmente aos signos. Os signos são objeto de um aprendizado temporal, não de um saber abs­trato. Aprender é, de início, considerar uma matéria, um obje­to, um ser, como se emitissem signos a serem decifrados, interpretados. Não existe aprendiz que não seja "egiptólogo" de alguma coisa. Alguém só se torna marceneiro tornando-se sen­sível aos signos da madeira, e médico tornando-se sensível aos signos da doença. A vocação é sempre uma predestinação com relação a signos. Tudo que nos ensina alguma coisa emite sig­nos, todo ato de aprender é uma interpretação de signos ou de hieróglifos. A obra de Proust é baseada não na exposição da me­mória, mas no aprendizado dos signos.
Dos signos ela extrai sua unidade e seu surpreendente plu­ralismo. A palavra "signo" é uma das palavras mais freqüentes da Recherche, principalmente na sistematização final, que cons­titui o Tempo redescoberto. A Recherche se apresenta como a exploração dos diferentes mundos de signos, que se organizam em círculos e se cruzam em certos pontos. Os signos são especí­ficos e constituem a matéria desse ou daquele mundo. Os perso­nagens secundários já o demonstram: Norpois e o código diplomático, Saint-Loup e os signos estratégicos, Cottard e os sintomas médicos. Pode-se ser muito hábil em decifrar os signos
5
de uma especialidade, mas continuar idiota em tudo o mais, como o caso de Cottard, grande clínico. Além disso, num domí­nio comum, os mundos se fecham: os signos dos Verdurin não funcionam entre os Guermantes; inversamente, o estilo de Swann ou os hieróglifos de Charlus também não funcionam entre os Verdurin. A unidade de todos os mundos está em que eles formam sistemas de signos emitidos por pessoas, objetos, maté­rias; não se descobre nenhuma verdade, não se aprende nada, se não por decifração e interpretação. Mas a pluralidade dos mundos consiste no fato de que estes signos não são do mesmo tipo, não aparecem da mesma maneira, não podem ser decifra­dos do mesmo modo, não mantêm com o seu sentido uma rela­ção idêntica. Que os signos formam ao mesmo tempo a unidade e a pluralidade da Recherche, esta é a hipótese que devemos ve­rificar ao considerarmos os mundos de que o herói participa di­retamente.
*
O primeiro mundo da Recherche é o da mundanidade. Não existe meio que emita e concentre tantos signos em espaços tão reduzidos e em tão grande velocidade. Na verdade, estes signos não são homogêneos. Em um mesmo momento eles se diferen­ciam, não somente segundo as classes, mas segundo "famílias espirituais" ainda mais profundas. De um momento para outro eles evoluem, imobilizam-se ou são substituídos por outros sig­nos. Assim, a tarefa do aprendiz é compreender por que alguém é "recebido" em determinado mundo e por que alguém deixa de sê-lo; a que signos obedecem esses mundos e quem são seus le­gisladores e seus papas. Na obra de Proust, Charlus é o mais pro­digioso emissor de signos, pelo seu poder mundano, seu orgulho, seu senso teatral, seu rosto e sua voz. Mas Charlus, movido pelo amor, não é nada nos salões dos Verdurin; mesmo no seu próprio mundo, acabará por não ser mais nada quando as leis implícitas tiverem mudado. Qual é, então, a unidade dos


6
signos mundanos? Um cumprimento do duque de Guermantes deve ser interpretado e, neste caso, os riscos de erro são tão grandes quanto num diagnóstico. O mesmo acontece com uma simples mímica da Sra. Verdurin.
O signo mundano surge como o substituto de uma ação ou de um pensamento, ocupando-lhes o lugar. Trata-se, portanto, de um signo que não remete a nenhuma outra coisa, significação transcendente ou conteúdo ideal, mas que usurpou o su­posto valor de seu sentido. Por esta razão a mundanidade, julgada do ponto de vista das ações, é decepcionante e cruel e, do ponto de vista do pensamento, estúpida. Não se pensa, não se ag, mas emitem-se signos. Nada engraçado é dito em casa da Sra. Verdurin e esta não ri, mas Cottard faz sinal de que está di­zendo alguma coisa engraçada, a Sra. Verdurin faz sinal de que ri e este signo é tão perfeitamente emitido que o Sr. Verdurin, para não parecer inferior, procura, por sua vez, uma mímica apropriada. A Sra. de Germantes dá, muitas vezes, mostras de um coração duro e de pouca inteligência, mas emitirá sempre signos encantadores. Ela nada faz por seus amigos, não pensa como eles, emite-lhes signos. O signo mundano não remete a alguma coisa; ele a "substitui", pretende valer por seu sentido. Antecipa ação e pensamento, anula pensamento e ação, e se declara suficiente. Daí seu aspecto estereotipado e sua vacuida­de, embora não se possa concluir que esses signos sejam despre­zíveis. O aprendizado seria imperfeito e até mesmo impossível se não passasse por eles. Eles são vazios, mas essa vacuidade lhes confere uma perfeição ritual, como que um formalismo que não se encontrará em outro lugar. Somente os signos mundanos são capazes de provocar uma espécie de exaltação nervosa, expri­mindo sobre nós o efeito das pessoas que sabem produzi-los.3
3. CG 426-431.



7
O segundo círculo é o do amor. O encontro Charlus-Jupien leva o leitor a assistir à mais prodigiosa troca de signos. Apaixo­nar-se é individualizar alguém pelos signos que traz consigo ou emite. É torna-se sensível a esses signos, aprendê-los  (como a lenta individualização de Albertina no grupo das jovens). É possível que a amizade se nutra de observação e de conversa, mas o amor nasce e se alimenta de interpretação silenciosa. O ser amado aparece como um signo, uma "alma": exprime um mundo possível, desconhecido de nós. O amado implica, envol­ve, aprisiona um mundo, que é preciso decifrar, isto é, in­terpretar. Trata-se mesmo de uma pluralidade de mundos; o pluralismo do amor não diz respeito apenas à multiplicidade dos seres amados, mas também à multiplicidade das almas ou dos mundos contidos em cada um deles. Amar é procurar explicar, desenvolver esses mundos desconhecidos que permanecem en­volvidos no amado. É por essa razão que é tão comum nos apaixonarmos por mulheres que não são do nosso "mundo", nem mesmo do nosso tipo. Por isso, também as mulheres amadas es­tão muitas vezes ligadas a paisagens que conhecemos tanto a ponto de desejarmos vê-las  refletidas nos olhos de uma mulher, mas que se refletem, então, de um ponto de vista tão misterioso que constituem para nós como que países inacessíveis, desco­nhecidos: Albertina envolve, incorpora, amalgama "a praia e a impetuosidade das ondas". Como poderíamos ter acesso a uma paisagem que não é mais aquela que vemos, mas, ao contrário, aquela em que somos vistos? "Se me vira, que lhe poderia eu sig­nificar? Do seio de que universo me distinguia ela?"4
Há, portanto, uma contradição no amor. Não podemos in­terpretar os signos de um ser amado sem desembocar em mun­dos que se formaram sem nós, que se formaram com outras
4. RF 294.




8
pessoas, onde não somos, de início, senão um objeto como os outros. O amante deseja que o amado lhe dedique todas as suas preferências, seus gestos e suas carícias. Mas os gestos do ama­do, no mesmo instante em que se dirigem a nós e nos são dedi­cados, exprimem ainda o mundo desconhecido que nos exclui. O amado nos emite signos de preferência; mas, como esses sig­nos são os mesmos que aqueles que exprimem mundos de que não fazemos parte, cada preferência que nós usufruímos deli­neia a imagem do mundo possível onde outros seriam ou são pre­feridos. "Mas logo o ciúme, como se fosse a sombra de seu amor, se completava com o double desse novo sorriso que ela lhe diri­gira naquela mesma noite – e que, inverso agora, escarnecia de Swann e enchia-se de amor por outro... De sorte que ele chegou a lamentar cada prazer que gozava com ela, cada carícia inven­tada e cuja doçura tivera a imprudência de lhe assinalar, cada graça que nela descobria, porque sabia que dali a instantes iriam enriquecer de novos instrumentos o seu suplício."5 A contradi­ção do amor consiste nisto: os meios de que dispomos para preservar-nos do ciúme são os mesmos que desenvolvem esse ciúme, dando-lhe uma espécie de autonomia, de independên­cia, com relação ao nosso amor.
           A primeira lei do amor é subjetiva: subjetivamente o ciúme é mais profundo do que o amor; ele contém a verdade do amor. O ciúme vai mais longe na apreensão e na interpretação dos signos. Ele é a destinação do amor, sua finalidade. De fato, é inevitável que os signos de um ser amado, desde que os "expli­quemos", revelem-se mentirosos: dirigidos a nós, aplicados a nós, eles exprimem, entretanto, mundos que nos excluem e que o amado não quer, não pode nos revelar. Não em virtude de má vontade particular do amado, mas em razão de uma contradi­ção mais profunda, que provém da natureza do amor e da si-
5. CS 232·233.



9
tuação geral do ser amado. Os signos amorosos não são como os signos mundanos: não são signos vazios, que substituem o pensamento e a ação; são signos mentiroros que não podem dirigir-se a nós senão escondendo o que exprimem, isto é, a ori­gem dos mundos desconhecidos, das ações e dos pensamentos desconhecidos que lhes dão sentido. Eles não suscitam uma exaltação nervosa superficial, mas o sofrimento de um aprofun­damento. As mentiras do amado são os hieróglifos do amor. O intérprete dos signos amorosos é necessariamente um intérpre­te de mentiras. O seu destino está contido no lema "Amar sem ser amado".
Que esconde a mentira dos signos amorosos? Todos os sig­nos mentirosos emitidos por uma mulher amada convergem para um mesmo mundo secreto: o mundo de Gomorra, que também não depende desta ou daquela mulher (embora deter­minada mulher possa encarná-lo melhor do que outra), mas é a possibilidade feminina por excelência, como um a priori que o ciúme descobre. O mundo expresso pela mulher amada é sem­pre um mundo que nos exclui, mesmo quando ela nos dá mos­tras de preferência. Mas, de todos os mundos, qual o mais exclusivo? "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabava de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, no entanto, esse dilúvio da realidade que nos submer­ge, se é enorme a par de nossas tímidas e ínfimas suposições, era por elas pressentido (...) o rival não era semelhante a mim, suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, proporcionar a Albertina os mesmos prazeres, nem mesmo con­cebê-los de modo exato."6 Nós interpretamos todos os signos da mulher amada, mas no final dessa dolorosa decifração nos de­paramos com o signo de Gomorra como a expressão mais pro­funda de uma realidade feminina original.
6. SG 405-409.




10
A segunda lei do amor proustiano se liga à primeira: objeti­vamente os amores intersexuais são menos profundos que a ho­mossexualidade, encontram sua verdade na homossexualidade. Pois, se é verdade que o segredo da mulher amada é o segredo de Gomorra, o segredo do amante é o de Sodoma. Em circunstân­cias análogas, o herói da Recherche surpreende a Srta. Vinteuil e surpreende Charlus.7 Mas a Srta. Vinteuil explica todas as mu­lheres amadas, como Charlus implica todos os amantes. No infinito de nossos amores está o hermafrodita original. Mas o hermafrodita não é um ser capaz de fecundar-se. Ao invés de reunir os sexos, ele os separa; é a fonte de onde jorram conti­nuamente as duas séries homossexuais divergentes, a de Sodo­ma e a de Gomorra. É ele que possui a chave da predição de Sansão: "Os dois sexos morrerão cada um para seu lado."8 Assim, os amores intersexuais são apenas a aparência que enco­bre a destinação de cada um, escondendo o fundo maldito onde tudo se elabora. Se as duas séries homossexuais são o mais pro­fundo, é também em função dos signos. As personagens de So­doma e de Gomorra compensam, pela intensidade do signo, o segredo a que estão ligadas. De uma mulher que olha Albertina, Proust escreve: "Dir-se-ia fazer-lhe sinais como com o auxílio de um farol."9 O mundo do amor vai dos signos reveladores da mentira aos signos ocultos de Sodoma e Gomorra.
*
O terceiro mundo é o das impressões ou das qualidades sen­síveis. Uma qualidade sensível nos proporciona uma estranha alegria, ao mesmo tempo que nos transmite uma espécie de im­perativo. Uma vez experimentada, a qualidade não aparece mais como uma propriedade do objeto que a possui no momen-
7.SG 8.
8.SG 14.
9.SG 200.


11
to, mas como o signo de um objeto completamente diferente, que devemos tentar decifrar através de um esforço sempre sujeito a fracasso. Tudo se passa como se a qualidade envolvesse, manti­vesse aprisionada, a alma de um objeto diferente daquele que ela agora designa. Nós "desenvolvemos" esta qualidade, esta impressão sensível, como um pedacinho de papel japonês que se abre na água e liberta a forma aprisionada.10 Exemplos como esse são os mais célebres da Recherche e aumentam no final (a revelação final do "tempo redescoberto" é anunciada pela mul­tiplicação desses signos). Mas, quaisquer que sejam os exemplos  – madeleine, campanários, árvores, pedras do calçamento, guar­danapo, barulho de colher ou do cano d'água –, trata-se sempre do mesmo desenvolvimento. No princípio, uma intensa alegria, de tal modo que estes signos já se distinguem dos precedentes por seu efeito imediato. Depois, uma espécie de sentimento de obrigação, necessidade de um trabalho do pensamento: procu­rar o sentimento do signo (acontece, entretanto, que nós nos furtamos a esse imperativo, por preguiça ou porque nossas buscas fracassam por impotência ou azar: como acontece no caso das árvores). Finalmente, o sentido do signo aparece, revelan­do-nos o objeto oculto – Combray para a madeleine, as jovens para os campanários, Veneza para as pedras do calçamento...
É duvidoso que o esforço de interpretação termine aí. Falta ainda explicar a razão pela qual, através da solicitação da madeleine, Combray não se contenta de ressurgir tal como esteve pre­sente (simples associação de idéias), mas aparece sob uma forma jamais vivida, na sua "essência", na sua eternidade. Ou, o que vem dar no mesmo, resta explicar por que sentimos uma alegria tão intensa e tão particular. Em um texto importante, Proust cita a madeleine como um fracasso: "... de cujos (sic!) causas profundas adiara até então a busca."11
10.CS 47.
11.TR 121.


12
Entretanto, a madeleine, de determinado ponto de vista, aparece como um verdadeiro sucesso: o intérprete encontra seu sentido, não sem esforço, na lembrança inconsciente de Com­bray. As três árvores, pelo contrário, são um fracasso total, pois seu sentido nunca é elucidado. Deve-se portanto pensar que, ao escolher a madeleine como exemplo de insuficiência, Proust visa a uma nova etapa da interpretação, uma etapa final.
As qualidades sensíveis ou as impressões, mesmo bem inter­pretadas, não são ainda em si mesmas signos suficientes. Não são mais signos vazios, provocando-nos uma exaltação artificial, como os signos mundanos. Também não são signos enganadores que nos fazem sofrer, como os do amor, cujo verdadeiro sentido nos provoca um sofrimento cada vez maior. São signos verídicos, que imediatamente nos dão uma sensação de alegria incomum, signos plenos, afirmativos e alegres. São signos materiais. Não sim­plesmente por sua origem sensível. Seu sentido tal como é desen­volvido significa Combray, as jovens, Veneza ou Balbec. Não é apenas sua origem, mas sua explicação, seu desenvolvimento, que permanece material.12 Sentimos perfeitamente que Balbec, Veneza... não surgem como produto de uma associação de idéias, mas em pessoa e em essência. Todavia, não estamos ainda em es­tado de poder compreender o que é essa essência ideal, nem por que sentimos tanta alegria. "O gosto da madeleine lembrava-me Combray. Mas, por que me tinham, num como noutro momento, comunicado as imagens de Combray e de Veneza uma alegria se­melhante à da certeza e suficiente para, sem mais provas, tor­nar-me indiferente a idéia da morte?"13
*
No final da Recherche, o intérprete compreende o que lhe escapara no caso da madeleine ou dos campanários: o sentido
12.P 321.
13. TR 121.

13
material não é nada sem uma essência ideal que ele encarna. O erro é acreditar que os hieróglifos representam "apenas objetos materiais".14 O que permite agora ao intérprete ir mais além é que, nesse meio-tempo, o problema da Arte foi colocado e re­solvido. Ora, o mundo da Arte é o último mundo dos signos; e esses signos, como que desmaterializados, encontram seu sentido numa essência ideal. Desde então, o mundo revelado da Arte reage sobre todos os outros, principalmente sobre os signos sen­síveis; ele os integra, dá-lhes o colorido de um sentido estético e penetra no que eles tinham ainda de opaco. Compreendemos então que os signos sensíveis remetiam a uma essência ideal que se encarnava no seu sentido material. Mas sem a Arte nun­ca poderíamos compreendê-los, nem ultrapassar o nível de interpretação que correspondia à análise da madeleine. É por esta razão que todos os signos convergem para a arte; todos os aprendizados, pelas mais diversas vias, são aprendizados incons­cientes da própria arte. No nível mais profundo, o essencial está nos signos da arte.
Ainda não os definimos. Esperamos apenas que concordem que o problema de Proust é o dos signos em geral e que os signos constituem diferentes mundos: signos mundamos vazios, signos mentirosos do amor, signos sensíveis materiais e, finalmente, signos essenciais da arte (que transformam todos os outros).
14. TR 129.











14

Capítulo II
Signo e Verdade

Na realidade, a Recherche du temps perdu é uma busca da verdade. Se ela se chama busca do tempo perdido é apenas por­que a verdade tem uma relação essencial com o tempo. Tanto no amor como na natureza ou na arte, não se trata de prazer, mas de verdade.1 Ou melhor, só usufruímos os prazeres e as ale­grias que correspondem à descoberta da verdade. O ciumento sente uma pequena alegria quando consegue decifrar uma men­tira do amado, como um intérprete que consegue traduzir um trecho complicado, mesmo quando a tradução lhe revela um fato pessoalmente desagradável e doloroso.2 É preciso então compreender como Proust define sua própria busca da verdade, como a contrapõe a outras buscas, científicas ou filosóficas.
Quem procura a verdade? E o que está querendo dizer aquele que diz "eu quero a verdade"? Proust não acredita que o homem, nem mesmo um espírito suposmente puro, tenha na­turalmente um desejo do verdadeiro, uma vontade de verdade. Nós só procuramos a verdade quando estamos determinados a fazê-lo em função de uma situação concreta, quando sofremos uma espécie de violência que nos leva a essa busca. Quem pro­cura a verdade? O ciumento sob a pressão das mentiras do ama­do. Há sempre a violência de um signo que nos força a procurar,
1.RF 10.
2.CS 238.
15
que nos rouba a paz. A verdade não é descoberta por afinidade, nem com boa vontade, ela se trai por signos involuntários.3
O erro da filosofia é pressupor em nós uma boa vontade de pensar, um desejo, um amor natural pela verdade. A filosofia atinge apenas verdades abstratas que não comprometem, nem perturbam. "As idéias formadas pela inteligência pura só pos­suindo uma verdade lógica, uma verdade possível, sua seleção torna-se arbitrária."4 Elas são gratuitas porque nascidas da inte­ligência, que somente lhes confere uma possibilidade, e não de um encontro ou de uma violência, que lhes garantiria a autenti­cidade. As idéias da inteligência só valem por sua significação explícita, portanto convencional. Um dos temas em que Proust mais insiste é este: a verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pen­samento. As significações explícitas e convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece en­coberto e implícito num signo exterior.
À idéia filosófica de "método" Proust opõe a dupla idéia de "coação" e "acaso". A verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e a procurar o que é verda­deiro. O acaso dos encontros, a pressão das coações são os dois temas fundamentais de Proust. Pois é precisamente o signo que é objeto de um encontro e é ele que exerce sobre nós a violên­cia. O acaso do encontro é que garante a necessidade daquilo que é pensado. Fortuito e inevitável, como diz Proust. "E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pe­dras em que tropeçara no pátio."5 O que quer aquele que diz "eu quero a verdade"? Ele só a quer coagido e forçado. Só a quer sob o império de um encontro, em relação a determinado signo. Ele quer interpretar, decifrar, traduzir, encontrar o sentido do signo.
3.CG 46.
4.TR 130.
5.TR 130.  

16
"Cumpria-me pois buscar o sentido, encoberto pelo hábito, dos menores signos que me rodeavam, Guermantes, Albertina, Gil­berta, Saint-Loup, Balbec etc."6
Procurar a verdade é interpretar, decifrar, explicar, mas esta "explicação" se confunde com o desenvolvimento do signo em si mesmo; por isso a Recherche é sempre temporal e a verdade sempre uma verdade do tempo. A sistematização final evoca o fato de que o próprio Tempo é plural. Daí a grande distinção en­tre o Tempo perdido e o Tempo redescoberto: há verdades do tempo perdido e verdades do tempo redescoberto. É importante distinguir quatro estruturas do tempo, cada qual contendo sua verdade. O tempo perdido não é apenas o tempo que passa, al­terando os seres e anulando o que passou; é também o tempo que se perde (por que, ao invés de trabalharmos e sermos artis­tas, perdemos tempo na vida mundana, nos amores?). E o tem­po redescoberto é, antes de tudo, um tempo que redescobrimos no âmago do tempo perdido e que nos revela a imagem da eter­nidade; mas é também um tempo original absoluto, verdadeira eternidade que se afirma na arte. Para cada espécie de signo há uma linha de tempo privilegiado que lhe corresponde, em que o pluralismo multiplica as combinações. Cada espécie de signo participa, de modo desigual, de várias linhas de tempo; uma mesma linha mistura desigualmente várias espécies de signos.
*
Há signos que nos obrigam a pensar no tempo perdido, isto é, na passagem do tempo, na anulação do que passou e na alte­ração dos seres. Rever pessoas que nos foram muito familiares é uma revelação, porque seus rostos, não sendo mais habituais para nós, trazem em estado puro os signos e os efeitos do tempo, que modificou determinados traços, alongando-os, tornando
6.TR 143.


17
outros flácidos ou vincados. O Tempo, para tornar-se visível, "vive à cata de corpos e, mal os encontra, logo deles se apodera, a fim de exibir a sua lanterna mágica".7 No final da Recherche surge um desfile de rostos no salão dos Guermantes; mas, se ti­véssemos tido o necessário aprendizado, teríamos sabido desde o início que os signos mundanos, em razão de sua vacuidade, deixavam transparecer alguma coisa de precário, ou então já se cristalizavam, se imobilizavam, para esconder sua alteração, pois a mundanidade é, a todo instante, alteração, mudança. "As modas mudam, visto elas mesmas nascerem da necessidade de mudança."8 No final da Recherche Proust mostra a profunda modificação da sociedãde, motivada não só pelo caso Dreyfus como pela guerra e, principalmente, pelo próprio Tempo. Ao invés de ver nisso o fim de um "mundo", ele compreende que o mundo que havia conhecido e amado era em si mesmo altera­ção e mudança, signo e efeito de um Tempo perdido (até mes­mo dos Guermantes nada permaneceu além do sobrenome). Proust não concebe absolutamente a mudança como uma dura­ção bergsoniana, mas como uma defecção, uma corrida para o túmulo.
Com mais razão, os signos do amor antecipam, de certo modo, sua alteração e sua anulação; são eles que implicam o tempo perdido no estado mais puro. O envelhecimento dos fre­qüentadores de salões não é nada comparado ao inacreditável e genial envelhecimenento de Charlus, que é simplesmente uma re­distribuição de suas almas múltiplas, já presentes no modo de olhar ou no tom de voz de Charlus ainda jovem. É por uma sim­ples razão que os signos do amor e do ciúme trazem consigo a própria destruição: o amor não pára de preparar seu próprio de­saparecimento, de figurar sua ruptura. Assim é no amor como na morte. Do mesmo modo que imaginamos estar ainda vivos
7.TR 162.
8.RF 3.


18
para ver a cara que farão aqueles que nos perderam, também imaginamos estar ainda suficientemente apaixonados para go­zar a tristeza daquele que não mais amamos. É bem verdade que repetimos nossos amores passados, mas também é verdade que nosso amor atual, em toda a sua vivacidade, "ensaia" o mo­mento da ruptura ou antecipa seu próprio fim. Esse é o sentido do que chamamos uma cena de ciúme. Nós encontramos essa repetição voltada para o futuro, esse ensaio do desfecho, no amor de Swann por Odette, no amor por Gilberta ou por Alber­tina. Diz Proust, a respeito de Saint-Loup: "Sofria de antemão. Sem esquecer uma só, todas as dores de uma ruptura que em outros momentos julgava poder evitar."9
É mais espantoso que os signos sensíveis, apesar de sua ple­nitude, possam também ser signos de alteração e de desapareci­mento. Entretanto, Proust cita um caso, o da botina e da lembrança da avó, que, em princípio, não difere da madeleine e das pedras do calçamento, mas nos faz sentir uma ausência do­lorosa e constitui o signo de um Tempo perdido para sempre, ao invés de nos dar a plenitude do Tempo que redescobrimos.10 Inclinado sobre sua botina, ele sente algo de divino; tem, entre­tanto, os olhos marejados de lágrimas, pois a memória involun­tária traz-lhe a lembrança desesperadora da avó morta. "Não era senão naquele instante, mais de um ano após o seu enterro, devido a esse anacronismo que tantas vezes impede o calendá­rio dos fatos de coincidir com o dos sentimentos – que eu acaba­va de saber que ela estava morta. (...) que a havia perdido para sempre." Por que a lembrança involuntária, ao invés de uma imagem da eternidade, nos traz o sentimento agudo da morte? Não basta invocar o caráter particular do exemplo em que res­surge um ser amado, nem a culpa que o herói sente em relação à avó. É no próprio signo sensível que devemos encontrar uma
9. CG 91.
10. SG 127-132.



19
ambivalência capaz de explicar por que às vezes ele se transfor­ma em dor em vez de prolongar-se em prazer.
A botina, tanto quanto a madeleine, provoca a intervenção da memória involuntária: uma sensação antiga tenta se super­por, se acoplar à sensação atual, e a estende sobre várias épocas ao mesmo tempo. Basta, entretanto, que a sensação atual opo­nha à antiga sua "materialidade" para que a alegria dessa super­posição dê lugar a um sentimento de fuga, de perda irreparável, em que a sensação antiga é repelida para o fundo do tempo per­dido. O fato de o herói sentir-se culpado dá apenas à sensação atual o poder de evitar que ela seja absorvida pela sensação an­tiga. Ele começa sentindo a mesma felicidade que no caso da madeleine, mas logo a felicidade é substituída pela certeza da morte e do nada. Há uma ambivalência que sempre perma­nece como uma possibilidade da memória em todos os signos em que ela intervém (daí a inferioridade desses signos). É que a própria Memória implica "a estranha contradição entre a sobre­vivência e o nada", "a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada".11 Mesmo na madeleine ou nas pedras do calçamento o nada aparece, desta vez encoberto pela superposição das duas sensações.
*
Ainda de uma outra maneira os signos mundanos, princi­palmente os signos mundanos, mas também os signos do amor e mesmo os signos sensíveis, são signos de um tempo "perdido": são os signos de um tempo que se perde. Pois não é muito sensato freqüentar a sociedade, apaixonar-se por mulheres medíocres, nem mesmo despender tantos esforços de imaginação diante de um pilriteiro, quando melhor seria conviver com pessoas pro­fundas, e, sobretudo, trabalhar. O herói da Recherche expressa
11. SG 130.



20
muitas vezes sua decepção, e a de seus pais, diante de sua impo­tência para trabalhar, para iniciar a obra literária que ele anun­cia.12
            A revelação final de que há verdades a serem descobertas nesse tempo que se perde é o resultado essencial do aprendizado. Um trabalho empreendido pelo esforço da vontade não é nada; em literatura ele só nos pode levar a essas verdades da in­teligência., às quais falta a marca da necessidade, e das quais se tem sempre a impressão de que elas "teriam podido" ser outras e ditas de forma diferente. Do mesmo modo, o que diz um homem profundo e inteligente vale por seu conteúdo manifesto, por sua significação explícita, objetiva e elaborada; tiraremos pouca coisa disso, apenas possibilidades abstratas, se não soubermos chegar a outras verdades por meio de outras vias, que são preci­samente as do signo. Ora, um ser medíocre ou mesmo estúpido, desde que o amemos, é mais rico em signos do que o espírito mais profundo, mais inteligente. Tanto mais uma mulher é inca­paz, limitada, mais ela compensa por meio de signos – que às vezes a traem e denunciam uma mentira – sua incapacidade de formular julgamentos inteligentes ou de ter um pensamento coerente. Proust assim se refere aos intelectuais: ''A mu­lher medíocre, que nos espantávamos ao ver preferida por eles, enriquece-lhes bem mais o universo do que o teria feito uma mulher inteligente."13 Existe uma embriaguez provocada pelas matérias e naturezas rudimentares por serem ricas em signos. Com a mulher amada medíocre nós voltamos às origens da hu­manidade, isto é, ao tempo em que os signos sobrepujavam o conteúdo explícito, e os hieróglifos substituíam as letras: essa mulher não nos "comunica" nada, mas não deixa de produzir signos que devem ser decifrados.
12.RF 121·122.
13.F 156.



21
Por isso, quando pensamos que perdemos nosso tempo, seja por esnobismo, seja por dissipação amorosa, estamos muitas ve­zes trilhando um aprendizado obscuro, até a revelação final de uma verdade desse tempo que se perde. Nunca se sabe como uma pessoa aprende; mas, de qualquer forma que aprenda, é sempre por intermédio de signos, perdendo tempo, e não pela assimilação de conteúdos objetivos. Quem sabe como um estu­dante pode tornar-se repentinamente "bom em latim", que sig­nos (amorosos ou até mesmo inconfessáveis) lhe serviriam de aprendizado? Nunca aprendemos alguma coisa nos dicionários que nossos professores e nossos pais nos emprestam. O signo implica em si a heterogeneidade como relação. Nunca se apren­de fazendo como alguém, mas fazendo com alguém, que não tem relação de semelhança com o que se aprende. Quem sabe como se tornar um grande escritor? Diz Proust, a propósito de Otávio: "Não me impressionei menos ao refletir que talvez as obras-­primas mais extraordinárias de nossa época tenham saído, não dos concursos universitários, de uma educação modelar e aca­dêmica, no estilo de Broglie, mas do contato com as 'pesagens' e com os grandes bares."14
Mas perder tempo não é o suficiente. Como vamos extrair as verdades do tempo que se perde, e mesmo as verdades do tempo perdido? Por que Proust chama essas verdades de "ver­dades da inteligência"? De fato, elas se opõem às verdades que a inteligência descobre quando trabalha de boa vontade, põe-se em ação e recusa-se a perder tempo. Vimos, sob esse ponto de vista, a limitação das verdades propriamente intelectuais: fal­ta-lhes "necessidade". Em arte ou em literatura, quando a inte­ligência intervém, é sempre depois, nunca antes: ''A impressão é para o escritor o mesmo que a experimentação é para o sábio,
14. F 148.




22
com a diferença de ser neste anterior e naquele posterior o tra­balho da inteligência."15 Em primeiro lugar, é preciso sentir o efeito violento de um signo, e que o pensamento seja como que forçado a procurar o sentido do signo. Em Proust, o pensamento geralmente aparece sob várias formas: memória, desejo, imagi­nação, inteligência, faculdade das essências... Mas, no caso do tempo que se perde e do tempo perdido, é a inteligência, e ape­nas ela, que é capaz de tornar possível o esforço do pensamento, ou de interpretar o signo; é ela que o encontra, contanto que venha "depois". Dentre todas as formas do pensamento, só a in­teligência extrai as verdades dessa ordem.
Os signos mundanos são frívolos, os do amor e do ciúme, dolorosos; mas quem procuraria a verdade se não tivesse apren­dido que um gesto, uma inflexão, uma saudação devem ser interpretados? Quem procuraria a verdade se não tivesse ini­cialmente experimentado o sofrimento que causa a mentira do ser amado? As idéias da inteligência são muitas vezes "sucedâ­neos" do desgosto.16 A dor força a inteligência a pesquisar, como certos prazeres insólitos põem a memória a funcionar. Cabe à inteligência compreender, e nos fazer compreender, que os signos mais frívolos da mundanidade correspondem a deter­minadas leis e que os signos dolorosos do amor correspondem a repetições. Assim, aprendemos a nos servir dos seres: frívolos ou cruéis, eles "posaram diante de nós", eles nada mais são do que a encarnação de temas que os ultrapassam, ou pedaços de uma divindade que nada mais pode contra nós. A descoberta das leis mundanas dá um sentido a signos que se tornariam in­significantes tomados isoladamente; mas, sobretudo, a com­preensão de nossas repetições amorosas transforma em alegria cada um desses signos que, tomados isoladamente, tanto sofri-
15.TR 130.
16.TR 150.



23
mento nos causaria. "Pois nem ao ser que mais amamos somos tão fiéis como a nós mesmos, e cedo ou tarde nós o esquecemos, a fim de poder – visto ser esse um de nossos traços de caráter ­continuar a amar."17 Um a um os seres que amamos nos fizeram sofrer; mas a cadeia interrompida que eles formam é um alegre espetáculo da inteligência. Graças à inteligência, descobrimos então o que não podíamos saber no início: que, quando pensá­vamos perder tempo, já fazíamos o aprendizado dos signos. Apercebemo-nos de que nossa vida preguiçosa se identificava com nossa obra: "toda minha vida... uma vocação."18
 Tempo que se perde, tempo perdido, mas também tempo que se redescobre.e tempo redescoberto. A cada espécie de sig­no corresponde, sem dúvida, uma linha de tempo privilegiada. Os signos mundanos implicam principalmente um tempo que se perde; os signos do amor envolvem particularmente o tempo perdido. Os signos sensíveis muitas vezes nos fazem redescobrir o tempo, restituindo-o no meio do tempo perdido. Finalmente, os signos da arte nos trazem um tempo redescoberto, tempo ori­ginal absoluto que compreende todos os outros. Mas, se cada signo tem sua dimensão temporal privilegiada, cada um tam­bém se cruza com as outras linhas e participa das outras dimen­sões do tempo. O tempo que se perde prolonga-se no amor e mesmo nos signos sensíveis; o tempo perdido já aparece na mundanidade e subsiste ainda nos signos da sensibilidade. O tempo que se redes cobre reage, por sua vez, sobre o tempo que se perde e sobre o tempo perdido. É no tempo absoluto da obra de arte que todas as outras dimensões se unem e encontram a verdade que lhes corresponde. Os mundos de signos, os círculos da Recherche, se desdobram, então, segundo linhas do tempo, verdadeiras linhas de aprendizado; mas, nessas linhas, eles inter-
17.TR 151.
TR 145.



24
ferem uns sobre os outros. Sem se cor­responderem ou simbolizarem, sem se entrecruzarem, sem entrarem em combinações complexas que constituem o sistema da verdade, os signos não se desenvolvem, não se explicam, pe­las linhas do tempo.



















25
Capítulo III
O Aprendizado

A obra de Proust não é voltada para o passado e as descober­tas da memória, mas para o futuro e os progressos do aprendiza­do. O importante é que o herói não sabe certas coisas no início, aprende-as progressivamente e tem a revelação final. Inevitavel­mente, ele sofre decepções: "acreditava", tinha ilusões; o mundo vacila na corrente do aprendizado. Mas ainda estamos dando ao desenvolvimento da Recherche um caráter linear. De fato, uma revelação parcial aparece em determinado campo de signos, mas é acompanhada às vezes de regressões em outros campos, mergu­lha numa decepção mais geral, pronta a reaparecer em outros campos, sempre frágil enquanto a revelação da arte ainda não sistematizou o conjunto. E, a cada instante, também pode acon­tecer que uma decepção particular faça surgir a preguiça e com­prometa o todo. Daí a idéia fundamental de que o tempo forma diversas séries e comporta mais dimensões do que o espaço: o que é ganho em uma não é ganho na outra. A Recherche é ritmada não apenas pelos depósitos ou sedimentos da memória, mas pelas séries de decepções descontínuas e pelos meios postos em prática para superá-las em cada série.
Ser sensível aos signos, considerar o mundo como coisa a ser decifrada é, sem dúvida, um dom. Mas esse dom correria o risco de permanecer oculto em nós mesmos se não tivéssemos os en­contros necessários; e esses encontros ficariam sem efeito se não conseguíssemos vencer certas crenças. A primeira dessas crenças





26
é atribuir ao objeto os signos de que é portador. Tudo nos leva a isso: a percepção, a paixão, a inteligência, o hábito e até mesmo o amor-próprio.1 Pensamos que o próprio "objeto" traz o segredo do signo que emite e sobre ele nos fixamos, dele nos ocupamos para decifrar o signo. Por comodismo, chamemos objetivismo essa tendência que nos é natural ou pelo menos habitual.
Cada uma de nossas impressões tem dois lados: "Envolta uma parte pelo objeto, prolongada em nós a outra, só de nós co­nhecida."2 Cada signo tem duas metades: designa um objeto e significa alguma coisa diferente. O lado objetivo é o lado do pra­zer, do gozo imediato e da prática: enveredando por este cami­nho, já sacrificamos o lado da "verdade". Reconhecemos as coisas sem jamais as conhecermos. Confundimos o significado do signo com o ser ou o objeto que ele designa. Passamos ao lar­go dos mais belos encontros, nos esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento dos encontros, preferi­mos a facilidade das recognições, e assim que experimentamos o prazer de uma impressão, como o esplendor de um signo, só sabemos dizer "ora, ora, ora", o que vem a dar no mesmo que "bravo! bravo! bravo!", expressões que manifestam nossa ho­menagem ao objeto.3
Tomado por um estranho sabor, o herói se inclina sobre a xí­cara de chá, bebe um segundo e um terceiro gole, como se o pró­prio objeto fosse revelar-lhe o segredo do signo. Impressionado com o nome de um lugar, com o nome de uma pessoa, ele pensa, de início, nas criaturas e nos lugares que esses nomes designam. Antes de conhecê-la, a Sra. de Guermantes lhe aparecia com a auréola do prestígio, porque devia possuir, acreditava ele, o segre­do de seu nome. Imaginava-a "banhada, como em um poente, na luz alaranjada que emana desta sílaba – antes".4 E quando a viu:
1.TR 142.
2. TR 139.
3. CS 135-136 e TR 139.
4. CS 148.
27
"Dizia comigo que era mesmo ela que designava para todo o mun­do o nome de Duquesa de Guermantes; a vida inconcebível que este nome significava, continha-a realmente aquele corpo."5 O mundo lhe parece misterioso antes de freqüentá-lo: ele acredita que os que emitem signos são também os que os compreendem e deles detêm o código. Em seus primeiros amores, ele faz o "objeto" se beneficiar de tudo o que ele próprio sente: o que lhe parece único em determinada pessoa parece-lhe também pertencer a essa pessoa. Tanto que os primeiros amores são orientados para a confissão, que é justamente a forma amorosa de homenagem ao objeto (devolver ao amado o que se acredita lhe pertencer). "Mas no tempo em que eu amava Gilberta, julgava ainda que o Amor existia realmente fora de nós... ; parecia-me que se eu, por conta própria, houvesse substituído a doçura da confissão pelo dissímulo da indiferença, ter-me-ia privado de uma das alegrias com que mais sonhara e também fabricado, à minha guisa, um amor fictício e sem valor."6 Enfim, a própria arte parece ter seu segredo nos objetos a descrever, nas coisas a designar, nas perso­nagens ou nos lugares a observar; e se o herói muitas vezes duvi­da de suas capacidades artísticas é porque se sente impotente para observar, para escutar e para ver.
O "objetivismo" não poupa nenhuma espécie de signo. Ele não resulta de uma tendência única, mas da reunião de um complexo de tendências. Relacionar um signo ao objeto que o emite, atribuir ao objeto o benefício do signo, é de início a dire­ção natural da percepção ou da representação. Mas é também a direção da memória voluntária, que se lembra das coisas e não dos signos. É, ainda, a direção do prazer e da atividade prática, que se baseiam na posse das coisas ou na consumação dos obje­tos. E, de outra forma, é a tendência da inteligência. A inteligên­cia deseja a objetividade, como a percepção o objeto. Anseia por
5. CG 158.
6. CS 331.


28
conteúdos objetivos, significações objetivas explícitas, que ela própria será capaz de descobrir, de receber ou de comunicar. É, pois, tão objetivista quanto a percepção. Ao mesmo tempo que a percepção se dedica a apreender o objeto sensível, a inteligên­cia se dedica a apreender as significações objetivas. Pois a per­cepção acredita que a realidade deva ser vista, observada, mas a inteligência acredita que a verdade deva ser dita e formulada. O que o herói da Recherche não sabe no início da aprendizagem? Não sabe "que a verdade não tem necessidade de ser dita para ser manifestada, e que podemos talvez colhê-la mais seguramente sem esperar pelas palavras e até mesmo sem levá-las em conta, em mil signos exteriores, mesmo em certos fenômenos invisíveis, análogos no mundo dos caracteres ao que são, na na­tureza física, as mudanças atmosféricas". 7
Diversos são também as coisas, os empreendimentos e os valores aos quais tende a inteligência. Ela nos induz à conversa­ção, em que trocamos e comunicamos idéias; ela nos incita à amizade, fundada na comunidade de idéias e sentimentos; ela nos convida ao trabalho, pelo qual chegaremos a descobrir no­vas verdades comunicáveis; à filosofia, isto é, a um exercício vo­luntário e premeditado do pensamento pelo qual chegaremos a determinar a ordem e o conteúdo das significações objetivas. Devemos reter este ponto essencial: a amizade e a filosofia são passíveis da mesma crítica. Segundo Proust, os amigos são como espíritos de boa vontade que estão explicitamente de acordo so­bre a significação das coisas, das palavras e das idéias; mas o filó­sofo também é um pensador que pressupõe em si mesmo a boa vontade de pensar, que atribui ao pensamento o amor natural do verdadeiro e à verdade a determinação explícita daquilo que é naturalmente pensado. Por esta razão, ao duo tradicional da amizade e da filosofia Proust oporá um duo mais obscuro forma-
7.CG 46: "Mas Francisca foi quem primeiro me deu o exemplo (que só mais tarde eu devia compreender. .. )."



29
do pelo amor e a arte. Um amor medíocre vale mais do que uma grande amizade: porque o amor é rico em signos e se nutre de interpretação silenciosa. Uma obra de arte vale mais do que uma obra filosófica, porque o que está envolvido no signo é mais profundo que todas as significações explícitas; o que nos violen­ta é mais rico do que todos os frutos de nossa boa vontade ou de nosso trabalho aplicado; e mais importante do que o pensamento é "aquilo que faz pensar".8 Sob todas as formas, a inteligência só alcança por si própria, e só nos faz atingir, as verdades abstra­tas e convencionais, que não têm outro valor além do possível. De que valem essas verdades objetivas que resultam de uma combinação de trabalho, inteligência e boa vontade, mas que se comunicam na medida em que são encontradas e são encontra­das na medida em que são recebidas? Sobre uma entonação da Berma disse Proust: "Mas era por causa de sua própria clareza que não o satisfazia. Tão engenhosa era a entonação, de um sig­nificado e intenção tão definidos, que parecia ter existência própria e que qualquer artista inteligente a poderia adquirir."9 \
No início, o herói da Recherche participa, mais ou menos, de todas as crenças objetivistas. Mas que ele participe menos da ilusão em determinado campo de signos, ou que dela se desfaça rapidamente em determinado nível, isso não impede que a ilu­são permaneça em outro nível, em outro campo. Desse modo, não parece que o herói tenha tido algum dia um grande sentido da amizade: esta sempre lhe pareceu secundária e o amigo valer mais pelo espetáculo que oferece do que por uma comunhão de idéias ou de sentimentos que inspiraria. Os "homens superio­res" nada lhe ensinam; o próprio Bergotte ou Elstir não lhe po­dem comunicar nenhuma verdade que lhe evite fazer seu próprio aprendizado e passar pelos signos e pelas decepções para os quais ele se inclina. Rapidamente pressente que um es-
8.CG 11l.
9.RF 111.


30
pírito superior ou mesmo um grande amigo não valem um amor, mesmo passageiro. Entretanto, no amor lhe é muito mais difícil se desfazer da ilusão objetivista correspondente: é o amor cole­tivo pelas jovens em Balbec, é a lenta individualização de Albertina, são os acasos da escolha que lhe ensinam que as razões de amar nunca se encontram naquele que se ama, mas remetem a fantasmas, a Terceiros, a Temas que nele se incorporam por intermédio de complexas leis. Ao mesmo tempo, ele aprende que a confissão não é o essencial do amor e que não é necessário, nem desejável, confessar: estaremos perdidos, toda a nossa liberdade estará perdida, se enriquecermos o objeto com signos e com significações que o ultrapassam. "Desde o tempo dos brinquedos nos Campos Elíseos, se as criaturas a que se prendia sucessivamente meu amor permaneciam quase idênti­cas, tornara-se diferente a minha concepção do amor. De uma parte, a confissão, a declaração de meu afeto àquela que eu amava, não mais me parecia uma das cenas necessárias e capi­tais do amor, nem este uma realidade exterior... "10
Como é difícil, em qualquer campo, renunciar a essa crença em uma realidade exterior! Os signos sensíveis nos preparam uma armadilha e nos induzem a procurar seu sentido no objeto que os contém ou os emite, de tal maneira que a possibilidade de um fracasso, a renúncia da interpretação, é como o cupim na madeira. Mesmo quando vencemos as ilusões objetivistas na maior parte dos campos, elas subsistem ainda na Arte, em que continuamos a crer que é preciso saber escutar, olhar, descrever, dirigir-se ao objeto, decompondo-o e triturando-o para dele ex­trair uma verdade.
O herói da Recherche, entretanto, conhece muito bem os defeitos de uma literatura objetivista e insiste, muitas vezes, em sua impotência para observar, para descrever. São célebres os
10. RF 398.



31
ódios de Proust: contra Sainte-Beuve, para quem a descoberta da verdade não se separa de uma "conversa", de um método de colóquio, pelo qual se pretende extrair a verdade dos dados mais arbitrários, a começar pelas confidências daqueles que pretendem ter conhecido bem alguém; contra os Goncourt, que decompõem um personagem ou um objeto, examinam-no, analisam sua arquitetura, refazem suas linhas e projeções para delas tirar verdades exóticas (os Goncourt também acredita­vam no prestígio da conversação); contra a arte realista ou po­pular que acredita nos valores inteligíveis, nas significações bem definidas e nos grandes temas. É preciso julgar os métodos pelos seus resultados: por exemplo, as coisas lastimáveis que Sainte-Beuve escreveu sobre Balzac, Stendhal ou Baudelaire. O que podem os Goncourt entender a respeito do casal Verdurin ou de Cottard? Nada, se nos ativermos ao pastiche da Recherche. Eles relatam e analisam o que foi expressamente dito, mas passam ao largo dos signos mais evidentes, signo da burrice de Cottard, mímica e símbolos grotescos da Sra. Verdurin. A arte popular e proletária se caracteriza por considerar os operários uns imbecis. É decepcionante, por natureza, uma literatura que interpreta os signos relacionando-os com objetos designáveis (observação e descrição), que se cerca de garantias pseudo-­objetivas do testemunho e da comunicação (conversa, pesqui­sa), que confunde o sentido com significações inteligíveis, ex­plícitas e formuladas (grandes temas).11
O herói da Recherche sempre se sentiu estranho a essa con­cepção da arte e da literatura. Por que, então, experimenta uma decepção tão forte cada vez que verifica sua inanidade? É que,
11.TR 143. Devemos evitar o julgamento de que a crítica proustiana do objetivismo . possa se aplicar ao que chamamos hoje nouveau romano Os métodos de descrição do objeto, no nouveau roman, só têm sentido em relação com as modificações subjetivas que eles servem para revelar e que sem eles permaneceriam impercep­tíveis. O nOLl\!eaU roman permanece sob o signo dos hieróglifos e das verdades im­plicadas.


32
pelo menos, a arte encontrava nessa concepção uma destinação precisa: ela abraçava a vida para exaltá-Ia, para dela extrair o valor e a verdade. Quando protestamos contra uma arte de ob­servação e de descrição, quem diz que não é nossa incapacidade de observar, de descrever, que alimenta esse protesto? Nossa in­capacidade de compreender a vida? Acreditamos estar reagin­do a uma forma ilusória de arte, mas estamos talvez reagindo a uma fraqueza de nossa natureza, a uma falta de querer-viver. Tanto que nossa decepção não é simplesmente a que é provoca­da pela literatura objetiva, mas também a que é suscitada pela incapacidade de nos realizarmos nessa forma de literatura.12 Apesar de sua repugnância, o herói da Recherche não pode, en­tretanto, deixar de sonhar com os dons de observação que lhe poderiam suprir as intermitências da inspiração. "Ao dar-me, porém, a esperança de uma possível observação humana, subs­tituir a inspiração impossível, eu a sabia apenas um consolo... "13 A decepção com a literatura é inseparavelmente dupla: "A lite­ratura não me daria mais a menor alegria, não sei se por culpa minha, de minha incapacidade, ou sua, se de fato era menos carregada de realismo do que eu supusera."14
A decepção é um momento fundamental da busca ou do aprendizado: em cada campo de signos ficamos decepcionados quando o objeto não nos revela o segredo que esperávamos. E a decepção é pluralista, variável segundo cada linha. Poucas são as coisas não decepcionantes à primeira vez que as vemos, por­que a primeira vez é a vez da inexperiência, ainda não somos ca­pazes de distinguir o signo e o objeto: o objeto se interpõe e confunde os signos. Decepção na primeira audição de Vinteuil, no primeiro encontro com Bergotte, na primeira visão da igreja de Balbec. Não basta voltar às coisas uma segunda vez, porque a
12.TR 18-20.
13.TR 112.
14.TR 120.


33
memória voluntária e esse próprio retorno apresentam incon­venientes análogos aos que nos impediam, na primeira vez, de experimentar livremente os signos (a segunda estada em Balbec não foi menos decepcionante que a primeira, sob outros aspectos) .
Como, em cada caso, remediar a decepção? Em cada linha de aprendizado, o herói passa por uma experiência análoga, em momentos diversos: ele se esforça para encontrar uma compensa­ção subjetiva à decepção com relação ao objeto. Quando vê, e mais tarde vem a conhecer, a Sra. de Guermantes, ele percebe que ela não detém o segredo do sentido de seu sobrenome. Seu rosto e seu corpo não são coloridos pela tinta das sílabas. Que fazer senão compensar a decepção? Tornar-se pessoalmente sensível a signos menos profundos, porém mais apropriados ao charme da duquesa, graças ao jogo de associações de idéias que ela nos desperta. "Que a Sra. de Guermantes fosse igual às outras mu­lheres, e isso tenha sido uma decepção para mim no princípio, agora, por reação, e com o auxílio, de vinhos tão bons, era quase um maravilhamento."15
O mecanismo da decepção objetiva e da compensação sub­jetiva é particularmente analisado no exemplo do teatro. O he­rói deseja ouvir a Berma. Mas, quando o consegue, procura inicialmente reconhecer o seu talento, delineá-lo, isolá-lo para poder, enfim, designá-la. É a Berma, "finalmente eu ouço a Ber­ma". Ele percebe uma entonação particularmente inteligente, de admirável justeza. De repente, é Fedra, é Fedra em pessoa. Entretanto, nada impede a decepção, pois essa entonação tem apenas valor inteligível, um sentido perfeitamente definido; ela é somente o fruto da inteligência e do trabalho.16 Talvez fosse necessário ouvi-la de outro modo. Os signos que não soubemos apreciar nem interpretar enquanto os relacionávamos à pessoa
15.CG 408.
16.RF 111.


34
da Berma, talvez devêssemos procurar seu sentido em outro lu­gar: nas associações que não estão nem em Fedra, nem na Ber­ma. Por isso Bergotte explica ao herói que determinado gesto da Berma evoca o de uma estatueta antiga que a atriz nunca viu e na qual, certamente, Racine nunca pensou.17
Cada linha de aprendizado passa por esses dois momentos: a decepção provocada por uma tentativa de interpretação objetiva e a tentativa de remediar essa decepção por uma interpretação subjetiva, em que reconstruímos conjuntos associativos. O que acontece no amor, acontece também na arte. É fácil compreen­der a razão: o signo é sem dúvida mais profundo que o objeto que o emite, mas ainda se liga a esse objeto, ainda está semi-enco­berto. O sentido do signo é sem dúvida mais profundo do que o sujeito que o interpreta, mas se liga a esse sujeito, se encarna pela metade em uma série de associações subjetivas. Passamos de um ao outro, saltamos de um para o outro, preenchemos a decepção do objeto com uma compensação do sujeito.
Somos, então, capazes de pressentir que o momento da compensação continua sendo insuficiente e não nos dá uma re­velação definitiva. Substituímos por um jogo subjetivo de asso­ciação de idéias os valores inteligíveis objetivos. A insuficiência dessa compensação aparece melhor quanto mais subimos na es­cala dos signos. Um gesto da Berma seria belo porque evocaria o de uma estatueta, como a música de Vinteuil seria bela porque nos evocaria um passeio no bois de Boulogne.18 Tudo é permitido no exercício das associações e, sob esse ponto de vista, não en­contramos diferença de natureza entre o prazer da arte e o da madeleine: sempre o cortejo das contigüidades passadas. Mesmo a experiência da madeleine não se reduz, na verdade, a simples associação de idéias; mas não estamos ainda prontos para en­tender o porquê; e reduzindo a qualidade de uma obra de arte
17.RF 105.
18.RF 83.


35
ao sabor da madeleine nos privamos para sempre do meio de en­tendê-la. Ao invés de nos conduzir a uma justa interpretação da arte, a compensação subjetiva acaba por fazer da própria obra de arte um simples elo na cadeia de nossas associações de idéias: como a mania de Swann, que nunca tinha apreciado tanto Giotto ou Botticelli quanto quando descobre seus estilos no tra­çado do rosto de uma cozinheira ou de uma mulher amada. Ou, então, construímos um museu particular onde o sabor de uma madeleine, a característica de uma corrente de ar valem mais do que qualquer beleza: "Pois ficava frio diante das belezas que me assinalavam e exaltava-me com reminiscências confusas (...) detive-me com êxtase a respirar o cheiro de um vento que pas­sava pela porta. 'Vejo que você gosta das correntes de ar' – dis­seram eles."19
*
Entretanto, o que existe além do objeto e do sujeito? O exemplo da Berma nos dá a resposta. O herói da Recherche com­preenderá finalmente que nem a Berma nem Fedra são pessoas designáveis, nem tampouco elementos de associação. Fedra é um papel a ser representado e a Berma se integra nesse papel. Não no sentido em que o papel seja ainda um objeto, ou algo subjetivo; muito pelo contrário, é um mundo, um meio espiri­tual povoado de essências. A Berma, portadora de signos, tor­na-os de tal modo imateriais que eles se abrem inteiramente para essas essências e são a tal ponto preenchidos por elas que, mesmo através de um papel medíocre, seus gestos ainda nos re­velam um mundo de essências possíveis.20
Além dos objetos designados, além das verdades inteligí­veis e formuladas, além das cadeias de associação subjetivas e
19.SG 272.
20.CG 31-34.


36
de ressurreições por semelhança ou contigüidade, há as es­sências, que são alógicas ou supralógicas. Elas ultrapassam tanto os estados da subjetividade quanto as propriedades do ob­jeto. É a essência que constitui a verdadeira unidade do signo e do sentido; é ela que constitui o signo como irredutível ao obje­to que o emite; é ela que constitui o sentido como irredutível ao sujeito que o apreende. Ela é a última palavra do aprendizado ou a revelação final. Ora, mais do que pela Berma, é pela obra de arte, pela pintura e pela música, e sobretudo pelo problema da literatura, que o herói da Recherche atinge essa revelação das essências. Os signos mundanos, os signos amorosos e mesmo os signos sensíveis são incapazes de nos revelar a essência: eles nos aproximam dela, mas nós sempre caímos na armadilha do obje­to, nas malhas da subjetividade. É apenas no nível da arte que as essências são reveladas. Mas, uma vez manifestadas na obra de arte, elas reagem sobre todos os outros campos: aprendemos que elas se haviam encarnado, já estavam em todas as es­pécies de signos, em todos os tipos de aprendizado.









37
Capítulo IV
Os Signos da Arte e a Essência
Qual é a superioridade dos signos da Arte com relação a to­dos os outros? É que todos os outros são signos materiais. São materiais, em primeiro lugar, por causa de sua emissão: eles sur­gem parcialmente encobertos no objeto que os porta. As quali­dades sensíveis, os rostos amados, são ainda matéria. (Não é por acaso que as qualidades sensíveis significativas são principal­mente os odores e os sabores – dentre todas as qualidades, as mais materiais – e que, no rosto amado, são as faces e a textura da pele que mais nos atraem.) Os signos da arte são os únicos ima­teriais. É óbvio que a pequena frase de Vinteuil brota do piano e do violino, podendo, logicamente, ser decomposta material­mente: cinco notas muito unidas, e duas se repetindo. Como em Platão, em que 3 + 2 nada explica. O piano aparece apenas como a imagem espacial de um teclado de natureza diferente, as notas surgindo como a "aparência sonora" de uma entidade es­piritual. "Como se os intrumentistas estivessem, mais que to­cando a frase, executando os ritmos por ela exigidos para aparecer... "1 Desse ponto de vista, a própria impressão da pe­quena frase musical é sine materia.2
A Berma, por sua vez, serve-se de sua voz, de seus braços, mas os gestos, em vez de testemunharem "conexidades muscu-
1.CS 289.
2.CS 178.




38
lares", constituem um corpo transparente que refrata uma es­sência, uma Idéia. As atrizes medíocres têm necessidade de chorar para indicar que seu papel comporta a dor: "Excedente de lágrimas que se via correr, porque não tinham podido embe­ber-se na voz marmórea de Arícia ou de Ismênia." Mas todas as expressões da Berma, como num grande violinista, tornaram-se qualidades de timbre. Em sua voz "já não subsistia um só dejec­to de matéria inerte e refratária ao espírito".3
Os outros signos são materiais, não apenas por sua origem e pela maneira como permanecem semi-encobertos no objeto, mas também por seu desenvolvimento ou sua "explicação". A madeleine nos remete a Combray, o calçamento, a Veneza... Sem dúvida, as duas impressões, a presente e a passada, têm uma mesma qualidade; mas não deixam de ser materialmente duas. De tal modo que, cada vez que intervém a memória, a explica­ção dos signos comporta ainda alguma coisa de material.4 Os campanários de Martinville, na ordem dos signos sensíveis, são um exemplo menos "material" porque apelam para o desejo e a imaginação e não para a memória.5 Contudo, a impressão dos campanários se explica pela imagem de três jovens; mas por se­rem filhas de nossa imaginação elas não deixam de ser material­mente diferentes dos campanários.
Proust se refere muitas vezes à necessidade que pesa sobre ele: sempre alguma coisa lhe lembra ou lhe faz imaginar outra. Mas, qualquer que seja a importância desse processo de analo­gia na arte, ele não é sua fórmula mais· profunda. Enquanto descobrirmos o sentido de um signo em outra coisa, ainda sub­sistirá um pouco de matéria rebelde ao espírito. Ao contrário, a Arte nos dá a verdadeira unidade: unidade de um signo ima­terial e de um sentido inteiramente espiritual. A essência é exa-
3. CG 31.
4.P321.
5. lbid.
39
tamente essa unidade do signo e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte. Essências ou idéias são o que revela cada signo da pequena frase de Vinteuil;6 é o que dá à frase sua existência real, independentemente dos instrumentos e dos sons que a re­produzem ou a encarnam mais do que a compõem. Nisto con­siste a superioridade da arte sobre a vida: todos os signos que encontramos na vida ainda são signos materiais e seu sentido, estando sempre em outra coisa, não é inteiramente espiritual.
*
O que é uma essência, tal como é revelada na obra de arte? É uma diferença, a Diferença última e absoluta. É ela que cons­titui o ser, que nos faz concebê-lo. Porque só a arte, no que diz respeito à manifestação das essências, é capaz de nos dar o que procurávamos em vão na vida: "A diversidade que em vão pro­curara na vida, nas viagens... "? "Não existindo na superfície da Terra, entre todos os países que nossa percepção uniformiza, o mundo das diferenças, com mais forte razão não existe também no mundo elegante. Existirá, aliás, em algum lugar? O septeto de Vinteuil parecera dizer-me que sim."8
Mas o que é uma diferença última absoluta? Não é uma di­ferença empírica, sempre extrínseca, entre duas coisas ou dois objetos. Proust nos dá uma primeira aproximação da essência quando diz que ela é alguma coisa em um sujeito, como a pre­sença de uma qualidade última no âmago de um sujeito: dife­rença interna, "diferença qualitativa decorrente da maneira pela qual encaramos o mundo, diferença que, sem a arte, seria o eterno segredo de cada um de nós".9 Sob esse prisma, Proust é
6.CS 290.
7.P 133.
8.P 234.
9.TR 142.
40
leibniziano: as essências são verdadeiras mônadas, cada uma se definindo pelo po-nto de vista através do qual exprime o mundo, cada ponto de vista remetendo a uma qualidade última no fun­do da mônada. Como diz Leibniz, elas não têm portas nem janelas: o ponto de vista sendo a própria diferença, pontos de vista sobre um mundo supostamente o mesmo são tão diferentes quanto os mundos mais distantes. Por essa razão a amizade só estabelece falsas comunicações, fundadas sobre mal-entendi­dos, e só abre falsas janelas. Por essa razão o amor, mais lúcido, renuncia por princípio a toda comunicação. Nossas únicas ja­nelas, nossas únicas portas são espirituais: só há intersubjetividade artística. Somente a arte nos dá o que esperaríamos em vão de um amigo, o que teríamos esperado em vão de um ser amado. "Só pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as que porventura existem na Lua. Graças à arte, em vez de contemplar um só mundo, o nos­so, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mundos quan­tos artistas originais existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito... "10
Deve-se concluir que a essência é subjetiva e que a diferen­ça é mais entre sujeitos do que entre objetos? Isso seria despre­zar os textos em que Proust trata as essências como Idéias platônicas e lhes confere uma realidade independente. Mesmo Vinteuil "revelou a frase musical" muito mais do que a criou.11
Cada sujeito exprime o mundo de um certo ponto de vista. Mas o ponto de vista é a própria diferença, a diferença interna e absoluta. Cada sujeito exprime, pois, um mundo absolutamente diferente e, sem dúvida, o mundo expresso não existe fora do sujeito que o exprime (o que chamamos de mundo exterior é apenas a projeção ilusória, o limite uniformizante de todos esses
10.TR 142.
11.CS 290-292.
41
mundos expressos). Mas o mundo expresso não se confunde com o sujeito: dele se distingue exatamente como aessência se distingue da existência e inclusive de sua própria existência. Ele não existe fora do sujeito que o exprime, mas é expresso como a essência, não do próprio sujeito, mas do Ser, ou da região do Ser que se revela ao sujeito. Razão pela qual cada essência é uma pátria, um país;12 ela não se reduz a um estado psicológico, nem a uma subjetividade psicológica, nem mesmo a uma forma qual­quer de subjetividade superior. A essência é a qualidade última no âmago do sujeito, mas essa qualidade é mais profunda do que o sujeito, é de outra ordem: "Qualidade desconhecida de um mundo único." 13 Não é o sujeito que explica a essência, é, antes, essência que se implica, se envolve, se enrola no sujeito: Mais ainda: enrolando-se sobre si mesma ela constitui a subjetivida­de. Não são os indivíduos que constituem o mundo, mas os mundos envolvidos, as essências, que constituem os indivíduos: "Esses mundos que são os indivíduos e que sem a arte jamais co­nheceríamos."14 A essência não é apenas individual, é indivi­dualizante.
O ponto de vista não se confunde com quem nele se coloca; a qualidade interna não se confunde com o sujeito que ela indi­vidualiza. Esta distinção entre essência e sujeito é tão importan­te que Proust vê nela a única prova possível da imortalidade da alma. Na alma daquele que a desvela, ou apenas a compreende, a essência é como uma "divina cativa". 15 Talvez as essências te­nham, elas próprias, se aprisionado, se envolvido nas almas que elas individualizam. Não existem fora desse cativeiro, mas não se separam da "pátria desconhecida" com que elas se envolvem em nós. São nossos "reféns": morrem se morremos, mas se são
12.P217.
13.P 321.
14.P 218
15.CS 291.


42
eternas, de alguma forma somos também imortais. Elas tornam a morte menos provável; a única prova, a única chance é estéti­ca. Duas questões, também, estão fundamentalmente ligadas: "As questões da realidade da Arte, da realidade da Eternidade sla alma."16 Sob esse aspecto, a morte de Bergotte diante do pe­queno detalhe de parede amarela de Ver Meer torna-se simbóli­ca: "Em celestial balança lhe aparecia, num prato, sua própria vida; no outro, o pequeno detalhe de parede tão bem pintada de amarelo. Sentia Bergotte que imprudentemente arriscara o pri­meiro pelo segundo... Nova crise prostrou-o... Estava morto. Morto para sempre? Quem o poderá dizer?"17
*
O mundo envolvido da essência é sempre um começo do Mundo em geral, um começo do Universo, um começo radical absoluto. "Primeiro o piano solitário gemia como um pássaro abandonado da sua companheira; o violino escutou-o, respon­deu-lhe como de uma árvore vizinha. Era como no princípio do mundo, como se ainda não houvesse senão os dois sobre a face da Terra, ou, antes, era naquele mundo fechado a tudo o mais, construído pela lógica de um criador e onde para todo o sempre só os dois existiriam: aquela sonata."18 O que Proust diz do mar ou do rosto de uma jovem é ainda mais verdadeiro quando se refere à essência e à obra de arte: a instável oposição, "essa per­pétua recriação dos elementos primordiais da natureza". 19 Mas a essência assim definida é o nascimento do Tempo. Não que o tempo já se tenha desdobrado: ele não tem ainda as dimensões segundo as quais poderia se desenvolver, nem mesmo as séries
16.P 320.
17.P 158.
18.CS 292.
19.RF 383.

43
separadas em que se distribui segundo ritmos diferentes. Certos neoplatônicos utilizavam uma palavra profunda para designar o estado originário que precede todo desenvolvimento, todo des­dobramento, toda "explicação": a complicação, que envolve o múltiplo no Uno e afirma o Uno do múltiplo. A eternidade não lhes parecia a ausência de mudança, nem mesmo o prolonga­mento de uma existência sem limites, mas o estado complicado do próprio tempo (uno ictu mutationes tuas complectitur). O Ver­bo, omnia complicans, e contendo todas as essências, era defini­do como a complicação suprema, a complicação dos contrários, a instável oposição... Daí tiravam a idéia de um Universo essen­cialmente expressivo, organizando-se segundo graus de compli­cações imanentes e uma ordem de explicações descendentes.
O mínimo que se pode dizer é que Charlus é complicado, tomando a palavra rigorosamente em seu sentido etimológico. A genialidade de Charlus consiste em manter todas as almas que o compõem em estado "complicado": é assim que conserva sempre a frescura de um começo de mundo e não cessa de emi­tir signos primordiais, signos que o intérprete deverá decifrar, isto é explicar.
Contudo, se procurarmos na vida alguma coisa que corres­ponda à situação das essências originais, não a encontraremos neste ou naquele personagem, mas num estado profundo – o sono. Quem dorme "mantém em círculo em torno de si o fio das horas, a ordem dos anos e dos mundos"; essa maravilhosa liber­dade que só cessa com o despertar, quando se é coagido a esco­lher segundo a ordem do tempo redesdobrado.20 Do mesmo modo; o sujeito-artista tem a revelação de um tempo original, enrolãao, complicado na própria essência, abarcando de uma só vez todas as suas séries e suas dimensões. Aí está o sentido da expressão "tempo redescoberto". O tempo redescoberto, em
20. CS 12-13.





44
seu estado puro, está contido nos signos da arte. Não se deve confundi-lo com outro tempo redescoberto, o dos signos sensí­veis, que é apenas um tempo que se redescobre no seio do pró­prio tempo perdido, e que também mobiliza todos os recursos da memória involuntária, dando-nos uma simples imagem da eter­nidade. Como o sono, a arte está para além da memória e recor­re ao pensamento puro como faculdade das essências. O que a arte nos faz redescobrir é o tempo tal como se encontraem-ola­do na essência, tal como nasce no mundo envolvido da essên­cia, idêntico à eternidade, O extratemporal de Proust é esse tempo no estado de nascimento e o sujeito-artista que o redes­cobre. Por essa razão, podemos dizer com todo o rigor que só a obra de arte nos faz redes cobrir o tempo: a obra de arte é "o único meio de redescobrir o tempo perdido". 21 Ela porta os signos mais importantes, cujo sentido está contido numa complicação primordial, verdadeira eternidade, tempo original absoluto.
*
Como a essência se encarna na obra de arte? Ou, o que vem a dar no mesmo, como um sujeito-artista consegue "comuni­car" a essência que o individualiza e o torna eterno? Ela se en­cama nas matérias. Mas essas matérias são dúcteis, tão bem malaxadas e desfiadas que se tornam inteiramente espirituais. Essas matérias, sem dúvida, são a cor para o pintor, como o ama­relo de Ver Meer, o som para o músico e a palavra para o escri­tor. Mas, de modo mais profundo, são matérias livres que tanto se exprimem através das palavras como dos sons e das cores, Em Thomas Hardy, por exemplo, os blocos de pedra, a geometria desses blocos, o paralelismo das linhas formam uma matéria es­piritualizada, em que as próprias palavras vão buscar sua orde­nação; em Stendhal, a altitude é uma matéria aérea "ligando-se
21. TR 145.







45
à vida espiritual". 22 O verdadeiro tema de uma obra não é o as­sunto tratado, sujeito consciente e voluntário que se confunde com aquilo que as palavras designam, mas os temas inconscien­tes, Q.s arquétipos involuntários, dos quais as palavras, como as cores e os sons, tiram o seu sentido e a sua vida. A arte é uma verdadeira transmutação da matéria. Nela a matéria se espiri­tualiza, os meios físicos se desmaterializam, para refratar a essência, isto é, a qualidade de um mundo original. Esse trata­mento da matéria é o "estilo".
Como qualidade de um mundo, a essência jamais se con­funde com um objeto; ao contrário, ela aproxima dois objetos inteiramente diferentes, que deixam perceber a qualidade no meio revelador. Ao mesmo tempo que a essência se encarna em determinada matéria, a qualidade última que a constitui se expressa como a qualidade comum a dois objetos diferentes, misturados nessa matéria luminosa, mergulhados nesse meio refrangente. Nisto consiste o estilo: "Podem-se alinhar indefini­damente numa descrição os objetos pertencentes ao sítio des­crito, mas a verdade só surgirá quando o escritor tomar dois objetos diversos, estabelecer a relação entre eles, análoga no mundo da arte à relação única entre causa e efeito no da ciên­cia, e os enfeixar nos indispensáveis anéis de um belo estilo."23 Isso significa que o estilo é basicamente metáfora. Mas a metáfora é essencialmente metamorfose e indica como os dois objetos permutam suas determinações, e até mesmo a palavra que os designa, no novo meio que lhes confere a qualidade comum, É o que acontece nos quadros de Elstir, em que o mar se torna terra e a terra mar; onde a cidade só é designada por "termos marítimos" e a água por "termos urbanos". 24 O estilo, para espi­ritualizar a matéria e torná-la adequada à essência, reproduz a
22.P 323.
23.TR 137.
24.RF 327-329.
46
instável oposição, a complicação original, a luta e a troca dos elementos primordiais que constituem a própria essência. Em Vinteuil ouve-se o combate entre dois temas como num cor­po-a-corpo: "Corpo-a-corpo de energias somente, em verdade, pois se essas criaturas se acometiam, eram despojadas de seu corpo físico, de sua aparência, de seu nome... "25 Uma essência é sempre um nascimento do mundo; mas o estilo é esse nasci­mento continuado e refratado, esse nascimento redescoberto nas matérias adequadas às essências, esse nascimento como metamorfose de objetos. Q estilo não é o homem: é a própria es­sência.
A essência não é apenas particular, individual, mas indivi­dualizante. Ela própria individualiza e determina as matérias em que se encarna, como os objetos que enfeixa nos anéis do es­tilo: como o avermelhado septeto e a branca sonata de Vinteuil ou a bela diversidade na obra de Wagner.26 É que a essência é em si mesma diferença, não tendo, entretanto, o poder de diversificar e de diversificar-se, sem a capacidade de se repetir, idêntica a si mesma. Que poderíamos fazer da essência, que é diferençã última, senão repeti-la, já que ela não pode ser substi­tuída, nada podendo ocupar-lhe o lugar? Por essa razão1Jma grande música deve ser tocada muitas vezes; poema, apren­dido de cor e recitado. A diferença e a repetição só se opõem aparentemente e não existe um grande artista cuja obra não nos faça dizer: "A mesma e no entanto outra."27
A diferença, como qualidade de um mundo, só se afirma através de uma espécie de auto-repetição que percorre os mais variados meios e reúne objetos diversos; a repetição constitui os graus de uma diferença original, como, por sua vez, a diver­sidade constitui os níveis de uma repetição não menos funda-
25.P 220.
26.P 133.
27.P 219.

47
mental. Sobre a obra de um grande artista podemos dizer: é a mesma coisa, apenas com a diferença de nível; como tam­bém: é outra coisa, apenas com a semelhança de grau. Na ver­dade, diferença e repetição são as duas potências da essência, inseparáveis e correlatas. Um artista não envelhece porque se repete, pois a repetição é potência da diferença, não menos que a diferença é poder da repetição. O artista envelhece quando, “pelo desgaste de seu cérebro", julga mais simples encontrar di­retamente na vida, como pronto e acabado, aquilo que ele só poderia exprimir em sua obra, aquilo que deveria distinguir e re­petir através de sua obra.28 O artista, ao envelhecer, confia na vida, na "beleza da vida", mas só tem sucedâneos daquilo que constitui a arte: repetições que se tornaram mecânicas, pois são exteriores, diferenças imóveis que tornam a cair numa matéria que não conseguem mais tornar leve e espiritual. A vida não possui as duas potências da arte; ela só as recebe degradando-as e só reproduz a essência no nível mais baixo, no mais fraco grau.
A arte possui um privilégio absoluto, que se exprime de várias maneiras. Na arte, a matéria se torna espiritualizada e os meios desmaterializados. A obra de arte é, pois, um mundo de signos que são imateriais e nada têm de opaco, pelo menos para o olho ou ouvido artistas. Em segundo lugar, o sentido desses sig­nos é uma essência que se afirma em toda a sua potência. Em terceiro lugar, o signo e o sentido, a essência e a matéria trans­mutada se confundem ou se unem numa adequação perfeita. Identidade de um signo como estilo e de um sentido como es­sência: esta é a característica da obra de arte. Sem dúvida, a própria arte é sempre objeto de um aprendizado, em que passamos pela tentação objetivista e pela compensação subjetiva, como em qualquer outro campo. Mas a revelação da essência (além do objeto e além do próprio sujeito) só pertence ao domí-
28. RF 339.
48
nio da arte: se tiver de realizar-se, é nele que se realizará. Daí por que a arte é a finalidade do mundo, o destino inconsciente do aprendiz.
Encontramo-nos, então, diante de dois tipos de questões. Que valor têm os outros signos, os que constituem os domínios da vida? Por si mesmos, o que nos ensinam? Podemos dizer que eles nos põem no caminho da arte? De que maneira? Mas, so­bretudo, uma vez que tenhamos a revelação final da arte, como essa revelação vai reagir sobre os outros campos e tornar-se o centro de um sistema que nada deixa fora de seu âmbito? A es­sência é sempre uma essência artista. Mas, uma vez descoberta, ela não se encarna apenas nas matérias espiritualizadas, nos sig­nos imateriais da obra de arte. Ela também se encarna nos ou­tros domínios, que serão, desde então, integrados naquela obra. Assim, ela atravessa os meios mais opacos, os signos mais mate­riais, onde perde algumas de suas características originais, ab­sorvendo outras, que exprimem a descida da essência nessas matérias cada vez mais rebeldes. Há leis de transformação da essência em relação com as determinações da vida.

49
Capítulo V
Papel Secundário da Memória

Os signos mundanos e os signos amorosos, para serem in­terpretados, precisam da inteligência. É a inteligência que os decifra: com a condição de "vir depois", de ser, de certa forma, obrigada a pôr-se em movimento, sob a exaltação nervosa que nos provoca a mundanidade, ou, ainda mais, sob a dor que o amor nos instila. Sem dúvida, a inteligência mobiliza outras fa­culdades. Vê-se o ciumento pôr todos os recursos da memória a serviço da interpretação dos signos do amor, isto é, das mentiras do amado. Mas a memória, não sendo solicitada diretamente, só pode fornecer uma contribuição voluntária, e precisamente porque é apenas "voluntária", vem sempre muito tarde com re­lação aos signos a decifrar. A memória do ciumento pretende tudo reter, porque o menor detalhe pode se revelar um signo ou um sintoma de mentira; ela quer tudo armazenar para que a inteligência disponha da matéria necessária às suas próximas interpretações. Há, também, alguma coisa de sublime na me­mória do ciumento: ela enfrenta seus próprios limites e, voltada para o futuro, esforça-se para ultrapassá-los. Mas chega tarde demais porque não soube captar no momento a frase que deve­ria reter, o gesto que não sabia ainda que adquiriria determina­do sentido. 1"Depois, diante da mentira falante, ou tomado de
1. P 45-46.
50
uma dúvida ansiosa, eu queria lembrar-me; era em vão; minha memória não fora prevenida a tempo, julgara inútil guardar có­pia” 2 Em suma, na interpretação dos signos do amor, a memó­ria apenas intervém sob uma forma voluntária que a condena a um patético fracasso. Não é o esforço da memória, tal como aparece em cada amor, que consegue decifrar os signos corres­pondentes; é apenas o impulso da inteligência, na série de amo­res sucessivos, balizada pelos esquecimentos e pelas repetições inconscientes.
*

Em que nível, então, intervém a famosa memória involuntá­ria? Ela só intervém em função de uma espécie de signos muito particulares: os signos sensíveis. Apreendemos uma qualidade sensível como signo; sentimos um imperativo que nos força a procurar seu sentido. Então, a Memória involuntária, diretamen­te solicitada pelo signo, nos fornece seu sentido (como Combray para a madeleine, Veneza para as pedras do calçamento... ).
Em segundo lugar, essa memória involuntária não possui o segredo de todos os signos sensíveis: alguns remetem ao desejo ou a figuras da imaginação (como os campanários de Martinvil­le). Razão por que Proust distingue cuidadosamente dois casos de signos sensíveis: as reminiscências  e as descobertas; as "res­surreições da memória" e as "verdades escritas por figuras".3 Pela manhã, quando o herói se levanta, não sente apenas a pressão das lembranças involuntárias que se confundem com uma luz ou com um odor, mas também o impulso dos desejos involuntários que se encarnam numa mulher que passa – padeira, lavadeira ou jovem orgulhosa, "uma imagem, enfim"... 4 No iní-
2.P 128. 3. TR 129. 4 P 17.
51
cio, nem mesmo podemos dizer de que lado vem o signo. A quali­dade se dirige à imaginação ou, simplesmente, à memória? É preciso tudo experimentar para descobrir a faculdade que nos dará o sentido adequado; e, quando fracassamos, não podemos saber se o sentido que nos ficou velado era uma figura de sonho ou uma lembrança dissimulada na memória involuntária. As três árvores, por exemplo, eram uma paisagem da Memória ou do Sonho?5
Os signos sensíveis que se explicam pela memória involun­tária têm uma dupla inferioridade, não somente com relação aos signos da arte, mas também com relação as signos sensíveis que remetem à imaginação. Por um lado, sua matéria é mais ;pãca e rebelde, sua explicação permanece material demais; por outro, eles só superam em aparência a contradição do ser e do nada (como vimos na lembrança da avó). Proust nos fala da plenitude das reminiscências ou das lembranças involuntárias, da alegria celestial que nos dão os signos da Memória e do tem­po que eles nos fazem bruscamente redescobrir. Os signos sensí­veis que se explicam pela memória formam, na verdade, um “começo de arte” , eles nos pôem “no caminho da arte”.6  Nunca nosso aprendizado encontraria seu resultado na arte se não pas­sasse por esses signos que nos dão uma antecipação do tempo redescoberto e nos preparam para a plenitude das idéias estéti­cas. Mas nada fazem além de nos preparar: são apenas um co­meço. São, ainda, signos da vida e não signos da arte.7
Eles são superiores aos signos mundanos, superiores aos sig­nos do amor, mas inferiores aos da arte; e, mesmo em seu gêne­ro, são inferiores aos signos sensíveis da imaginção, que estão mais próximos da arte (embora pertencendo ainda à vida). 8
5.RF 231-232.
6.TR 138.
7. Ibid. ("... ou mesmo, assim como a vida... ").
8.P321. 

52
Proust muitas vezes apresenta os signos da memória como deci­sivos; as reminiscências parecem-lhe constitutivas da obra de arte, não apenas na perspectiva de seu projeto pessoal, mas na de grandes precursores, como Chateaubriand, Nerval ou Bau­delaire. Mas, se as reminiscências são integradas na arte como partes constitutivas, é na medida em que são elementos condutores, elementos que conduzem o leitor à compreensão da obra e o artista à concepção de sua tarefa e da unidade dessa tarefa: "Porque seria, justa e unicamente, esta espécie de sensações a propícia à obra de arte, eis o que tentaria verificar objetivamen­te."9 As reminiscências são metáforas da vida; as metáforas são reminiscências da arte. Ambas, com efeito, têm algo em co­mum: determinam uma relação entre dois objetos inteiramente diferentes, "para as subtrair às contingências do tempo". 10 Mas só a arte realiza plenamente o que a vida apenas esboçou. As re­miniscências, na memória involuntária, são ainda vida: arte no nível da vida, conseqüentemente metáforas ruins. Ao contrá­rio, a arte em sua essência, a arte superior à vida, não se baseia na memória involuntária, nem mesmo na imaginação e nas fi­guras inconscientes. Os signos da arte se explicam pelo pensa­mento puro como faculdade das essências. Dos signos sensíveis em geral, quer se dirijam à memória ou mesmo à imaginação, devemos dizer ora que vêm antes da arte e que a ela nos condu­zem, ora que vêm depois da arte e que dela captam apenas os re­flexos mais próximos.
*
Como explicar o mecanismo complexo das reminiscências? À primeira vista, trata-se de um mecanismo associativo; por um
9. TR 158.
10. TR 137.

53
lado, semelhança entre uma sensação presente e uma sensação passada; por outro, contigüidade da sensação passada com um conjunto que vivíamos então, e que ressuscita sob a ação da sensação presente. Assim, o gosto da madeleine é semelhante ao que sentíamos em Combray; e ele ressuscita Combray, onde o sentimos pela primeira vez. Tem-se muitas vezes salientado a importância formal de uma psicologia associacionista em Proust. Entretanto, não teríamos razão em criticá-la: o associa­cionismo é menos ultrapassado que a crítica do associacionis­mo. Devemos, pois, perguntar de que ponto de vista os casos de reminiscência ultrapassam realmente os mecanismos de associação, e, também, de que ponto de vista eles remetem efetiva­mente a tais mecanismos.
A reminiscência coloca vários problemas que não são resol­vidos pela associação de idéias. Por um lado, de onde vem a extraordinária alegria que experimentamos na sensação presente? Alegria tão possante que é suficiente para tornar a morte indife­rente. Por outro lado, como explicar que não haja simples seme­lhança entre as duas sensações, presente e passada? Além de uma semelhança entre duas sensações, descobrimos nas duas a identidade de uma mesma qualidade. Enfim, como explicar que Combray surja, não exatamente como foi vivida, em contigüi­dade com a sensação passada, mas com um esplendor, com uma "verdade" que nunca tivera equivalente no real?
Essa alegria do tempo redescoberto, essa identidade da qualidade, essa verdade da reminiscência, nós as experimenta­mos e sentimos que elas vão além de todos os mecanismos asso­ciativos. Mas em quê? Somos incapazes de dizer. Constatamos o que se passa, mas não temos ainda meios de compreendê-lo. Com o sabor da madeleine, Combray surgiu em seu esplendor, mas não descobrimos, de modo algum, aS'causas de tal aparição. A impressão das três árvores permanece inexplicada; ao contrá­rio, a impressão da madeleine parece explicada por Combray.
54
Entretanto, avançamos muito pouco: por que essa alegria, por que esse esplendor na ressureição de Combray? ("de cujas cau­sas profundas adiara até então a busca").11
A memória voluntária vai de um presente atual a um pre­sente que "foi", isto é, a alguma coisa que foi presente mas não o é mais. O passado da memória voluntária é, pois, duplamente relativo: relativo ao presente que foi, mas também relativo ao presente com referência ao que é agora passado. O que vale di­zer que essa memória não se apodera diretamente do passado: ela o recompõe com os presentes. Por esta razão, Proust faz as mesmas restrições à memória voluntária e à percepção consci­ente: esta pensa encontrar o segredo da impressão no objeto, aquela crê descobrir o segredo da lembrança na sucessão dos presentes; são exatamente os objetos que distinguem os presen­tes sucessivos. A memória voluntária procede por instantâneos: "Apenas esta palavra a tornava para mim tão enfadonha como uma exposição de fotografias, e eu não sentia hoje mais gosto, mais dons para descrever o que vira outrora do que ontem para fixar imediatamente o que observava com olhos minuciosos e entediados. "12
Évidente que alguma coisa de essencial escapa à memória voluntária: o ser-em-si do passado. Ela faz como se o passado se constituísse como tal depois de ter sido presente e, assim, seria necessário esperar um novo presente para que o precedente passasse, ou se tornasse passado. Dessa maneira, no entanto, a essência do tempo nos escapa, pois se o presente não fosse pas­sado ao mesmo tempo que presente, se o mesmo momento não coexistisse consigo mesmo como presente e passado, ele nunca passaria, nunca um novo presente viria substituí-lo. O passado, tal como é em si, coeiste, não sucede ao presente que ele foi. Na verdade, nós não apreendemos alguma coisa como passado
11.TR 121.
12.TR 120.
55
no mesmo momento em que a sentimos como presente (salvo nos casos de paramnésia, aos quais talvez corresponda, em Proust, a visão das três árvores).13 Mas é porque as exigências conjuntas da percepção consciente e da memória voluntária es­tabelecem uma sucessão real onde, mais profundamente, há uma coexistência virtual.
Se existe alguma semelhança entre a concepção de Bergson e a de Proust, é justamente nesse nível. Não no nível da dura­ção, mas da memória. Que não retomamos de um presente atual ao passado, não recompomos o passado com os presentes, mas nos situamos imediatamente no próprio passado; que esse passado não representa alguma coisa que foi, mas simplesmente alguma coisa que é e coexiste consigo mesma como presente; que o passado não pode se conservar em outra coisa que não nele mesmo, porque é em si, sobrevive e se conserva em si – es­sas são as célebres teses de Matière et mémoire. Este ser-em-si do passado, Bergson o chamava de virtual. Proust faz o mesmo quando fala dos estados induzidos pelos signos da memória: "Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos."14 É verda­de que, a partir daí, o problema não é o mesmo para Proust e para Bergson: para este é suficiente saber que o passado se conserva em si. Malgrado suas profundas páginas sobre o sono, ou sobre a paramnésia, Bergson não se pergunta como o passado, tal como é em si, também poderia ser recuperado para nós. Se­gundo ele, mesmo o sonho mais profundo implica um desgaste da lembrança pura, uma queda de lembrança numa imagem que a deforma. O problema de Proust é: como resgatar para nós o passado, tal como se conserva em si, tal como sobrevive em si? Proust expõe a tese bergsoniana, não diretamente, mas através de uma anedota do "filósofo norueguês", que por sua vez a ou-
13. RF 231-232. 14 TR 125.
 56
viu de Boutroux.15 Note-se a reação de Proust: "Nós possuímos todas as nossas lembranças se não a faculdade de recordá-las, diz, conforme Bergson, o grande filósofo norueguês... Mas o que é uma lembrança de que a gente não se recorda?" Proust coloca desta maneira a questão: como resgataremos o passado tal como é em si? É a esta pergunta que a memória involuntária responde.
A Memória involuntária parece, a princípio, basear-se na semelhança entre duas sensações, entre dois momentos. Mas, de modo mais profundo, a semelhança nos remete a uma estrita identidade: identidade de uma qualidade comum às duas sensações, ou de uma sensação comum aos dois momentos, o atual e o antigo. Assim acontece com o sabor: dir-se-ia que ele contém um volume de duração que o estende por dois momentos ao mesmo tempo. Mas, por sua vez, a sensação, a qualidade idênti­ca, implica uma relação com alguma coisa diferente. O sabor da madeleine aprisionou e envolveu Combray em seu volume. Enquanto permanecemos na percepção consciente, a madeleine tem apenas uma relação exterior de contigüidade com Com­bray; enquanto permanecemos na memória voluntária, Combray se mantém exterior à madeleine, como o contexto separável da antiga sensação. A memória involuntária tem, porém, uma ca­racterística específica: ela interioriza o contexto, torna o antigC2­contexto inseparável da sensação presente. Ao mesmo tempo que a semelhança entre os dois momentos se ultrapassa em di­reção a uma identidade mais profunda, a contigüidade que per­tencia ao momento passado se ultrapassa em direção a uma diferença mais profunda. Ao mesmo tempo que Combray res­surge na sensação atual, sua diferença com relação à antiga sen­sação se interioriza na sensação presente. A sensação presente não é, pois, mais separável dessa relação com o objeto diferente. O essencial na memória involuntária não é a semelhança, nem
15. SG 302-303

57
mesmo a identidade, que são apenas condições.; o essencial é a diferença interiorizada, tornada imanente. É nesse sentido que a reminiscência é o análogo da arte e a memória involuntária o análogo de uma metáfora: ela toma "dois objetos diferentes" – a madeleine com seu sabor, Combray com suas qualidades de cor e de temperatura – e envolve um no outro, faz da relação dos dois alguma coisa de interior.
O sabor, qualidade comum às duas sensações, sensação co­mum aos dois momentos, só está aí para lembrar outra coisa: Combray. Com essa invocação, Combray ressurge de forma ab­solutamente . nova. Não surge como esteve presente; surge como passado, mas esse passado não é mais relativo ao presente que ele foi, não é mais relativo ao presente em relação ao qual é agora passado. Não mais a Combray da percepção, nem tam­pouco a da memória voluntária; Combray aparece como não podia ter sido vivida: não em realidade, mas em sua verdade; não em suas relações exteriores e contingentes, mas em sua di­feferença interiorizada, em sua essência. Combray surge em um passado puro, coexistindo com os dois presentes, mas fora de seu alcance, fora do alcance da memória voluntária atual e da percepção consciente antiga: "Um pouco de tempo em estado puro."16 Não mais uma simples semelhança entre o presente e o passado, entre um presente que é atual e um passado que foi presente; nem mesmo uma identidade dos dois momentos; é muito mais o ser-em-si do passado, mais profundo que todo o pas­sado que fora, que todo o presente que foi. "Um pouco de tem­po em estado puro", isto é, a essência localizada do tempo.
*
"Reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos." Esse real ideal, esse virtual, é a essência, que se realiza ou se encarna
16. TR 125.

58
na lembrança involuntária. Nesse caso, como na arte, o envol­vimento, o enrolamento, permanece sendo o estado superior da essência. A lembrança involuntária retém os dois poderes: a di­ferença no antigo momento e a repetição no atual. A essência, entretanto, se realiza na lembrança involuntária em um grau mais baixo do que na arte, se encarna em matéria mais opaca. Em primeiro lugar, a essência não mais aparece como a qualida­de última de um ponto de vista singular, como era a essência artista: individual e até mesmo individualizante. Ela é, sem dú­vida, particular: mas é antes princípio de localização do que de individuação; aparece como essência local: Combray, Balbec, Veneza... É também particular porque revela a verdade diferen­cial de um lugar, de um momento. Mas, sob outro ponto de vista, ela é geral, porque traz essa revelação numa sensação "co­mum" a dois lugares, a dois momentos. Também na arte a quali­dade da essência se expressava como qualidade comum a dois objetos; mas a essência artista nada perdia de sua singularidade, nada alienava, porque os dois objetos e sua relação eram intei­ramente determinados pelo ponto de vista da essência, sem ne­nhuma contingência. Não é o que acontece com a memória involuntária, em que a essência chega a ter um mínimo de ge­neralidade. Essa é a razão por que Proust diz que os signos sensí­veis remetem a uma "essência geral", como os signos do amor ou os signos mundanos.17
Há uma segunda diferença, agora do ponto de vista do tem­po. A essência artista nos revela um tempo original, que ultrapas­sa suas séries e suas dimensões; um tempo "complicado" em sua própria essência, idêntico à eternidade. Quando falamos de um "tempo redescoberto" na obra de arte, referimo-nos a esse tempo primordial, que se opõe ao tempo desdobrado e desenvolvido, isto é, ao tempo sucessivo que passa, ao tempo que em geral se
17. TR 158.
59
perde. Ao contrário, a essência que se encarna na lembrança in­voluntária não nos revela esse tempo original; faz-nos redescobrir um outro tempo – o próprio tempo perdido. Ela surge brusca­mente em um tempo já desdobrado, desenvolvido, e no âmago desse tempo que passa redescobre um centro de envolvimento, que nada mais do que a imagem do tempo original. Por isso as revelações da memória involuntária são extraordinariamente breves e não se poderiam prolongar sem nos causarem dano: "Na vertigem de uma incerteza semelhante à que nos provoca, por vezes, ao adormecermos, uma visão inefável."18 A reminiscência nos revela o passado puro, o ser-em-si do passado, e, sem dúvi­da, esse ser-em-si ultrapassa todas as dimensões empíricas do tempo. Mas, em sua ambigüidade, ele é tanto o princípio a par­tir do qual as dimensões se desdobram no tempo perdido quan­to o princípio no qual se pode redescobrir esse tempo perdido, o centro em torno do qual se pode enrolá-lo de novo para ter uma imagem da eternidade. Esse passado puro é a instância que não se reduz a nenhum presente que passa, mas também a instância que faz passar todos os presentes, presidindo sua passagem; nes­se sentido, ele implica ainda a contradição da sobrevivência e do nada. A visão inefável, de que fala Proust, é feita desse amál­gama. A memória involuntária nos dá a eternidade, mas de tal forma que não tenhamos a força de suportá-la mais do que um instante, nem o meio de descobrir-lhe a natureza. O que ela nos dá é, antes, a imagem instantânea da eternidade; e todos os Eus da memória involuntária são inferiores ao Eu da arte, do ponto de vista das próprias essências.
Em último lugar, a realização da essência na lembrança in­voluntária não se separa de determinações que permanecem exteriores e contingentes. Não depende das circunstâncias que, em virtude da potência da memória involuntária, alguma coisa
18. TR 127.
60
surja em sua essência ou em sua verdade. Mas que essa "alguma coisa" seja Combray, Balbec ou Veneza, que tal essência (ao in­vés de outra) seja selecionada e encontre, então, o momento propício de encanar-se – isso põe em jogo múltiplas circunstân­cias e contingências. Por um lado, é evidente que a essência de Combray não se realizaria no sabor redescoberto da madeleine se não tivesse havido, de início, a contigüidade real entre a made­leine, tal como foi saboreada, e Combray, tal como esteve pre­sente. Por outro, a madeleine com seu sabor e Combray com suas qualidades têm ainda matérias distintas que resistem ao envol­vimento, à penetração de uma na outra.
Devemos, pois, insistir nestes dois pontos: uma essência se encarna na lembrança involuntária, mas aí encontra matérias muito menos espiritualizadas, meios menos "desmaterializados" do que na arte. E, contrariamente ao que se passa na arte, a seleção e a escolha dessa essência dependem de dados exteriores à própria essência, remetem, em última instância, a estados vi­vidos, a mecanismos de associações que permanecem subjeti­vos e contingentes. (Outras contigüidades teriam induzido ou selecionado outras essências.) Na memória involuntária, a físi­ca ressalta a resistência das matérias e a psicologia a irreduti­bilidade das associações subjetivas. Por essa razão, os signos da memória constantemente nos preparam a armadilha de uma in­terpretação objetivista, mas também, e sobretudo, a tentação de uma interpretação inteiramente subjetiva. É por isso, enfim, que as reminiscências são metáforas inferiores: a memória, ao invés de reunir dois objetos diferentes, cuja seleção e relaciona­mento são inteiramente determinados por uma essência que se encarna num meio dúctil ou transparente, reúne dois objetos ainda ligados a uma matéria opaca, cuja relação com ela depen­de de uma associação. Assim, a essência não é mais senhora de sua própria encarnação, de sua própria seleção, sendo ela mes-

61
ma selecionada através de dados que lhe são exteriores e apre­sentando, assim, o mínimo de generalidade de que falávamos.
Podemos dizer que os signos sensíveis da memória são da vida e não da arte. A memória involuntária ocupa um lugar central, não o ponto extremo. Sendo involuntária, ela rompe com a atitude da percepção consciente e da memória voluntá­ria, torna-nos sensíveis aos signos e, em momentos privilegia­dos, dá-nos a interpretação de alguns deles. Os signos sensíveis que lhe correspondem são superiores aos signos mundanos e aos signos do amor, mas inferiores a outros signos não menos sensíveis: signos do desejo, da imaginação ou do sonho (estes são de matérias mais espirituais e remetem a associações mais profun­das, que não mais dependem de contigüidades vividas). Com mais forte razão, os signos sensíveis da memória involuntária são inferi?res aos da arte; eles perderam a perfeita identidade do signo e da essência; representam apenas o esforço da vida para nos preparar para a arte e para a revelação final da arte.
Não se deve ver na arte um meio mais profundo de explorar a memória involuntária; deve-se ver na memória involuntária uma etapa, e não a mais importante, do aprendizado da arte. É certo que essa memória nos coloca no caminho das essências; mais ainda: a reminiscência já possui a própria essência, soube capturá-la. Mas ela nos dá a essência em um estado impreciso, em um estado secundário, de modo ainda tão obscuro que so­mos incapazes de compreender o dom que recebemos e a alegria que experimentamos. Aprender é relembrar, mas relembrar nada mais é do que aprender, ter um pressentimento. Se, impul­sionados pelas etapas sucessivas do aprendizado, não chegásse­mos à revelação final da arte, permaneceríamos incapazes de compreender a essência, até mesmo de compreender que ela já estava na lembrança involuntária ou na alegria do signo sensí­vel (estaríamos sempre reduzidos a "adiar" o exame das causas). É necessário que todas as etapas conduzam à arte e que atinja-
62
Mos sua revelação; então tornaremos a descer os níveis, os integraremos na própria obra de arte, identificaremos a essência em suas realizações sucessivas, daremos a cada nível de realização o lugar e o sentido que lhe cabem na obra. Descobriremos, assim, o papel da memória involuntária e as rezões desse papel, importante, embora secundário, na encarnação das essências. Os paradoxos da memória involuntária se explicam poe uma instância mais elevada que ultrapassa a memória, inspira as reminiscências e lhe comunica uma parte de seu segredo.

Capítulo VI
Série e Grupo

63
A encarnação das essências persiste nos signos amorosos e até mesmo nos signos mundanos. A diferença e a repetição per­manecem, então, como os dois poderes da essência, a qual con­tinua irredutível tanto ao objeto que porta o signo quanto ao sujeito que o sente. Nossos amores não se explicam pessoas que amamos, nem pelos estados transitórios por que passamos no momento em que estamos amando. Mas como conciliar a idéia de uma presença da essência com o caráter mentiroso dos signos do amor e com o caráter vazio dos signos do mundanismo? A essência é levada a tomar uma forma cada vez mais geral, uma generalidade cada vez maior; em última análise, ela tende a se confundir com uma "lei" (a propósito do amor e do mundanismo, Proust sempre demonstrou seu gosto pela generalidade e sua paixão pelas leis). As essências podem, portanto, se encarnar nos signos amorosos exatamente como as leis gerais da mentira, e nos signos mundanos como as leis gerais do vazio.
Uma diferença original preside nossos amores. Talvez seja a imagem da Mãe – ou do Pai, para uma mulher, como acontece com a Srta. Vinteuil. Mais profundamente, é uma imagem lon­gínqua, além de nossa experiência, um Tema que nos ultrapas­sa, uma espécie de arquétipo. Imagem, idéia ou essência bastante rica para diversificar-se nos seres que amamos, e mes­mo em apenas um ser amado; exatamente como se repete em
64
nossos amores sucessivos e em cada um dos nossos amores to­mados isoladamente. Albertina é a mesma e é outra, tanto em relação aos outros amores do herói como em relação a ela pró­pria. Há tantas Albertinas que seria preciso dar um nome espe­cífico a cada uma delas e, no entanto, é como se fosse um mesmo tema, uma mesma qualidade vista sob vários aspectos. As reminiscências e as descobertas se misturam, então, intima­mente em cada amor. A memória e a imaginação se revezam e se corrigem, e cada uma, ao dar um passo, impele a outra a dar um passo suplementar.! Com mais razão, em nossos amores su­cessivos: cada amor traz sua diferença, já compreendida no precedente, e todas essas diferenças estão contidas em uma imagem primordial, que não cessamos de produzir em diversos níveis e de repetir como a lei inteligível de todos os nossos amo­res. "Assim, meu amor por Albertina, até nas suas divergências, já se inscrevia em meu amor por Gilberta... "2
Nos signos do amor, os dois poderes da essência deixam de estar juntos. A imagem ou o tema contêm o caráter particular de nossos amores, mas nós repetimos tanto mais e tanto melhor essa imagem que na realidade ela nos escapa e permanece in­consciente. Longe de exprimir a potência imediata da idéia, a repetição testemunha aqui uma separação, uma inadequação entre a consciência e a idéia. A experiência de nada nos serve, porque negamos que repetimos e acreditamos sempre em algo novo; mas também porque ignoramos a diferença que tornaria nossos amores inteligíveis e os relacionaria a uma lei que seria como que sua fonte permanente. O inconsciente, em amor, é a separação dos dois aspectos da essência, diferença e repetição.
A repetição amorosa é uma repetição serial. Os amores do herói por Gilberta, pela Sra. de Guermantes, por Albertina for­mam uma série em que cada termo acrescenta sua pequena di-
1.RF 391·392.
2.TR 148.
65
ferença. "Quando muito, a este amor, terá aquela que tanto amamos acrescentado um cunho particular, que nos obrigará a ser-lhe fiel até na infidelidade. Necessitaremos, com a sua su­cessora, dos mesmos passeios matinais, levá-la-emos do mesmo modo todas as noites a casa, dar-lhe-emos também dinheiro de­mais."3 Mas também, entre dois termos da série, aparecem rela­ções de contraste que complicam a repetição: "Ah! como esse amor a Albertina, de que eu julgara poder calcular a sorte, à vis­ta do que eu dedicara a Gilberta, se desenvolvera em perfeito contraste com este último."4 E sobretudo, quando passamos de um termo amado a outro devemos levar em conta uma diferen­ça acumulada no sujeito amoroso, como uma razão de progres­são na série, "índice de variação que se acentua à medida que vai chegando a novas regiões, sob outras latitudes da vida".5 É que a série, através das pequenas diferenças e das relações con­trastadas, não se desenvolve sem convergir para sua própria lei e o próprio sujeito amoroso vai se reaproximando cada vez mais de uma compreensão do tema original. Compreensão que ele só atingirá plenamente quando tiver deixado de amar, quando não tiver mais nem o desejo, nem o tempo, nem a idade para amar. É nesse sentido que a série amorosa constitui um aprendi­zado: nos primeiros termos o amor aparece ligado a seu objeto, de sorte que o mais importante é confessar; depois aprendemos a subjetividade do amor, com a necessidade de não confessar, para preservar nossos próximos amores. Mas, à medida que a sé­rie se aproxima de sua própria lei, e a nossa capacidade de amar de seu próprio fim, pressentimos a existência do tema original ou da idéia, que ultrapassa tanto nossos estados subjetivos quanto os objetos em que ela se encarna.
3.TR1S1.
 4. F 23.
S. RF 374.

66
Não há apenas uma série de amores sucessivos; cada amor assume uma forma de série. As pequenas diferenças e as rela­ções contrastadas que encontramos de um amor a outro já são encontradas em um mesmo amor: de uma Albertina a outra, pois Albertina possui almas múltiplas e múltiplas faces. Estas fa­ces, estas almas não estão exatamente no mesmo plano, elas se organizam em série. (De acordo com a lei de contraste, "dois é o número mínimo da variedade... Se recordamos um olhar enér­gico e um rosto atrevido, o próximo encontro nos chocará, isto é, veremos quase exclusivamente um lânguido perfil e uma so­nhadora doçura, coisas que nos passaram por alto na recorda­ção precedente".)6 Ainda mais: um índice de variação subjetiva corresponde a cada amor, medindo seu início, sua duração e seu término. Em todos esses sentidos, o amor por Albertina forma uma série em que podemos distinguir dois períodos diferentes de ciúme; e, no final, o esquecimento de Albertina só se desen­volve na medida em que o herói desce os níveis que marcaram o início de seu amor: "E, de fato, eu agora sentia bem que antes de esquecê-la por completo, antes de atingir a indiferença inicial, seria necessário, como ao viajante que voltou pelo mesmo ca­minho ao ponto de onde partira, atravessar em sentido inverso todos os sentimentos pelos quais tinha passado antes de chegar ao meu grande amor."? Assim, três etapas marcam o esqueci­mento, como uma série invertida: o retorno à indivisão, retorno a um grupo das jovens análogo àquele de onde Albertina foi ti­rada; a revelação dos gostos de Albertina, que se assemelha de certo modo às primeiras intuições do herói, mas num momento em que a verdade não mais o interessa; enfim, a idéia de que Albertina continua viva, idéia que lhe proporciona tão pouco prazer, em contraste com a dor experimentada quando já a sabia morta mas ainda a amava.
6.RF 391-392.
7.F llO.
*
67
Não somente cada amor forma uma série particular como, no outro pólo, a série de nossos amores ultrapassa nossa expe­riência, encadeia-se com outras experiências, abre-se para uma realidade transubjetiva. O amor de Swann por Odette já faz parte da série que tem sua continuação no amor do herói por Gilberta, pela Sra. de Guermantes, por Albertina. Swann repre­senta o papel de iniciador em um destino que ele não soube rea­lizar por si mesmo: "Em suma, refletindo bem, a matéria de minha experiência me vinha de Swann, e não só no que lhe di­zia pessoalmente respeito ou a Gilberta. Mas fora ele quem, des­de Combray, me inculcara o desejo de ir a Balbec... Sem Swann eu nem teria conhecido os Guermantes... "8 Swann foi apenas a oportunidade, mas sem essa oportunidade a série teria sido ou­tra; e, de certo modo, Swann foi muito mais: foi ele quem, desde o começo, possuía a lei da série ou o segredo da progressão e o confidenciou ao herói num "aviso profético"; o ser amado como Prisioneiro.9
É possível encontrar a origem da série amorosa no amor do herói por sua mãe, mas, mesmo aí, encontramos Swann que, ao vir jantar em Combray, priva a criança da presença materna. E a tristeza do herói, sua angústia em relação à mãe, é a mesma an­gústia e a mesma tristeza que o próprio Swann sentira por Odet­te: "... talvez ninguém pudesse compreender-me melhor do que ele; essa angústia que há em sentir a criatura a quem se ama em um lugar de festa onde a gente não está, e aonde não pode ir vê-Ia, foi o amor que lhe deu a conhecer, o amor ao qual está de certo modo predestinada e que ele termina por açambarcar e singularizar; mas quando, como no meu caso, essa angústia nos penetra antes que o amor haja feito seu aparecimento em nossa
8.TR 156-157.
9.RF 108.

vida, fica ela flutuando à sua espera, vaga e livre... "lO Con­cluir-se-á que a imagem da mãe não é, talvez, o tema mais pro­fundo, nem a razão da série amorosa. Na verdade, nossos amores repetem nossos sentimentos pela mãe, mas esses, por sua vez, repetem outros amores, que nós mesmos não vivemos. A mãe aparece como a transição de uma experiência a outra, o modo pelo qual nossa experiência se inicia já ligada a experiên­cias realizadas por outros. Em última análise, a experiência amorosa é a da humanidade inteira, que a corremede uma he­reditariedade transcendente atravessa.
Assim, a série pessoal de nossos amores remete, por um lado, a uma série mais vasta, transpessoal; por outro, a séries mais restritas, constituídas de cada amor em particular. As sé­ries são, pois, implicadas umas nas outras, os índices de variações e as leis de progressão, envolvidos uns nos outros. Ao perguntarmos como os signos do amor devem ser interpretados, procuramos uma instância através da qual as séries podem ser explicadas e os índices e as leis se desenvolverem; ora, por maior que seja o papel da memória e da imaginação, essas facul­dades só intervêm no nível de cada amor particular, e menos para interpretar seus signos do que para surpreendê-los e reco­lhê-los, para secundar uma sensibilidade que os apreende. A passagem de um amor a outro encontra sua lei no Esqueci­mento e não na memória; na Sensibilidade e não na imagina­ção. Na verdade, apenas a inteligência é uma faculdade capaz de interpretar os signos e explicar as séries do amor. É por isso que Proust insiste no seguinte ponto; há esferas em que a inteli­gência, apoiando-se na sensibilidade, é mais profunda, mais rica, do que a memória e a imaginação. 11
Não que as verdades do amor façam parte dessas verdades abstratas, que um pensador poderia descobrir por intermédio de
10.CS 33.
11.TR 145-146.
69
um método ou de uma reflexão livre. É preciso que a inteligên­cia seja forçada, que sofra uma coação que não a deixe livre para escolher; essa coação é a da sensibilidade, a do próprio signo no nível de cada amor. Os signos do amor são acompa­nhados de sofrimento porque implicam sempre uma mentira do amado, como uma ambigüidade fundamental de que nosso ciú­me se aproveita e se nutre. Então, o sofrimento por que passa nossa senbilidade força nossa inteligência a procurar o sentido do signo e a essência que nele se encarna. "Um homem dotado de sensibilidade poderia, ainda que não tivesse imaginação, es­crever romances admiráveis. O sofrimento que os outros lhe causassem, seus esforços para evitá-Io, os conflitos que daí lhe resultariam com pessoas cruéis, tudo isso, interpretado pela in­teligência, forneceria matéria para um livro... tão belo como se fosse imaginado, inventado."12
Em que consiste a interpretação da inteligência? Consiste em descobrir a essência como lei da série amorosa, o que signifi­ca dizer que na esfera do amor a essência não se separa de um tipo de generalidade; generalidade de série, generalidade pro­priamente serial. Cada sofrimento é particular na medida em que é sentido, na medida em que é provocado por determinada criatura, em determinado amor. Mas, porque esses sofrimentos se reproduzem e se entrelaçam, a inteligência extrai deles algu­ma coisa de geral, que também é alegria. A obra de arte "é pro­messa de felicidade porque nos ensina não só que  todo amor o geral jaz ao lado do particular como também a passar deste àquele, numa ginástica que, consistindo em desprezar-lhe o motivo para buscar-lhe a essência, nos fortalece contra a dor".13 O que repetimos é, cada vez, um sofrimento particular, mas a repe­tição é sempre alegre, o fato da repetição constitui uma alegria generalizada. Ou melhor, os fatos são sempre tristes e particula-
12.Ibid.
13.TR 148.
70
res, mas a idéia que deles extraímos é geral e alegre. A repetição amorosa não se separa de uma lei de progressão pela qual nos aproximamos de uma tomada de consciência que transmuta nossos sofrimentos em alegria. Nós nos apercebemos de que nossos sofrimentos não dependiam do objeto, eram "rodeios" ou "farsas" que preparávamos para nós mesmos, ou melhor, ar­madilhas e coquetismos da Idéia, alegrias da Essência. Há um trágico do que se repete, mas um cômico da repetição e, mais profundamente, a alegria da repetição compreendida ou da compreensão da lei. Exgaímos de nossas tristezas particulares uma Idéia geral; é que a Idéia era primeira, já se encontrava lá, como a lei da série já estava contida em seus primeiros termos. O humor da Idéia é manifestar-se na tristeza, é aparecer como um desgosto. Desse modo, o fim já aparecia no início: "As idéias são sucedâneos dos desgostos (...) Sucedâneos, aliás, só na or­dem do tempo, porque o elemento primitivo parece ser a idéia, não passando os pesares de vias de penetração inicial de certas noções."14
O trabalho da inteligência consiste em, sob a pressão da sensibilidade, transmutar nosso sofrimento em alegria, ao mes­mo tempo que o particular no geral. Somente ela pode desco­brir a generalidade e achá-la alegre, encontrando no final aquilo que já estava presente desde o começo, necessariamente inconsciente. Somente ela pode descobrir que os amados não foram causas que agiram de maneira autônoma, mas os termos de uma série que desfilavam em nós, os quadros vivos de um es­petáculo interior, os reflexos de uma essência. "Cada criatura que nos faz sofrer pode representar para nós uma divindade da qual é apenas um reflexo fragmentário e a derradeira manifesta­ção, divindade que, contemplada tão-somente como idéia, para logo transmuda em alegria a dor que experimentávamos. A arte
14. TR 150.
71
de viver consisle em nos sabermos servir de quem nos atormen­ta como de degraus de acesso à sua forma divina, povoando as­sim diariamente de deuses a nossa vida."15
A essência se encarna nos signos amorosos necessariamen­te sob uma forma serial, portanto geral. A essência é sempre di­ferença. No amor, porém, a diferença se situa no inconsciente: torna-se, de certo modo, genérica ou específica, determinando uma repetição cujos termos só se distinguem por diferenças infi­nitesimais e por contrastes sutis. Em suma, a essência assume a generalidade de um Tema ou de uma Idéia que serve de lei à série de nossos amores. É por isso que a encarnação da essência, a seleção da essência que se encarna nos signos amorosos, depende de condições extrínsecas e de contingências subjetivas mais do que nos signos sensíveis. Swann é o grande iniciador in­consciente, o ponto de partida da série; mas como não lamentar os temas sacrificados, as essências eliminadas, como os possíveis leibnizianos que não passam à existência e que teriam formado outras séries, em outras circunstâncias e sob outras condições? É a Idéia que determina a série de nossos estados subjetivos, mas também são ós acasos de nossas relações subjetivas que de­terminam a seleção da Idéia. Por isso a tentaçãocle uma inter­pretação subjetivista é muito mais forte no amor do que nos signos sensíveis: todo amor se liga a associações de idéias e a im­pressões subjetivas, e o seu fim se confunde com a destruição de uma "porção" de associações, como numa congestão cerebral em que uma artéria gasta se rompe.16
Nada mostra melhor a exterioridade da seleção do que a contingência na escolha da pessoa amada. Não apenas temos amores fracassados (srta. de Stermaria), que sabemos que por pouco poderiam ter dado certo, mas nossos amores bem­sucedidos, e a série que formam ao se encadearem, isto é, encar-
15.TR 144.
16.F 139.
72 nando determinada essência em vez de outra, dependem de ocasiões, de circunstâncias, de fatores extrínsecos.
Um dos casos mais evidentes é o seguinte: a criatura amada faz parte, de início, de um grupo onde ainda não se encontra in­dividualizada. Quem será a amada nesse grupo homogêneo? E por que acaso é Albertina quem encarna a essência, quando ou­tra poderia fazê-lo? Ou mesmo uma outra essência, encarnada em outra jovem, a que o herói poderia ser sensível, e que teria, pelo menos, modificado a série de seus amores? "Ainda agora a vista de uma me causava um prazer no qual entrava, numa pro­porção que eu não saberia dizer, a possibilidade de ver as outras seguirem-na mais tarde e, ainda que não viessem naquele dia, o ensejo de falar a respeito delas e saber que lhes seria contado que eu estivera na praia."17 Existe no grupo das jovens um mis­to, uma mistura de essências, sem dúvida vizinhas, com relação a que o herói é quase igualmente disponível: "Cada uma con­servava para mim, como no primeiro dia, qualquer coisa da es­sência das outras (...)."18
Albertina entra portanto na série amorosa, mas apenas por­que é extraída de um grupo, com toda a contingência que cor­responde a essa extração. Os prazeres que o herói experimenta no grupo são prazeres sensuais, mas não fazem parte do amor. Para tornar-se um termo da série amorosa é preciso que Alberti­na seja isolada do grupo em que aparece no início, é preciso que seja escolhida, e essa escolha não se faz sem incerteza e contin­gência. De modo inverso, o amor por Albertina só termina real­mente com um retornõao grupo: seja ao antigo grupo das jovens, tal como Andréa o simboliza depois da morte de Alber­tina ("nessa época eu sentia prazer em manter relações semicar­nais com ela, por causa do aspecto coletivo de que se revestia a princípio e que agora voltaria a caracterizar meu amor às moças
17.RF413.
18. SG 403.
73
do grupinho por muito tempo indiviso entre elas"); 19 seja a um grupo análogo, encontrado na rua, quando Albertina já estava morta, e que reproduzia, em sentido contrário, uma formação do amor, uma seleção da amada.20 Se, por um lado, grupo e série se opõem, por outro, eles são inseparáveis e complementares.
*
A essência, tal como se encarna nos signos amorosos, mani­festa-se sucessivamente sob dois aspectos. Em primeiro lugar, sob a forma das leis gerais da mentira. Pois é preciso mentir e só estamos dispostos a mentir a alguém que nos ama. Se a mentira obedece a determinadas leis é porque implica uma certa tensão no mentiroso, como um sistema de relações físicas entre a ver­dade e as denegações ou invenções sob as quais pretende-se es­condê-la: há, pois, leis de contato, de atração e de repulsão, que formam uma verdadeira "física" da mentira. Com efeito, a ver­dade está presente no amado que mente; ele tem um conheci­mento permanente dela, não a esquece, enquanto esquece rapidamente uma mentira improvisada. A coisa escondida age nele de tal maneira que de seu contexto ele extrai um pequeno fato verdadeiro destinado a garantir o conjunto da mentira. Mas é exatamente esse pequeno fato que o trai, porque seus ângulos se adaptam mal ao resto, revelando uma outra origem, um pertencimento a outro sistema; ou então a coisa escondida age a distância, atrai o mentiroso que, incessantemente, dele se acerca. Ele traça assintotas, acreditando tornar insignificante seu segredo através de alusões diminutivas, como Charlus di­zendo: "eu que tenho procurado a beleza sob todas as suas formas". Ou, então, inventamos uma multidão de detalhes ve­rossímeis, porque acreditamos que a própria verossimilhança é
19.F 141.
20.F 113-114.
74
uma aproximação do verdadeiro; mas o excesso de verossimi­lhança, como pés a mais num verso, trai nossa mentira e revela a presença da falsidade.
Não apenas a coisa escondida permanece presente no men­tiroso, "porque o mais perigoso de todos os encobrimentos é o da própria falta no espírito do culpado'',21 como também as coi­sas escondidas, não cessando de juntar-se umas às outras e de aumentar como uma negra bola de neve, fazem com que o men­tiroso seja sempre traído: inconsciente dessa progressão, ele mantém a mesma distância entre aquilo que confessa e aquilo que nega. Aumentando o que nega, ele confessa cada vez mais. A mentira perfeita suporia, no próprio mentiroso, uma prodi­giosa memória voltada para o futuro, capaz de deixar traços no porvir, tanto quanto a verdade. E, sobretudo, a mentira teria de ser "total". Essas condições não são possíveis; também as menti­ras fazem parte dos signos, são precisamente os signos dessas verdades que elas pretendem ocultar. "Ilegíveis e divinos vestí­gios."22 Ilegíveis, mas não inexplicáveis ou sem interpretação.
A mulher amada esconde um segredo, mesmo que este seja conhecido de todos os outros. O amante, como um prepotente carcereiro, esconde a criatura amada. É preciso ser duro, cruel e pérfido com a pessoa que se ama. Na verdade, o amante mente tanto quanto a amada: ele a seqüestra, evitando confessar-lhe seu amor, a fim de continuar melhor policial, melhor carcereiro. Ora, o essencial para a mulher é esconder a origem dos mundos que ela implica em si mesma, ponto de partida dos gestos, hábi­tos e gostos que ela temporariamente nos dedica. As mulheres amadas tendem para um segredo de Gomorra como para um pe­cado original: "a hediondez de Albertina."23 Mas os próprios amantes têm um segredo correspondente, uma hediondez aná-
21.SG 95.
22.CS 234.
23.F 151.
75
loga. Consciente ou não, é o segredo de Sodoma. De sorte que a verdade do amor é dualista e a série amorosa só é simples apa­rentemente, dividindo-se em duas séries mais profundas, repre­sentadas pela Srta. Vinteuil e por Charlus. O herói da Recherche tem, pois, duas revelações chocantes quando, em circunstân­cias semelhantes, surpreende a Srta. Vinteuil e, depois, Char­lus,24 Que significam essas duas séries da homossexualidade?
Proust procura explicá-las na passagem de Sodoma e Go­morra em que aparece constantemente uma metáfora vegetal. A verdade do amor é, de início, a divisão dos sexos. Vivemos sob a predição de Sansão: "Os dois sexos morrerão cada um para seu lado."25 Mas tudo se torna complicado porque os sexos separados, divididos, coexistem no mesmo indivíduo: "Herma­froditismo inicial" como numa planta ou num caramujo, que não podem ser fecundados por si próprios, mas "podem sê-lo por outros hermafroditas",26 Acontece, então, que o interme­diário, em lugar de assegurar a união do macho com a fêmea, desdobra cada sexo em si mesmo. Símbolo de uma autofecun­dação, tanto mais comovente por ser homossexual, estéril, indi­reta. Mais do que uma aventura, é a própria essência do amor. O Hermafrodita original produz continuamente as duas séries homossexuais divergentes, separando os sexos ao invés de reu­ni-los, de tal modo que os homens e as mulheres só aparente­mente se cruzam. É necessário afirmar com relação a todos os amantes e a todas as mulheres amadas aquilo que só é evidente em certos casos especiais: os amantes "representam para a mu­lher que gosta das mulheres o papel de outra mulher, e a mulher lhes oferece ao mesmo tempo aproximadamente o que encon­tram eles no homem". 27
24.SG 8.
25.SG 14.
26.SG 25.
27.SG 20.
76
No amor, a essência se encarna a princípio nas leis da men­tira, mas, em seguida, nos segredos da homossexualidade: a mentira não teria a generalidade que a torna essencial e signifi­cativa se não se referisse à homossexualidade como à verdade que ela encobre. Todas as mentiras se organizam e giram em tor­no dela, como em torno de seu eixo. A homossexualidade é a verdade do amor. Razão por que a série amorosa é realmente dupla: ela se organiza em duas séries que não encontram sua fonte apenas nas imagens do pai e da mãe, mas numa continui­dade filogenética mais profunda. O Hermafroditismo inicial é a lei contínua das séries divergentes; de uma série a outra vê-se constantemente o amor engendrar signos que são os de Sodoma e os de Gomorra.
*
Generalidade significa duas coisas: a lei de uma série (ou de várias séries) cujos termos diferem, ou o caráter de um grupo cujos elementos se assemelham. Sem dúvida alguma, os grupos intervêm no amor. O amante extrai a criatura amada de um conjunto preliminar e interpreta os signos, que são, a princípio, coletivos. Ou melhor: as mulheres de Gomorra ou os homens de Sodoma emitem "signos astrais", através dos quais se reco­nhecem e formam as associações malditas que reproduzem as duas cidades bíblicas.28 Acontece que o grupo não é essencial no amor; ele apenas proporciona as ocasiões. A verdadeira ge­neralidade do amor é serial: nossos amores só são profunda­mente vividos segundo as séries em que eles se organizam. O mesmo não acontece em relação ao mundanismo. As essên­cias ainda se encarnam nos signos mundanos, mas num último nível de contingência e de generalidade. Elas se encarnam ime-
28. SG 200-201.

77
diatamente nas sociedades, sua generalidade é apenas uma ge­neralidade de grupo: o último grau da essência.
Não há dúvida de que o “mundo" expressa forças sociais, históricas e políticas. Os signos mundanos, entretanto, são emi­tidos no vazio; assim atravessam distâncias astronômicas, que fazem com que a observação do mundanismo não se pareça ab­solutamente com um estudo microscópico, mas telescópico. Proust diz muitas vezes: em um certo nível das essências, o que interessa não é mais a individualidade, nem o detalhe, são as leis, as grandes distâncias e as grandes generalidades. O telescó­pio, não o microscópio.29 Se isso é verdadeiro em relação ao amor, com muito mais razão o é em relação ao mundo. O vazio é precisamente o meio portador de generalidade, meio físico pri­vilegiado para a manifestação de uma lei. Uma cabeça oca apre­senta melhores leis estatísticas do que uma matéria mais densa. "Os seres mais estúpidos manifestam nos gestos, nas palavras, nos sentimentos involuntariamente expressos, leis que não per­cebem mas deixam surpreendet pelo artista."30 Acontece, sem dúvida, que um gênio singular, uma alma dirigente presidam o curso' dos astros, tal como Charlus. Mas, da mesma forma que os astrônomos deixaram de acreditar nas almas dirigentes, também o mundo deixa de acreditar em Charlus. As leis que presidem as mudanças do mundo são leis mecânicas em que predomina o Esquecimento. (Em páginas célebres, Proust ana­lisa o poder do esquecimento social, em função da evolução dos salões, desde o caso Dreyfus até a Guerra de 1914. Poucos tex­tos fazem melhor comentário da frase de Lênin sobre a capaci­dade que tem a sociedade de substituir "os velhos preconceitos apodrecidos" por novos preconceitos, ainda mais infames ou mais estúpidos.)
29.TR 246.
30.TR 146.

78
Vazio, burrice, esquecimento: essa é a trindade do grupo mundano. Mas com ela o mundanismo ganha velocidade, mobilidade na emissão dos signos, perfeição no formalismo e generalidade no sentido: coisas essas que formam um meio in­dispensável ao aprendizado. À medida que a essência se encar­na de modo cada vez mais fraco, os signos adquirem uma importância cômica. Provocam-nos uma espécie de exaltação nervosa cada vez mais exterior; excitam a inteligência para se­rem interpretados. Nada provoca tanto nossa curiosidade como saber o que se passa na cabeça de um tolo. Num grupo, aqueles que são como papagaios são também "aves proféticas": sua ta­garelice assinala a presença de uma lei. 31 E se os grupos ainda fornecem uma rica matéria à interpretação é porque têm afini­dades ocultas, um conteúdo propriamente inconsciente. As verdadeiras famílias, os verdadeiros meios, os verdadeiros gru­pos são os meios, os grupos "intelectuais", isto é, nós sempre pertencemos à sociedade de onde emanam as idéias e os valores em que acreditamos. Não é o menor erro de Taine ou de Sainte-Beuve terem invocado a influência imediata dos meios simplesmente físicos e reais. Na verdade, o intérprete deve re­compor os grupos, neles descobrindo as famílias mentais a que estão relacionados. Pode acontecer a duquesas ou ao Sr. de Guermantes de falarem como pequeno-burgueses: a lei da so­ciedade e, mais genericamente, a lei da linguagem é "que nos expressemos como as pessoas de nossa classe mental e não da nossa casta de origem".32
31.TR 146.
32.CG 182.

79
Capítulo VII
O Pluralismo no Sistema dos Signos
A Recherche do tempo perdido se apresenta como um siste­ma de signos. Mas esse sistema é pluralista, não apenas porque a classificação dos signos utiliza critérios múltiplos, mas também porque devemos sempre conjugar dois pontos de vista distintos no estabelecimento desses critérios. Por um lado, devemos con­siderar os signos do ponto de vista do processo de um aprendiza­do. Qual é a potência e a eficácia de cada tipo de signo? Isto é, em que medida ele nos prepara para a revelação final? Que nos faz compreender, por si mesmo e imediatamente, através de uma lei de progressão que difere segundo os tipos, e que se rela­ciona com outros tipos por regras variáveis? Por outro lado, de­vemos considerar os signos do ponto de vista da revelação final. Esta se confunde com a Arte, a mais alta espécie de signos. Mas, na obra de arte, todos os outros signos são retomados, ocupam um lugar correspondente à eficácia que apresentavam na evo­lução do aprendizado e recebem uma explicação final das ca­racterísticas que então apresentavam, e que sentíamos sem poder compreendê-las totalmente.
Levando em consideração esses pontos de vista, o sistema utiliza sete critérios. Os cinco primeiros podem ser brevemente relembrados; os dois últimos têm conseqüências que devem ser desenvolvidas.
1 º) A matéria em que o signo é inscrito. Essas matérias são mais ou menos resistentes e opacas, mais ou menos desmateria-

80
lizadas, mais ou menos espiritualizadas. Os signos mundanos são mais materiais por evoluírem no vazio. Os signos amorosos são inseparáveis da força de um rosto, da textura de uma pele, da forma e do colorido de uma face: coisas que só se espirituali­zam quando a criatura amada dorme. Os signos sensíveis tam­bém são qualidades materiais, sobretudo os aromas e os sabores. Somente na Arte é que o signo se torna imaterial, ao mesmo tempo que seu sentido se torna espiritual.
2º) A maneira como alguma coisa é emitida e apreendida como signo e os perigos (que disso decorrem) de uma interpretação ora objetivista, ora subjetivista. Cada tipo de signo nos remete ao objeto que o emite como também ao sujeito que o apreende e o inter­preta. A princípio acreditamos que é preciso ver e escutar; ou que é preciso confessar (render uma homenagem ao objeto), como no amor; ou que é necessário observar e descrever a coisa sensível; e trabalhar, fazer um esforço de pensamento com a fi­nalidade de apreender as significações e os valores objetivos. Desiludidos, nos lançamos no jogo das associações subjetivas. Entretanto, para cada espécie de signo, esses dois momentos do aprendizado têm um ritmo e relações específicas.
3º) O efeito do signo sobre nós, o tipo de emoção que suscita. Exaltação nervosa dos signos mundanos; angústia e sofrimento dos signos amorosos; alegria extraordinária dos signos sensíveis (onde a angústia, entretanto, ainda desponta como a contradi­ção subsistente do ser e do nada), alegria pura dos signos da arte.
4º) A natureza do sentido e a relação do signo com o sentido. Os signos mundanos são vazios; substituem a ação e o pensamento, pretendem valer por seu sentido. Os signos amorosos são enga­nadores: seu sentido se encontra na contradição daquilo que revelam e do que pretendem esconder. Os signos sensíveis são verídicos, mas neles permanece a oposição da sobrevivência e do nada; e seu sentido ainda é material, reside em outra coisa. Entretanto, na medida em que nos elevamos até a arte, a rela­ção do signo com o sentido se torna cada vez mais próxima e ín-
81
tima. A arte é a bela unidade final de um signo imaterial e de um sentido espiritual.
5º) A principal faculdade que explica ou interpreta o signo, que desenvolve seu sentido. A inteligência para os signos mundanos; também a inteligência, mas de forma diferente, para os signos amorosos (o esforço da inteligência não é mais suscitado por uma exaltação que precisa ser acalmada, mas pelos sofrimentos da sensibilidade, que é necessário transmutar em alegria). Para os signos sensíveis, ora a memória involuntária, ora a imagina­ção, tal como nasce do desejo. Para os signos da arte, o pensa­mento puro como faculdade das essências.
6º) As estruturas temporais ou as linhas de tempo implicadas no signo e o tipo correspondente de verdade. O tempo é sempre neces­sário para a interpretação de um signo, o ternpo é sempre o de uma interpretação, isto é, de um desenvolvimento. No caso dos signos mundanos, perdemos tempo porque esses signos são vazios e reaparecem, intactos ou idênticos, no final de seu de­senvolvimento. Como um monstro, como uma espiral, eles re­nascem de suas próprias metamorfoses. Também existe uma verdade do tempo que se perde, como se fora a maturação do intérprete, pois esse não se redes cobre de forma idêntica. Com relação aos signos do amor, nos situamos, sobretudo, no tempo perdido: tempo que altera os seres e as coisas e que os faz passar. Neles ainda há uma verdade – as verdades desse tempo perdido. Mas não apenas a verdade do tempo perdido é múltipla, aproxi­mativa, equívoca, como também só a captamos no momentc em que ela deixou de nos interessar, quando o eu do intérprete, o Eu que amava, já não mais existe. Assim acontece tanto com Gilberta como com Albertina: no que diz respeito ao amor, a verdade sempre aparece tarde demais. O tempo do amor é um tempo perdido, porque o signo só se desenvolve na medida em que desaparece o eu que correspondia ao seu sentido. Os signos sensíveis nos apresentam uma nova estrutura do tempo: tempo que se redescobre no seio do próprio tempo perdido, imagem da
82
eternidade. É que os signos sensíveis (por oposição aos signos amorosos) têm o poder seja de suscitar, pelo desejo e a imagina­ção, seja de ressuscitar, pela memória involuntária, o Eu que. corresponde ao seu sentido. Finalmente, os signos da arte defi­nem o tempo redescoberto: tempo primordial absoluto, verda­deira eternidade que reúne o sentido e o signo.
Tempo que se perde, tempo perdido, tempo que se redesco­bre e tempo redescoberto são as quatro linhas do tempo. No­tar-se-á, no entanto, que, se cada tipo de signos tem sua linha particular, ele participa das outras linhas, entrecruzando-se com elas ao se desenvolver. É, portanto, nas linhas do tempo que os signos interferem uns com os outros e multiplicam suas combina­ções. O tempo que se perde se prolonga em todos os outros sig­nos, com exceção dos da arte. Inversamente, o tempo perdido já se encontra nos signos mundanos, alterando-os e comprome­tendo sua identidade formal. Também já está subjacente nos signos sensíveis, introduzindo um sentimento de nada, mesmo nas alegrias da sensibilidade. Por sua vez, o tempo que se redes­cobre não é estranho ao tempo perdido: nós o redescobrimos no próprio âmago do tempo perdido. Enfim, o tempo redes coberto da arte engloba e compreende todos os outros, pois é unicamen­te nele que cada linha de tempo encontra sua verdade, seu lu­gar e seu resultado do ponto de vista da verdade.
De determinado ponto de vista, cada linha de tempo vale por si mesma ("todos esses planos diferentes, segundo os quaiso Tempo, desde que, nesta festa, eu o recapturara, dispunha a mi­nha vida... ").l Essas estruturas temporais são, portanto, como "séries diferentes e paralelas".2 Mas esse paralelismo ou essa au­tonomia das séries não exclui, sob outro ponto de vista, uma es­pécie de hierarquia. De uma linha a outra, a relação entre o signo e o sentido de faz mais íntima, mais necessária e mais pro-
1.TR 239.
2.SG 128.
83
funda. De cada vez recuperamos na linha superior o que estava perdido nas outras, tudo acontecendo como se as linhas do tempo se partissem, encaixando-se umas nas outras.
Desse modo, é o próprio Tempo que é serial; cada aspecto do tempo passa a ser, desde então, um termo da série temporal absoluta, remetendo a um Eu que dispõe de um campo de ex­ploração cada vez mais vasto, cada vez mais individualizado. O tempo primordial da arte imbrica todos os tempos, o Eu absolu­to da Arte engloba todos os Eus.
7º) A essência. Dos signos mundanos aos signos sensíveis, a relação do signo com seu sentido é cada vez mais íntima. Assim se delineia o que os filósofos chamariam de uma "dialética as­cendente". Mas apenas no nível mais profundo, no nível da arte, é que a Essência é revelada: como a razão dessa relação e de suas variações. Então, a partir dessa revelação final, pode­mos descer os níveis. Não que tenhamos de retomar à vida, ao amor, à mundanidade, mas descemos a série do tempo, consig­nando, a cada linha temporal e a cada espécie de signos, a ver­dade que lhes é peculiar. Quando atingimos a revelação da arte, aprendemos que a essência já se encontrava nos níveis mais bai­xos. Era ela que, em cada caso, determinava a relação do signo com seu sentido. Essa relação é tanto mais forte quanto a essên­cia se encama com mais necessidade e individualidade; ao con­trário, tanto mais enfraquecida quanto a essência apresenta maior generalidade e se encarna em dados mais contingentes. Assim, na arte, a própria essência individualiza o sujeito em que se incorpora e determina de modo absoluto os objetos que a exprimem. Nos signos sensíveis, entretanto, a essência começa a adquirir um mínimo de generalidade, sua encamação depende de dados contingentes e de determinações exteriores. Sobretu­do nos signos do amor e nos signos mundanos: sua generalidade é, então, uma generalidade de série ou uma generalidade de grupo; sua seleção remete cada vez mais a determinações obje­tivas extrínsecas e mecanismos subjetivos de associação. Por
84
essa razão, não podíamos compreender imediatamente que as Essências já animavam os signos mundanos, os signos amoro­sos, os signos sensíveis. Mas quando os signos da arte nos reve­lam a essência, reconhecemos seu efeito nos outros campos. Sabemos reconhecer as marcas de seu esplendor atenuado, en­fraquecido. Estamos, então, em condições de dar à essência o que lhe pertence e de recuperar todas as verdades do tempo, como também todas as espécies de signos, para fazer delas par­tes integrantes da própria obra de arte.
Implicação e explicação, envolvimento e desenvolvimen­to, tais são as categorias da Recherche. Por um lado, o sentido é implicado no signo; é como que uma coisa enrolada em outra. O prisioneiro, a alma prisioneira significam que há sempre um encaixamento, um enrolamento do diverso. Os signos emanam de objetos que são como caixas ou vasos fechados. Os objetos retêm uma alma cativa, a alma de outra coisa que se esforça para entreabrir a tampa.3 Proust gosta da "crença céltica de que as almas daqueles a quem perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, num vegetal, numa coisa inanimada; efetivamente perdidas, para nós, até o dia, que para muitos nunca chega, em que nos acontece passar por perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe serve de prisão."4 Mas às me­táforas de implicação correspondem, por outro lado, as imagens de explicação. Pois o signo se desenvolve, se desenrola no mes­mo tempo em que é interpretado. O amante ciumento desen­volve os mundos possíveis encerrados na criatura amada. O homem sensível libera as almas implicadas nas coisas, mais ou menos como quem vê os pedaços de papel do jogo japonês des­dobrando-se na água, estirando-se ou explicando-se, ao formar flores, casas e personagens.5 O próprio sentido se confunde com
3.CG 154.
4.CS 44-45.
5.CS 47.
85
esse desenvolvimento do signo, como o signo se confundia com o enrolamento do sentido. Assim, a Essência é, finalmente, o terceiro termo que domina os dois outros, que dirige seu movi­mento: a essência complica o signo e o sentido, ela os mantém complicados, põe um no outro. Ela mede, em cada caso, a rela­ção entre o signo e o sentido, seu grau de afastamento ou de proximidade, seu grau de unidade. Sem dúvida o signo, por si próprio, não se reduz ao objeto, mas ainda está parcialmente contido nele. Sem dúvida o sentido, por si próprio, não se reduz ao sujeito, mas depende parcialmente do sujeito, das circuns­tâncias e das associações subjetivas. Além do signo e do senti­do, há a Essência como razão suficiente dos dois outros termos e de sua relação.
O essencial na Recherche não é a memória nem o tempo, mas o signo e a verdade. O essencial não é lembrar-se, mas aprender; porque a memória só vale como uma faculdade capaz de interpretar certos signos e o tempo só vale como a matéria ou o tipo dessa ou daquela verdade. E a lembrança, ora voluntária, ora involuntária, só intervém em momentos precisos do apren­dizado, para contrair o efeito ou para abrir novos caminhos. As noções da Recherche são: o signo, o sentido, a essência; a conti­nuidade dos aprendizados e o modo brusco das revelações. Sa­ber que Charlus é homossexual constitui um deslumbramento; mas foi necessária a maturação progressiva e contínua do intér­prete, e depois o salto qualitativo em um novo saber, em um novo domínio de signos. Os leitmotive da Recherche são: eu ainda não sabia; eu compreenderia mais tarde; quando deixava de aprender, eu não me interessava mais. As personagens da Re­cherche só adquirem importância quando emitem signos a serem decifrados, num ritmo de tenwo mais ou menos profundo. A avó, Francisca, a Sra. de Guermantes, Charlus, Albertina só va­lem Relo que nos ensinam. "A alegria com que fiz meu primeiro aprendizado quando Francisca... ", "com Albertina eu nada mais tinha a aprender... ".
86
Há uma visão proustiana do mundo que se define, em prin­cípio, por aquilo que exclui: nem matéria bruta, nem espírito voluntário; nem física, nem filosofia. A filosofia supõe enuncia­dos diretos e significações explícitas saídos de um espírito que quer a verdade. A física supõe uma matéria objetiva e não ambí­gua, sujeita às condições do real. Erramos quando acreditamos nos fatos: só há signos. Erramos quando acreditamos na verda­de: só há interpretações. O signo tem um sentido sempre equí­voco, implícito e implicado. "Eu seguira em minha vida uma marcha inversa à dos povos, que não se servem da escrita foné­tica senão depois de terem considerado os caracteres como uma seqüência de símbolos."6 O que reúne o perfume de uma flor e o espetáculo de um salão, o gosto de uma madeleine e a emoção de um amor, é o signo e o correspondente aprendizado. O perfume de uma flor;quando esta emite um signo, ultrapassa, ao mesmo tempo, as leis da matéria e as categorias do espírito. Não somos físicos nem metafísicos: devemos ser egiptólogos. Pois não há leis mecânicas entre as coisas, nem comunicações voluntárias entre os espíritos; tudo é implicado, complicado, tudo é signo, sentido, essência. Tudo existe nessas zonas obscuras em que pe­netramos como em criptas, para aí decifrar hieróglifos e lingua­gens secretas. O egiptólogo, em todas as coisas, é aquele que faz uma iniciação – é o aprendiz.
Não existem coisas nem espíritos, só existem corpos: corpos astrais, corpos vegetais... A biologia teria razão se soubesse que os corpos em si mesmos já são linguagem. Os lingüistas teriam razão se soubessem que a linguagem é sempre a dos corpos. Todo sintoma é uma palavra, mas, antes de tudo, todas as pala­vras são sintomas. "As mesmas palavras só me elucidavam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue às faces de uma pessoa que se perturba, ou ainda como um silêncio
6. P 70.

87
súbito."7 Não devemos estranhar que o histérico faça falar seu corpo. Ele redes cobre uma linguagem primitiva, a verdadeira linguagem dos símbolos e dos hieróglifos. Seu corpo é um Egito. As mímicas da Sra. Verdurin, seu medo de que o queixo se desloque, suas atitudes artistas que parecem as de uma pessoa que dorme, seu nariz gomenolado formam um alfabeto para os iniciados.
7. P 70.

88
Conclusão
A Imagem do Pensamento

Se o tempo tem uma importância fundamental na Recher­che, é porque toda verdade é verdade do tempo. A Recherche é, antes de tudo, uma busca da verdade, em que se manifesta toda a dimensão "filosófica" da obra de Proust, em rivalidade com a filosofia. Proust constrói uma imagem do pensamento que se opõe à da filosofia, combatendo o que há de mais essencial numa filosofia clássica de tipo racionalista: seus pressupostos. O filósofo pressupõe de bom grado que o espírito como espírito, o pensador como pensador quer o verdadeiro, ama ou deseja o que é verdadeiro, procura naturalmente o verdadeiro. Ele ante­cipadamente se confere uma boa vontade de pensar: toda a sua busca é baseada numa "decisão premeditada". Daí decorre o método da filosofia: de determinado ponto de vista, a busca da verdade seria a coisa mais natural e mais fácil possível: bastaria uma decisão e um método capaz de vencer as influências exte­riores que desviam o pensamento de sua vocação e fazem com que ele tome o falso pelo verdadeiro. Tratar-se-ia de descobrir e organizar as idéias segundo uma ordem que seria a do pensa­mento, como significações explícitas ou verdades formuladas que viriam saciar a busca e assegurar o acordo entre os espíritos.
Na palavra filósofo existe "amigo". É muito significativo que Proust dirija a mesma crítica à filosofia e à amizade. Os ami­gos são, um em relação ao outro, como que espíritos de boa von­tade que sempre concordam a respeito da significação das
89
coisas e das palavras, comunicando-se sob o efeito de uma boa vontade comum. A filosofia é como a expressão de um Espírito universal que concorda consigo mesmo para determinar signifi­cações explícitas e comunicáveis. A crítica de Proust toca no essencial: as verdades permanecem arbitrárias e abstratas en­quanto se fundam na boa vontade de pensar. Apenas o conven­cional é explícito. Razão pela qual a filosofia, como a amizade, ignora as zonas obscuras em que são elaboradas as forças efeti­vas que agem sobre o pensamento, as determinações que nos forçam a pensar. Não basta uma boa vontade nem um método bem elaborado para ensinar a pensar, como não basta um amigo para nos aproximarmos do verdadeiro. Os espíritos só se comu­!1icam no convencional; o espírito só engendra o possível. Às verdades da filosofia faltam a necessidade e a marca da necessi­dade. De fato, a verdade não se dá, se trai; não se comunica, se interpreta; não é voluntária, é involuntária.
O grande tema do Tempo redescoberto é o seguinte: a busca da verdade é a aventura própria do involuntário. Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada significa. Mais importante do que o pensamento é o que "dá que pensar"; mais importante do que o filósofo é o poeta. Victor Hugo faz filosofia em seus primeiros poemas, porque "ele ainda pensa, em vez de contentar-se, como a natureza, em dar que pensar".l Mas o poeta aprende que o essencial está fora do pensamento, naquilo que força a pensar. O leitmotiv do Tempo redes coberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar, encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar.
"Porque as verdades direta e claramente apreendidas pela inteligência no mundo da plena luz são de qualquer modo mais superficiais do que as que a vida nos comunica à nossa revelia, numa impressão física, já que entrou pelos sentidos, mas da qual
1. CG 428.
90
podemos extrair o espírito. (...) Era mister tentar interpretar as sensações como signos de outras tantas leis e idéias, procurando pensar, isto é, fazendo sair da penumbra o que sentira, conver­tê-lo em seu equivalente espiritual. (...) Pois reminiscências como o ruído do garfo e o sabor da madeleine, ou verdades escri­tas por figuras cujo sentido eu buscava em minha cabeça, onde campanários, plantas sem nome, compunham um alfarrábio complicado e florido, todas, logo de início, privavam-me da li­berdade de escolher entre elas, obrigavam-me a aceitá-las tais como me vinham. E via nisso a marca de sua autenticidade. Não procurara as duas pedras do calçamento em que tropeçara no pátio. Mas o modo fortuito, inevitável, porque surgira a sensa­ção, constituía justamente uma prova da verdade do passado que ressuscitava das imagens que desencadeava, pois percebe­mos seu esforço para aflorar à luz, sentimos a alegria do real re­capturado. (...) Do livro subjetivo composto por esses sinais desconhecidos (sinais em relevo, dir-se-ia, que minha atenção procurava, roçava, contornava como um mergulhador em suas sondagens) ninguém me poderia, com regra alguma, facilitar a leitura, consistindo esta num ato criador que não admite su­plentes nem colaboradores... Por possuírem apenas uma verda­de lógica, uma verdade possível, as idéias selecionadas pela inteligência pura são selecionadas arbitrariamente. O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é o nosso único livro. Não que as idéias por nós elaboradas não possam ser logicamen­te certas, mas não sabemos se são verdadeiras. Só a impressão, por mofina que lhe pareça a matéria e inverossímeis as pegadas, é um critério de verdade e como tal deve ser exclusivamente apreendida pelo espírito, sendo, se ele lhe souber extrair a ver­dade, a única apta a conduzi-lo à perfeição e enchê-lo da mais pura alegria."2
2. TR 129-130.
91
O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pen­sar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao con­trário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese implica al­guma coisa que violenta o pensamento, que O tira de seu natu­ral estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre interpretar, isto é, explicar, desenvolver, decifrar, tradu­zir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver são a forma da criação pura. Nem existem significações explícitas nem idéias claras, só existem sentidos implicados nos signos; e se O pensa­mento tem o poâer de explicar o signo, de desenvolvê-lo em uma Idéia, é porque a Idéia já estava presente no signo, em esta­do envolvido e enrolado, no estado obscuro daquilo que força a pensar. Só procuramos a verdade no tempo, coagidos e força­dos. Quem procura a verdade é o ciumento que descobre um signo mentiroso no rosto da criatura amada; é o homem sensí­vel quando encontra a violência de uma impressão; é o leitor, o ouvinte, quando a obra de arte emite signos, o que o forçará tal­vez a criar, como o apelo do gênio a outros gênios. As comuni­cações de uma amizade tagarela nada são em comparação com as interpretações silenciosas de um amante. A filosofia, com todo o seu método e a sua boa vontade, nada significa diante das pressões secretas da obra de arte. A criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos. A obra de arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumen­to, divino intérprete que vigia os signos pelos quais a verdade se trai.
A aventura do involuntário se encontra no nível de cada faculdade. Os signos mundanos e os signos amorosos são inter­pretados pela inteligência de duas maneiras diferentes. Mas não se trata mais aqui da inteligência abstrata e voluntária, que pre­tende encontrar por si mesma as verdades lógicas, ter sua pró-
92
pria ordem e se antecipar às pressões que surgem de fora. Trata-se de uma inteligência involuntária que sofre a pressão dos signos e só se anima para interpretá-los, para conjurar assim vazio em que ele se asfixia, o sofrimento que a sufoca. Tanto na ciência quanto na filosofia, a inteligência vem sempre antes; mas a especificidade dos signos é que eles recorrem à inteligên­cia considerada como algo que vem depois, que deve vir de­pois.3 O mesmo acontece com a memória. Os signos sensíveis nos forçam a procurar a verdade, mas mobilizam uma memória involuntária (ou uma imaginação involuntária nascida do dese­jo). Finalmente, os signos da arte nos forçam a pensar: eles mobilizam o pensamento puro como faculdade das essências. Eles desencadeiam no pensamento o que menos depende de sua boa vontade: o próprio ato de pensar. Os signos mobilizam, coagem uma faculdade: seja inteligência, memória ou imaginação. Essa faculdade, por sua vez, põe o pensamento em movimento, força-o a pensar a essência. Sob os signos da arte aprendemos o que é o pensamento puro como faculdade das essências e como a inteligência, a memória ou a imaginação o diversificam com relação às outras espécies de signos.
Voluntário e involuntário não designam faculdades dife­rentes, mas um exercício diferente das mesmas faculdades. A percepção, a memória, a imaginação, a inteligência, o próprio pensamento só têm um exercício contingente quando se exer­cem voluntariamente; então, aquilo que percebemos poderia também ser lembrado, imaginado, concebido, e inversamente. A percepção não nos dá nenhuma verdade profunda, nem a memória voluntária nem o pensamento voluntário: apenas ver­dades possíveis. Nada nos força a interpretar alguma coisa, nada nos força a decifrar a natureza de um signo, nada nos força a mergulhar como "um mergulhador em suas sondagens". Todas
3. TR 130.
93
as faculdades se exercem harmoniosamente, mas uma subs­tituindo a outra, no arbitrário e no abstrato. Ao contrário, cada vez que uma faculdade toma sua forma involuntária ela des­cobre e atinge seu próprio limite, eleva-se a um exercício transcendente, compreende a própria necessidade como sua potência insubstituível; deixa de ser permutável. Ao invés de uma percepção indiferente, uma sensibilidade que capta e rece­be os signos: o signo é o limite dessa sensibilidade, sua vocação, seu exercício extremo. Em lugar de uma inteligência voluntá­ria, de uma memória voluntária, de uma imaginação voluntária, todas essas faculdades surgem em sua forma involuntária e transcendente, quando então cada uma descobre aquilo que só ela tem o poder de interpretar, cada uma explica um tipo de signo que especificamente lhe violenta. O exercício involuntário é o limite transcendente ou a vocação de cada faculdade. Em lu­gar do pensamento voluntário, tudo que força a pensar, tudo que é forçado a pensar, todo pensamento involuntário que só pode pensar a essência. Só a sensibilidade apreende o signo como tal: só a inteligência, a memória ou a imaginação expli­cam o sentido, cada qual segundo uma determinada espécie de­signo; só o pensamento puro descobre a essência, é forçado a pensar a essência como a razão suficiente do signo e de seu sen­tido.
*
É bem possível que a crítica da filosofia, tal como Proust a realiza, seja eminentemente filosófica. Que filósofo não deseja­ria construir uma imagem do pensamento que não dependesse mais de uma boa vontade do pensador e de uma decisão preme­ditada? Sempre que se sonha com um pensamento concreto e perigoso, sabe-se muito bem que ele não depende de uma deci­são nem de um método explícitos, mas de uma violência encon­trada, refratada, que nos conduz, independentemente de nossa vontade, até as Essências. Pois as essências vivem em zonas obs-
94
curas nunca nas regiões temperadas do claro e do distinto. Elas estão enroladas naquilo que força a pensar; não respondem ao nosso esforço voluntário; só se deixam pensar quando somos coagidos a fazê-lo.
Proust é platônico, e não vagamente porque invoca as es­sências ou as Idéias a propósito da pequena frase de Vinteuil. Platão constrói uma imagem do pensamento sob o signo dos en­contros e das violências. Em certa passagem da República, Pla­tão distingue duas espécies de coisas no mundo: as que deixam o pensamento inativo ou lhe dão apenas o pretexto de uma apa­rência de atividade e as que fazem pensar, que forçam a pensar. 4 As primeiras são os objetos de recognição; todas as faculdades se exercem sobre os objetos, mas num exercício contingente que nos faz dizer "é um dedo", é uma maçã, é uma casa... Outras coisas, ao contrário, nos forçam a pensar: não mais objetos reco­nhecíveis, mas coisas que violentam, signos encontrados. São "percepções contrárias ao mesmo tempo", diz Platão. (Proust dirá: sensações comuns a dois lugares, a dois momentos.) O sig­no sensível nos violenta: mobiliza a memória, põe a alma em movimento; mas a alma, por sua vez, impulsiona o pensamento, lhe transmite a pressão da sensibilidade, força-o a pensar a es­sência como a única coisa que deva ser pensada. Assim, as fa­culdades entram num exercício transcendente em que cada uma afronta e encontra seu limite: a sensibilidade, que apreen­de o signo; a alma, a memória, que o interpreta; o pensamento, forçado a pensar a essência. Com justa razão pode Sócrates di­zer: sou o Amor mais do que o Amigo, sou o Amante; sou a arte mais do que a filosofia; sou a coação e a violência, mais do que a boa vontade. O Banquete, Fedra e Fédon são os três grandes es­tudos sobre os signos.
4. Piarão, República, VII, 523 b-525 b.

95
Mas o demônio socrático, a ironia, consiste em antecipar os encontros. Em Sócrates, a inteligência precede os encontros; provoca-os, suscita-os, organiza-os. O humor de Proust é de ou­tra natureza: é o humor judeu contra a ironia grega. É preciso ser dotado para os signos, predispor-se ao seu encontro, ex­por-se à sua violência. A inteligência vem sempre depois; ela é boa quando vem depois, só é boa quando vem depois. Vimos como essa diferença com relação ao platonismo acarreta muitas outras. Não há Logos, só há hieróglifos. Pensar é, portanto, inter­pretar, traduzir. As essências são, ao mesmo tempo, a coisa a tra­duzir e a própria tradução; o signo e o sentido. Elas se enrolam no signo para nos forçar a pensar, e se desenrolam no sentido para serem necessariamente pensadas. Sempre o hieróglifo, cujo duplo símbolo é o acaso do encontro e a necessidade do pensamento: "fortuito e inevitável".

SEGUNDA PARTE
A Máquina Literária

99
Capítulo I
Antilogos
Proust vive, a seu modo, a oposição entre Atenas e Jerusa­lém. No decorrer da Recherche ele elimina muitas coisas ou muitas pessoas que aparentemente formam uma mistura hete­róclita: os observadores, os amigos, os filósofos, os tagarelas, os homossexuais à grega, os intelectuais e os voluntariosos. Mas todos eles participam do logos e são, sob diversos aspectos, as personagens da mesma dialética universal: a dialética como "Conversa entre Amigos", em que wdas as faculdades se exer­cem voluntariamente e colaboram, sob a égide da Inteligência, para ligar a observação das Coisas, a descoberta das Leis, a for­mação das Palavras, a análise das Idéias e tecer continuamente o vínculo entre a Parte e o Todo e entre o Todo e a Parte. Obser­var cada coisa como um todo e depois pensá-la, por sua lei, como parte de um todo, ele mesmo presente, por sua Idéia, em cada uma das partes. Não será o logos universal, o gosto pela to­talização, que se encontra, de diferentes modos, na conversa dos amigos, na verdade racional e analítica dos filósofos, na dé­marche dos sábios, na obra de arte premeditada dos literatos, no simbolismo convencional das palavras que todos empregam?!
1.A dialética não é separável dessas características extrínsecas; é assim que Bergson a define pelas duas características da conversa entre amigos e da significação con­vencional das palavras nas cidades (cf. La pensée et le mouvant, Presses Universitai­res de France, ps. 86-88).
100
No logos há um aspecto, por mais oculto que esteja, pelo qual a Inteligência vem sempre antes, pelo qual o todo já se en­contra presente e a lei já conhecida antes daquilo a que se vai aplicá-Ia: passe de mágica dialético, em que nada mais se faz do que reencontrar o que já estava dado de antemão e de onde se tiram as coisas que aí tinham sido colocadas. (Reconhecem-se restos de um logos em Sainte-Beuve e seu detestável método, quando interroga os amigos de um autor para avaliar a obra como produto de uma família, de uma época e de um meio, mesmo que considere, por sua vez, a obra como um todo que reage sobre o meio. Método que o levou a considerar Baudelaire e Stendhal um pouco como Sócrates considerou Alcebíades: gentis rapazes que merecem ser conhecidos. E Goncourt dispõe ainda das migalhas do logos quando observa o banquete dos Verdurin e os convidados reunidos "para conversas de alto ní­vel, entremeadas de jogos inocentes".)2
A Recherche é construída sobre uma série de oposições. À ob­servação Proust opõe a sensibilidade; à filosofia, o pensamento; à reflexão, a tradução; ao uso lógico ou conjunto de todas as nossas faculdades, que a inteligência precede e faz convergir na ficção de uma "alma total", um uso dislógico e disjunto que mostra que nunca dispomos de todas as faculdades ao mesmo tempo e que a inteligência vem sempre depois.3 Mais ainda: à amizade opõe-se o amor: à conversa, a interpretação silenciosa; à homossexuali­dade grega, a judia (a amaldiçoada); às palavras, os nomes; às sig­nificações explícitas, os signos implícitos e os sentidos enrolados. "Eu seguira em minha vida uma marcha inversa à dos povos, que não se servem da escrita fonética senão depois de só terem consi­derado os caracteres como uma seqüência de símbolos; eu, que
2.TR 13. Foi nesse pastiche de Goncourt que Proust levou às últimas conseqüências sua crítica à observação, que constitui um dos temas constantes da Recherche.
3.SG 127; sobre a inteligência que deve vir depois, cf. TR 130 e todo o prefácio de Contre Sainte-Beuve.
101
durante tantos anos não buscara a vida e o pensamento reais das pessoas senão no enunciado direto que deles me forneciam elas voluntariamente, chegara, por culpa delas, a, pelo contrário, só dar importância aos testemunhos que não são uma expressão ra­cional e analítica da verdade; as mesmas palavras só me elucida­vam sob a condição de serem interpretadas como um afluxo de sangue às faces de uma pessoa que se perturba, ou ainda como um silêncio súbito."4 Não que Proust substitua a lógica do Ver­dadeiro por uma simples psicofisiologia dos motivos. É o ser da verdade que nos força a procurá-la onde ela reside, naquilo que está implicado ou complicado, e não nas imagens claras e nas idéias manifestas da inteligência.
Consideremos três personagens secundários da Recherche que, por certos aspectos, estão ligados ao logos: Saint-Loup, in­telectual ávido de amizade; Norpois, obcecado pelas significa­ções convencionais da diplomacia; Cottard, que escondeu sua timidez com a máscara fria do discurso científico autoritário. Ora, cada uma deles revela, a seu modm, a falência do logos e só tem valor por sua familiaridade com os signos mudos, fragmen­tários e subjacentes, que o integram nessa ou naquela parte da Recherche. Cottard, imbecil iletrado, encontra sua genialidade no diagnóstico, isto é, na interpretação das síndromes equívo­cas.5 Norpois sabe muito bem que as convenções da diplomacia, como as do mundanismo, mobilizam e restituem signos puros sob as significações explícitas empregadas.6 Saint-Loup explica
4.P 70.
5.RF 3, 54-55.
6.CG 201-202: "O Sr. de Norpois, aflito com o aspecto que iam tomar os aconteci­mentos, sabia muito bem que não era com a palavra 'paz' ou com a palavra 'guerra' que lhe seriam notificados, mas com uma outra, banal em aparência, terrível ou bendita, e que o diplomata, com auxílio de sua cifra, saberia imediatamente ler, e à qual responderia, para salvaguardar a dignidade da França, com outra palavra igualmente banal, mas sob a qual o ministro da nação inimiga veria em seguida: guerra."
102que a arte da guerra depende menos da ciência e do raciocínio do que da penetração de signos sempre parciais, signos ambí­guos que envolvem fatores heterogênenos ou mesmo signos fal­sos destinados a enganar o adversário.7 Não há lagos da guerra, da política ou da cirurgia, mas apenas códigos enrolados nas matérias e nos fragmentos não totalizáveis que fazem do estra­tegista, do diplomata e do médico pedaços mal ajustados de um divino intérprete, mais próximo da Sra. de Thebes do que de um mestre da dialética. Proust sempre contrapõe o mundo dos signos e dos sintomas ao mundo dos atributos, o mundo do pa­thos ao mundo do lagos, o mundo dos hieróglifos e dos ideogra­mas ao mundo da expressão analítica, da escritura fonética e do pensamento racional. São constantemente recusados por ele grandes temas herdados dos gregos: o philos, a sophia, o diálogo, o lagos, a phoné; e somente os ratos que aparecem em nossos pesa­adelos "fazem discursos ciceronianos". O mundo dos signos opõe-se ao lagos de cinco pontos de vista: pela figura das partes que esses signo; recortam no mundo, pela natureza da lei que revelam, pelo uso das faculdades que requerem, pelo tipo de unidade que deles decorre e pela estutura da linguagem que os traduz e interpreta. É de todos esses pontos de vista – partes, lei, uso, unidade, estilo – que é preciso confrontar e opor o sig­no e o lagos, o pathos e o lagos.
*
Vimos que havia um platonismo proustiano: toda a Recher­che é uma experiência das reminiscências e das essências. Sa­bemos, também, que o uso disjunto das faculdades em seu exercício involuntário tem como modelo Platão, quando este apresenta uma sensibilidade que se expõe à violência dos sig­nos, uma alma memorante que os interpreta e redes cobre seu
7. CG 84.
103
sentido, um pensamento inteligente que descobre a essência. Entretanto, há uma diferença evidente: a reminiscência platô­nica tem como ponto de partida qualidades ou relações sen­síveis apreendidas umas nas outras, tomadas em seu devir, em sua variação, em sua posição instável, em sua "fusão mútua" (como o igual que, sob certos aspectos, é desigual, o grande que se torna pequeno, o pesado que é inseparável do leve... ). Mas esse devir qualitativo representa um estado de coisas, um esta­do do mundo que, mais ou menos e segundo suas forças, imita a idéia. E a idéia como ponto de chegada da reminiscência é a es­sência estável, a coisa em si separando os contrários, introdu­zindo no todo a justa medida (a igualdade que só é iguaL). Razão por que a idéia vem sempre "antes", é sempre pressupos­ta, mesmo quando só é descoberta depois. O ponto de partida só vale por sua capacidade de já imitar o ponto de chegada, de tal modo que o uso disjunto das faculdades é apenas um "prelú­dio" à dialética que os reúne em um mesmo lagos, um pouco como a construção dos arcos de círculo prepara o giro do círculo inteiro. Como diz Proust, resumindo toda a sua crítica à dialéti­ca: a inteligência vem sempre antes.
Não é absolutamente o que acontece na Recherche: o devir qualitativo, a mútua fusão, "a instável oposição" são inscritos num estado d'alma e não num estado de coisas ou do mundo. Um raio oblíquo do sol poente, um perfume, um sabor, uma cor­rente de ar, um complexo qualitativo efêmero são valorizados apenas pelo "lado subjetivo" em que penetram. É por essa razão que a reminiscência intervém: a qualidade é inseparável de uma cadeia de associação subjetiva que não estamos isentos de experimentar quando a sentimos pela primeira vez. Certa­mente o sujeito não é a última palavra da Recherche: a fraqueza de Swann é ater-se às simples associações, prisioneiro de seus estados d'alma, associando a pequena frase musical de Vinteuil ao amor que teve por Odette ou às folhagens do Bois, onde ele a
104
ouviu.8 As associações subjetivas, individuais, só existem para serem ultrapassadas no caminho para a essência; o próprio Swann pressente que o gozo da arte, "ao invés de ser puramente individual como o do amor", remete a uma "realidade su­perior". Mas a essência, por sua vez, não é mais a essência está­vel, a idealidade vista, que reúne o mundo em um todo e nele introduz a justa medida. A essência, segundo Proust, como ten­tamos demonstrar, não é algo visto, mas uma espécie de ponto de vista superior. Ponto de vista irredutível que significa tanto o nascimento do mundo quanto o caráter original de um mundo. Nesse sentido a obra de arte constitui e reconstitui sempre o co­meço do mundo, mas forma também um mundo específico ab­solutamente diferente dos outros, e envolve uma paisagem ou lugares imateriais inteiramente distintos do lugar em que o apreendemos. Sem dúvida, é essa estética do ponto de vista que aproxima Proust de Henry James. Mas o importante é que o ponto de vista ultrapassa o indivíduo, tanto quanto a essência ultrapassa o estado d'alma: o ponto de vista permanece superior àquele que nele se coloca ou garante a identidade de todos os que o atingem. Não é individual, mas, ao contrário, princípio de individuação. Nisso reside precisamente a originalidade da re­miniscência proustiana: ela vai de um estado d'alma, e de suas cadeias associativas, a um ponto de vista criador ou transcen­dente; e não mais, à maneira de Platão, de um estado do mundo a objetividades vistas.
De tal modo que todo o problema da objetividade, como o da unidade, se acha deslocado de uma maneira que devemos di­zer "moderna", essencial à literatura moderna. A ordem ruiu, tanto nos estados do mundo que presumidamente deveriam re­produzi-la quanto nas essências ou idéias que supostamente de­veriam inspirá-la. O mundo ficou reduzido a migalhas e caos.
8. CS 201; RF 83.
105
Precisamente porque a reminiscência vai de associações subje­tivas a um ponto de vista originário, a objetividade só pode se encontrar na obra de arte: ela não existe mais nos conteúdos significativos como estados do mundo, nem nas significações ideais como essências estáveis, mas unicamente na estrutura formal significante da obra, isto é, no estilo. Não se trata mais de dizer: criar é relembrar; mas relembrar é criar, é ir até o ponto em que a cadeia associativa se rompe,- escapa ao indivíduo constituí­do, se transfere para o nascimento de um mundo individuante. E não se trata mais de dizer: criar é pensar, mas, pensar é criar e, antes de tudo, criar no pensamento o ato de pensar. Pensar é fa­zer pensar; relembrar é criar; não criar a lembrança, mas criar o equivalente espiritual da lembrança ainda por demais material, criar o ponto de vista que vale para todas as associações, o estilo que vale para todas as imagens. É o estilo que substitui a expe­riência pela maneira como dela se fala ou pela fórmula que a ex­prime, o indivíduo no mundo pelo ponto de vista sobre o mundo, e faz da reminiscência uma criação realizada.
Encontram-se os signos no mundo grego: a grande trilogia platônica, O Banquete, Fedra e Fédon, isto é, o amor, o delírio e a morte. O mundo grego não se exprime apenas no lagos como bela totalidade, mas em fragmentos e partes como objetos de aforismos, em símbolos como metades separadas, nos signos dos oráculos e no delírio dos adivinhos. Mas a alma grega sempre teve a impressão de que os signos, linguagem muda das coisas, eram um sistema mutilado, variável e enganador, restos de um lagos que deveriam ser restaurados em uma dialética, reconcilia­dos por uma philia, harmonizados por uma sophia, dirigidos por uma inteligência que antecede. A melancolia das mais belas es­tátuas gregas é o pressentimento de que o lagos que as anima vai se romper em fragmentos. Aos signos do fogo que anunciam a vitória a Clitemnestra, linguagem mentirosa e fragmentária, boa para mulheres, o corifeu opõe uma outra, o logos do mensa­geiro que reúne tudo em um, na justa medida, felicidade e ver-
106
dade.9 Na linguagem dos signos, ao contrário, só há verdade naquilo que é feito para enganar, nos meandros daquilo que a oculta, nos fragmentos de uma mentira e de uma infelicidade: só há verdade traída, isto é, ao mesmo tempo entregue pelo ini­migo e revelada por contornos ou pedaços. Como disse Espino­sa quando definiu a profecia, o profeta judeu privado de lagos, reduzido à linguagem dos signos, tem sempre necessidade de um signo para persuadir-se de que o signo de Deus não é enga­nador. Porque mesmo Deus pode querer enganá-lo.
Quando uma parte vale por si própria, quando um frag­mento fala por si mesmo, quando um signo se eleva, pode ser de duas maneiras muito diferentes: ou porque permite adivinhar o todo de onde foi extraído, reconstituir o organismo ou a estátua a que pertence e procurar a outra parte que se lhe adapta, ou, ao contrário, porque não há outra parte que lhe corresponda, ne­nhuma totalidade a que possa pertencer, nenhuma unidade de onde tenha sido arrancado e à qual possa ser devolvido. A pri­meira maneira é a dos gregos: somente dessa forma eles supor­tam os "aforismos". É preciso que a menor parte seja também um microcosmo para que nela se reconheça que ela pertence ao todo mais vasto de um macrocosmo. Os signos se compõem se­gundo analogias e articulações que formam um grande Vivente, como ainda se vê no platonismo da Idade Média e do Renasci­mento, eles são tomados numa ordem do mundo, em um feixe de conteúdos significativos e significações ideais, que ainda são testemunhas de um lagos no instante mesmo em que o rompem. Não se pode invocar os fragmentos dos pré-socráticos para fazer deles os Judeus de Platão; não se pode fazer passar por uma in­tenção o estado fragmentado em que o tempo os deixou.
9. Cf. Ésquilo, Agamemnon, 460·502 (Henri Maldiney comenta esses versos ao anali· sar a oposição entre a linguagem dos signos e a do lagos, Bulletin Faculté de Lyon, 1967).
107
Acontece o contrário com uma obra que tem por objeto, ou melhor, por sujeito, o tempo. Ela diz respeito a fragmentos que não podem mais se reajustar, é composta de pedaços que não fa­zem parte do mesmo puzzle, que não pertencem a uma totalida­de prévia, que não emanam de uma unidade, mesmo que tenha sido perdida. Talvez o tempo seja isso: a existência última de partes de tamanhos e de formas diferentes que não se adaptam, que não se desenvolvem no mesmo ritmo e que a corrente do estilo não arrasta na mesma velocidade. A ordem do cosmos ruiu, despedaçou-se nas cadeias associativas e nos pontos de vista não comunicantes. A linguagem dos signos se põe a falar por si mesma, reduzida aos recursos da infelicidade e da menti­ra; ela não mais se apóia em um lagos subsistente: só a estrutura formal da obra de arte será capaz de decifrar o material frag­mentário que ela utiliza, sem referência exterior, sem código alegórico ou analógico. Quando Proust procura precursores em reminiscência, cita Baudelaire, mas reprova-lhe ter feito um uso muito "voluntário" do método, istGJ é, ter procurado analo­gias e articulações objetivas ainda muito platônicas em um mundo habitado pelo lagos. Ao contrário, o que ele aprecia na frase de Chateaubriand é que o perfume de heliotrópio seja tra­zido não "pela brisa da pátria, mas pelo vento selvagem da Ter­ra-nova, alheio à planta exilada, sem simpatia de reminiscências e de volúpia".1O Entendamos que não há aqui reminiscência platôni­ca precisamente porque não há simpatia como reunião em um todo, mas que o próprio mensageiro é uma parte heteróclita que não se une à sua mensagem nem àquele a quem ele a envia. É o que sempre acontece em Proust e é justamente sua concepção inteiramente nova ou moderna da reminiscência: uma cadeia associativa heteróclita só é unificada por um ponto de vista criador, ele próprio desempenhando o papel de parte heteróclita no conjunto.
10. Citação de Chateaubriand, TR 159.
108
Esse é o procedimento que garante a pureza do encontro ou do acaso e que recalca a inteligência impedindo-a de vir antes. Em vão procurar-se-iam, em Proust, as banalidades a respeito da obra de arte como totalidade orgânica, em que cada parte pre­determina o todo e o todo determina as partes (concepção dia­lética da obra de arte). O próprio quadro de Ver Meer não vale como um todo, mas pelo pequeno detalhe de parede amarela nele colocado como fragmento de um outro mundo. 11 O mesmo acontece com a pequena frase musical de Vinteuil, "intercala­da, episódica" e sobre a qual disse Odette a Swann: "Que neces­sidade tens do resto? Este é o nosso trecho."12 Também a igreja de Balbec, decepcionante quando nela procuramos "um movi­mento quase persa" em seu conjunto, revela, ao contrário, sua beleza em uma de suas partes discordantes, que representa, de fato, "dragões quase chineses".13 Os dragões de Balbec, o deta­lhe da parede de Ver Meer, a pequena frase musical, misteriosos pontos de vista nos dizem a mesma coisa que o vento de Cha­teaubriand: agem sem "simpatia", não fazem da obra uma tota­lidade orgânica; funcionam como fragmento que determina uma cristalização. Veremos que não foi por acaso que o moc:lel; dõvegetal substituiu em Proust o da totalidade animal, tanto na arte quanto na sexualidade. Tal obra, que tem como sujeito o tempo, nem mesmo precisa ser escrita em aforlsmos. É nos meandros e nos anéis de um estilo Antilogos que ela faz todos os rodeios necessários para juntar os ú(timos pedaços, arrastar em velocidades diferentes todos os fragmentos, em que cada um re­mete a um conjunto diferente, não remete a conjunto nenhum, ou só remete ao conjunto do estilo.
11.P 157·158.
12.CS 186.
13.RF 331·332.


109
Capítulo II
As Caixas e os Vasos

Afirmar que Proust tinha uma idéia, mesmo que confusa, da unidade prévia da Recherche, ou que a tivesse encontrado logo em seguida, mas como que animando desde o início o conjunto, é lê-lo desatentamente, é aplicar-lhe critérios de to­talidade orgânica que ele justamente recusava, é fechar-se à concepção tão nova de unidade que ele estava criando. Pois é exatamente daí que é preciso partir: a disparidade, a incomensurabilidade, o esmigalhamento das partes da Recherche, com as rupturas, os hiatos, as lacunas, as intermitências que lhe ga­rantem a diversidade final. Sob esse aspecto, há duas figuras fundamentais: uma concerne particularmente às relações con­tinente-conteúdo; a outra, às relações partes-todo. A primeira é uma figura de encaixe, de envolvimento, de implicação – as coi­sas, as pessoas e os nomes são caixa, das quais se tira alguma coisa de forma totalmente diferente, de natureza totalmente diversa, conteúdo desmedido. "Atento em relembrar exatamente o perfil do telhado ou o matiz da pedra, que, sem que eu soubes­se o motivo, me haviam parecido plenos, prestes a entreabir-se, a revelar-me aquilo de que não eram mais que a cobertura... "1 O Sr. de Charlus, "esse personagem pintalgado, pançudo e fecha­do, semelhante a alguma caixa de procedência exótica e suspei-
1. CS 153·154.
110
ta", abriga em sua voz ninhada de jovens e de almas femininas tutelares.2 Os nomes próprios são caixas entreabertas que proje­tam suas qualidades sobre o ser que designam: "O nome de Guermantes de então é como um desses balõezinhos em que se encerrou oxigênio ou algum outro gás", ou como esses "peque­nos tubos" dos quais se "tira" a cor desejada.3 Com relação a esta primeira figura de envolvimento, a atividade do narrador consiste em explicar, isto é, em desdobrar, desenvolver o con­teúdo do incomensurável ao continente. A segunda figura é a da complicação: trata-se, desta vez, da coexistência de partes as­simétricas e não comunicantes, seja porque se organizam como metades bem separadas, seja porque se orientam como "lados" ou caminhos opostos, seja porque se põem a girar, a turbilho­nar, como a roda de uma loteria que arrasta e por vezes mistura os lotes fixos. A atividade do narrador consiste, então, em ele­ger, escolher; pelo menos é esta sua atividade aparente, pois mui­tas forças diversas, elas próprias complicadas nele, se esforçam para determinar sua pseudovontade, para fazê-lo eleger tal par­te na composição complexa, tal lado na instável oposição, tal lote no torvelinho das trevas.
A primeira figura é denominada pela imagem das caixas en­treabertas, a segunda pela imagem dos vasos fechados. A primei­ra (continente-conteúdo) vale pela posição de um conteúdo sem medida comum; a segunda (partes-todo) vale pela oposição de uma vizinhança sem comunicação. Freqüentemente elas se misturam, passam de uma para outra. Por exemplo: Albertina tem dois as­pectos; por um lado, ela complica em si muitas personagens, muitas jovens das quais dir-se-ia que cada uma é vista com a ajuda de um instrumento de ótica diferente, que é preciso saber escolher de acordo com as circunstâncias e os matizes do dese­jo; por outro lado, ela implica ou envolve a praia e as ondas,
2.SG 347.
3.CG3.
111
mantém ligadas entre si "todas as impressões de uma série marí­tima" que é preciso saber desdobrar, desenvolver como se de­senrola uma corda.4 Mas cada uma das grandes categorias da Recherche não deixa de assinalar uma preferência por uma des­sas figuras, até em sua maneira de participar secundariamente daquela que não constitui sua origem. Razão por que se pode conceber cada grande categoria em uma das duas figuras como tendo seu duplo na outra, e talvez como já sendo inspirada por esse duplo, que é, a um só tempo, o mesmo e o inteiramente ou­tro. Assim, no que concerne à linguagem: os nomes próprios têm, em primeiro lugar, todo o seu poder como caixas das quais se extrai o conteúdo e, uma vez esvaziados pela decepção, orde­nam-se, ainda, uns em função dos outros, "encerrando", "en­clausurando", a história universal; mas os nomes comuns adquirem seu valor introduzindo no discurso pedaços não co­municantes de mentira e de verdade escolhidos pelo intérprete. Ou então, do ponto de vista das faculdades: a memória invo­luntária tem como atividade, antes de tudo, abrir as caixas, des­dobrar um conteúdo oculto, enquanto, do outro pólo, o desejo, ou melhor, o sono faz girar os vasos fechados, as faces circulares e elege aquele que melhor convém a determinada profundidade do sono, a determinada proximidade do despertar, a determina­do grau de amor. Ou ainda no próprio amor: o desejo e a memó­ria combinam-se para formar sedimentos de ciúme, o primeiro ocupado, antes de tudo, em multiplicar as Albertinas não co­municantes, o segundo em extrair de Albertina incomensurá­veis "regiões de lembranças".
De tal modo que só se pode considerar abstratamente cada uma das duas figuras para determinar sua diversidade específi­ca. Em primeiro lugar, perguntar-se-á qual é o continente e em que consiste exatamente o conteúdo; qual é a relação de um
4.CG 282-283. Os dois aspectos estão bem assinalados pela expressão "por outro lado".
112
com o outro; qual é a forma da "explicação"; que dificuldades ela encontra em razão da resistência do continente ou da ocul­tação do conteúdo, e, acima de tudo, onde intervém a inco­mensurabilidade dos dois, oposição, hiato, esvaziamento, corte etc. No exemplo da madeleine, Proust evoca os pedacinhos de papel japonês que, mergulhados numa bacia, se estiram e se desdobram, isto é, se explicam; "Assim, agora todas as flores de nosso jardim e as do parque do Sr. Swann, e as ninféias do Vi­vonne, e a boa gente da aldeia e suas pequenas moradias, e a igreja e toda Combray e seus arredores, tudo isso que toma for­ma e solidez, saiu, cidade e jardins, da minha taça de chá."5 Mas apenas aproximadamente. O verdadeiro continente não é a taça mas a qualidade sensível, o sabor. E o conteúdo não é uma cadeia associada a este sabor, a cadeia das coisas e das pessoas conhecidas em Combray, mas Combray como essência, Com­bray como puro ponto de vista, superior a tudo que foi vivido desse próprio ponto de vista, aparecendo, enfim, por si e em seu esplendor, numa relação de corte com a cadeia associativa que, em relação a ele, só percorria metade do caminho.6 O conteúdo foi de tal maneira perdido, nunca tendo sido possuído, que sua reconquista é uma criação. E é precisamente porque a essência como ponto de vista individuante supera toda a cadeia de asso­ciação individual com a qual rompe, que tem o poder não só de nos lembrar, mesmo intensamente, o eu que viveu toda a ca­deia, mas também de o fazer reviver em si, reindividuando-o, uma existência pura que ele jamais viveu. Neste sentido, toda "explicação" de alguma coisa é ressureição de um eu. 
5.CS 47.
6.Já observamos que a madeleine é um caso de explicação bem-sucedida (contraria­mente às três árvores, por exemplo, cujo conteúdo permanece perdido para sem­pre). Mas bem-sucedida apenas em parte, porque, embora a "essência" já seja invocada, o narrador permanece na cadeia associativa, que não explica ainda "por que essa recordação (o) tornava tão feliz". Somente no final da Recherche é que a teoria e a experiência da essência adquirem seu estatuto.

113
O ser amado é como a qualidade sensível, vale pelo que en­volve. Seus olhos seriam apenas pedras e seu corpo um pedaço de carne, se não exprimissem um mundo ou mundos possíveis, paisagens e lugares, modos de vida que é preciso explicar, isto é, desdobrar, desenrolar como os pedacinhos de papel japonês: como a Srta. de Stermaria e a Bretanha, Albertina e Balbec. O amor e o ciúme são estritamente comandados por essa ativi­dade de explicação. Há mesmo como que um duplo movimento pelo qual uma paisagem necessita enrolar-se numa mulher, como a mulher, desenrolar as paisagens e os lugares que "con­tém" encerrados em seu corpo.7 A expressividade é o conteúdo de um ser. Aí, também, poder-se-ia acreditar que exista apenas uma relação de associação entre o conteúdo e o continente. Entretanto, embora a cadeia associativa seja estritamente ne­cessária, há algo a mais, que Proust define como caráter indi­visível do desejo que quer dar uma forma a uma matéria e preencher de matéria uma forma.8 Mas o que mostra ainda que a cadeia de associações só existe em relação com uma força que a vai romper é uma curiosa distorção pela qual se é tomado no mundo desconhecido expresso pelo ser amado, esvaziado de si próprio, aspirado para esse outro universo.9 De tal modo que ser visto faz o mesmo efeito que ouvir pronunciar seu nome pelo ser amado; o efeito de aparecer nu em sua boca.1O A associação da paisagem e do ser amado no espírito do narrador é, portanto, rompida em proveito de um ponto de vista do ser amado sobre a paisagem, em que o próprio narrador é tomado, mesmo que seja para ser excluído, recalcado. Mas, desta vez a ruptura da cadeia associativa não é superada pela aparição de uma essência; ela é
7.CS 135-136.
8.CS 79: "... não era isso devido ao acaso de uma simples associação de idéias... "
9. RF 230; RF 294.
10.CS 331.
114
aprofundada por uma operação de esvaziamento que restitui ao narrador o seu próprio eu. Pois o narrador-intérprete, apaixo­nado e ciumento, vai enclausurar o ser amado, encerrá-lo, se­qüestrá-lo para melhor "explicá-lo", isto é, esvaziá-lo de todos os mundos que contém. "Prendendo Albertina, restituíra eu ao universo todas aquelas asas cintilantes. (...) Elas dão beleza ao mundo. Foram elas que em outro tempo deram beleza a Alber­tina. (...) Perdera Albertina todas as suas cores. (...) Perdera pouco a pouco a beleza. (...) Convertida na desbotada prisionei­ra, reduzida ao seu eu sem brilho lhe eram necessários, para lhe serem restituídas as cores, aqueles relâmpagos em que eu me re­cordava do passado." 11 Apenas o ciúme tornará a preenchê-la, por um instante, com um universo que uma lenta explicação se esforçará, por sua vez, em esvaziar. Devolver ou restituir o eu do narrador a ele próprio? Trata-se na verdade de outra coisa. Tra­ta-se de esvaziar cada um dos eus que amou Albertina, de conduzi-lo a seu término, segundo uma lei de morte que se en­trelaça com a das ressurreições, como o tempo perdido se entre­laça com o tempo redescoberto. E os eus se obstinam tanto em procurar seus suicídios, em repetir-preparar seus próprios fins, quanto em reviver em outra coisa, repetir-rememorar suas vidas.12
Mesmo os nomes próprios têm um conteúdo inseparável das qualidades de suas sílabas e das associações livres de que fa­zem parte. Justamente porque não se pode entreabrir a caixa sem projetar todo o conteúdo associado na pessoa ou no lugar reais, ao contrário das associações forçadas, que, totalmente di­ferentes, impostas pela mediocridade da pessoa e do lugar, vêm
11.P 145-146.
12.RF 147: "Encarniçava-me continuamente no longo e cruel suicídio dessa parte do meu eu que em mim próprio amava Gilberta, e isso com a clarividência do que estava fazendo no presente e de suas conseqüências no futuro."
115
torcer e romper a primeira série e criar um grande hiato entre o conteúdo e o continente.13 Em todos os aspectos dessa primeira figura da Recherche manifesta-se sempre a inadequação do con­teúdo; sua incomensurabilidade: seja conteúdo perdido, que se redescobre no esplendor de uma essência que ressuscita um an­tigo eu, seja conteúdo esvaziado, que provoca a morte do eu, seja conteúdo separado, que nos lança numa inevitável decepção; um mundo nunca poderá ser organizado hierárquica e objetiva­mente, as próprias cadeias de associação subjetivas, que lhe dão um mínimo de consistência ou de ordem, rompem-se em pro­veito de pontos de vista transcendentes, mas variáveis e violen­tamente imbricados, uns exprimindo verdades da ausência e do tempo perdido, outros, da presença ou do tempo redescoberto. Os nomes, os seres e as coisas estão abarrotados de um conteú­do que os faz explodir; assiste-se, então, não só a uma espécie de explosão dos continentes pelos conteúdos, mas à explosão dos próprios conteúdos que, desdobrados, explicados, não formam uma figura única, mas verdades heterogêneas em fragmentos que lutam muito mais entre si do que se conciliam. Mesmo quando o passado nos é restituído em sua essência, a conjunção do mesmo presente com o passado parece mais uma luta do que um acordo, e aquilo que nos é dado nem é uma totalidade nem uma eternidade, mas "um pouco de tempo em estado puro", isto é, um fragmento do tempo.14 Nada é pacificado por uma philia; como acontece com os lugares e os momentos, dois sentimentos só se unem lutando, e formam nessa luta um corpo irregular de pouca duração. Até mesmo no mais alto estado da essência
13.Sobre os dois movimentos associativos em sentido inverso, cf. RF 185-186. É essa decepção que será recompensada, sem ser preenchida suficientemente, pelos prazeres da genealogia ou da etimologia dos nomes próprios: cfRoland Barthes, "Proust et les noms" (To Honor Roman ]akobson, Mouton) e Gérard Genette, "Prollst et le langage indirect" (Figures lI, Editions dll Sellil).
14.TR 125.
116
como ponto de vista artístico, o mundo que começa faz com que os sons lutem com pedaços finais disparatados sobre os quais re­pousa. "Em breve os dois motivos lutaram entre si, num cor­po-a-corpo em que algumas vezes um desaparecia totalmente, quando, a seguir, não se percebia mais que um trecho do outro."
É isso, sem dúvida, que dá conta, na Recherche, desse ex­traordinário encadeamento de partes inconciliáveis, em ritmos de desdobramento ou em velocidade de explicação irredutíveis: não apenas elas não compõem em conjunto um todo, mas cada parte separadamente também não exprime um todo de onde se­ria arrancada, diferente do todo de uma outra parte, formando uma espécie de diálogo entre universos. Mas a força com que são projetadas no mundo, inseridas violentamente umas nas outras, apesar de suas bordas não serem correspondentes, faz com que todas elas sejam reconhecidas como partes, sem no en­tanto compor um todo, mesmo que seja oculto, sem emanar de totalidades, mesmo que sejam perdidas. Ao colocar fragmentos nos fragmentos, Proust encontra o meio de nos fazer pensar to­dos, mas sem referência a uma unidade de que eles derivariam, ou que deles derivaria. 15
15.Disse muito bem Georges Poulet; "O universo proustiano é um universo em pe­daços, cujos pedaços contêm outros universos, esses, por sua vez, em pedaços. (...) A descontinuidade temporal é precedida, até mesmo comandada, por uma descontinuidade ainda mais radical, a do espaço" (L 'espace proustien, Gallimard, ps. 54-55). Todavia, Poulet mantém na obra de Proust os direitos de uma conti­nuidade e de uma unidade, de que ele não procura definir a natureza original muito particular (ps. 81 e 102); é que, por outro lado, ele tende a negar a origina­lidade ou a especifidade do tempo proustiano (sob o pretexto de que esse tempo nada tem a ver com uma duração bergsoniana, ele afirma que é um tempo espaci­alizado, cf. ps. 134-136). O problema de um mundo em fragmentos, em seu conteúdo mais geral, foi colocado por Maurice Blanchot (principalmente em L'entretien infini, Galli­mard). Trata-se de saber qual é a unidade ou a não-unidade de tal mundo, uma vez dito que ele nem pressupõe, nem forma um todo; "Quem diz fragmento não deve apenas dizer fragmentação de uma realidade existente, nem momento de um conjunto ainda por vir... Na violência do fragmento uma outra relação, intei ramente diferente, nos é dada", "nova relação com o de fora", "afirmação irredutível à unidade" que não se deixa reduzir à forma aforística.

117
Quanto à segunda figura da Recherche, a da complicação, que mais particularmente concerne à relação partes-todo, ve­mos ela aplicar-se às palavras, aos seres e às coisas, isto é, aos tempos e aos lugares. A imagem do vaso fechado, que marca a opo­sição de uma parte com uma vizinhança sem comunicação, substitui aqui a imagem da caixa entreaberta, que marcava a posição de um conteúdo sem medida comum com o continente. É assim que os dois lados da Recherche, o lado de Méséglise e o lado de Guermantes, permanecem justapostos "longe um do outro e sem poder-se co­nhecer, nos vasos herméticos e incomunicáveis de tardes dife­rentes",16 Impossível fazer como diz Gilberta: "Podemos ir a Guermantes passando por Méséglise." Mesmo a revelação final do tempo redescoberto não os unificará, nem os fará convergir, apenas multiplicará as "transversais", também incomunican­tes.17 Do mesmo modo, o rosto dos seres tem pelo menos dois la­dos assimétricos, como "duas estradas opostas que nunca se co­municarão": é o que acontece com Rachel, que tem o rosto da generalidade e o da singularidade, como também o da nebulosa informe, vista de muito perto, e o da boa organização, a distân­cia conveniente. Ou então com Albertina, que tem o rosto que inspira confiança e o que reage à suspeita do ciúme.18 Os dois lados ou os dois caminhos são apenas direções estatísticas. Po­demos formar uni. conjunto complexo, mas nunca nós o forma­remos sem que ele se cinda, por sua vez, em mil vasos fechados: como o rosto de Albertina, que, quando pensamos em juntá-lo para um beijo, salta de um plano a outro durante o percurso de nossos lábios à sua face; "dez Albertinas" em vasos fechados, até
16.CS 118.
17.TR 237.
18.F 56 e CG 121,133-134.
118
o momento final quando tudo se desfaz na proximidade exage­rada.19 Em cada vaso um eu que vive, que percebe, que deseja e se recorda, que vela ou que dorme, que morre, se suicida e revi­ve intermitentemente: "esmigalhamento", "fracionamento" de Albertina, a que corresponde uma multiplicação do eu. Uma mesma notícia global, a partida de Albertina, deve ser sabida por todos esses eus distintos, cada qual no fundo de sua urna.20
Não acontece o mesmo, em outro nível, com o mundo, rea­lidade estatística sob a qual "os mundos" são tão separados quanto astros infinitamente distantes, cada qual possuindo seus signos e suas hierarquias, que fazem com que um Swann ou um Charlus nunca sejam reconhecidos pelos Verdurin, até a grande mistura do final, cujas novas leis o narrador renuncia a apreen­der, como se também ele tivesse atingido esse limiar de proximi­dade em que tudo se desfaz e volta ao estado de nebulosa? Finalmente, os discursos ou as faltas operam também, do mes­mo modo, uma distribuição estatística das palavras, sob a qual o intérprete discerne camadas, famílias, subordinações e emprés­timos muito diferentes uns dos outros, que dão testemunho das ligações daquele que fala, de seus relacionamentos e de seus mundos secretos, como se cada palavra pertencesse a um aquá­rio colorido deste ou daquele modo, contendo determinada es­pécie de peixes, para além da falsa unidade do logos: é o que acontece com certas palavras que não faziam parte do vocabu­lário anterior de Albertina e que persuadem o narrador de que ela se tornara mais abordável ao entrar numa nova faixa de ida­de, com novas relações; ou então com a horrível expressão "se faire casser le... ", que revela ao narrador um mundo abominá­vel.21 É por isso que, em oposição ao logos-verdade, a mentira
19.CG 284-285: "Soube, por esses detestáveis signos, que estava beijando as faces de Albertina."
20.F 9.
21.CG 276-278; P 290-292.
119
pertence à linguagem dos signos; como a imagem de um puzzle desajustado, as próprias palavras são fragmentos de um mundo que se ajustariam a outros fragmentos do mesmo mundó, mas não àos outros fragmentos de outros mundos junto aos quais os tivéssemos posto.22 Existe, portanto, aqui, nas palavras, como que um fundamento geográfico e lingüístico para a psicologia do mentiroso.
É o que significam os vasos fechados: só existe totalidade estatística e privada de sentido profundo. "Pois o que nós julga­mos seja o nosso amor, o nosso ciúme, não é uma mesma paixão contínua, indivisível. Compõem-se eles de uma infinidade de amores sucessivos, de ciúmes diferentes, mas, por sua multidão initerrupta, dão a impressão da continuidade, a ilusão da unida­de."23 Entretanto, entre todas as partes fechadas, existe um sis­tema de passagem, que não se deve confundir com um meio de comunicação direta nem de totalização. Como entre o caminho de Méséglise e o caminho de Guermantes, toda a obra consiste em estabelecer transversais que nos fazem saltar de um a outro perfil de Albertina, de uma Albertina a outra, de um mundo a outro, de uma palavra a outra, SEP nunca reduzir o múltiplo ao uno; sem nunca reunir o múltiplo em um todo, mas afirmando a unidade bastante original daquele múltiplo, afirmando, sem os reunir, todos esses fragmentos irredutíveis ao todo. O ciúme é a transversal da multiplicidade amorosa; a viagem, a transversal da multiplicidade dos lugares; o sono, a transversal da multipli­cidade dos momentos. Os vasos fechados se organizam ora em
22.CS 234; PISO. Com relação a Odette tanto quanto com relação a Albertina, Proust invoca esses fragmentos de verdade que, introduzidos pelo ser amado para autenticar uma mentira, têm como efeito contrário denunciá-Ia. Mas, antes de se referir à verdade ou à falsidade de um relato, esse "desacordo" se refere às pró­prias palavras que, reunidas numa frase, têm origens e alcances bastante dife­rentes.
23.CS 307-309.
120
partes separadas, ora em direções opostas, ora (como em certas viagens, ou durante o sono) em círculo. Mas o importante é que o círculo não se fecha, não totaliza, ao contrário, faz desvios e forma ângulos, é um círculo descentrado que faz passar para a direita o que estava à esquerda e para a extremidade o que esta­va no centro. Não se estabelece a unidade de todas as vistas de uma viagem de trem no próprio círculo, que guarda suas partes fechadas, nem na coisa contemplada, que multiplica as suas, mas em uma transversal que sempre se está percorrendo, indo "de uma janela a outra",24 Tanto isso é verdade que a viagem não faz os lugares se comunicarem nem os reúne, mas só afirma em comum sua diferença (essa afirmação comum se fazendo em outra dimensão que não a da diferença afirmada – na trans­versal) .25
A atividade do narrador não consiste mais em explicar, des­dobrar um conteúdo, mas em eleger, escolher, uma parte não comunicante, um vaso fechado, com o eu nele contido. Esco­lher determinada jovem num grupo, determinado corte ou pla­no fixo na jovem, escolher determinada palavra naquilo que ela diz, determinado sofrimento no que ela nos faz sentir e, para sentir esse sofrimento, para decifrar a palavra, para amar essa jovem, escolher determinado eu que se faz viver ou reviver en-
24.RF 181: "O trem fez uma volta... e eu me desolava por haver perdido minha faixa de céu rósea, quando a avistei de novo, mas vermelha desta vez, na janela fron­teira, que ela abandonou, a um segundo cotovelo da linha férrea; de modo que eu passava o tempo a correr de uma janela a outra, para aproximar, para enquadrar os fragmentos intermitentes e opostos de minha bela madrugada escarlate e fugi­dia, e ter dela uma vista total e um quadro contínuo." Esse texto invoca certa­mente uma continuidade e uma totalidade, mas o essencial é saber onde elas se elaboram – nem no ponto de vista, nem na coisa vista, mas na transversal, de uma janela a outra.
25.RF 173: "O prazer específico das viagens (...) é tornar a diferença entre a partida e a chegada não tão insensível, mas tão profunda quanto possível, em senti-ia na sua totalidade, intacta... "
121
tre todos os possíveis: essa é a atividade correspondente à com­plicação.26 Essa atividade de escolha, sob a forma mais pura, nós a vemos exercer-se no momento do despertar, quando o sono fez girar todos os vasos fechados, todas as peças cerradas, todos os eus seqüestrados, freqüentados por quem dorme. Não só existem diferentes compartimentos do sono que giram aos olhos do insone em vias de escolher sua droga ("sono do estra­mônio, do cânhamo-da-índia, dos variados extratos do éter... ") – mas todo homem que dorme "mantém em círculo, em volta de si, ao longo das horas, a ordem dos anos e dos mundos": o problema do despertar é o de passar deste compartimento do sono, e de tudo o que aí se desenrola, ao compartimento real onde se está, de redescobrir o eu da vigília entre todos aqueles que se acaba de ser em sonho, que se poderia ter sido ou que se foi, de redescobrir, enfim, a cadeia associativa que nos fixa ao real, ao deixar os pontos de vista superiores do sono.27 Não se deve perguntar quem escolheu. Certamente nenhum eu, visto que nós mesmos somos escolhid05, visto que um determinado eJ é escolhido cada vez que "nós" escolhemos um ser para amar, um sofrimento a suportar, e que esse eu não menos se surpreen­de em viver e reviver, e em responder ao apelo, não sem se fazer esperar. Desse modo, ao sair do sono "não se é mais ninguém. Como, então, procurando nosso pensamento, a nossa persona­lidade, como se procura um objeto perdido, acaba-se por en­contrar o próprio eu antes de outro qualquer? Por que, quando recomeçamos a pensar, não é então uma outra personalidade, que não a anterior, que se encarna em nós? Não se vê o que é que dita a escolha e por que, entre os milhões de seres humanos
26.F 99-100: "No sofrimento físico, pelo menos, não precisamos escolher nós mes­mos a nossa dor. A doença no-ia determina e impõe. Mas, no ciúme, temos de ensaiar de algum modo sofrimentos de todo gênero e de toda magnitude, antes de nos determos naquele que parece convir-nos."
27.Cf. as célebres descrições do sono e do despertar, CS 11-16 e CG 62-64.
122
que a gente poderia ser, vamos pôr a mão exatamente naquele que éramos na véspera".28 Na verdade, existe uma atividade, um puro interpretar, puro escolher, que não tem nem sujeito nem objeto, visto que ela escolhe tanto o intérprete quanto a coisa a interpretar, tanto o signo quanto o eu que o decifra. É o que se dá como o "nós" da interpretação: "Mas nem sequer di­zemos nós... um nós que não tivesse conteúdo."29
Assim, o sono é mais profundo do que a memória, pois a memória, mesmo involuntária, permanece ligada ao signo que a solicita e ao eu já escolhido que ela fará reviver, enquanto o sono é a imagem do puro interpretar que se enrola em todos os signos e se desenvolve através de todas as faculdades. O inter­pretar só tem uma unidade transversal; ele é a única divindade de que qualquer coisa é fragmento, mas sua "forma divina" não recolhe nem recola os fragmentos: ela os conduz, ao contrário, ao mais alto estado, ao mais agudo, impedindo que eles formem um conjunto ou sejam destacados. O "sujeito" da Recherche não é, finalmente, nenhum eu, é esse nós sem conteúdo que distri­bui Swann, o narrador, Charlus, e os distribui ou os escolhe sem totalizá-los.
Vimos, anteriormente, signos que se distinguiam por sua matéria objetiva, sua cadeia de associação subjetiva, a faculda­de que os decifra, sua relação com a essência. Mas, formalmen­te, os signos têm dois tipos que se encontram em todas as espécies: as caixas entreabertas, a serem explicadas, e os vasos fechados, a serem escolhidos. E se o signo é sempre fragmento sem totalização nem unificação, é porque o conteúdo se atém ao continente por toda a força da incomensurabilidade que traz consigo, e porque o vaso se atém a sua vizinhança por toda a força de não-comunicação que mantém em si. A incomensura­bilidade e a não-comunicação são distâncias, mas distâncias
28. CG 63.
123
que colocam um dentro do outro ou os aproximam. E o tempo não significa outra coisa: sistema de distâncias não espaciais, distância específica do próprio contíguo ou do próprio conteú­do, distâncias sem intervalos. Sob esse aspecto, o tempo perdido, que introduz distâncias entre coisas contíguas, e o tempo redes­coberto, que estabelece, ao contrário, uma contigüidade entre coisas distantes, funcionam de maneira complementar confor­me seja o esquecimento ou a lembrança que operem "inter­polações fragmentadas, irregulares". Pois ainda não é esta a diferença entre o tempo perdido e o tempo redescoberto; o pri­meiro, por sua força de esquecimento, de doença e de idade, afirma os pedaços como que disjuntos, tanto quanto o outro, com sua força de lembrança e de ressurreição.30 De qualquer modo, segundo a fórmula bergsoniana, o tempo significa que tudo não é dado: o Todo não pode ser dado. O que não quer dizer que o todo "se faz" em uma outra dimensão que seria pre­cisamente temporal, como o entende Bergson, ou como o en­tendem, por sua vez, os dialéticos partidários de um processo de totalização; mas que o tempo, último intérprete, último inter­pretar, tem o estranho poder de afirmar simultaneamente peda­ços que não formam um todo no espaço, como também não formam uma unidade por sucessão no tempo. O tempo é exata­mente a transversal de todos os espaços possíveis, inclusive dos espaços âe tempo.
30.F 139. Nesse trecho é o esquecimento que tem força de interpolação fragmenta. da, introduzindo distâncias entre nós e os acontecimentos recentes; enquanto em SG 129 é a lembrança que se interpola e dá contigüidade às coisas distantes.

124
Capítulo III
Os Níveis da Recherche
Em um universo assim fragmentado não há lagos que possa reunir todos os pedaços: não há lei que os ligue a um todo; não há todo a redescobrir nem mesmo a formar. E no entanto há uma lei; mas o que mudou foi sua natureza, sua função, sua rela­ção. O mundo grego é um mundo em que a lei vem sempre em segundo lugar; ela é potência secundária em relação ao lagos que abrange o todo e o refere ao Bem. A lei, ou melhor, as leis apenas regem as partes, as adaptam, aproximam, reúnem, nelas estabelecendo um "melhor" relativo. As leis também só valem na medida em que nos permitem conhecer alguma coisa que as ultrapassa e em que elas determinam uma figura do "melhor", isto é, o aspecto que toma o Bem no lagos em relação a determi­nadas partes, determinada região, determinado momento. Pa­rece que a consciência moderna do antilogos impôs à lei uma revolução radical. Na medida em que ela rege um mundo de fragmentos não totalizáveis e não totalizados, a lei se toma po­tência primordial; ela não diz mais o que é bom, mas é bom o que diz a lei. Assim, ela adquire uma espantosa unidade: não há mais leis especificadas desta ou daquela maneira, mas a lei, sem outra especificação. É bem verdade que esta unidade espantosa é absolutamente vazia, unicamente formal, visto que ela não nos permite conhecer nenhum objeto distinto, nenhuma totali­dade, nenhum Bem de referência, nenhum lagos referente. Ao invés de juntar e adaptar partes, ela, ao contrário, as separa, as
125
compartimenta, introduz a não-comunicação no contíguo, a não-comensurabilidade no continente. Nada nos possibilitan­do conhecer, a lei só nos mostra o que ela é marcando nossa car­ne, já nos aplicando a sanção; eis, então, o fantástico paradoxo: como não sabíamos o que queria a lei antes de receber a puni­ção, só podemos obedecer à lei como culpados, só podemos lhe responder por nossa culpabilidade, visto que ela só se aplica às partes como que disjuntas, tornando-as ainda mais disjuntas, desmembrando-lhes os corpos, arrancando-lhes os membros. Rigorosamente incognoscível, a lei só se dá a conhecer quando aplica as mais duras sanções ao nosso corpo supliciado.
A consciência moderna da lei adquire uma forma particu­larmente aguda com Kafka: é em A muralha da China que apa­rece o liame fundamental entre o caráter fragmentário da muralha, a maneira fragmentária de sua construção e o caráter incognoscível da lei, sua determinação idêntica a uma sanção de culpabilidade. Em Proust, no entanto, a lei apresenta uma outra figura, porque a culpabili.dade é, antes de tudo, como que a aparência que oculta uma realidade fragmentária mais pro­funda, ao invés de ser ela mesma essa realidade mais profunda, à qual nos levam os fragmentos separados. À consciência depres­siva da lei, tal como aparece em Kafka, se opõe a consciência es­quizóide da lei segundo Proust. Entretanto, à primeira vista, a culpabilidade desempenha um grande papel na obra de Proust, com seu objeto essencial: a homossexualidade. Amar pressupõe a culpabilidade do ser amado, embora todo o amor seja uma dis­cussão sobre as provas, um julgamento de inocência pronuncia­do sobre o ser que no entanto sabemos que é culpado. O amor é, pois, uma declaração de inocência imaginária estendida entre duas certezas de culpabilidade, a que condiciona a priori o amor e o torna possível e a que acaba o amor, que lhe marca o fim ex­perimental. Daí o narrador não poder amar Albertina sem ter apreendido esse a priori de culpabilidade que ele vai deslindar
126
em toda a sua experiência através de sua persuasão de que ela é inocente apesar de tudo (essa persuasão sendo inteiramente ne­cessária, agindo como reveladora): "Aliás, mais até do que as culpas do tempo em que as amamos, há as culpas de antes de as conhecermos, e a primeira de todas: sua índole. O que, com efeito, torna dolorosos tais amores, é que lhes preexiste uma es­pécie de pecado original da mulher, um pecado que no-las faz amar... "1 "Afinal, e apesar de todas as negativas da razão, esco­lhê-la e amá-la não era conhecer Albertina em toda a sua he­diondez?... Sentirmo-nos atraídos por um ser, e começar a amá-lo, é, por mais inocente que nos pareça, ler, já em versão diferente, todas as suas traições e suas faltas."2 O amor acaba quando a certeza a priori de culpabilidade completou sua traje­tória, quando se tornou empírica, desfazendo a persuasão empí­rica de que Albertina era, apesar de tudo, inocente; uma idéia "formava pouco a pouco o fundo da minha consciência, aí se substituindo à idéia de que Albertina era inocente – era a idéia de que ela era culpada", de modo que a certeza das faltas de Albertina só se revelou ao narrador quando elas não mais o in­teressavam, quando ele deixou de amá-la, vencido pelo cansaço e pelo hábito.3
Com mais razão, a culpabilidade aparece nas séries homos­sexuais. Lembremo-nos da veemência com que Proust traça o quadro da homossexualidade masculina como raça maldita, "raça sobre a qual pesa uma maldição e que tem que viver em mentira e perjúrio, filhos sem mãe... amigos sem amizades... sem honra, que não precária, sem liberdade, que não provisória até o descobrimento do crime; sem posição que não seja instável", homossexualidade-signo que se opõe à grega, à homossexuali-
1.P 126.
2.F 151-152.
3.F 92.
127
lidade-logos.4 Mas o leitor tem a impressão de que essa culpabilidade é mais aparente do que real; e se o próprio Proust fala da originali­dade de seu projeto, se ele próprio declara ter passado por várias "teorias", é porque ele não se contenta em isolar especificamen­te uma homossexualidade maldita. Todo o tema da raça maldi­ta ou culpada se entrelaça, aliás, com um tema de inocência, a sexualidade das plantas. A complexidade da teoria proustiana é enorme devido ao fato de que ela apresenta vários níveis. Em um primeiro nível, o conjunto dos amores intersexuais em seus contrastes e suas repetições; em segundo nível, esse conjunto se divide em duas séries ou direções; a de Gõmorra, que esconde o segredo cada vez revelado, da mulher amada, e a de Sodoma, que traz o segredo, ainda mais oculto, do amante. É nesse nível que impera a idéia de falta ou de culpabilidade; mas, se esse se­gundo nível não é o mais profundo é devido ao fato de ele pró­prio ser tão estatístico quanto o conjunto que ele decompõe: a culpabilidade, nesse sentido, é vivida muito mais como social do que como moral ou interiorizada. De modo geral, pode-se observar em Proust que não apenas um conjunto dado só tem valor estatístico, como também os dois lados dissimétricos ou as duas grandes direções em que ele se divide. Por exemplo: o "exército" ou a “multidão" de todos os eus do narrador que amam Albertina forma um conjunto de primeiro nível; mas os dois subgrupos da "confiança" e da "suspeita do ciúme" estão em um segundo nível de direções ainda estatísticas que reco­brem movimentos de terceiro nível, as agitações das partículas singulares, de cada um dos eus que compõem a multidão ou o exército nessa ou naquela direção.5 Do mesmo modo, o cami­nho de Méséglise e o caminho de Guermantes só devem ser considerados como lados estatísticos, também eles como que
4.SG 14. Contre Sainte-Beuve, capo XIII: "A raça maldita".
5.56: "Na multidão, esses elementos podem... "
128
formados por uma multidão de figuras elementares. Do mesmo modo, enfim, a série de Gomorra e a série de Sodoma, com suas culpabilidades correspondentes, são sem dúvida mais finas do que a grossa aparência dos amores heterossexuais, mas ocultam ainda um último nível, constituído pelo comportamento de ór­gãos e partículas elementares.
O que interessa realmente a Proust nas duas séries homos­sexuais, e o que as torna estritamente complementares, é a pro­fecia da separação que elas realizam: "Os dois sexos morrerão cada um para seu lado."6 E a metáfora das caixas ou dos vasos fechados adquire todo o seu sentido se considerarmos que os dois sexos estão ao mesmo tempo presentes e separados no mesmo indivíduo: contíguos, mas compartimentados e não co­municantes, no mistério do hermafroditismo inicial. É aí, justa­mente, que o tema vegetal adquire todo o seu sentido, por oposição a um lagos-vivente: o hermafroditismo não é a proprie­dade de uma totalidade animal hoje perdida, mas a comparti­mentação atual dos dois sexos numa mesma planta. "O órgão masculino está separado nela por um tabique do órgão femini­no."7 E é nesse ponto que vai se situar o terceiro nível: um indiví­duo de determinado sexo (só se é de determinado sexo global ou estatisticamente) traz em si mesmo o outro sexo, com o qual não pode comunicar-se diretamente. Quantas jovens aninha­das em Charlus e que mais tarde se tornarão também avós.8 "Em alguns (...) a mulher se acha não só interiormente unida ao homem, mas horrivelmente visível, agitados como estão em um espasmo de histérico, por um riso agudo que lhes convulsiona os joelhos e as mãos."9 O primeiro nível foi definido pelo con-
6.SG 14.
7.SG 23, 84.
8.SG 243, 289. Cf. o comentário de Roger Kempf, "Les cachotteries de M. de Char­Jus", Critique, janeiro de 1968.
9.SG 18.
129
junto estatístico dos amores heterossexuais; o segundo, pelas duas direções homossexuais ainda estatísticas, pelas quais um indivíduo tomado no conjunto precedente era remetido a outros indivíduos do mesmo sexo, participando da série de Sodoma, se é homem, e da série de Gomorra, se é mulher (como Odette e Albertina). Mas o terceiro nível é transexual ("o que erroneamente chamamos homossexualidade") e ultrapassa tanto o indivíduo quanto o conjunto: designa no indivíduo a coexistência de fragmentos dos dois sexos, objetos parciais que não se comunicam. O mesmo acontece com as plantas: o her­mafrodita tem necessidade de um terceiro (o inseto) para que a parte feminina seja fecundada ou para que a parte masculina seja fecundante. 10 Uma comunicação aberrante se faz em uma dimensão transversal entre sexos compartimentados. Ou me­lhor, é ainda mais complicado, porque vamos encontrar nesse novo plano a distinção entre o segundo e o terceiro nível. Com efeito, pode acontecer que um indivíduo globalmente determi­nado como masculino procure, para fecundar sua parte femini­na com a qual ele próprio não pode se comunicar, um indivíduo globalmente do mesmo sexo que ele (o mesmo acontecendo com a mulher e sua parte masculina). Entretanto, em um caso mais profundo, o indivíduo globalmente determinado como masculino fecundará sua parte feminina por meio de objetos parciais que podem ser encontrados tanto numa mulher como num homem. Aí está o fundo do transexualismo segundo Proust: não mais uma homossexualidade global e específica em que os homens se relacionam com os homens e as mulheres com as mulheres numa separação de duas séries, mas uma homossexua­lidade local e não específica em que o homem procura também o que há de masculino na mulher, e a mulher, o que há de femini-
10. SG 4, 23.
130
no no homem; e isso na contigüidade compartimentada dos dois sexos como objetos parciais.11
Daí o texto, aparentemente obscuro, em que Proust opõe à homossexualidade global e específica essa homossexualidade local e não específica: "Uns, os que tiveram a infância mais tí­mida sem dúvida, pouco se preocupam com a qualidade ma­terial do prazer que recebem, contanto que possam referi-lo a um rosto masculino. Enquanto outros, dotados indubitavel­mente de sentidos mais violentos, assinalam a seu prazer mate­rial imperiosas localizações. Estes ofenderiam acaso com suas confissões ao tipo mediano das pessoas. Talvez vivam menos ex­clusivamente sob o signo de Saturno, já que para eles as mulhe­res não estão totalmente excluídas como para os primeiros... Mas os segundos buscam aquelas que gostam de mulheres, po­dem conseguir-lhes algum jovem, aumentar-lhes o prazer que sentem em encontrar-se com ele; ainda mais, podem, da mesma forma, achar nel-as o mesmo prazer que com um homem. Daí vem que somente existem os ciúmes, dos que amam os primei­ros, pelo prazer que pudessem ter com um homem e que é o úni­co que lhes parece uma traição, já que não participam do amor das mulheres, não o praticaram senão como costume e para re­servar-se a possibilidade do matrimônio, imaginando tão escas­samente o gozo que este pode proporcionar, que não os faz sofrer a não ser que o experimente aquele a quem amam, ao passo que os segundos muitas vezes inspiram ciúmes por causa de seus amores com mulheres. Porque, nas relações que com elas mantêm, representam para a mulher que gosta das mulhe­res o papel de outra mulher, e a mulher lhes oferece ao mesmo
11.Gide, que se bate pelos direitos de uma homossexualidade-Iogos, critica em Proust o fato de considerar apenas os casos de inversão e de efeminação. Ele se atém ao segundo nível, não parecendo absolutamente ter compreendido a teoria proustiana. (Da mesma maneira que aqueles que se limitam ao tema da culpabili­dade em Proust.)

131
tempo aproximadamente o que encontram eles no homem... "12 Se compreendermos o sentido desse transexualismo como últi­mo nível da teoria proustiana, e sua relação com a prática das compartimentações, não apenas se esclarecerá a metáfora vege­tal, como também se tornará totalmente grotesca a pergunta sobre o grau de "transposição" que Proust teria realizado, como se acredita, para transformar Alberto em Albertinaj mais gro­tesco ainda seria apresentar como uma revelação a descoberta de que Proust deve ter tido algumas relações amorosas com mu­lheres. É o caso de dizer que realmente a vida não dá nenhuma contribuição para a obra ou para a teoria, pois a obra ou a teoria se ligam à vida secreta por um liame mais profundo do que o de todas as biografias. Basta seguir o que Proust explica em seu grande relato de Sodoma e Gomorra: o transexualismo, isto é, 8 homossexualidade local e não específica, fundada na comparti­mentação contígua dos sexos-órgãos ou dos objetos parciais, que se descobre sob a homossexualidade global e específica fundada na independência dos sex9s-pessoas ou das séries de conjunto.
O ciúme é o delírio próprio dos signos. Encontra-se err Proust a confirmação de um liame fundamental entre o ciúme e a homossexualidade, embora lhe dê uma interpretação inteiramente nova. Na medida em que o ser amado contém mundos possíveis (Srta. de Stermaria e a Bretanha, Albertina e Balbec) trata-se de explicar, de desdobrar todos esses mundos. Mas, precisamente porque esses mundos só têm valor pelo ponto de vis ta que o amado tem sobre eles, e que determina a maneira come se enrolam neles, o amante nunca poderá ser suficientementl tomado nesses mundos sem ser ao mesmo tempo excluído deles pois só lhes pertence como coisa vista, portanto, também come coisa quase não vista, quase não notada, excluída do ponto de
12. SG 19-20.
132
vista superior a partir do qual se faz a seleção. O olhar do ser amado só me integra na paisagem e circunvizinhanças excluin­do-me do ponto de vista impenetrável a partir do qual a paisa­gem e circunvizinhanças nele se organizam: "Se me vira, que lhe poderia eu significar? Do seio de que universo me distinguia ela? Ser-me-ia tão difícil dizê-lo como, ao nos aparecerem ao te­lescópio certas particularidades em um astro vizinho, seria de­sastrado inferir que ali habitam seres humanos, que eles nos avistam e que idéias essa visão acaso lhes despertou."13 Do mes­mo modo, as preferências e as carícias do amado só me tocam quando delineiam a imagem dos mundos possíveis em que ou­tros foram, são ou serão preferidos. 14 Razão pela qual, em segun­do lugar, o ciúme não é mais simplesmente a explicação dos mundos possíveis envolvidos no ser amado (em que outros, pare­cidos comigo, podem ser vistos e escolhidos), mas a descoberta do inundo incognoscível que representa o ponto de vista do pró­prio amado e que se desenvolve em sua série homossexual. Nele o amado só está em relação com seres iguais a ele, mas diferen­tes de mim, fontes de prazeres que me são desconhecidos e im­praticáveis: "Era uma terra incógnita terrível a que eu acabara de aterrar, uma fase nova de sofrimentos insuspeitados que se abria."15 Finalmente, em terceiro lugar, o ciúme descobre a transexualidade do ser amado, tudo aquilo que se oculta ao lado de seu sexo aparente globalmente determinado, os outros sexos contíguos e não comunicantes, e os estranhos insetos encarre­gados de estabelecer a comunicação entre esses lados – em suma, a descoberta dos objetos parciais, ainda mais cruel do que a das pessoas rivais.
Há uma lógica do ciúme que é das caixas entreabertas e dos vasos fechados e que consiste em seqüestrar, em enclausurar o
13.RF 294.
14.CS 232.
15.SG 405.

133
ser amado. É essa a lei que Swann pressente no final de seu amor por Odette e que o narrador já percebe em seu amor pela mãe, sem ter ainda força para aplicá-la, e que finalmente aplica­rá em seu amor por Albertina.16 Toda a filiação secreta da Re­cherche, os tenebrosos cativos. Seqüestrar é, em primeiro lugar, esvaziar o ser amado de todos os mundos possíveis que ele con­tém, é decifrar e explicar esses mundos; mas é também relacio­ná-los com o ponto de envolvimento, com a dobra que marca seu pertencimento ao ser amado.17 Em seguida, é cortar a série homossexual que constitui o mundo desconhecido do amado; mas é também descobrir a homossexualidade como o pecado original do amado, cujo seqüestro é a forma de punição. Enfim, seqüestrar é impedir os lados contíguos, os sexos e os objetos parciais de se comúnicarem na dimensão transversal freqüenta­da pelo inseto (o terceiro objeto); é fechá-los em si mesmos, in­terrompendo as malditas trocas; mas é também colocá-los um do lado do outro e deixá-los inventar seu sistema de comunica­ção que sempre nos surpreende, que cria prodigiosos acasos e despista nossas suspeitas (o segredo dos signos). Há uma rela­ção impressionante entre o seqüestro causado pelo ciúme, a paixão de ver e a ação de profanar – a trindade proustiana: se­qüestro, voyeurismo e profanação. Porque aprisionar é precisa­mente colocar-se na posição de ver sem ser visto, isto é, sem arriscar-se a ser dominado pelo ponto de vista do outro que nos expulsava do mundo ao mesmo tempo que nos incluía. Assim acontece quando o narrador vê Albertina dormir. Ver é exata­mente reduzir o outro aos lados contíguos não comunicantes que o constituem e esperar o modo de comunicação transversal que essas metades compartimentadas encontrarão um jeito de criar. Ver também se ultrapassa na tentação de fazer ver, de mostrar, mesmo que seja simbolicamente. Fazer ver é impor
16.RF 108 e P 12-13.
17.P 145-146.
134
a alguém a contigüidade de um espetáculo estranho, abominá­vel, hediondo. É não apenas impor-lhe a visão dos vasos fecha­dos e contíguos, objetos parciais entre os quais se esboça um acoplamento contranatureza, mas também tratar esse alguém como se ele próprio fosse um desses objetos, um desses lados contíguos que devem comunicar-se transversalmente.
Daí o tema da profanação, tão caro a Proust. A Srta. Vinteuil põe a fotografia de seu pai em contigüidade com seus entretenimentos sexuais. O narrador põe móveis de família numa casa de tolerância. Sendo beijado por Albertina ao lado do quarto materno, ele pode reduzir a inãe ao estado de objeto parcial (língua) contíguo ao corpo de Albertina. Sonhando, ele põe seus pais em jaulas como se fossem ratos feridos, abandona­dos aos movimentos transversais que os atravessam e os fazem sobressaltar-se. Profanar é sempre fazer a mãe (ou o pai) funcio­nar como objeto parcial, isto é, compartimentá-Ia, fazê-la ver um espetáculo contíguo e até mesmo fazê-la atuar nesse espetá­culo que ela não pode mais interromper e do qual não pode es­capar, fazê-la juntar-se ao espetáculo.18
Freud assinalou duas angústias fundamentais em relação com a lei: a agressividade contra o ser amado acarreta, por um lado, uma ameaça de perda de amor, por outro lado, uma culpa­bilidade por uma volta da agressividade contra si próprio. A segunda figura dá à lei uma consciência depressiva, mas a pri­meira é uma consciência esquizóide da lei. Em Proust o tema da culpabilidade permanece superficial, mais social do que moral, mais projetado sobre os outros do que interiorizado ao narrador, distribuído nas séries estatísticas. Em compensação, a perda do amor define realmente o destino ou a lei: amar sem ser amado,
18. Esse tema de profanação, tão freqüente em sua obra e em sua vida, Proust geral­mente o expõe em termos de "crença": por exemplo, CS 140-142. Ele pare­ce-nos, antes, remeter a toda uma técnica de contigüidades, compartimentações e comunicações entre vasos fechados.
135
visto que o amor implica a apreensão desses mundos possíveis no amado, que me expulsam ao mesmo tempo que me aprisio­nam, culminando no incognoscível mundo homossexual; mas também deixar de amar, visto que o esvaziamento dos mundos, a explicação do amado acarretam a morte do eu que ama.19 "Ser duro e pérfido com aquele que se ama", visto que se trata de se­qüestrá-Io, de vê-lo quando ele não mais nos pode ver, e depois fazer-lhe ver cenas compartimentadas de que ele é o teatro ver­gonhoso ou simplesmente o aterrorizado espectador. Seqües­trar, ver, profanar, resume toda a lei do amor.
Isso significa que a lei em geral, num mundo privado de logos, rege as partes sem todo, de que vimos a natureza entreaber­ta ou fechada. Longe de reuni-las ou de aproximá-las num mesmo mundo, ela mede sua separação, seu afastamento, sua distância, sua compartimentação, instaurando apenas comuni­cações aberrantes entre os vasos não comunicantes, unidades transversais entre as caixas que repelem qualquer totalização, inserindo à força em determinaçlo mundo o fragmento de outro mundo, impelindo os mundos e os diversos pontos de vista para o infinito vazio das distâncias. É por esta razão que, desde o ní­vel mais elementar, a lei como lei social ou natural aparece do lado do telescópio e não do microscópio. Sem dúvida, muitas vezes Proust faz uso do vocabulário do infinitamente pequeno: o rosto, ou melhor, os rostos de Albertina diferem por "um infi­nitesimal desvio de linhas", os rostos das jovens do grupo dife­rem "pelas diferenças infinitamente pequenas das linhas".20 Mas, mesmo aí, os pequenos desvios de linhas só adquirem va­lor como portadores de cores que se afastam e se distanciam uns dos outros, modificando suas dimensões. O instrumento da Re­cherche é o telescópio e não o microscópio, porque as distâncias
19.Amar sem ser amado: RF 400. Deixar de amar: RF 147; P 145. Ser insensível e pérfido com aquele que se ama: P 91.
20.CG 285; RF 414-415.
136
infinitas subtendem sempre as atrações infinitesimais e também porque o tema do telescópio reúne as três figuras proustianas daquilo que se vê de longe, do choque entre mundos e do des­dobramento das partes umas nas outras. "Breve pude mostrar alguns esboços. Ninguém entendeu nada. Até os que me apro­vavam a percepção das verdades que tencionava gravar depois no templo felicitaram-se por as haver descoberto ao 'microscó­pio', quando, ao contrário, eu me servira de um telescópio.."para distinguir coisas efetivamente muito pequenas, mas porque estavam situadas a longas distâncias, cada uma num mun­do. Procurara as grandes leis, e tachavam-me de rebuscador de pormenores."21 O salão do restaurante comporta tantos astros quanto mesas em torno das quais os garçons executam suas evo­luções; o grupo das jovens tem movimentos aparentemente irre­gulares cujas leis só podem ser conhecidas através de pacientes observações, "astronomia apaixonada"; o mundo envolvido em Albertina tem as particularidades daquilo que vislumbramos em um astro "graças ao telescópio".22 E, se o sofrimento é um sol, é porque seus raios atravessam as distâncias num saldo sem anu­lá-las. É o que vimos com relação à contigüidade, à comparti­mentação das coisas contíguas: a contigüidade não reduz a distância ao infinitamente pequeno, mas afirma, alonga uma distância sem intervalo, em conformidade com uma lei sempre astronômica, sempre telescópica, que rege os fragmentos de universos disparatados.
21.TR 246.
22.RF 294, 307 e 324.

137
Capítulo IV
As Três Maquinas
Ora, o telescópio funciona. Telescópio psíquico para uma "astronomia apaixonada", a Recherche não é apenas um instru­mento de que Proust se serve ao mesmo tempo que o fabrica. É também um instrumento para os outros, e cujo uso eles devem aprender: "Eles não seriam meus leitores, mas leitores de si mes­mos, meu livro não passando de uma espécie de lente de au­mento, como os que oferecia a um freguês o dono da loja de instrumentos ópticos em Combra,y, o livro graças ao qual eu lhes forneceria meios de se ler. Por isso não esperaria deles nem elogios nem ataques, mas apenas que me dissessem se estava certo, se as palavras em si lidas eram mesmo as que eu emprega­ra (as possíveis divergências não provindo, aliás, sempre de er­ros meus, mas, algumas vezes, de não serem os olhos do leitor daqueles aos quais meu livro conviria para a leitura interior)1. E não apenas um instrumento: a Recherche é uma máquina. A obra de arte moderna é tudo o que se quiser, isto, aquilo ou aquilo outro; é mesmo de sua natureza ser tudo que se quiser, ter a sobredeterminação que se quiser, desde que funcíone: a obra de arte moderna é uma máquina e funciona como tal. Mal-
1.TR 240 e TR 153: "Mas outras particularidades (como a inversão) o obrigarão a ler de tal maneira para ler bem; o autor não se deve com isso ofender, mas, ao con­trário, deixar-lhe a maior liberdade, dizendo-lhe: Experimente se vê melhor com estas lentes, com aquelas, com aquelas outras."
138
colm Lowry diz esplendidamente de seu romance: "Pode-se considerá-lo uma espécie de sinfonia, ou uma espécie de ópera, ou até mesmo uma ópera-westem; é jazz, poesia, canção, tragé­dia, comédia, farsa e assim por diante (...) é uma profecia, uma advertência política, um criptograma, um filme burlesco e um Mane-Tecel-Fares. Pode-se considerá-lo até mesmo como uma espécie de maquinaria; e ela funciona muito bem, estejam cer­tos, pois eu mesmo já a experimentei."2 Proust diz a mesma coisa quando nos aconselha, não a ler sua obra, mas a nos ser­virmos dela para lermos em nós mesmos. Não há uma sonata ou um septeto na Recherche; é a própria Recherche que é uma sona­ta, um septeto ou mesmo uma ópera-bufa; e Proust acrescenta: uma catedral ou até mesmo um vestido.3 ֹ uma profecia sobre os sexos, uma advertência política que chega até nós vinda do fundo do caso Dreyfus e da guerra de 1914, um criptograma que decodifica e recodifica todas as nossas linguagens sociais, diplo­máticas, estratégicas, eróticas, estéticas, um westem ou um fil­me burlesco sobre a Prisioneira, um Mane-Tecel-Fares, um manual mundano, um tratado de metafísica, um delírio de sig­nos ou de ciúmes, um exercício de adestramento das faculda­des. Tudo o que se quiser, contanto que se faça funcionar o conjunto, e "isto funciona, estejam certos". Ao logos, órgão e or­ganon, cujo sentido é preciso descobrir no todo a que pertence, se opõe o antilogos, máquina e maquinaria cujo sentido (tudo o que se quiser) depende unicamente do funcionamento, e este, das peças separadas. A obra de arte moderna não tem problema de sentido, ela só tem um problema de uso.
Por que uma máquina? Pelo simples fato de que a obra de arte, assim compreendida, é essencialmente produtora: produ/ tora de certas verdades. Ninguém mais do que Proust insistiu no seguinte ponto: a verdade é produzida e produzida por or-
2.Malcolm Lowry, Choix de lettres, Denoel, ps. 86-87.
3.TR 240.
139
dens de máquinas que funcionam em nós, extraída a partir de nossas impressões, aprofundada em nossa vida, manifestada em uma obra. Essa é a razão por que Proust recusa com tanta vee­mência uma verdade que não seja produzida, mas apenas des­coberta ou, ao contrário, criada, e um pensamento que se pressuporia a si mesmo pondo a inteligência em primeiro lugar, reunindo todas as suas faculdades em um uso voluntário corres­pondente à descoberta ou à criação (logos). Por possuírem apenas uma verdade lógica, uma verdade possível, as idéias se­lecionadas pela inteligência pura são selecionadas arbitraria­mente. O livro de caracteres figurados, não traçados por nós, é o nosso único livro. Não que as idéias por nós elaboradas não possam ser logicamente certas, mas não sabemos se são verdadei­ras." E a imaginação criadora não vale mais que a inteligência descobridora ou observadora.4
Vimos anteriormente de que maneira Proust renovava a equivalência platônica criar-lembrar. É que lembrar e criar nada mais são do que dois aspectos da mesma produção – o "interpre­tar", o "decifrar", o "traduzir" constituem o próprio processo de produção. É por ser produção que a obra de arte não coloca um problema particular de sentido, mas de uso.5 Mesmo o pensar deve ser produzido no pensamento. Toda produção parte da im­pressão, porque apenas ela reúne em si o accaso do encontro e a necessidade do efeito, violência que ela nos faz sofrer. Toda pro­dução parte, portanto, de um signo e supõe a profundidade e a obscuridaae do involuntário.''A imaginação, o pensamento serão máquinas em si mesmo admiráveis, mas podem ficar inertes. E o sofrimento as põe em movimento."6 Então, como vimos, o
4.TR 146; "Um homem dotado de sensibilidade poderia, ainda que não tivesse ima­ginação, escrever romances admiráveis."
5.Sobre o conceito de produção em suas relações com a literatura, cf. Pierre Mache­rey, Pour une théorie de Ia production littéraire, Paris, Maspéro.
6.TR 152.
140
signo, por sua natureza, aciona esta ou aquela faculdade, mas nunca todas ao mesmo tempo, impulsionando-a até o limite de seu exercício involuntário e disjunto, pelo qual ela produz o sentido. Uma classificação dos signos nos indicou as faculdades que entram em jogo nesse ou naquele caso e o tipo de sentido prod uzido (especialmente leis gerais ou essências singulares). Em todo caso, a faculdade escolhida sob coação do signo constitui o interpretar; e o interpretar produz o sentido, a lei ou a essência segundo o caso, que é sempre um produto. Porque o sentido (verdade) nunca está na impressão nem mesmo na lembrança, mas se confunde com o "equivalente espiritual" da lembrança ou da impressão, produzido pela máquina involuntária de inter­pretação.7 É essa noção de equivalente espiritual que funda um novo liame entre lembrar-se e criar, e o funda em um processo de produção considerado como obra de arte.
A Recherche é a produção da verdade procurada. E não há exatamente a verdade, mas ordens de verdade, como ordens de produção; e não basta dizer que há verdades do tempo redesco­berto e verdades do tempo perdido, porque a grande sistemati­zação final distingue não apenas duas ordens de verdades, mas três. A primeira ordem parece dizer respeito ao tempo redesco­berto, visto que engloba todos os casos de reminiscências natu­rais e de essências estéticas; a segunda e a terceira ordens parecem confundir-se no fluxo do tempo perdido e produzir verdades apenas secundárias, que são ditas ora "encaixar", ora "engastar" ou "cimentar" as da primeira ordem.s Entretanto, a determinação dos temas e o movimento do texto nos forçam a distinguir três ordens. A primeira ordem se define pelas remi­niscências e essências, isto é, pelo mais singular, e pela produção do tempo redescoberto que lhes corresponde, pelas condições e
7.TR 129. Mesmo a memória, ainda muito material, tem necessidade de umeqHiva­lente esPiritHal: cf. P 320-321.
8.TR 144, 168 e 194.
141
pelos agentes dessa produção (signos naturais e artísticos). A segunda ordem diz respeito não menos à arte e à obra de arte, mas agrupa os prazeres e os sofrimentos que não alcançam ple­nitude em si mesmos, que remetem a outra coisa, mesmo se essa outra coisa e sua finalidade permanecem despercebidas, signos mundanos e signos amorosos, em suma, tudo aquilo que obede­ce a leis gerais e intervém na produção do tempo perdido (pois o tempo perdido também é questão de produção). Enfim, a ter­ceira ordem também diz respeito à arte, mas se define pela uni­versal alteração, a morte e a idéia da morte, a produção de catástrofe (signos de envelhecimento, de doença, de morte). No que se refere ao movimento do texto, não é absolutamente da mesma maneira que as verdades de segunda ordem vêm se­cundar ou "encaixar" as de primeira, dando-lhes uma espécie de correspondente, de prova a contrario em outro campo de produção, e que as da terceira ordem vêm, sem dúvida, "engas­tar" e "cimentar" as da primeira, opondo-Ihes, porém, uma ver­dadeira "objeção" que deverá ser "superada" entre duas ordens de produção.9
Todo o problema reside na natureza dessas três ordens. Se não seguirmos a ordem de apresentação do tempo redescober­to, que necessariamente dá a primazia a este último do ponto de vista da exposição final, deveremos considerar como ordem pri­mária os sofrimentos e os prazeres não plenos, que não têm finalidade determinada, que obedecem a leis gerais. Ora, estra-
9.A organização do Tempo redescoberto a partir da "vesperal em casa da Sra. de Guermantes" é a seguinte; a) a ordem das reminiscências e das essências singula­res como primeira dimensão da obra de arte, TR 120-143; b) transição sobre o so­frimento e o amor em conseqüência das exigências da obra de arte total, TR 143 -144; c) a ordem dos prazeres e dos sofrimentos, com suas leis gerais, como se­gunda dimensão da obra de arte, confirmando a primeira, TR 145-158; d) transi­ção, retorno à primeira dimensão TR 158-160; e) a ordem da alteração e da morte, como terceira dimensão da obra de arte, contradizendo a primeira, mas, superan­do a contradição, TR 160-166; f) o Livro com suas três dimensões, TR 237 – 251.
142
nhamente, Proust agrupa aqui os valores da mundanidade com seus prazeres frívolos, os valores do amor com seus sofrimentos e até mesmo os valores do sono com seus sonhos. Na "vocação" de um homem de letras, etles constituem um "aprendizado", isto é, a familiaridade com uma matéria bruta que só será reconheci­da mais tarde no produto final.l0 São, sem dúvida, signos extre­mamente diferentes, especialmente os signos mundanos e os signos do amor, mas vimos anteriormente que seu ponto de vis­ta comum se encontrava na faculdade que os interpretava – a inteligência, mas uma inteligência que vem depois, ao invés de vir antes, forçada pela coação do signo – e no sentido que cor­responde a esses signos: sempre uma lei geral, quer seja ela a de um grupo, como no mundanismo, ou a de uma série de seres amados, como no amor. Mas estas são ainda semelhanças gros­seiras. Se considerarmos ele mais perto esta primeira espécie de máquina, veremos que ela se define, antes de mais nada, por uma produção de objetos parciais, tais como foram definidos an­teriormente: fragmentos sem totalidade, partes divididas, vasos sem comunicação, cenas compartimentadas. Melhor ainda, se há sempre uma lei geral, é no sentido particular que Proust lhe dá: não reunindo em um todo, mas, ao contrário, determinando as distâncias, os afastamentos, as compartimentações. Se os so­nhos aparecem nesse grupo, é por sua capacidade de mostrar os fragmentos como que através de um telescópio, de fazer girar diferentes universos e de transpor, sem anulá-las, "enormes dis­tâncias".11 As pessoas com quem sonhamos perdem seu caráter global e são tratadas como objetos parciais, ou porque uma par­te delas é destacada pelo nosso sonho, ou porque funciona in­teiramente como tais objetos. Ora, era exatamente isto que nos oferecia o material mundano: a possibilidade de destacar, como num sonho frívolo, um movimento de ombros de uma pessoa e
10.TR 145-150.
11.TR 153.
143
um movimento de pescoço de outra, não para totalizá-Ios, mas para compartimentá-los um ao lado do outro. 12 Com mais ra­zão, é o que nos oferece o material amoroso, em que cada um dos seres amados funciona como objeto parcial, "reflexo frag­mentário" de uma divindade cujos sexos compartimentados são percebidos sob a pessoa global. Enfim, a idéia de lei geral, em Proust, é inseparável da produção dos objetos parciais e da pro­dução das verdades de grupo ou das verdades de série corres­pondentes.
O segundo tipo de máquina produz ressonâncias, efeitos de ressonância. Os mais célebres são os da memória involuntária, que fazem ressoar dois momentos, um atual e um antigo. O pró­prio desejo tem efeitos de ressonância (por isso os campanários de Martinville não são um caso de reminiscência). Mais ainda, a arte produz ressonâncias que não são da memória: "Impres­sões obscuras me haviam (...) solicitado o pensamento, tal como estas reminiscências, a atenção, encerrando, porém, não uma velha sensação, mas uma verdade nova, uma imagem pre­ciosa que eu tentava desvendar por meio de esforços semelhan­tes aos que fazemos para recordar alguma coisa."l3 É que a arte faz ressoar dois objetos longínquos "pelo vínculo indescritível de uma aliança de palavras". 14 Não se deve crer que essa nova ordem de produção suponhq a produção anterior dos objetos parciais e se estabeleça a partir deles; seria falsear a relação exis­tente entre as duas ordens, que não é de fundação. A relação é, antes, como que entre tempos plenos e tempos vazios, ou me­lhor, do ponto de vista do produto, entre verdades do tempo redescoberto e verdades do tempo perdido. A ordem da resso­nância se distingue pelas faculdades de extração ou de interpre­tação que ela aciona e pela qualidade de seu produto que é
12.TR 146.
13.TR 129.
14.TR 137.
144
também modo de produção: não mais uma lei geral, de grupo ou de série, mas uma essência singular, essência local ou localizan­te no caso dos signos de reminiscência, essência individuante no caso dos signos da arte. A ressonância não se baseia em pe­daços que lhe seriam fornecidos pelos objetos parciais, nem totaliza pedaços que viriam de outro lugar. Ela extrai seus pró­prios pedaços e os faz ressoar segundo sua finalidade específica, mas não os totaliza, visto que se trata sempre de um "corpo a corpo", de uma "luta" ou de um "combate".15 O que é produzido pelo processo de ressonância, na máquina de fazer ressoar, é a essência singular, o ponto de vista superior aos dois momentos que ressoam, em ruptura com a cadeia associativa que vai de um a outro: Combray em sua essência tal como não foi vivida; Combray como ponto de vista, tal como nunca foi vista.
Constatamos anteriormente que o tempo perdido e o tem­po redes coberto tinham uma mesma estrutura de divisão ou de fragmentação; que não é por aí que eles se distinguem. Além disso, seria tão falso apresentar o tempo perdido como improdu­tivo em sua ordem, quanto apresentar o tempo redescoberto como totalizante na sua. Há, ao contrário, dois processos de produção complementares, cada qual definido pelos pedaços que fragmenta, por seu regime e seus produtos, pelo tempo ple­no ou pelo tempo vazio que nele se encontra. Razão por que Proust não vê oposição entre os dois, mas define a produção dos objetos parciais como secundando e encaixando a das resso­nâncias. Assim, a "vocação" do homem de letras não é apenas feita do aprendizado ou da finalidade indeterminada (tempo vazio), mas do êxtase ou da meta final (tempo pleno).16
O que é novo em Proust, o que faz o permanente sucesso e a eterna significação da madeleine não é simplesmente a existên­cia desses êxtases ou desses instantes privilegiados. Há inúme-
15.P 220; TR 126.
16.Sobre o caráter extático da ressonância, cf. TR 126-127.
145
ros exemplos desses instantes na literatura. Também não é a maneira original como Proust os apresenta e os analisa com seu estilo peculiar. É, antes, o fato de que ele os produz, e de que es­ses instantes se tornam o efeito de uma máquina literária. Daí a multiplicação de ressonâncias no final da Recherche, em casa da Sra. de Guermantes, como se a máquina se revelasse a todo o vapor. Não mais se trata de uma experiência extraliterária que o homem de letras relata ou de que se aproveita, mas de uma experimentação artística produzida pela literatura, de um efeito literário, no sentido em que se fala de efeito elétrico, eletromag­nético etc. É o caso de se dizer: isto funciona. Que a arte seja uma máquina de produzir, e notadamente de produzir efeitos, disso Proust teve plena consciência; e efeitos sobre os outros, visto que os leitores ou espectadores se porão a descobrir, neles mesmos ou fora deles, efeitos análogos aos que a obra de arte produziu. "Mulheres passam pela rua, diferentes daquelas de outrora, pois que são verdadeiras Renoir, esse Renoir em que antigamente recusávamos distinguit mulheres. Também as via­turas são Renoir, as águas e o céu."17 É nesse sentido que Proust se refere a seus livros como óculos, como um instrumento de ótica. Há sempre alguns imbecis que acham uma tolice ter ex­perimentado, após a leitura de Proust, fenômenos análogos às ressonâncias que ele descreve; há sempre alguns pedantes que se perguntam se não se trata de casos de paramnésia, de ecmné­sia, de hipermnésia, quando a originalidade de Proust é justa­mente ter assinalado, neste domínio clássico, uma repartição e uma mecânica que antes dele não existia. Mas não se trata ape­nas de efeitos produzidos sobre os outros; é a obra de arte que produz em si mesma e sobre si mesma seus próprios efeitos, e deles se sacia, deles se nutre: ela se alimenta das verdades que engendra.
17.CF. a bela análise de Michel Souriau "La matiere, Ia lettre et le verbe", Recherches philosophiques, IlI.
146
É importante que se entenda: o que é produzido não é apenas a interpretação que Proust dá desses fenômenos de res­sonância ("a procura das causas"); é todo fenômeno que é in­terpretação. Há certamente um aspecto objetivo do fenômeno; um aspecto objetivo, por exemplo, é o sabor da madeleine como qualidade comum aos dois momentos. Do mesmo modo, há certamente um aspecto subjetivo – a cadeia associativa que liga toda Combray vivida a esse sabor. Mas, se a ressonância tem assim condições objetivas e subjetivas, o que ela produz é de natureza totalmente diferente, é a Essência, o Equivalente espiri­tual, visto que é uma Combray que nunca foi vista e que está em ruptura com a cadeia subjetiva. É por isso que produzir (dife­rente de descobrir e de criar; e toda a Recherche desvia suces­sivamente da observação das coisas e da imaginação subjetiva. Ora, quanto mais a Recherche opera essa dupla renúncia, essa dupla depuração, mais o narrador se apercebe de que não ape­nas a ressonância é produtora de um efeito estético, mas de que ela própria pode ser produzida, pode ser um efeito artístico.
Sem dúvida, é isso que o narrador não sabia desde o início. Mas toda a Recherche implica um debate entre a arte e a vida, uma questão sobre o relacionamento entre elas que só obterá resposta no final do livro (e obterá resposta precisamente com a descoberta de que a arte não é apenas descobridora ou criadora, mas produtora). No decorrer da Recherche, se a ressonância como êxtase aparece como a meta final da vida, não se percebe bem o que lhe pode a arte acrescentar, e o narrador tem, então, com relação à arte, as maiores dúvidas. É quando surge a resso­nância como produtora de determinado efeito, em determina­das circunstâncias naturais, objetivas e subjetivas, e através da máquina inconsciente da memória involuntária. Mas, no final, vê-se o que a arte é capaz de acrescentar à natureza: ela produz as próprias ressonâncias, porque o estilo faz ressoar dois objetos quaisquer e deles extrai uma "imagem preciosa", substituindo as condições determinadas de um produto natural inconsciente pelas li-
147
vres condições de uma produção artística.18 Desde então a arte aparece naquilo que ela é, a meta final da vida, que a própria vida não pode realizar por si mesma; e a memória involuntária, utilizando apenas determinadas ressonâncias, é apenas um co­meço de arte na vida, uma primeira etapa.19 A natureza ou a vida, ainda muito pesadas, encontraram na arte seu equivalente espiritual. E até mesmo a memória involuntária encontrou seu equivalente espiritual, puro pensamento produzido e produtor.
Todo o interesse se desloca então dos instantes naturais pri­vilegiados para a máquina artística capaz de produzi-los ou re­produzi-los, de multiplicá-los: o livro. A esse respeito só vemos comparação possível com Joyce e sua máquina de epifanias, pois Joyce também começa procurando o segredo das epifanias do lado do objeto, em conteúdos significantes ou significações ideais, e depois na experiência subjetiva de um esteta. Somente quando os conteúdos significantes e as significações ideais desmoronam dando lugar a uma multiplicidade de fragmentos e de caos, e as formas subjetivas, dando lugar a um impessoal caótico e múltiplo, é que a obra de arte adquire seu sentido pleno, isto é, todos os sentidos que se quiser segundo seu funcionamento – o essencial é que ela funcione, estejam certos. Então o artista, e em seguida o leitor, é aquele que "disentangles" e "re-embodies": ao fazer ressoar dois objetos, ele produz a epifania, extraindo a imagem preciosa das condições naturais que a determinam para reencarná-la nas condições artísticas escolhidas.20 "Significante e significado se fundem por um curto-circuito poeticamente necessário, mas ontologicamente gratuito e imprevisto. A lin­guagem cifrada não se refere a um cosmos objetivo, exterior à
18.TR 129-138.
19.TR 138: "Não fora, sob esse ponto de vista, a próptia natureza que me pusera no caminho da arte, não era ela um começo de arte!"
20.Cf. Joyce, Stephen hera (vimos que o mesmo acontece em Proust, e que, na arte, a própria essência determina as condições de sua encarnação, ao invés de depen: der de condições naturais dadas).
148
obra; sua compreensão só tem valor no interior da obra e se acha condicionada por sua estrutura. A obra como um todo propõe novas convenções lingüísticas a que ela se submete, e se torna a chave de seu próprio código."21 Mais ainda, a obra só é um todo, e num sentido novo, em virtude dessas novas conven­ções lingüísticas.
Resta ainda a terceira ordem proustiana, a da alteração e da morte universais. O salão da Sra. de Guermantes, com o enve­lhecimento de seus convidados, faz-nos assistir à distorção dos pedaços de rosto, à fragmentação dos gestos, à incoordenação dos músculos, às mudanças de coloração, à formação de mus­gos, liquens, manchas oleosas sobre os corpos, sublimes traves­tis, sublimes gagás. Por toda a parte a proximidade da morte, o sentimento da presença de uma "coisa terrível", a impressão de um fim último ou mesmo de uma catástrofe final em um mundo deslocado que não é apenas regido pelo esquecimento, mas cor­roído pelo tempo. "Lassas ou quebradas, já não atuavam as mo­las da máquina joeirante... "22
Ora, esta última ordem suscita tanto mais problemas quan­to parece inserir-se nas duas outras. Já não estava vigilante nos êxtases a idéia da morte e o deslizamento do antigo momento que se afastava a toda velocidade? Assim, quando o narrador se inclinava para desabotoar sua botina, tudo começava exata­mente como num êxtase: o atual momento ressoava junto com o antigo, fazendo reviver a avó no gesto de se inclinar; mas a alegria era substituída por uma insuportável angústia: a conju­gação dos dois momentos se desfazia dando lugar a uma violen­ta evasão do antigo, numa certeza de morte e de vazio.23 Do
21.Umberto Eco, L'oeuvre ouverte, Paris, Editions du Seuil, p. 231. (N. da Ed. bras.: Deleuze cita nessa passagem um estudo do autor italiano sobre a obra de Joyce, que não foi incluído na edição brasileira de Obra aberta.)
22.TR 187.
23.SG 127.
149
mesmo modo, a sucessão dos eus distintos nos amores, ou até mesmo em cada amor, já continha uma longa teoria dos sui­cidas e dos mortos.24 Entretanto, enquanto as duas primeiras ordens não colocavam nenhum problema quanto à sua conci­liação, embora uma representasse o tempo vazio e a outra o tempo pleno, uma o tempo perdido e a outra o tempo redesco­berto, há agora, ao contrário, uma conciliação a ser feita, uma contradição a ser superada entre essa terceira ordem e as duas outras (razão por que Proust, nesse ponto, fala da "mais grave das objeções" contra seu empreendimento). É que os objetos e os eus parciais da primeira ordem levam à morte uns aos outros, uns em relação aos outros, cada um permanecendo indiferente à morte do outro: portanto, eles ainda não extraem a idéia da morte, como que banhando uniformemente todos os pedaços, arrastando-os em direção a um fim último universal. Com mais razão se manifesta uma "contradição" entre a sobrevivência da segunda ordem e o nada da terceira; entre "a fixidez da lem­brança" e "a decadência das triaturas", entre a meta final extática e o fim último catastrófico.25 Contradição que não é re­solvida com a lembrança da avó, mas que reclama ainda mais um aprofundamento: "Esta impressão dolorosa e incompreensí­vel atualmente, não sabia eu por certo se haveria de arran­car-lhe um pouco de verdade alguma vez, mas sabia que se pudesse algum dia extrair-lhe esse pouco de verdade só poderia ser dela, tão particular, tão espontânea, que não a traçara a mi­nha inteligência nem a atenuara a minha pusilanimidade, mas que a própria morte, a brusca revelação da morte, como um raio, tinha cavado em mim um duplo e misterioso sulco, segun­do um gráfico sobrenatural e inumano."26 A contradição apare-
24.TR 243.
25.SG 129-130; TR 208.
26.SG 130.
150
ce aqui em sua forma mais aguda. As duas primeiras ordens eram produtivas e.assim sua conciliação não colocava problema particular; mas a terceira, dominada pela idéia de morte, parece absolutamente catastrófica e improdutiva. Pode-se conceber uma máquina capaz de extrair alguma coisa a partir desse tipo de impressão dolorosa e de produzir determinadas verdades? Se não pudermos concebê-Ia, a obra de arte encontra "a mais gra­ve das objeções".
Em que consiste esta idéia da morte, inteiramente diferente da agressividade da primeira ordem (um pouco como, na psica­nálise, o instinto de morte se distingue das pulsões destruidoras parciais)? Ela consiste num determinado efeito de Tempo. Sen­do dados dois estados de uma mesma pessoa, um antigo, de que nos lembramos, e outro atual, a impressão de envelhecimento de um a outro tem por efeito fazer recuar o antigo "num passado mais do que remoto, quase inverossímil", como se tivessem pas­sado períodos geológicos.27 Pois "na apreciação do tempo passa­do só custa o primeiro passo. É difícil, antes, imaginar tanto tempo decorrido, depois, aceitar que não se haja passado ainda mais. Causa espanto, a princípio, ser tão longínquo o século XIII, mais tarde existirem tantas igrejas daquela época, entre­tanto inúmeras em França."28 É assim que o movimento do tem­po, de um passado ao presente, se duplica em um movimento forçado de maior amplitude, em sentido inverso, que varre os dois momentos, ressalta o intervalo entre eles e faz recuar o passado. É esse segundo movimento que constitui, no tempo, um "hori­zonte". Não se deve confundi-lo com o eco de ressonância; ele dilata infinitamente o tempo, enquanto a ressonância o contrai ao máximo. A idéia da morte é, desde então, muito menos um corte do que um efeito de mistura ou de confusão, visto que a
27.TR 173-174.
28.TR 169.
151
amplitude do movimento forçado é ocupada tanto pelos vivos quanto pelos mortos, todos agonizantes, todos semimortos ou com os pés na cova.29 Mas esta meia-morte é também a estatura dos gigantes, visto que no seio de amplitude desmesurada po­de-se descrever os homens como seres monstruosoS "ocupando no Tempo um lugar muito mais considerável do que o tão restrito a eles reservado no espaço. Um lugar, ao contrário, desmesurado, pois, à semelhança de gigantes, tocam simultane­amente, imersos nos anos, todas as épocas de suas vidas, tão dis­tantes _ entre as quais tantos dias cabem -no Tempo. "30 A esta altura, já estamos perto de resolver a objeção ou a contradição. A idéia da morte deixa de ser uma "objeção" desde que se possa ligá-la a uma ordem de produção, concedendo-lhe portanto um lugar na obra de arte. O movimento forçado de grande amplitu­de é uma máquina que produz o efeito de recuo ou a idéia de morte; e, neste efeito, é o próprio tempo que se torna sensível: "O tempo ordinariamente invisível, que, para deixar de sê-Io, vive à cata dos corpos e, maIos encontra, logo deles se apodera a fim de exibir a sua lanterna mágica", dividindo os pedaços e os traços de um rosto que envelhece, conforme sua "dimensão in­concebíve1."31 Uma máquina de terceira ordem vem juntar-se às duas precedentes, que produz o movimento forçado e, por meio desse, a idéia de morte.
Que se passou na lembrança da avó? Um movimento forçado se conectou com uma ressonância. A amplitude portadora da idéia de morte varreu os instantes ressonantes como tais. Mas a contradição tão violenta entre o tempo redes coberto e o tempo perdido se resolve desde que se ligue cada um dos dois à sua ordem de produção. Na produção do Livro, a Recherche põe
29.TR 201.
30.TR 251.
31.TR 162-163.
152
em ação três espécies de máquinas: máquinas de objetos parciais (pulsães), máquinas de ressonância (Eras), máquinas de movimento forçado (Thanatos). Cada uma produz verdades, pois é próprio da verdade ser produzida, e ser produzida como um efeito de tempo. O tempo perdido, por fragmentação dos objetos par­ciais, o tempo redescoberto, por ressonância, o tempo perdido de uma outra maneira, por amplitude do movimento forçado, essa perda se dando então na obra e se tornando a condição de sua forma.

153
Capítulo V
O Estilo

Qual é essa forma e como são organizadas as ordens de pro­dução ou de verdade, as máquinas umas nas outras? Nenhuma tem função de totalização. O essencial é que as partes da Re­cherche permanecem divididas, fragmentadas, sem que nada lhes falte: partes eternamente parciais levadas pelo tempo, caixas entreabertas e vasos fechados, sem formar nem supor um todo, sem nada faltar nessa divisão, e denunciando de antemão toda unidade orgânica que se queira introduzir. Quando Proust com­para sua obra a uma catedral ou a um vestido não é para defen­der um lagos com bela totalidade, mas, ao contrário, para defender o direito ao inacabado, às costuras e aos remendos.l O tempo não é um todo, pela simples razão de ser a instância que impede o todo. O mundo não tem conteúdos significantes, pe­los quais se poderia sistematizá-lo, nem significações ideais, pelas quais se poderia ordená-Io, hierarquizá-Io. Tampouco o sujeito possui uma cadeia associativa que possa contornar o mundo ou conferir-lhe unidade. Voltar-se para o sujeito não é mais proveitoso do que observar o objeto: o "interpretar" anula tanto um quanto o outro. Mais ainda, toda cadeia associativa se rompe dando lugar a um ponto de vista superior ao sujeito. Por sua vez, esses pontos de vista sobre o mundo, verdadeiras essên-
1. TR 240-241.
154
cias, nem formam uma unidade nem uma totalidade: dir-se-ia que um universo corresponde a cada um, não se comunicando com os outros, afirmando sua diferença irredutível, tão profun­da quanto a dos mundos astronômicos. Mesmo na arte, em que os pontos de vista são os mais puros, "cada artista parece assim como que o cidadão de uma pátria desconhecida, esquecida dele próprio, diferente daquele donde virá, rumo à terra, outro grande artista."2 Parece-nos que é exatamente isto que define o estatuto da Essência: ponto de vista individuante, superior aos próprios indivíduos, em ruptura com suas cadeias de associações, ela aparece ao lado dessas cadeias, encarnada em uma par­te fechada, adjacente ao que ela domina, contígua ao que ela mostra. Até mesmo a igreja, ponto de vista superior à paisagem, tem como efeito compartimentar essa paisagem e surge, ela pró­pria, numa sinuosidade da estrada, como última parte compar­timentada, adjacente à série que por ela é definida. É o mesmo que dizer que as essências, como as leis, não têm o poder de se unificar, nem de se totalizar. "Um rio que corre por baixo das pontes de uma cidade era apanhado de tal maneira que apare­cia totalmente deslocado, aqui espraiando-se em lago, ali feito filetes, noutra parte rompido pela interposição de uma colina encimada por árvores onde à noite vai a gente tomar a fresca; e o ritmo dessa revolta cidade estava tão-somente assegurado pela vertical inflexível dos campanários, que não subiam, mas antes, conforme o prumo da gravidade, marcando a cadência como numa marcha triunfal, pareciam ter em suspenso, abaixo
P 217. É mesmo a potência da arte: "Só pela arte podemos sair de nós mesmos, sa­ber o que vê outrem de seu universo que não é o nosso, cujas paisagens nos seriam tão estranhas como as porventura existentes na Lua. Graças à arte, em vez de con­templar um só mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e dispomos de tantos mun­dos quantos artistas originais existem, mais diversos entre si do que os que rolam no infinito... " (TR 142).

155
deles, toda a massa, mais confusa, das casas escalonadas na bru­ma, ao longo do rio esmagado e desfeito."3
O problema foi colocado por Proust em vários níveis. O que constitui a unidade de uma obra? O que nos faz "comunicar" com uma obra? O que constitui a unidade da arte, se é que existe uma? Desistimos da procura de uma unidade que unificasse as partes, de um todo que totalizasse os fragmentos, porque é da própria natureza das partes e dos fragmentos excluir o lagos, tanto como unidade lógica quanto como totalidade orgânica. Mas há, deve haver, uma unidade que é a unidade desse múlti­plo, dessa multiplicidade, como também um todo desses frag­mentos; um Uno e um Todo que não seriam princípio, mas, ao contrário, "o efeito" do múltiplo e de suas partes fragmentadas; Uno e Todo que funcionariam como efeito, efeito de máquinas, ao invés de agirem como princípios. Uma comunicação que não seria colocada como princípio, mas que resultaria do jogo das máquinas e de suas peças separadas, de suas partes não comuni­cantes. Do ponto de vista filosófico, foi Leibniz quem pela pri­meira vez formulou o problema de uma comunicação resultante de partes isoladas ou de coisas que não se comunicam: como conceber a comunicação das mônadas, que não têm portas nem janelas? A resposta enganadora de Leibniz é que as mônadas fe­chadas dispõem todas elas de um estoque, envolvendo e expri­mindo o mesmo mundo na série infinita de seus predicados, cada qual se contentando em ter uma região de expressão clara, distinta da das outras, sendo todas portanto pontos de vista di­ferentes sobre o mesmo mundo que Deus as fez envolver. A res­posta de Leibniz restaura assim uma unidade e uma totalidade prévias, sob a forma de um Deus que introduz em cada môna­da o mesmo estoque de mundo ou de informação ("harmonia preestabelecida"), e que cria entre suas solidões uma "corres-
3. RF 330.
156
pondência" espontânea. Não é este, entretanto, o pensamento de Proust, para quem diversos mundos correspondem aos pon­tos de vista sobre o mundo, e para quem unidade, totalidade e comunicação só podem resultar das máquinas e nunca consti­tuir um estoque preestabelecido.4
           O problema da obra de arte é, insistamos, o de uma unidade e de uma totalidade que não seriam nem lógicas nem orgânicas, isto é, que não seriam nem pressupostas pelas partes, como uni­dade perdida ou totalidade fragmentada, nem formadas ou pre­figuradas por elas no curso de um desenvolvimento lógico ou de uma evolução orgânica. Proust era tão consciente desse proble­ma que chegou a assinalar-lhe a origem: foi Balzac quem soube colocá-lo e que, por essa razão, soube criar um novo tipo de obra de arte. Pois é um mesmo contra-senso, uma mesma in­compreensão da genialidade de Balzac, que nos faz acreditar que ele já tivesse uma vaga idéia lógica da unidade de A comédia humana ou que essa unidade se tivesse formado organicamente à medida que a obra crescia. Na verdade, a unidade é um resul­tado e foi descoberta por Balza.c como um efeito de seus livros. Um "efeito" não é uma ilusão: "Considerou subitamente, ao projetar sobre eles uma iluminação retrospectiva, que ficariam mais belos reunidos num ciclo em que as mesmas personagens reaparecessem e acrescentou à sua obra, nesse trabalho de co­ordenação, uma pincelada, a última e a mais sublime. Unidade ulterior e não factícia... não fictícia, talvez até mais real por ser ulterior... "5 O erro seria acreditar que a consciência ou a desco­berta da unidade, vindo após, não mudasse a natureza e a fun-
4.Certamente Proust leu Leibniz, pelo menos nas aulas de filosofia: Saint.Loup, em sua teoria da guerra e da estratégia, invoca um ponto de vista preciso da doutrina le­ibniziana ("você se lembra daquele livro de filosofia que líamos juntos em Bal­bec... "), CG 85-86. De modo geral, pareceu-nos que as essências singulares de Proust estavam mais próximas das mônadas leibnizianas do que das essências platô­nicas.
5.P 135.
157
ção desse Uno. O uno ou o todo de Balzac são tão especiais que resultam das partes sem alterar-lhes a fragmentação ou a dispa­ridade, e, como os dragões de Balbec ou a frase musical de Vin­teuil, eles próprios valem como uma parte ao lado das outras, adjacente às outras – a unidade "surge (desta vez aplicando-se ao conjunto) como um trecho composto à parte", como uma úl­tima pincelada localizada, não como um vemissage geral. Assim, de certo modo Balzac não tem estilo; não que ele diga "tudo", como acreditava Sainte-Beuve, mas as partes de silêncio e de palavra, o que ele diz e o que não diz, se distribuem numa frag­mentação que o todo vem confirmar, visto que é um resultado, e não corrigir ou ultrapassar. "Em Balzac coexistem, não digeri­dos, não ainda transformados, todos os elementos necessários a vir a ser um estilo que não existe. O estilo não sugere, não refle­te – ele explica. Explica, aliás, com a ajuda das mais surpreen­dentes imagens, não fundidas com o resto, que fazem com que se compreenda o que ele quer dizer, tal como acontece quando se tem uma conversa genial, pão se preocupando com a harmonia, nem tampouco em intervir."6
Pode-se dizer que também Proust não tem estilo? É possível dizer que a frase de Proust, inimitável ou muito facilmente imi­tável, em todo caso sempre reconhecível, possuidora de uma sintaxe e um vocabulário bastante específicos, produtora de efeitos que devem ser designados pelo nome próprio de Proust, seja, no entanto, sem estilo? Como se explica que a ausência de estilo se torne com ele a força genial de uma nova literatura? Seria necessário comparar o conjunto final do tempo redesco­'berto com o Prefácio de Balzac: o sistema das plantas substituiu o que era para Balzac o Animal: os mundos substituíram o meio; as essências substituíram os caracteres; a interpretação silencio-
6.Cono'e Sainte-Bueve, ps. 207 -208. E p. 216: "estilo inorganizado". Todo o capítulo insiste nos efeitos de literatura, análogos a verdadeiros efeitos óticos.
158
sa substituiu a "conversa genial". Mas a "desordem assusta­dora", sobretudo não preocupada com o todo nem com a harmonia, é conservada e elevada a um novo valor. Em Proust o estilo não se propõe descrever nem sugerir: como em Balzac, ele é explicativo, ele explica através de imagens. É um não­estilo porque se confunde com o "interpretar" puro e sem sujei­to, e porque multiplica os pontos de vista sobre a frase, no interior da frase. Esta é como o rio que aparece "totalmente deslocado, aqui espraiando-se em lago, ali feito filetes, noutra parte rompido pela interposição de uma colina". O estilo é a explicação dos signos em diferentes velocidades de desenvolvimento, segundo as cadeias associativas que lhes são próprias, atingindo em cada um deles o ponto de ruptura da essência como ponto de vista; daí o papel dos incidentes, das subordinadas, das comparações que exprimem numa imagem o processo de expli­cação, a imagem sendo boa quando explica bem, sempre explo­siva, sem nunca se sacrificar à pretensa beleza do conjunto. Ou melhor, o estilo começa com dois objetos diferentes, distantes, mesmo quando são contíguos; pode ser que esses dois objetos se pareçam objetivamente, sejam do mesmo gênero; pode ser que eles sejam ligados subjetivamente por uma cadeia de associa­ção. O estilo terá de arrastar tudo isso, como um rio que carreia os materiais de seu leito. Mas isso não é o essencial. O essencial é quando a frase atinge um ponto de vista próprio a cada um dos dois objetos, mas precisamente um ponto de vista que se deve dizer próprio ao objeto porque o objeto já foi deslocado por ele, como se o ponto de vista se dividisse' em mil pontos de vista di­versos não-comunicantes, de modo que, a mesma operação se fazendo com o outro objeto, os pontos de vista podem inserir-se uns nos outros, ressoar uns com os outros, mais ou menos como o mar e a terra trocam seus pontos de vista nos quadros de Elstir. Eis "o efeito" de estilo explicativo: sendo dados dois obje­tos, ele produz objetos parciais (os produz como objetos parciais
159
inseridos um no outro), produz efeitos de ressonância, produz mo­vimentos forçados. Esta é a imagem, o produto do estilo. Produ­ção em estado puro, que é encontrada na arte – pintura, literatura ou música, sobretudd na música. À medida que se descem os níveis da essência, dos signos da arte aos signos da natureza, do amor ou mesmo do mundo, reintroduz-se um mí­nimo de necessidade da descrição objetiva e da sugestão asso­ciativaj mas isto acontece apenas pelo fato de que a essência tem então condições de encarnação materiais que substituem as livres condições espirituais artísticas, como dizia Joyce. 7 O es­tilo nunca é do homem, é sempre da essência (não-estilo). Ele nunca é próprio de um ponto de vista, é feito da coexistência, numa mesma frase, de uma série infinita de pontos de vista pe­Jos -quais o objeto se desloca, repercute ou se amplifica.
Não é, portanto, o estilo que garante a unidade, pois ele deve receber de outra parte sua própria unidade: nem tampou­co é a essência, visto que esta, como ponto de vista, está perpe­tuamente fragmentando e sendo fragmentada. Qual é, então, essa modalidade tão especial de unidade irredutível a qualquer "unificação", unidade tão especial que só surge posteriormente, que assegura a troca dos pontos de vista e a comunicação das essências, e que surge, segundo a lei da essência, como uma par­te ao lado das outras, pincelada final ou fragmento localizado?
7, Seria necessário comparar a concepção proustiana da imagem com outras concep­ções pós-simbolistas: a epifania de Joyce, por exemplo, ou o imagismo e o "vorticis­mo" de Ezra Pound. Os seguintes traços parecem comuns: a imagem como elo autônomo entre dois objetos concretos considerados como diferentes (a imagem, equação concreta); o estilo com multiplicidade de pontos de vista sobre um mes­mo objeto e como troca de pontos de vista sobre vários objetos; a linguagem como integrando e compreendendo suas próprias variações constitutivas de uma histó­ria universal e fazendo com que cada fragmento fale por sua própria voz; a literatu­ra como produção, como ação de máquinas produtoras de efeitos; a explicação, não como intenção didática, mas como técnica de enrolamento, a escritura como processo ideogramatical (várias vezes invocada por Proust),
160
Eis a resposta: num mundo reduzido a uma multiplicidade de caos, somente a estrutura formal da obra de arte, na medida em que não remete a outra coisa, pode servir de unidade – posterior (ou, como dizia Umberto Eco,"a obra como um todo propõe novas convenções lingüísticas a que ela se submete, e se torna a chave de seu próprio código"). Mas todo o problema reside em saber em que se baseia essa estrutura formal e como ela dá às partes e ao estilo uma unidade que, sem ela, não teriam. Ora, vi­mos anteriormente, nas mais diversas direções, a importância de uma dimensão transversal na obra de Proust: a transversalidade.8 É ela que permite, num trem, não unificar os pontos de vista de uma paisagem, mas fazê-los comunicar segundo sua dimen­são própria, em sua dimensão própria, enquanto eles permane­cem não-comunicantes segundo as deles. É ela que constitui a unidade e a totalidade singulares do caminho de Méséglise e do caminho de Guermantes, sem suprimir-lhes a diferença ou a distância: "entre esses dois caminhos, transversais se estabele­ciam."9 É ela que funda as profanações e é freqüentada pelo zangão, o inseto transversal que estabelece a comunicação dos sexos, em si mesmos compartimentados. É ela que permite a transmissão de um raio de luz entre dois universos tão diferen­tes quanto o são os mundos astronômicos. A transversalidade é, portanto, a nova convenção lingüística, a estrutura formarda obra, que atravessa toda a frase, vai de uma frase a outra por todo o livro, chegando até mesmo a unir o livro de Proust aos de quem ele tanto gostava, como Nerval, Chateaubriand, Balzac... Pois se uma obra de arte entra em comunicação com o público e, mais que isso, o suscita, se entra em comunicação com as
8.Como resultado de pesquisas psicanalíticas, Felix Guattari formulou um conceito muito profundo de "transversalidade" para dar conta das comunicações e relações do inconsciente: Cf. "La transversalité", Psychothérapie institutionnelle, nº 1.
9.TR 237.
161
outras obras do mesmo artista e as suscita, se entra em comuni­cação com outras obras de outros artistas suscitando-lhes o des­pertar, é sempre nessa dimensão de transversalidade, em que a unidade e a totalidade se organizam por si mesmas sem unificar nem totalizar objetos ou sujeitos.l0Dimensão suplementar que se acrescenta àquelas que ocupam as personagens, os aconteci­mentos e as partes da Recherche – dimensão no tempo sem medida comum com as dimensões que eles ocupam no espaço. Ela mistura os pontos de vista; faz com que os vasos fechados se co­muniquem sem deixar de ser fechados: Odette com Swann, a mãe com o narrador, Albertina com o narrador, e depois, como última "pincelada", a velha Odette com o duque de Guerman­tes – cada uma prisioneira, mas todas se comunicando transver­salmente.ll Assim é o tempo, a dimensão do narrador, que tem o poder de ser o todo dessas partes, sem totalizá-las, a unidade de todas essas partes, sem unificá-las.
10.Cf. as grandes passagens sobre a arte, na Recherche: a comunicação de uma obra com um público (TR 141-143); a comunicação entre duas obras de um mesmo autor, como, por exemplo, a sonata e o septeto (P 210- 221); a comunicação en­tre artistas diferentes (CG 254, P 132-133).
11.TR 237.

162
Conclusão
Presença e Função da Loucura. A Aranha
Não tem muito sentido colocar o problema da arte e da lou­cura na obra de Proust. Muito menos formular a questão sobre se Proust era louco. Pretendemos tratar da presença da loucura em sua obra e da distribuição, do uso ou da função dessa presença.
Pois a loucura aparece e funciona, sob diferentes modalida­des, em pelo menos dois personagens principais: Charlus e Albertina. Desde as primeiras aparições de Charlus, seu olhar estranho, seus olhos são descritos como os de um espião, de um ladrão, de um negociante, de um policial ou de um louco.1 No fi­nal, Morel sente um justificável pavor com a idéia de que Char­lus seja movido contra ele por uma loucura criminosa.2 Durante todo o tempo as pessoas pressentem em Charlus a presença de uma loucura que o torna muito mais assustador do que se ele fosse apenas imoral ou perverso, culpado ou responsável. Os maus costumes "... assustam porque sentimos que raiam pela loucura, muito mais do que por serem imorais. A Sra. de Surgis tinha um sentimento moral nada desenvolvido, e teria admiti­do qualquer procedimento dos filhos manchado e explicado pelo interesse, compreensível a toda a gente! Mas proibiu-lhes
1.F 259.
2.TR 75-77.
163
que continuassem a freqüentar o Sr. de Charlus ao saber que, por uma espécie de mecanismo de repetição, era este como que fatalmente levado, em cada visita, a beliscar-lhes o queixo e a fazer que se beliscassem da mesma maneira. Experimentou ela aquele sentimento inquieto do mistério físico que nos leva a perguntar a nós mesmos se o vizinho com quem mantínhamos boas relações não estará atacado de antropofagia, e às repetidas perguntas do barão: "Quanto verei de novo os rapazes?" res­pondeu, ciente das tempestades a que se expunha, que eles an­davam muito ocupados com as aulas, os preparativos de uma viagem etc. A irresponsabilidade agravava os erros e até mesmo os crimes, digam o que disserem. Landru (admitido que ele te­nha realmente matado suas mulheres), se o fez por interesse, coisa que se pode tolerar, pode ser perdoado, mas não se foi por um sadismo intolerável."3 Além da responsabilidade pelos er­ros, a loucura como inocência do crime.
Que Charlus seja louco é uma probabilidade desde o início e uma quase certeza no final. No caso de Albertina, é uma eventualidade póstuma que projeta retrospectivamente sobre seus gestos e suas palavras, sobre toda a sua vida, uma nova luz inquietante em que Morel ainda está envolvido. "No fundo, sentia que era uma espécie de loucura criminosa, e muitas vezes fiquei pensando se não teria sido depois de uma coisa dessas, tendo provocado um suicídio em certa família, que ela própria se matou."4 Que mistura é essa de loucura-crime-irresponsabi­lidade-sexualidade, que passa sem dúvida pelo tema do parricí­dio, tão caro a Proust, mas que entretanto não se reduz ao esquema edipiano tão conhecido? Uma espécie de inocência no crime em razão da loucura, tanto mais insuportável que leva ao suicídio?
3.Pl72-173.
4. F 143 (uma das versões de Andréa).
164
Vejamos, em primeiro lugar, o caso de Charlus. Este se apre­senta imediatamente como uma forte personalidade, uma indi­vidualidade imperial. Justamente essa individualidade é um império, uma nebulosa que oculta e contém várias coisas desco­nhecidas. Qual é o segredo de Charlus? A nebulosa se forma em torno de dois pontos singulares brilhantes: os olhos e a voz. Os olhos ora são trespassados por clarões dominadores, ora percor­ridos por movimentos bisbilhoteiros, ora com atividade febril, ora com melancólica indiferença. A voz mistura o conteúdo vi­ril do discurso com o maneirismo efeminado da expressão. Charlus aparece como um enorme signo cintilante, como uma grande caixa ótica e vocal; quem o ouve ou enfrenta seu olhar se acha diante de um segredo a decifrar, de um mistério a des­vendar, a interpretar, que se pressente desde o início como algo que pode ir até a loucura. E a necessidade de interpretar Char­lus se baseia no fato de que o próprio Charlus interpreta, não pára de interpretar, como se isso fosse sua loucura, como se esse fosse seu delírio, delírio de interpretação.
*
Da nebulosa-Charlus jorra uma série de discursos ritmados pelo olhar vacilante. Três grandes discursos ao narrador, que têm como motivação os signos que Charlus interpreta, como profeta e adivinho, e que têm como destino os signos que Charlus pro­põe ao narrador, reduzido ao papel de discípulo ou de aluno. O essencial dos discursos está, no entanto, em outra parte: nas pa­lavras voluntariamente organizadas, nas frases soberanamente organizadas, em um logos que calcula e transcende os signos de que se serve. Charlus é o mestre do logos. E desse ponto de vista resulta uma estrutura comum aos três grandes discursos, apesar de suas diferenças de ritmo e de intensidade. Há um primeiro momento de denegação em que Charlus diz ao narrador: você não me interessa, não creia que possa me interessar, mas... Um
165
segundo momento de distanciamento: entre mim e você a dis­tância é infinita, mas justamente podemos nos completar, eu lhe ofereço um contrato... Um terceiro momento, inesperado, como que um descarrilhamento repentino do logos, é atravessa­do por algo que não mais se deixa organizar. É suscitado por uma potência de outra espécie – cólera, injúria, provocação, profanação, fantasma sádico, gesto de demência, irrupção da loucura. Isso acontece desde o primeiro discurso, todo ele feito de nobre ternura, mas que tem seu desfecho absurdo, no dia se­guinte na praia, na observação canalha e profética do Sr. de Charlus: – "Afinal, você está pouco ligando para a vovó, hem, seu malandrinho?" O segundo discurso reveza com uma fanta­sia de Charlus, imaginando uma cena ridícula em que Bloch surraria o próprio pai e esbofetearia a crápula de sua mãe: "Ao dizer essas coisas horríveis e quase loucas, o Sr. de Charlus me apertava o braço até fazê-la doer." O terceiro discurso, final­mente, se precipitava na violenta prova do chapéu pisoteado e destruído. É verdade que desta vez não foi Charlus mas o pró­prio narrador quem pisoteou o chapéu; todavia, veremos como o narrador evidencia uma loucura que vale por todas as outras, ora se comunicando com a de Charlus, ora com a de Albertina, podendo anteceder-lhes ou aumentar-lhes os efeitos.5
Se Charlus é o senhor aparente do logos, seus discursos não são menos agitados por signos involuntários que resistem à or­ganização soberana da linguagem, que não se deixam dominar nas palavras e nas frases, mas fazem desaparecer o logos e nos le­vam para um outro campo. "Por mais belas que fossem as pala­vras com que coloria seus ódios, sentia-se que, mesmo que ele tivesse, ora o orgulho ultrajado, ora um amor frustrado, ou um rancor, um sadismo, uma impertinência, uma idéia fixa, esse
5. Os três discursos de Charlus: RF 270-272; CG 222-230; CG 431-441.
166
homem seria capaz de assassinar... " Signos de violência e loucu­ra que constituem todo um pathos contra e sob os signos volun­tários organizados pela "lógica e pela beleza da linguagem". É esse pathos que agora vai se revelar nas aparições em que Char­lus fala cada vez menos do alto de sua soberana organização e se trai cada vez mais no curso de uma longa decomposição social e física. Não é mais o mundo dos discursos e de suas comunica­ções verticais exprimindo uma hierarquia de regras e posições, mas o mundo dos encontros anárquicos, dos acasos violentos, com suas aberrantes comunicações transversais. É o encontro Charlus-Jupien, em que se desvenda o tão esperado segredo de Charlus: a homossexualidade. Mas será que é esse o segredo? Pois o que é descoberto é menos a homossexualidade, de há muito previsível e adivinhada, do que um regime geral que faz dessa homossexualidade um caso particular de uma loucura universal mais profunda, em que se entrelaçam de todos os mo­dos a inocência e o crime. O que é descoberto é o mundo onde não mais se fala, um silencioso universo vegetal, a loucura das Flores, cujo tema fragmentado vem ritmar o encontro com Jupien.
O logos é um imenso animal cujas partes se reúnem em um todo e se unificam soE um princípio ou idéia diretriz; mas o pathos é um vegetal composto de partes compartimentadas que só se comunicãin indiretamente numa parte infinitamente à parte de tal modo que nenhuma totalização, nenhuma unifica­ção, pode reunir esse mundo cujos últimos pedaços não têm fal­ta de mais nada. É o universo esquizóide das caixas fechadas, das partes compartimentadas, em que a própria contigüidade é uma distância: o mundo do sexo. É isso que nos ensina Charlus para além de seus discursos. Em cada indivíduo que traz em si os dois sexos "separados por um compartimento" devemos fazer intervir um nebuloso conjunto de oito elementos, em que a par­te masculina ou a parte feminina de um homem ou de uma
167
mulher pode relacionar-se com a parte feminina ou a parte mas­culina de uma outra mulher ou de um outro homem (dez combi­nações para os oito elementos).6 Relações aberrantes entre vasos fechados; zangão que faz a comunicação entre as flores e que perde seu valor animal próprio para ser, com relação a elas, ape­nas um pedaço composto à parte, elemento disparatado num aparelho de reprodução vegetal.
Talvez exista uma composição que sempre se encontra na Recherche: parte-se de uma primeira nebulosa que forma um conjunto aparentemente circunscrito, unificável e totalizável. Uma ou várias séries se desligam desse primeiro conjunto, de­sembocando, por sua vez, numa nova nebulosa, dessa vez des­centralizada ou excêntrica, feita de caixas fechadas giratórias, pedaços móveis disparatados, que seguem as linhas de fuga transversais. No caso de Charlus, a primeira nebulosa em que brilham seus olhos, sua voz; depois, a série dos discursos; final­mente, o último mundo inquietante dos signos e das caixas, dos signos encaixados e desenéaixados que compõem Charlus e que se deixam entreabrir ou interpretar pela linha de fuga de um as­tro declinante e de seus satélites ("O Sr. de Charlus que vinha navegando em direção a nós com seu corpo enorme, arrastando sem querer, através de si, um desses apaches ou mendigos que agora à sua passagem surgia infalivelmente até das esquinas aparentemente mais desertas...").7 A mesma composição rege a história de Albertina: a nebulosa das jovens de onde Albertina se destaca lentamente; a grande série dos dois ciúmes sucessi­vos com relação a ela; finalmente, a coexistência de todas as
6.Uma combinação elementar será definida pelo encontro de uma parte masculina ou feminina de um indivíduo com a parte masculina ou feminina de um outro. Te­remos, pois: p.m. de um homem e p.f. de uma mulher, mas também, p.m. de uma mulher e p.f. de um homem, p.m. de um homem e p.f. de outro homem, p.m. de um homem e p.m. de outro homem etc.
7.P 172.
168
caixas em que Albertina se aprisiona em suas mentiras, mas também é aprisionada pelo narrador, nova nebulosa que, a seu modo, recompõe a primeira, visto que o final do amor é como que um retorno à indivisão inicial das jovens. E a linha de fuga de Albertina é comparável à de Charlus. Mais ainda, na exem­plar passagem do beijo em Albertina, o narrador, à espreita, parte do rosto de Albertina, conjunto móvel onde brilha uma pinta como ponto singular; depois, à medida que os lábios do narrador se aproximam da face, o rosto desejado passa por uma série de planos sucessivos a que correspondem várias Albertinas, a pinta passando de um para outro; por último, a mistura final em que o rosto de Albertina se desencaixa e se desfaz e em que o nar­rador, ao perder o uso dos lábios, dos olhos, do nariz, reconhece "nesses signos detestáveis" que está beijando o ser amado.
Essa grande lei de composição e decomposição vale tanto para Albertina quanto para Charlus por ser a lei dos amores e da sexualidade. Os amores intersexuais, especialmente o do narra­dor por Albertina, não são absolutamente uma aparência, sob a qual Proust esconderia sua própria homossexualidade. Muito pelo contrário, esses amores formam o conjunto inicial, de onde sairão, em segundo lugar, as duas séries homossexuais represen­tadas por Albertina e Charlus ("os dois sexos morrerão cada um para seu lado"). Mas estas séries, por sua vez, desembocam em um universo transexual onde os sexos compartimentados, encai­xados, se reagrupam em cada um para comunicar com os de ou­tro segundo vias transversais aberrantes. Se é verdade que uma espécie de normalidade de superfície caracteriza o primeiro ní­vel ou o primeiro conjunto, as séries que dele se desligam no se­gundo nível são marcadas por todos os sofrimentos, angústias e culpabilidades daquilo a que chamamos neurose: maldição de Édipo e profecia de Sansão. Mas o terceiro nível restabelece uma inocência vegetal na decomposição, conferindo à loucura sua função absolutória num mundo em que as caixas explodem ou tornam a se fechar, crimes e seqüestros que constituem "a
169
comédia humana" à maneira de Proust, através da qual se de­senvolve uma nova e última potência que transforma todas as outras, uma potência muito louca, a da própria Recherche, na medida em que ela reúne o policial e o louco, o espião e o co­merciante, o intérprete e o reivindicador.
Não obstante a história de Albertina e a de Charlus obede­cerem à mesma lei geral, a loucura tem, nos dois casos, uma for­ma e uma função muito diferentes e não se distribui da mesma maneira. Vemos entre a loucura-Charlus e a loucura-Albertina três grandes diferenças. A primeira é que Charlus dispõe de uma individuação superior, bem como de uma individualidade imperial. A perturbação de Charlus diz respeito à comunicação: as questões "que esconde Charlus?", "quais são as caixas secre­tas que ele oculta em sua individualidade?" remetem às comu­nicações que estão por serem descobertas, à aberração dessas comunicações, de sorte que a loucura-Charlus só pode se mani­festar, interpretar e interpretar-se a si mesma graças aos violen­tos encontros casuais, com rela.ção aos novoS ambientes em que Charlus imergiu e que agirão como reveladores, indutores, co­municadores (encontros com o narrador, encontro com Jupien, encontro com os Verdurin, encontro no bordel). O caso de Albertina é diferente porque sua perturbação diz respeito à pró­pria individuação: qual das jovens do grupo ela é? Como ex­traí-la e selecioná-la do grupo indiviso das jovens? Dir-se-ia, neste caso, que suas comunicações são a princípio dadas, mas que o oculto é exatamente o mistério de sua individuação; e que esse mistério só pode ser desvendado na medida em que as co­municações são interrompidas, imobilizadas à força, Albertina aprisionada, enclausurada, seqüestrada. Dessa primeira dife­rença decorre uma segunda: Charlus é o mestre do discurso; nele tudo acontece através da palavra, mas, em compensação, nada acontece na palavra. Seus investimentos são antes de tudo verbais, de tal modo que as coisas ou os objetos se apresen­tam como signos involuntários voltados contra o discurso, ora
170
tornando-o disparatado, ora formando uma contralinguagem que se desenvolve no silêncio e no mutismo dos encontros. A relação de Albertina com a linguagem é, ao contrário, esta­belecida através de mentiras humildes e nunca de desvarios aristocráticos. É que nela o investimento permanece um inves­timento de coisa ou de objeto que vai se exprimir na própria lin­guagem, à condição de fragmentar seus signos voluntários e de submetê-los às leis da mentira que neles inserem o involuntário: tudo pode, então, acontecer na linguagem (inclusive o silên­cio), exatamente porque nada acontece pela linguagem.
Finalmente, há uma terceira grande diferença. Em fins do século XIX e início do século XX, a psiquiatria estabelecia uma distinção muito interessante entre duas espécies de delírios dos signos: os delírios de interpretação do tipo paranóia e os delírios de reivindicação do tipo erotomania ou ciúme. Os primeiros apresentam um começo insidioso e um desenvolvimento pro­gressivo que dependem essencialmente de forças endógenas, estendendo-se numa rede geral que mobiliza o conjunto dos in­vestimentos verbais. Os segundos têm um início muito mais brusco e estão ligados a ocasiões exteriores reais ou imaginadas; dependem de uma espécie de "postulado" concernente a deter­minado objeto e entram em constelações limitadas; são menos delírio de idéias, que passam pelo sistema em extensão dos in­vestimentos verbais, do que delírio de ato, animado por um investimento intensivo de objeto (a erotomania, por exemplo, se apresenta muito mais como uma delirante perseguição ao ser amado do que como uma ilusão delirante de ser amado). Esses segundos delírios formam uma sucessão de processos lineares finitos, ao passo que os primeiros formavam conjuntos circulares irradian·· teso Não queremos dizer, certamente, que Proust aplica às suas personagens uma distinção psiquiátrica que estava sendo elabo­rada em seu tempo. Mas Charlus e Albertina, respectivamente, percorrem caminhos na Recherche que correspondem de manei­ra muito precisa a essa distinção. Foi o que tentamos de­monstrar no que se refere a Charlus, grande paranóico cujas
171
primeiras aparições são insidiosas e cujo desenvolvimento e precipitação do delírio revelam terríveis forças endógenas, e que recobre, como toda a sua demência verbal interpretativa, os mais misteriosos signos de uma não-linguagem que o traba­lha: em suma, a imensa rede Charlus. Do outro lado está Alber­tina, ela própria objeto ou perseguidora de objetos; lançando postulados que lhe são familiares, ou colocada pelo narrador num beco sem saída de que não pode escapar (Albertina a priori e necessariamente culpada, amar sem ser amado, ser severo, cruel e pérfido com quem se ama). Erotômana e ciumenta, embora o nar­rador também, e sobretudo ele, assim se mostre a seu respeito. E a série dos dois ciúmes com relação a Albertina, inseparáveis em cada caso da ocasião exterior, constituindo processos suces­sivos. E os signos da linguagem e da não-linguagem se inserem uns nos outros, formando as constelações limitadas da mentira. Todo um delírio de ação e de reivindicação que difere do delírio de idéias e de interpretação de Charlus.
Mas por que confundir num mesmo caso Albertina e as ati­tudes do narrador com relação a Albertina? Na verdade, tudo nos indica que o ciúme do narrador recai sobre uma Albertina profundamente ciumenta no que diz respeito a seus próprios "objetos". E a erotomania do narrador com relação a Albertina (a delirante perseguição do amante sem ilusão de ser amado) reveza com a erotomania da própria Albertina, durante muito tempo apenas suspeitada, mas depois confirmada como o segre­do que suscitava o ciúme do narrador. E a reivindicação do narrador de aprisionar, de enclausurar Albertina, disfarça as rei­vindicações de Albertina, adivinhadas tarde demais. Na ver­dade, o caso de Charlus é análogo: não há possibilidade de distinguir o trabalho de delírio de interpretação de Charlus do longo trabalho de interpretação do delírio que o narrador ela­bora com relação a Charlus. Perguntamos precisamente de onde vem a necessidade dessas interpretações parciais e qual é a sua função na Recherche.
172
Ciumento com relação a Albertina, intérprete de Charlus, o que é afinal o narrador?Absolutamente não cremos na neces­sidade de distinguir o narrador e o herói como dois sujeitos (sujeito de enunciação e sujeito de enunciado), porque seria re­meter a Recherche a um sistema de subjetividades (sujeito des­dobrado fendido) que lhe é totalmente estranho.8 Há muito menos um narrador do que uma máquina da Recherche e muito menos um herói do que agenciamentos em que a máquina fun­ciona como esta ou aquela configuração, de acordo com esta ou aquela articulação, para este ou aquele uso, para determinada produção. É apenas nesse sentido que podemos indagar o que é o narrador-herói, que não funciona como sujeito. Deve impres­sionar ao leitor o fato de Proust insistentemente apresentar o narrador como incapaz de ver, de perceber, de lembrar-se, de compreender... É a grande oposição ao método Goncourt ou Sainte-Beuve. Esse é um tema constante da Recherche que cul­mina no campo, na casa dos Verdurin ("vejo que gosta das cor­rentes de ar..."). 9 Na verdade o narrador não possui órgãos, ou pelo menos aqueles que lhe seriam necessários ou que gostaria de possuir, conforme ele mesmo diz na cena do primeiro beijo em Albertina, quando lamenta a falta de órgão adequado para exercer uma tal atividade que preenche nossos lábios, obstrui nosso nariz e fecha nossos olhos. O narrador é, na realidade, um enorme corpo sem órgãos.
Mas o que é um corpo sem órgãos? Também a aranha nada vê, nada percebe, de nada se lembra. Acontece que em uma das extremidades de sua teia ela registra a mais leve vibração que se propaga até seu corpo em ondas de grande intensidade e que a faz, de um salto, atingir o lugar exato. Sem olhos, sem nariz, sem
8.Sobre a distinção herói-narrador na Recherche, d. Genette, Figures, m, Ed. du Seuil, ps. 259 e segs. – Genette introduz, entretanto, numerosas correções nessa distinção.
9.SG 272.
173
boca, a aranha responde unicamente aos signos e é atingida pelo menor signo que atravessa seu corpo como uma onda e a faz pular sobre a presa. A Recherche não foi construída como uma catedral nem como um vestido, mas como uma teia. O narrador-aranha, cuja teia é a Recherche que se faz, que se tece com cada fio movimentado por este ou aquele signo: a teia e a aranha, a teia e o corpo são uma mesma máquina. O narrador pode ser dotado de uma extrema sensibilidade, de uma prodi­giosa memória: ele não possui órgãos no sentido em que é priva­do de todo uso voluntário e organizado de suas faculdades. Em contrapartida, uma faculdade se exerce nele quando é coagida e forçada a fazê-lo; e o órgão correspondente vem situar-se nele, mas como um esboço intensivo despertado pelas ondas que lhe provocam o uso involuntário. Sensibilidade involuntária, me­mória involuntária, pensamento involuntário são como que reações globais intensas do corpo sem órgãos a signos de diver­sas naturezas. Esse corpo-teia-aranha se agita para entreabrir ou fechar cada uma das pequenas caixas que vêm deparar-se com um fio viscoso da Recherche. Estranha plasticidade do narrador. Esse corpo-aranha do narrador, o espião, o policial, o ciumento, o intérprete e o reivindicador – o louco – o esquizofrênico uni­versal vai estender um fio até Charlus, o paranóico, um outro até Albertina, a erotômana, para fazê-los marionetes de seu próprio delírio, potências intensivas de seu corpo sem órgãos, perfis de sua própria loucura.