sábado, 29 de janeiro de 2011

VIDAS SECAS


Vidas Secas

Graciliano Ramos

45ª EDIÇÃO





ÍNDICE
Capítulo I - Mudança 3
Capítulo II - Fabiano 8
Capítulo III - Cadeia 14
Capítulo IV - Sinha Vitória 21
Capítulo V - O menino mais novo 26
Capítulo VI - O menino mais velho 30
Capítulo VII - Inverno 34
Capítulo VIII - Festa 39
Capítulo IX - Baleia 47
Capítulo X - Contas 51
Capítulo XI - O soldado amarelo 56
Capítulo XII - O mundo coberto de penas60
Capítulo XIII - Fuga 65
POSFÁCIO DE ÁLVARO LINS 72
Valores e Misérias das Vidas Secas: Álvaro Lins 72
Capítulo I - Mudança



NA PLANÍCIE avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas
verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam
cansados e famintos. Ordinariamente andavam pouco, mas como
haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem
progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma
sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos
galhos pelados da catinga rala.
Arrastaram-se para lá, devagar, Sinha Vitória com o filho
mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça,
Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada
numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no
ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.
Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se. O menino
mais velho pôs-se a chorar, sentou-se no chão.
- Anda, condenado do diabo, gritou-lhe o pai.
Não obtendo resultado, fustigou-o com a bainha da faca de
ponta. Mas o pequeno esperneou acuado, depois sossegou,
deitou-se, fechou os olhos. Fabiano ainda lhe deu algumas
pancadas e esperou que ele se levantasse. Como isto não
acontecesse, espiou os quatro cantos, zangado, praguejando
baixo.
A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de
manchas brancas que eram ossadas.
O vôo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de
bichos moribundos.
- Anda, excomungado.
O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o
coração grosso, queria responsabilizar alguém pela sua
desgraça. A seca aparecia-lhe como um fato necessário - e a
obstinação da criança irritava-o. Certamente esse obstáculo
miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde.
Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e seixos,
fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama seca e
rachada que escaldava os pés.
Pelo espírito atribulado do sertanejo passou a idéia de
abandonar o filho naquele descampado. Pensou nos urubus, nas
ossadas, coçou a barba ruiva e suja, irresoluto, examinou os
arredores. Sinha Vitória estirou o beiço indicando vagamente
uma direção e afirmou com alguns sons guturais que estavam
perto. Fabiano meteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão,
acocorou-se, pegou no pulso do menino, que se encolhia,
os joelhos encostados no estômago, frio como um defunto. Aí a
cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar
o anjinho aos bichos do mato. Entregou a espingarda a Sinha
Vitória, pôs o filho no cangote, levantou-se, agarrou os
bracinhos que lhe caíam sobre o peito, moles, finos como
cambitos. Sinha Vitória aprovou esse arranjo, lançou de novo
a interjeição gutural, designou os juazeiros invisíveis.
E a viagem prosseguiu, mais lenta, mais arrastada, num
silencio grande.
Ausente do companheiro, a cachorra Baleia tomou a
frente do grupo. Arqueada, as costelas à mostra, corria
ofegando, a língua fora da boca. E de quando em quando se
detinha, esperando as pessoas, que se retardavam.
Ainda na véspera eram seis viventes, contando com o
papagaio. Coitado, morrera na areia do rio, onde haviam
descansado, a beira de uma poça: a fome apertara demais os
retirantes e por ali não existia sinal de comida. Baleia
jantara os pés, a cabeça, os ossos do amigo, e não guardava
lembrança disto. Agora, enquanto parava, dirigia as pupilas
brilhantes aos objetos familiares, estranhava não ver sobre o
baú de folha a gaiola pequena onde a ave se equilibrava mal.
Fabiano também às vezes sentia falta dela, mas logo
a recordação chegava. Tinha andado a procurar raízes, à toa:
o resto da farinha acabara, não se ouvia um berro de rês
perdida na catinga. Sinha Vitória, queimando o assento no
chão, as mãos cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava
em acontecimentos antigos que não se relacionavam: festas de
casamento, vaquejadas, novenas, tudo numa confusão.
Despertara-a um grito áspero, vira de perto a realidade e o
papagaio, que andava furioso, com os pés apalhetados,
numa atitude ridícula. Resolvera de supetão aproveitá-lo como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele era
mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo.. Ordinariamente
a família falava pouco. E depois daquele desastre viviam
todos calados, raramente soltavam palavras curtas. O louro
aboiava, tangendo um gado inexistente, e latia arremedando a
cachorra.
As manchas dos juazeiros tornaram a aparecer, Fabiano
aligeirou o passo, esqueceu a fome, a canseira e os
ferimentos. As alpercatas dele estavam gastas nos saltos, e a
embira tinha-lhe aberto entre os dedos rachaduras muito
dolorosas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-se e
sangravam.
Num cotovelo do caminho avistou um canto de cerca, encheu-o a
esperança de achar comida, sentiu desejo de cantar. A voz
saiu-lhe rouca, medonha. Calou-se para não estragar força.
Deixaram a margem do rio, acompanharam a cerca, subiram uma
ladeira, chegaram aos juazeiros. Fazia tempo que não viam
sombra. Sinha Vitória acomodou os filhos, que arriaram como
trouxas, cobriu-os com molambos. O menino mais velho, passada
a vertigem que o derrubara, encolhido sobre folhas secas, a
cabeça encostada a uma raiz, adormecia, acordava. E quando
abria os olhos, distinguia vagamente um monte próximo,
algumas pedras, um carro de bois. A cachorra Baleia foi
enroscar-se junto dele.
Estavam no pátio de uma fazenda sem vida O curral
deserto, o chiqueiro das cabras arruinado e também deserto, a
casa do vaqueiro fechada, tudo anunciava abandono. Certamente
o gado se finara e os moradores tinham fugido.
Fabiano procurou em vão perceber um toque de chocalho.
Avizinhou-se da casa, bateu, tentou forçar a porta.
Encontrando resistência, penetrou num cercadinho cheio de
plantas mortas, rodeou a tapera, alcançou o terreiro do
fundo, viu um barreiro vazio, um bosque de catingueiras
murchas, um pé de turco e o prolongamento da cerca do curral.
Trepou-se no mourão do canto, examinou a catinga, onde
avultavam as ossadas e o negrume dos urubus. Desceu, empurrou
a porta da cozinha. Voltou desanimado, ficou um instante no
copiar, fazendo tenção de hospedar ali a família. Mas
chegando aos juazeiros, encontrou os meninos adormecidos e
não quis acordá-los. Foi apanhar gravetos, trouxe do
chiqueiro das cabras uma braçada de madeira meio roída pelo
cupim, arrancou touceiras de macambira, arrumou tudo para a
fogueira.
Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, arregaçou as
ventas, sentiu cheiro de preás, farejou um minuto, localizouos
no morro próximo e saiu correndo.
Fabiano seguiu-a com a vista e espantou-se uma sombra
passava por cima do monte. Tocou o braço da mulher, apontou o
céu, ficaram os dois algum tempo agüentando a claridade do
sol. Enxugaram as lágrimas, foram agachar-se perto dos
filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, temendo que a
nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul terrível, aquele
azul que deslumbrava e endoidecia a gente.
Entrava dia e saía dia. As noites cobriam a terra de chofre.
A tampa anilada baixava, escurecia, quebrada apenas pelas
vermelhidões do poente.
Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos
agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O
coração de Fabiano bateu junto do coração de Sinha Vitória,
um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam.
Resistiram a fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo
de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a
esperança que os alentava.
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia, que
trazia nos dentes um preá. Levantaram-se todos gritando. O
menino mais velho esfregou as pálpebras, afastando pedaços de
sonho. Sinha Vitória beijava o focinho de Baleia, e como o
focinho estava ensangüentado, lambia o sangue e tirava
proveito do beijo.
Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do grupo.
E Fabiano queria viver. Olhou o céu com resolução. A nuvem
tinha crescido, agora cobria o morro inteiro. Fabiano pisou
com segurança, esquecendo as rachaduras' que lhe estragavam
os dedos e os calcanhares.
Sinha Vitória remexeu no baú, os meninos foram quebrar uma
haste de alecrim para fazer um espeto. Baleia, o ouvido
atento, o traseiro em repouso e as pernas da frente erguidas,
vigiava, aguardando a parte que lhe iria tocar, provavelmente
os ossos do bicho e talvez o couro.
Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao
rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama.
Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e,
debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo
para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma,
duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de
cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros - e uma
alegria doida enchia o coração de Fabiano.
Pensou na família, sentiu fome. Caminhando, movia-se como uma
coisa, para bem dizer não se diferençava muito da bolandeira
de seu Tomás. Agora, deitado, apertava a barriga e batia os
dentes. Que fim teria levado a bolandeira de seu Tomás?
Olhou o céu de novo. Os cirros acumulavam-se, a lua
surgiu, grande e branca. Certamente ia chover.
Seu Tomás fugira também, com a seca, a bolandeira estava
parada. E ele, Fabiano, era como a bolandeira. Não sabia
porquê, mas era. Uma, duas, três, havia mais de cinco
estrelas no céu. A lua estava cercada de um halo cor de
leite. Ia chover. Bem. A catinga ressuscitaria, a semente do
gado voltaria ao curral, ele, Fabiano, seria o vaqueiro
daquela fazenda morta. Chocalhos de badalos de ossos
animariam a . solidão. Os meninos, gordos, vermelhos,
brincariam no chiqueiro das cabras, Sinha Vitória vestiria
saias de ramagens vistosas. As vacas povoariam o curral. E a
catinga ficaria toda verde.
Lembrou-se dos filhos, da mulher e da cachorra, que estavam
lá em cima, debaixo de um juazeiro, com sede. Lembrou-se do
preá morto. Encheu a cuia, ergueu-se, afastou-se, lento, para
não derramar a água salobra. Subiu a ladeira. A aragem morna
acudia os xiquexiques e os mandacarus. Uma palpitação nova.
Sentiu um arrepio na catinga, uma ressurreição de garranchos
e folhas secas.
Chegou. Pôs a cuia no chão, escorou-a com pedras, matou a
sede da família. Em seguida acocorou-se, remexeu o aió, tirou
o fuzil, acendeu as raízes de macambira, soprou-as, inchando
as bochechas cavadas. Uma labareda tremeu, elevou-se, tingiulhe
o rosto queimado, a barba ruiva, os olhos azuis. Minutos
depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.
Eram todos felizes. Sinha Vitória vestiria uma saia larga
de ramagens. A cara murcha de sinhá Vitória remoçaria,
as nádegas bambas de Sinha Vitória engrossariam, a roupa
encarnada de Sinha Vitória provocaria a inveja das outras
caboclas.
A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrelas foram
esmorecendo naquela brancura que enchia a noite. Uma, duas,
três, agora havia poucas estrelas no céu. Ali perto a nuvem
escurecia o morro.
A fazenda renasceria - e ele, Fabiano, seria o vaqueiro,
para bem dizer seria dono daquele mundo.
Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda de
pederneira, o aió, a cuia de água o baú de folha pintada. A
fogueira estalava. O preá chiava em cima das brasas.
Uma ressurreição. As cores da saúde voltariam a cara triste
de Sinha Vitória. Os meninos se espojariam na terra fofa do
chiqueiro das cabras. Chocalhos tilintariam pelos arredores.
A catinga ficaria verde.
Baleia agitava o rabo, olhando as brasas. E como não podia
ocupar-se daquelas coisas, esperava com paciência a hora de
mastigar os ossos.
Depois iria dormir.
Capítulo II - Fabiano
FABIANO curou no rasto a bicheira da novilha raposa. Levava
no aió um frasco de creolina, e se houvesse achado o animal,
teria feito o curativo ordinário. Não o encontrou, mas supôs
distinguir as pisadas dele na areia, baixou-se, cruzou dois
gravetos no chão e rezou. Se o bicho não estivesse morto,
voltaria para o curral, que a oração era forte.
Cumprida a obrigação, Fabiano levantou-se com a consciência
tranqüila e marchou para casa. Chegou-se a beira do rio. A
areia fofa cansava-o, mas ali, na lama seca, as alpercatas
dele faziam chape-chape, os badalos dos chocalhos que lhe
pesavam no ombro, pendurados em correias, batiam surdos. A
cabeça inclinada, o espinhaço curvo, agitava os braços para a
direita e para a esquerda. Esses movimentos eram inúteis, mas
o vaqueiro, o pai do vaqueiro, o avô e outros antepassados
mais antigos haviam-se acostumado a percorrer veredas,
afastando o mato com as mãos. E os filhos já começavam a
reproduzir o gesto hereditário.
Chape-chape. Os três pares de alpercatas batiam na lama
rachada, seca e branca por cima, preta e mole por baixo. A
lama da beira do rio, calcada pelas alpercatas, balançava.
A cachorra Baleia corria na frente, o focinho arregaçado,
procurando na catinga a novilha raposa.
Fabiano ia satisfeito. Sim senhor, arrumara-se. Chegara
naquele estado, com a família morrendo de fome, comendo
raízes. Caíra no fim do pátio, debaixo de um juazeiro, depois
tomara conta da casa deserta. Ele, a mulher e os filhos
tinham-se habituado à camarinha escura, pareciam ratos - e a
lembrança dos sofrimentos passados esmorecera.
Pisou com firmeza no chão gretado, puxou a faca de ponta,
esgaravatou as unhas sujas. Tirou do aió um pedaço de fumo,
picou-o, fez um cigarro com palha de milho, acendeu-o ao
binga, pôs-se a fumar regalado.
- Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta.
Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza
iam admirar-se ouvindo-o falar só. E, pensando bem, ele não
era homem: era apenas um cabra ocupado em guardar coisas dos
outros. Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e
os cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de
animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença dos
brancos e julgava-se cabra.
Olhou em torno, com receio de que, fora os meninos, alguém
tivesse percebido a frase imprudente. Corrigiu-a,
murmurando: - Você é um bicho, Fabiano.
Isto para ele era motivo de orgulho. Sim senhor, um bicho,
capaz de vencer dificuldades.
Chegara naquela situação medonha - e ali estava, forte, até
gordo, fumando o seu cigarro de palha.
- Um bicho, Fabiano.
Era. Apossara-se da casa porque não tinha onde cair morto,
passara uns dias mastigando raiz de imbu e sementes de
mucunã. Viera a trovoada.
E, com ela, o fazendeiro, que o expulsara. Fabiano
fizera-se desentendido e oferecera os seus préstimos,
resmungando, coçando os cotovelos, sorrindo aflito. O jeito
que tinha era ficar. E o patrão aceitara-o, entregara-lhe as
marcas de ferro.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tiraria dali.
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho, mas
criara raízes, estava plantado. Olhou as quipás, os
mandacarus e os xiquexiques. Era mais forte que tudo isso,
era como as catingueiras e as baraúnas. Ele, Sinha Vitória,
os dois filhos e a cachorra Baleia estavam agarrados à terra.
Chape-chape. As alpercatas batiam no chão rachado. O corpo
do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois arcos, os
braços moviam-se desengonçados. Parecia um macaco.
Entristeceu. Considerar-se plantado em terra alheia!
Engano. A sina dele era correr mundo, andar para cima e para
baixo, à toa, como judeu errante. Um vagabundo empurrado pela
seca. Achava-se ali de passagem, era hóspede. Sim senhor,
hóspede que demorava demais, tomava amizade à casa, ao
curral, ao chiqueiro das cabras, ao juazeiro que os tinha
abrigado uma noite.
Deu estalos com os dedos. A cachorra Baleia, aos saltos,
veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu
a carícia, enterneceu-se - Você é um bicho, Baleia.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus
pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da
terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele.
E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que
o companheiro entendia. A pé, não se agüentava bem.
Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e
feio. As vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma
língua com que se dirigia aos brutos - exclamações,
onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras
compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir
algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez
perigosas.
Uma das crianças aproximou-se, perguntou-lhe qualquer
coisa. Fabiano parou, franziu a testa, esperou de boca aberta
a repetição da pergunta. Não percebendo o que o filho
desejava, repreendeu-o. O menino estava ficando muito
curioso, muito enxerido. Se continuasse assim, metido com o
que não era da conta dele, como iria acabar? Repeliu-o,
vexado: - Esses capetas têm idéias ...
Não completou o pensamento, mas achou que aquilo estava
errado. Tentou recordar o seu tempo de infância, viu-se
miúdo, enfezado, a camiSinha encardida e rota acompanhando o
pai no serviço do campo, interrogando-o debalde. Chamou os
filhos, falou de coisas imediatas, procurou interessá-los.
Bateu palmas - Ecô! ecô!
A cachorra Baleia saiu correndo entre os alastrados e
quipás, farejando a novilha raposa. Depois de alguns minutos
voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a,
afagou-a. Queria apenas dar um ensinamento aos meninos. Era
bom eles saberem que deviam proceder assim.
Alargou o passo, deixou a lama seca da beira do rio, chegou
à ladeira que levava ao pátio. Ia inquieto, uma sombra no
olho azulado. Era como se na sua vida houvesse aparecido um
buraco. Necessitava falar com a mulher, afastar aquela
perturbação, encher os cestos, dar pedaços de mandacaru ao
gado. Felizmente a novilha estava curada com reza. Se
morresse, não seria por culpa dele.
- Eco! ecô!
Baleia voou de novo entre as macambiras, inutilmente. As
crianças divertiram-se, animaram-se, e o espírito de Fabiano
se destoldou. Aquilo é que estava certo. Baleia não podia
achar a novilha num banco de macambira, mas era conveniente
que os meninos se acostumassem ao exercício fácil - bater
palmas, expandir-se em gritaria, seguindo os movimentos do
animal. A cachorra tornou a voltar, a língua pendurada,
arquejando. Fabiano tomou a frente do grupo, satisfeito com a
lição, pensando na égua que ia montar, uma égua que não fora
ferrada nem levara sela. Haveria na catinga um barulho
medonho.
Agora queria entender-se com Sinha Vitória a respeito da
educação dos pequenos. Certamente ela não era culpada.
Entregue aos arranjos da casa, regando os craveiros e as
panelas de losna, descendo ao bebedouro com o pote vazio e
regressando com o pote cheio, deixava os filhos soltos no
barreiro, enlameados como porcos. E eles estavam
perguntadores, insuportáveis. Fabiano dava-se bem com a
ignorância. Tinha o direito de saber? Tinha? Não tinha.
- Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria aprender mais, e
nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos homens do sertão
o mais arrasado era seu Tomás da bolandeira. Porquê? Só se
era porque lia demais.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: - "seu Tomás,
vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a desgraça
chegar, seu Tomás se estrepa, igualzinho aos outros." Pois
viera a seca, o pobre do velho, tão bom e tão lido,
perdera tudo, andava por aí, mole. Talvez já tivesse dado o
couro às varas, que pessoa como ele não podia agüentar verão
puxado.
Certamente aquela sabedoria inspirava respeito. Quando seu
Tomás da bolandeira passava, amarelo, sisudo, corcunda,
montado num cavalo cego, pé aqui, pé acolá, Fabiano e outros
semelhantes descobriam-se. E seu Tomás respondia tocando na
beira do chapéu de palha, virava-se para um lado e para
outro, abrindo muito as pernas calçadas em botas pretas com
remendos vermelhos.
Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia
palavras difíceis, truncando tudo, o convencia-se de que
melhorava. Tolice. Via-se perfeitamente que um sujeito como
ele não tinha nascido para falar certo.
Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em
cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia.
Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo
censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele.
Ah! Quem disse que não obedeciam?
Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por
exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda,
só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava,
o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro.
Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia
as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do
braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente
jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo
só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha
dúvida?
Fabiano, uma coisa da fazenda, um traste, seria despedido
quando menos esperasse. Ao ser contratado, recebera o cavalo
de fábrica, perneiras, gibão, guarda-peito e sapatões de
couro cru, mas ao sair largaria tudo ao vaqueiro que o
substituísse.
Sinha Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu
Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada para não
contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter
luxo? E estavam ali de passagem. Qualquer dia o patrão os
botaria fora, e eles ganhariam o mundo, sem rumo, nem teriam
meio de conduzir os cacarecos. Viviam de trouxa arrumada,
dormiriam bem debaixo de um pau.
Olhou a catinga amarela, que o poente avermelhava. Se a
seca chegasse, não ficaria planta verde. Arrepiou-se.
Chegaria, naturalmente. Sempre tinha sido assim, desde que
ele se entendera. E antes de se entender, antes de nascer,
sucedera o mesmo - anos bons misturados com anos ruins. A
desgraça estava em caminho, talvez andasse perto. Nem valia a
pena trabalhar.
Ele marchando para casa, trepando a ladeira, espalhando
seixos com as alpercatas - ela se avizinhando a galope, com
vontade de matá-lo.
Virou o rosto para fugir à curiosidade dos filhos, benzeuse.
Não queria morrer. Ainda tencionava correr mundo, ver
terras, conhecer gente importante como seu Tomás da
bolandeira. Era uma sorte ruim, mas Fabiano desejava brigar
com ela, sentir-se com força para brigar com ela e vencê-la.
Não queria morrer. Estava escondido no mato como tatu. Duro,
lerdo como tatu. Mas um dia sairia da toca, andaria com a
cabeça levantada, seria homem.
- Um homem, Fabiano.
Coçou o queixo cabeludo, parou, reacendeu o cigarro. Não,
provavelmente não seria homem: seria aquilo mesmo a vida
inteira, cabra, governado pelos brancos, quase uma rês na
fazenda alheia.
Mas depois? Fabiano tinha a certeza de que não se acabaria
tão cedo. Passara dias sem comer, apertando o cinturão,
encolhendo o estômago. Viveria muitos anos, viveria um
século,. Mas se morresse de fome ou nas pontas de um
touro, deixaria filhos robustos, que gerariam outros filhos.
Tudo seco em redor. E o patrão era seco também, arreliado,
exigente e ladrão, espinhoso como um pé de mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho, saberem
cortar mandacaru para o gado, consertar cercas, amansar
brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não calejassem,
teriam o fim de seu Tomás da bolandeira. Coitado. Para que
lhe servira tanto,livro, tanto jornal? Morrera por causa do,
estômago doente e das pernas fracas.
Um dia... Sim, quando as secas desaparecessem e tudo
andasse direito. .. Seria que as secas iriam desaparecer e
tudo andar certo? Não sabia. Seu Tomás da bolandeira é que
devia ter lido isso. Livres daquele perigo, os meninos
poderiam falar, perguntar, encher-se de caprichos.
Agora tinham obrigação de comportar-se como gente da laia
deles.
Alcançou o pátio, enxergou a casa baixa e escura, de telhas
pretas, deixou atrás os juazeiros, as pedras onde se jogavam
cobras mortas, o carro de bois. As alpercatas dos pequenos
batiam no chão branco e liso. A cachorra Baleia trotava
arquejando, a boca aberta.
Aquela hora Sinha Vitória devia estar na cozinha, acocorada
junto à trempe, a saia de ramagens entalada entre as coxas,
preparando a janta. Fabiano sentiu vontade de comer. Depois
da comida, falaria com Sinha Vitória a respeito da educação
dos meninos.
Capítulo III - Cadeia
FABIANO tinha ido à feira da cidade comprar mantimentos.
Precisava sal, farinha, feijão e rapaduras. Sinha Vitória
pedira além disso uma garrafa de querosene e um corte de
chita vermelha. Mas o querosene de seu Inácio estava
misturado com água, e a chita da amostra era cara demais.
Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano regateando um
tostão em côvado, receoso de ser enganado. Andava irresoluto,
uma longa desconfiança dava-lhe gestos oblíquos. A tarde
puxou o dinheiro, meio tentado, e logo se arrependeu, certo
de que todos os caixeiros furtavam no preço e na medida:
amarrou as notas na ponta do lenço, meteu-as na algibeira,
dirigiu-se à bodega de seu Inácio, onde guardara os picuás.
Aí certificou-se novamente de que o querosene estava
batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor. Seu
Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano virou o copo
de um trago, cuspiu, limpou os beiços à manga, contraiu
o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha água. Por que seria que
seu Inácio botava água em tudo? perguntou mentalmente.
Animou-se e interrogou o bodegueiro: - Por que é que
vossemecê bota água em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na
calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era
pequeno, mas em horas de comunicabilidade enriquecia-se com
algumas expressões de seu Tomás da bolandeira. Pobre de seu
Tomás. Um homem tão direito sumir-se como cambembe, andar por
este mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de
consideração e votava. Quem diria?
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e bateu
familiarmente no ombro de Fabiano: - Como é, camarada?
Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou,
procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: - Isto
é. Vamos e não vamos. Quer dizer Enfim, contanto, etc. É
conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era autoridade e
mandava. Fabiano sempre havia obedecido. Tinha muque e
substância, mas pensava pouco, desejava pouco e obedecia.
Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram numa sala
onde vários tipos jogavam cartas em cima de uma esteira.
- Desafasta, ordenou o polícia. Aqui tem gente.
Os jogadores apertaram-se, os dois homens sentaram-se, o
soldado amarelo pegou o baralho. Mas com tanta infelicidade
que em pouco tempo se enrascou. Fabiano encalacrou-se também.
Sinha Vitória ia danar-se, e com razão.
- Bem feito.
Ergueu-se furioso, saiu da sala, trombudo. - Espera aí,
paisano, gritou o amarelo.
Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a seu
Inácio os troços que ele havia guardado, vestiu o gibão,
passou as correias dos alforjes no ombro, ganhou a rua.
Debaixo do jatobá do quadro taramelou com Sinha Rita
louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que desculpa
iria apresentar a Sinha Vitória? Forjava uma explicação
difícil. Perdera o embrulho da fazenda, pagara na botica uma
garrafada para Sinha Rita louceira. Atrapalhava-se tinha
imaginação fraca e não sabia mentir. Nas invenções com que
pretendia justificar-se a figura de Sinha Rita aparecia
sempre, e isto o desgostava. Arruinaria uma história sem ela,
diria que haviam furtado o cobre da chita. Pois não era?
Os parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas não devia
mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o lenço das notas
ficara no bolso do gibão e levara sumiço. Falaria assim: -
"Comprei os mantimentos. Botei o gibão e os alforjes na
bodega de seu Inácio. Encontrei um soldado amarelo" Não, não
encontrara ninguém. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de
referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de infância.
A mulher se incharia com a notícia. Talvez não se inchasse.
Era atilada, notaria a pabulagem. Pois estava acabado. O
dinheiro fugira do bolso do gibão, na venda de seu Inácio.
Natural.
Repetia que era natural quando alguém lhe deu um empurrão,
atirou-o contra o jatobá. A feira se desmanchava; escurecia;
o homem da iluminação, trepando numa escada, acendia os
lampiões. A estrela papa-ceia branqueou por cima da torre da
igreja; o doutor juiz de direito foi brilhar na porta da
farmácia; o cobrador da prefeitura passou coxeando, com
talões de recibos debaixo do braço; a carroça de lixo rolou
na praça recolhendo cascas de frutas; seu vigário saiu de
casa e abriu o guarda-chuva por causa do sereno; Sinha Rita
louceira retirou-se.
Fabiano estremeceu. Chegaria a fazenda noite fechada.
Entretido com o diabo do jogo, tonto de aguardente, deixara o
tempo correr. E não levava o querosene, ia-se alumiar durante
a semana com pedaços de facheiro. Aprumou-se, disposto a
viajar. Outro empurrão desequilibrou-o. Voltou-se e viu ali
perto o soldado amarelo, que o desafiava, a cara enferrujada,
uma ruga na testa. Mexeu-se para sacudir o chapéu de couro
nas ventas do agressor. Com uma pancada certa do chapéu de
couro, aquele tico de gente ia ao barro. Olhou as coisas e as
pessoas em roda e moderou a indignação. Na catinga ele as
vezes cantava de galo, mas na rua encolhia-se.
- Vossemecê não tem direito de provocar os que estão
quietos.
- Desafasta, bradou o polícia.
E insultou Fabiano, porque ele tinha deixado a bodega sem
se despedir.
- Lorota, gaguejou o matuto. Eu tenho culpa de vossemecê
esbagaçar os seus possuídos no jogo?
Engasgou-se. A autoridade rondou por ali um instante,
desejosa de puxar questão. Não achando pretexto, avizinhou-se
e plantou o salto da reiúna em cima da alpercata do vaqueiro.
- Isso não se faz, moço, protestou Fabiano. Estou quieto.
Veja que mole e quente é pé de gente.
O outro continuou a pisar com força. Fabiano impacientou-se
e xingou a mãe dele. Aí o amarelo apitou, e em poucos minutos
o destacamento da cidade rodeava o jatobá.
- Toca pra frente, berrou o cabo.
Fabiano marchou desorientado, entrou na cadeia, ouviu sem
compreender uma acusação medonha e não se defendeu.
- Está certo, disse o cabo. Faça lombo, paisano.
Fabiano caiu de joelhos, repetidamente uma lâmina de facão
bateu-lhe no peito, outra nas costas. Em seguida abriram uma
porta, deram-lhe um safanão que o arremessou para as trevas
do cárcere. A chave tilintou na fechadura, e Fabiano ergueuse
atordoado, cambaleou, sentou-se num canto, rosnando -
Hum! hum!
Porque tinham feito aquilo? Era o que não podia saber.
Pessoa de bons costumes, sim senhor, nunca fora preso. De
repente um fuzuê sem motivo. Achava-se tão perturbado que nem
acreditava naquela desgraça. Tinham-lhe caído todos em cima,
de supetão, como uns condenados. Assim um homem não podia
resistir.
- Bem, bem.
Passou as mãos nas costas e no peito, sentiu-se moído, os
olhos azulados brilharam como olhos de gato. Tinham-no
realmente surrado e prendido. Mas era um caso tão esquisito
que instantes depois balançava a cabeça, duvidando, apesar
das machucaduras.
Ora, o soldado amarelo ... Sim, havia um amarelo, criatura
desgraçada que ele, Fabiano, desmancharia com um tabefe. Não
tinha desmanchado por causa dos homens que mandavam. Cuspiu,
com desprezo: - Safado, mofino, escarro de gente. Por mor
de uma peste daquela, maltratava-se um pai de família. Pensou
na mulher, nos filhos e e figura.
na cachorrinha. Engatinhando, procurou os alforjes, que
haviam caído no chão, certificou-se de que os objetos
comprados na feira estavam todos ali. Podia ter-se perdido
alguma coisa na confusão. Lembrou-se de uma fazenda vista na
última das lojas que visitara. Bonita, encorpada, larga,
vermelha e com ramagens, exatamente o que Sinha Vitória
desejava. Encolhendo um tostão em côvado, por sovinice,
acabava o dia daquele jeito. Tornou a mexer nos alforjes.
Sinha Vitória devia estar desassossegada com a demora dele. A
casa no escuro, os meninos em redor do fogo, a cachorra
Baleia vigiando. Com certeza haviam fechado a porta da
frente.
Estirou as pernas, encostou as carnes doídas ao muro. Se
lhe tivessem dado tempo, ele teria explicado tudo direitinho.
Mas pegado de surpresa, embatucara. Quem não ficaria
azuretado com semelhante despropósito? Não queria capacitarse
de que a malvadez tivesse sido para ele. Havia engano,
provavelmente o amarelo o confundira com outro. Não era senão
isso.
Então porque um sem-vergonha desordeiro se arrelia, bota-se
um cabra na cadeia, dá-se pancada nele? Sabia perfeitamente
que era assim, acostumara-se a todas as violências, a todas.
as injustiças. E aos conhecidos que dormiam no tronco e
agüentavam cipó de boi oferecia consolações: -- "Tenha
paciência. Apanhar do governo não é desfeita.”
Mas agora rangia os dentes, soprava. Merecia castigo?
- An!
E, por mais que forcejasse, não se convencia de que o
soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa distante e
perfeita, não podia errar. O soldado amarelo estava ali
perto, além da grade,. era fraco e ruim, jogava na esteira
com os matutos e provocava-os depois. O governo não devia
consentir tão grande safadeza.
Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um
pontapé na parede, gritou enfurecido. Para que serviam os
soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o
carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se: - Bem,
bem. Não há nada não.
Havia muitas coisas. Ele não podia explicá-las, mas havia.
Fossem perguntar a seu Tomás da bolandeira, que lia livros e
sabia onde tinha as ventas. Seu Tomás da bolandeira contaria
aquela história. Ele, Fabiano, um bruto, não contava nada. Só
queria voltar para junto de Sinha Vitória, deitar-se na cama
de varas. Porque vinham bulir com um homem que só queria
descansar? Deviam bulir com outros.
- An!
Estava tudo errado.
- An!
Tinham lá coragem? Imaginou o soldado amarelo atirando-se a
um cangaceiro na catinga. Tinha graça. Não dava um caldo.
Lembrou-se da casa velha onde morava, da cozinha, da panela
que chiava na trempe de pedras. Sinha Vitória punha sal na
comida. Abriu os alforjes novamente: a trouxa de sal não se
tinha perdido. Bem. Sinha Vitória provava o caldo na quenga
de coco. E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos e
da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família,
sabida como gente. Naquela viagem arrastada, em tempo de seca
braba, quando estavam todos morrendo de fome, a cadelinha
tinha trazido para eles um preá. Ia envelhecendo, coitada.
Sinha Vitória, inquieta, com certeza fora muitas vezes
escutar na porta da frente. O galo batia as asas, os bichos
bodejavam no chiqueiro, os chocalhos das vacas tiniam.
Se não fosse isso ... An! Em que estava pensando? Meteu os
olhos pela grade da rua. Chi! que pretume! O lampião da
esquina se apagara, provavelmente o homem da escada só botara
nele meio quarteirão de querosene. Pobre de Sinha Vitória,
cheia de cuidados, na escuridão. Os meninos sentados perto do
lume, a panela chiando na trempe de pedras, Baleia atenta, o
candeeiro de folha pendurado na ponta de uma vara que saía da
parede.
Estava tão cansado, tão machucado, que ia quase adormecendo
no meio daquela desgraça. Havia ali um bêbedo tresvariando em
voz alta e alguns homens agachados em redor de um fogo que
enchia o cárcere de fumaça. Discutiam e queixavam-se da lenha
molhada.
Fabiano cochilava, a cabeça pesada inclinava-se para o
peito e levantava-se. Devia ter comprado o querosene de seu
Inácio. A mulher e os meninos agüentando fumaça nos olhos.
Acordou sobressaltado. Pois não estava misturando as
pessoas, desatinando? Talvez fosse efeito da cachaça. Não
era: tinha bebido um copo, tanto assim, quatro dedos. Se lhe
dessem tempo, contaria o que se passara.
Ouviu o falatório desconexo do bêbedo, caiu numa indecisão
dolorosa. Ele também dizia palavras sem sentido, conversava à
toa. Mas irou-se com a comparação, deu marradas na parede.
Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido, não sabia
explicar-se. Estava preso por isso? Como era? Então mete-se
um homem na cadeia porque ele não sabe falar direito? Que mal
fazia a brutalidade dele? Vivia trabalhando como um
escravo. Desentupia o bebedouro, consertava as cercas, curava
os animais - aproveitara um casco de fazenda sem valor. Tudo
em ordem, podiam ver. Tinha culpa de ser bruto? Quem tinha
culpa?
Se não fosse aquilo ... Nem sabia. O fio da idéia cresceu,
engrossou - e partiu-se. Difícil pensar. Vivia tão agarrado
aos bichos. .. Nunca vira uma escola. Por isso não conseguia
defender-se, botar as coisas nos seus lugares. O demônio
daquela história entrava-lhe na cabeça e saía. Era para um
cristão endoidecer. Se lhe tivessem dado ensino, encontraria
meio de entendê-la. Impossível, só sabia lidar com bichos.
Enfim, contanto ... Seu Tomás daria informações. Fossem
perguntar a ele. Homem bom, seu Tomás da bolandeira, homem
aprendido. Cada qual como Deus o fez. Ele, Fabiano, era
aquilo mesmo, um bruto.
O que desejava ... An! Esquecia-se. Agora se recordava da
viagem que tinha feito pelo sertão a cair de fome. As pernas
dos meninos eram finas como bilros, Sinha Vitória tropicava
debaixo do baú de trens. Na beira do rio haviam comido o
papagaio, que não sabia falar. Necessidade.
Fabiano também não sabia falar. As vezes largava nomes
arrevesados, por embromação. Via perfeitamente que tudo era
besteira. Não podia arrumar o que tinha no interior. Se
pudesse ... Ah! Se pudesse, atacaria os soldados amarelos que
espancam as criaturas inofensivas.
Bateu na cabeça, apertou-a. Que faziam aqueles sujeitos
acocorados em torno do fogo? Que dizia aquele bêbedo que se
esgoelava como um doido, gastando fôlego à toa? Sentiu
vontade de gritar, de anunciar muito alto que eles não
prestavam para nada. Ouviu uma voz fina. Alguém no xadrez das
mulheres chorava e arrenegava as pulgas. Rapariga da vida,
certamente de porta aberta. Essa também não prestava para
nada. Fabiano queria berrar para a cidade inteira, afirmar ao
doutor juiz de direito, ao delegado, a seu vigário e aos
cobradores da prefeitura que ali dentro ninguém prestava para
nada. Ele, os homens acocorados, o bêbedo, a mulher das
pulgas, tudo era uma lástima, só servia para agüentar facão.
Era o que ele queria dizer.
E havia também aquele fogo-corredor que ia e vinha no
espírito dele. Sim, havia aquilo. Como era? Precisava
descansar. Estava com a testa doendo, provavelmente em
conseqüência de uma pancada de cabo de facão. E doía-lhe. a
cabeça toda, parecia-lhe que tinha fogo por dentro, parecialhe
que tinha nos miolos uma panela fervendo.
Pobre de Sinha Vitória, inquieta e sossegando os meninos.
Baleia vigiando, perto da trempe. Se não fossem eles ...
Agora Fabiano conseguia arranjar as idéias. O que o
segurava era a família. Vivia preso como um novilho amarrado
ao mourão, suportando ferro quente. Se não fosse isso, um
soldado amarelo não lhe pisava o pé não. O que lhe amolecia
o corpo era a lembrança da mulher e dos filhos. Sem aqueles
cambões pesados, não envergaria o espinhaço não, sairia dali
como onça e faria uma asneira. Carregaria a espingarda e
daria um tiro de pé de pau no soldado amarelo. Não. O
soldado amarelo era um infeliz que nem merecia um tabefe com
as costas da mão. Mataria os donos dele. Entraria num bando
de cangaceiros e faria estrago nos homens que dirigiam o
soldado amarelo. Não ficaria um para semente. Era a idéia que
lhe fervia na cabeça. Mas havia a mulher, havia os meninos,
havia a cachorrinha.
Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que abanavam
o fogo, o carcereiro e a mulher que se queixava das pulgas.
Tinha aqueles cambões pendurados ao pescoço. Deveria
continuar a arrastá-los? Sinha Vitória dormia mal na cama de
varas. Os meninos eram uns brutos, como o pai. Quando
crescessem, guardariam as reses de um patrão invisível,
seriam pisados, maltratados, machucados por um soldado
amarelo.
Capítulo IV - Sinha Vitória
ACOCORADA junto às pedras que serviam de trempe, a saia de
ramagens entalada entre as coxas, Sinha Vitória soprava o
fogo. Uma nuvem de cinza voou dos tições e cobriu-lhe a cara,
a fumaça inundou-lhe os olhos, o rosário de contas brancas e
azuis desprendeu-se do cabeção e bateu na panela. Sinha
Vitória limpou as lágrimas com as costas das mãos,
encarquilhou as pálpebras, meteu o rosário no seio e
continuou a soprar com vontade, enchendo muito as bochechas.
Labaredas lamberam as achas de angico, esmoreceram,
tornaram a levantar-se e espalharam-se entre as pedras. Sinha
Vitória aprumou o espinhaço e agitou o abano. Uma chuva de
faíscas mergulhou num banho luminoso a cachorra Baleia, que
se enroscava no calor e cochilava embalada pelas emanações da
comida.
Sentindo a deslocação do ar e a crepitação dos gravetos,
Baleia despertou, retirou-se prudentemente, receosa de
sapecar o pêlo, e ficou observando maravilhada as estrelinhas
vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão. Aprovou com
um movimento de cauda aquele fenômeno e desejou expressar a
sua admiração à dona. Chegou-se a ela em saltos curtos,
ofegando, ergueu-se nas pernas traseiras, imitando gente. Mas
Sinha Vitória não queria saber de elogios.
- Arreda!
Deu um pontapé na cachorra, que se afastou humilhada e com
sentimentos revolucionários.
Sinha Vitória tinha amanhecido nos seus azeites. Fora de
propósito, dissera ao marido umas inconveniências a respeito
da cama de varas. Fabiano, que não esperava semelhante
desatino, apenas grunhira: - "Hum! hum!" E amunhecara, porque
realmente mulher é bicho difícil de entender, deitara-se na
rede e pegara no sono. Sinha Vitória andara para cima e para
baixo, procurando em que desabafar. Como achasse tudo em
ordem, queixara-se da vida. E agora vingava-se em Baleia,
dando-lhe um pontapé.
Avizinhou-se da janela baixa da cozinha, viu os meninos,
entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de
barro, que secavam ao sol, sob o pé de turco, e não encontrou
motivo para repreendê-los. Pensou de novo na cama de varas e
mentalmente xingou Fabiano. Dormiam naquilo, tinham-se
acostumado, mas seria mais agradável dormirem numa cama de
lastro de couro, como outras pessoas.
Fazia mais de um ano que falava nisso ao marido. Fabiano a
princípio concordara com ela, mastigara cálculos, tudo
errado. Tanto para o couro, tanto para a armação. Bem.
Poderiam adquirir o móvel necessário economizando na roupa e
no querosene. Sinha Vitória respondera que isso era
impossível, porque eles vestiam mal, as crianças andavam
nuas, e recolhiam-se todos ao anoitecer. Para bem dizer, não
se acendiam candeeiros na casa. Tinham discutido, procurando
cortar outras despesas. Como não se entendessem, Sinha
Vitória aludira, bastante azeda, ao dinheiro gasto pelo
marido na feira, com jogo e cachaça. Ressentido, Fabiano
condenara os sapatos de verniz que ela usava nas festas,
caros e inúteis. Calçada naquilo, trôpega, mexia-se como um
papagaio, era ridícula. Sinha Vitória ofendera-se gravemente
com a comparação, e se não fosse o respeito que Fabiano lhe
inspirava, teria despropositado. Efetivamente os sapatos
apertavam-lhe os dedos, faziam-lhe calos. Equilibrava-se mal,
tropeçava, manquejava, trepada nos saltos de meio palmo.
Devia ser ridícula, mas a opinião de Fabiano entristecera-a
muito. Desfeitas essas nuvens, curtidos os dissabores, a
cama de novo lhe aparecera no horizonte acanhado.
Agora pensava nela de mau humor. Julgava-a inatingível e
misturava-a às obrigações da casa. Foi a sala, passou por
baixo do punho da rede onde Fabiano roncava, tirou do caritó
o cachimbo e uma pele de fumo, saiu para o copiar. O chocalho
da vaca laranja tilintou para os lados do rio. Fabiano era
capaz de se ter esquecido de curar a vaca laranja. Quis
acordá-lo e perguntar, mas distraiu-se olhando os xiquexiques
e os mandacarus que avultavam na campina.
Um mormaço levantava-se da terra queimada. Estremeceu
lembrando-se da seca, o rosto moreno desbotou, os olhos
pretos arregalaram-se. Diligenciou afastar a recordação,
temendo que ela virasse realidade. Rezou baixinho uma avemaria,
já tranqüila, a atenção desviada para um buraco que
havia na cerca do chiqueiro das cabras. Esfarelou a pele de
fumo entre as palmas das mãos grossas, encheu o cachimbo de
barro, foi consertar a cerca. Voltou, circulou a casa
atravessando o cercadinho do oitão, entrou na cozinha.
- É capaz de Fabiano ter-se esquecido da vaca laranja.
Agachou-se, atiçou o fogo, apanhou uma brasa com a colher,
acendeu o cachimbo, pôs-se a chupar o canudo de taquari cheio
de sarro. Jogou longe uma cusparada, que passou por cima da
janela e foi cair no terreiro. Preparou-se para cuspir
novamente. Por uma extravagante associação, relacionou esse
ato com a lembrança da cama. Se o cuspo alcançasse o
terreiro, a cama seria comprada antes do fim do ano. Encheu a
boca de saliva, inclinou-se - e não conseguiu o que esperava.
Fez várias tentativas, inutilmente. O resultado foi secar a
garganta. Ergueu-se desapontada. Besteira, aquilo não valia.
Aproximou-se do canto onde o pote se erguia numa forquilha
de três pontas, bebeu um caneco de água. Água salobra.
- Iche!
Isto lhe sugeriu duas imagens quase simultâneas, que se
confundiram e neutralizaram: panelas e bebedouros. Encostou o
fura-bolos à testa, indecisa. Em que estava pensando? Olhou o
chão, concentrada, procurando recordar-se, viu os pés chatos,
largos, os dedos separados. De repente as duas idéias
voltaram: o bebedouro secava, a panela não tinha sido
temperada.
Foi levantar o testo, recebeu na cara vermelha uma baforada
de vapor. Não é que ia deixando a comida esturrar? Pôs água
nela e remexeu-a com a quenga preta de coco. Em seguida
provou o caldo. Insosso, nem parecia bóia de cristão. Chegouse
ao jirau onde se guardavam cumbucos e mantas de carne,
abriu a mochila de sal, tirou um punhado, jogou-o na panela.
Agora pensava no bebedouro, onde havia um líquido escuro
que bicho enjeitava. Só tinha medo da seca.
Olhou de novo os pés espalmados. Efetivamente não se
acostumava a calçar sapatos, mas o remoque de Fabiano
molestara-a. Pés de papagaio. Isso mesmo, sem dúvida, matuto
anda assim. Para que fazer vergonha à gente? Arreliava-se
com a comparação.
Pobre do papagaio. Viajar com ela, na gaiola que balançava
em cima do baú de folha. Gaguejava: - "Meu louro." Era o que
sabia dizer. Fora isso, aboiava arremedando Fabiano e latia
como Baleia. Coitado. Sinha Vitória nem queria lembrar-se
daquilo. Esquecera a vida antiga, era como se tivesse nascido
depois que chegara à fazenda. A referência aos sapatos
abrira-lhe uma ferida - e a viagem reaparecera. As alpercatas
dela tinham sido gastas nas pedras. Cansada, meio morta de
fome, carregava o filho mais novo, o baú e a gaiola do
papagaio. Fabiano era ruim.
- Mal-agradecido.
Olhou os pés novamente. Pobre do louro. Na beira do rio
matara-o por necessidade, para sustento da família. Naquele
momento ele estava zangado, fitava na cachorrinha as pupilas
sérias e caminhava aos tombos, como os matutos em dias de
festa. Para que Fabiano fora despertar-lhe aquela recordação?
Chegou à porta, olhou as folhas amarelas das catingueiras.
Suspirou. Deus não havia de permitir outra desgraça. Agitou a
cabeça e procurou ocupações para entreter-se. Tomou a cuia
grande, encaminhou-se ao barreiro, encheu de água o caco das
galinhas, endireitou o poleiro. Em seguida foi ao
quintalzinho regar os craveiros e as panelas de losna. E
botou os filhos para dentro de casa, que tinham barro até nas
meninas dos olhos. Repreendeu-os: - Safadinhos! porcos!
sujos como... Deteve-se. Ia dizer que eles estavam sujos
como papagaios.
Os pequenos fugiram, foram enrolar-se na esteira da sala,
por baixo do caritó, e Sinha Vitória voltou para junto da
trempe, reacendeu o cachimbo. A panela chiava; um vento morno
e empoeirado sacudia as teias de aranha e as cortinas
de pucumã do teto; Baleia, sob o jirau, coçava-se com os
dentes e pegava moscas. Ouviam-se distintamente os roncos de
Fabiano, compassados, e o ritmo deles influiu nas idéias de
Sinha Vitória. Fabiano roncava com segurança. Provavelmente
não havia perigo, a seca devia estar longe.
Outra vez Sinha Vitória pôs-se a sonhar com a cama de
lastro de couro. Mas o sonho se ligava à recordação do
papagaio, e foi-lhe preciso um grande esforço para isolar o
objeto de seu desejo.
Tudo ali era estável, seguro. O sono de Fabiano, o fogo que
estalava, o toque dos chocalhos, até o zumbido das moscas
davam-lhe sensação de firmeza e repouso. Tinha de passar a
vida inteira dormindo em varas? Bem no meio do catre havia um
nó, um calombo grosso na madeira. E ela se encolhia num
canto, o marido no outro, não podiam estirar-se no centro. A
princípio não se incomodara. Bamba, moída de trabalhos,
deitar-se-ia em pregos. Viera, porém, um começo de
prosperidade. Corriam, engordavam. Não possuíam nada: se
retirassem, levariam a roupa, a espingarda, o baú de folha e
troças miúdos. Mas iam vivendo, na graça de Deus, o patrão
confiava neles - e eram quase felizes. Só faltava uma cama.
Era o que aperreava Sinha Vitória. Como já não se estazava em
serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o
costume de encafuar-se ao escurecer não estava certo, que
ninguém é galinha.
Nesse ponto as idéias de Sinha Vitória seguiram outro
caminho, que pouco depois foi desembocar no primeiro. Não era
que a raposa tinha passado no rabo a galinha pedrês? Logo a
pedrês, a mais gorda. Decidiu armar um mundéu perto do
poleiro. Encolerizou-se. A raposa pagaria a galinha pedrês.
- Ladrona.
Pouco a pouco a zanga se transferiu. Os roncos de Fabiano
eram insuportáveis. Não havia homem que roncasse tanto. Era
bom levantar-se e procurar uma vara para substituir aquele
pau amaldiçoado que não deixava uma pessoa virar-se. Porque
não tinham removido aquela vara incômoda? Suspirou. Não
conseguiam tomar resolução. Paciência. Era melhor esquecer o
nó e pensar numa cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Seu
Tomás tinha uma cama de verdade, feita pelo carpinteiro, um
estrado de sucupira alisado a enxó, com as juntas abertas a
formão, tudo embutido direito, e um couro cru em cima, bem
esticado e bem pregado. Ali podia um cristão estirar os
ossos.
Se vendesse as galinhas e a marrã? Infelizmente a
excomungada raposa tinha comido a pedrês, a mais gorda.
Precisava dar uma lição à raposa. Ia armar o mundéu junto do
poleiro e quebrar o espinhaço daquela sem-vergonha.
Ergueu-se, foi a camarinha procurar qualquer coisa, voltou
desanimada e esquecida. Onde tinha a cabeça?
Sentou-se na janela baixa da cozinha, desgostosa. Venderia
as galinhas e a marrã, deixaria de comprar querosene. Inútil
consultar Fabiano, que sempre se entusiasmava, arrumava
projetos. Esfriava logo - e ela franzia a testa, espantada;
certa de que o marido se satisfazia com a idéia de possuir
uma cama. Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e
sucupira, igual à de seu Tomás da bolandeira.
Capítulo V - O Menino Mais Novo
A IDÉIA surgiu-lhe na tarde em que Fabiano botou os arreios
na égua alazã e entrou a amansá-la. Não era propriamente
idéia: era o desejo vago de realizar qualquer ação notável
que espantasse o irmão e a cachorra Baleia.
Naquele momento Fabiano lhe causava grande admiração.
Metido nos couros, de perneiras, gibão e guarda-peito, era a
criatura mais importante do mundo. As rosetas das esporas
dele tilintavam no pátio; as abas do chapéu, jogado para
trás, preso debaixo do queixo pela correia, aumentavam-lhe o
rosto queimado, faziam-lhe um círculo enorme em torno da
cabeça.
O animal estava selado, os estribos amarrados na garupa, e
Sinha Vitória subjugava-o agarrando-lhe os beiços. O vaqueiro
apertou a cilha e posse a andar em redor, fiscalizando os
arranjos, lento. Sem se apressar, livrou-se de um coice :
virou o corpo, os cascos da égua passaram-lhe rente ao peito,
raspando o gibão. Em seguida Fabiano subiu ao copiar, saltou
na sela, a mulher * recuou - e foi um redemoinho na catinga.
Trepado na porteira do curral, o menino mais novo torcia as
mãos suadas, estirava-se para ver a nuvem de poeira que
toldava as imburanas. Ficou assim uma eternidade, cheio de
alegria e medo, até que a égua voltou e começou a pular
furiosamente no pátio, como se tivesse o diabo no corpo. De
repente a cilha rebentou e houve um desmoronamento. O pequeno
deu um grito, ia tombar da porteira. Mas sossegou logo.
Fabiano tinha caído em pé e recolhia-se banzeiro e cambaio,
os arreios no braço. Os estribos, soltos na
carreira desesperada, batiam um no outro, as rosetas das
esporas tiniam.
Sinha Vitória cachimbava tranqüila no banco do copiar,
catando lêndeas no filho mais velho. Não se conformando com
semelhante indiferença depois da façanha do pai, o menino foi
acordar Baleia, que preguiçava, a barriguinha vermelha
descoberta, sem-vergonha. A cachorra abriu um olho, encostou
a cabeça à pedra de amolar, bocejou e pegou no sono de novo.
Julgou-a estúpida e egoísta, deixou-a, indignado, foi puxar
a manga do vestido da mãe, desejando comunicar-se com ela.
Sinha Vitória soltou uma exclamação de aborrecimento, e, como
o pirralho insistisse, deu-lhe um cascudo.
Retirou-se zangado, encostou-se num esteio do alpendre,
achando o mundo todo ruim e insensato. Dirigiu-se ao
chiqueiro, onde os bichos bodejavam, fungando, erguendo os
focinhos franzidos. Aquilo era tão engraçado que o egoísmo de
Baleia e o mau humor de Sinha Vitória desapareceram. A
admiração a Fabiano é que ia ficando maior.
Esqueceu desentendimentos e grosserias, um entusiasmo
verdadeiro encheu-lhe a alma pequenina. Apesar de ter medo do
pai, chegou-se a ele devagar, esfregou-se nas perneiras,
tocou as abas do gibão. As perneiras, o gibão, o guardapeito,
as esporas e o barbicacho do chapéu maravilhavam-no.
Fabiano desviou-o desatento, entrou na sala e foi despojarse
daquela grandeza.
O menino deitou-se na esteira, enrolou-se e fechou os
olhos. Fabiano era terrível. No chão, despidos os couros,
reduzia-se bastante, mas no lombo da égua alazã era terrível.
Dormiu e sonhou. Um pé-de-vento cobria de poeira a folhagem
das imburanas, Sinha Vitória catava piolhos no filho mais
velho. Baleia descansava a cabeça na pedra de amolar.
No dia seguinte essas imagens se varreram completamente. Os
juazeiros do fim do pátio estavam escuros, destoavam das
outras árvores. Porque seria?
Aproximou-se do chiqueiro das cabras, viu o bode velho
fazendo um barulho feio com as ventas arregaçadas, lembrou-se
do acontecimento da véspera. Encaminhou-se aos juazeiros,
curvado, espiando os rastos da égua alazã.
A hora do almoço Sinha Vitória repreendeu-o: - Este
capeta anda leso.
Ergueu-se, deixou_ a cozinha, foi contemplar as perneiras,
o guarda-peito e o gibão pendurados num torno da sala. Daí
marchou para o chiqueiro - e o projeto nasceu.
Arredou-se, fez tenção de entender-se com alguém, mas
ignorava o que pretendia dizer. A égua alazã e o bode
misturavam-se, ele e o pai misturavam-se também.
Rodeou o chiqueiro, mexendo-se como um urubu, arremedando
Fabiano.
A necessidade de consultar o irmão apareceu e desapareceu.
O outro iria rir-se, mangar dele, avisar Sinha Vitória. Teve
medo do riso e da mangação. Se falasse naquilo, Sinha Vitória
lhe puxaria as orelhas.
Evidentemente ele não era Fabiano. Mas se fosse? Precisava
mostrar que podia ser Fabiano. Conversando, talvez
conseguisse explicar-se.
Pôs-se a caminhar, banzeiro, até que o irmão e Baleia
levaram as cabras ao bebedouro. A porteira abriu-se, um
fartum espalhou-se pelos arredores, os chocalhos soaram, a
camiSinha de algodão atravessou o pátio, contornou as pedras
onde se atiravam cobras mortas, passou os juazeiros, desceu a
ladeira, alcançou a margem do rio.
Agora as cabras se empurravam metendo os focinhos na água,
os cornos entrechocavam-se. Baleia, atarefada, latia
correndo.
Trepado na ribanceira, o coração aos baques, o menino mais
novo esperava que o bode chegasse ao bebedouro. Certamente
aquilo era arriscado, mas parecia-lhe que ali em cima tinha
crescido e podia virar Fabiano.
Sentou-se indeciso. O bode ia saltar e derrubá-lo.
Ergueu-se, afastou-se, quase livre da tentação, viu um bando
de periquitos que voava sobre as catingueiras. Desejou
possuir um deles, amarrá-lo com uma embira, dar-lhe comida.
Sumiram-se todos chiando, e o pequeno ficou triste, espiando
o céu cheio de nuvens brancas. Algumas eram carneirinhos, mas
desmanchavam-se e tornavam-se bichos diferentes. Duas grandes
se juntaram - e uma tinha a figura da égua alazã, a outra
representava Fabiano.
Baixou os olhos encandeados, esfregou-os, aproximou-se
novamente da ribanceira, distinguiu a massa confusa do
rebanho, ouviu as pancadas dos chifres. Se o bode já tivesse
bebido, ele experimentaria decepção. Examinou as pernas
finas, a camiSinha encardida e rasgada. Enxergara viventes
no céu, considerava-se protegido, convencia-se de que forças
misteriosas iam ampará-lo. Boiaria no ar, como um periquito.
Pôs-se a berrar, imitando as cabras, chamando o irmão e a
cachorra. Não obtendo resultado, indignou-se. Ia mostrar aos
dois uma proeza, voltariam para casa espantados.
Aí o bode se avizinhou e meteu o focinho na água. O menino
despenhou-se da ribanceira, escanchou-se no espinhaço dele.
Mergulhou no pelame fofo, escorregou, tentou em vão
segurar-se com os calcanhares, foi atirado para a frente,
voltou, achou-se montado na garupa do animal, que saltava
demais e provavelmente se distanciava do bebedouro. Inclinouse
para um lado, mas fortemente sacudido, retomou a posição
vertical, entrou a dançar desengonçado, as pernas abertas, os
braços inúteis. Outra vez impelido para a frente, deu um
salto mortal, passou por cima da cabeça do bode, aumentou o
rasgão da camisa numa das pontas e estirou-se na areia. Ficou
ali estatelado, quietinho, um zunzum nos ouvidos, percebendo
vagamente que escapara sem honra da aventura.
Viu as nuvens que se desmanchavam no céu azul, embirrou com
elas. Interessou-se pelo vôo dos urubus. Debaixo dos couros,
Fabiano andava banzeiro, pesado, direitinho um urubu.
Sentou-se, apalpou as juntas doídas. Fora sacolejado
violentamente, parecia-lhe que os ossos estavam deslocados.
Olhou com raiva o irmão e a cachorra. Deviam tê-lo
prevenido. Não descobriu neles nenhum sinal de solidariedade
: o irmão ria como um doido, Baleia, séria, desaprovava tudo
aquilo. Achou-se abandonado e mesquinho, exposto a quedas,
coices e marradas.
Ergueu-se, arrastou-se com desânimo até a cerca do
bebedouro, encostou-se a ela, o rosto virado para a água
barrenta, o coração esmorecido. Meteu os dedos finos pelo
rasgão, coçou o peito magro. O tropel das cabras perdeu-se na
ladeira, a cachorrinha ladrou longe. Como estariam as nuvens?
Provavelmente algumas se transformavam em carneirinhos,
outras eram como bichos desconhecidos.
Lembrou-se de Fabiano e procurou esquecê-lo. Com certeza
Fabiano e Sinha Vitória iam castigá-lo por causa do acidente.
Levantou os olhos tímidos. A lua tinha aparecido, engrossava,
acompanhada por uma estrelinha quase invisível. Aquela hora
os Periquitos descansavam na vazante, nas touceiras secas de
milho. Se possuísse um daqueles periquitos, seria feliz.
Baixou a cabeça, tornou a olhar a poça escura que o gado
esvaziara. Uns riachos miúdos marejavam na areia como
artérias abertas de animais. Recordou-se das cabras abatidas
a mão de pilão, penduradas de cabeça para baixo num caibro
do copiar, sangrando.
Retirou-se. A humilhação atenuou-se pouco a pouco e morreu.
Precisava entrar em casa, jantar, dormir. E precisava
crescer, ficar tão grande como Fabiano, matar cabras a mão de
pilão, trazer uma faca de ponta à cintura. Ia crescer,
espichar-se numa cama de varas, fumar cigarros de palha,
calçar sapatos de couro cru.
Subiu a ladeira, chegou-se a casa devagar, entortando as
pernas, banzeiro. Quando fosse homem, caminharia assim,
pesado, cambaio, importante, as rosetas das esporas
tilintando. Saltaria no lombo de um cavalo brabo e voaria na
catinga como pé-de-vento, levantando poeira. Ao regressar,
apear-se-ia num pulo e andaria no pátio assim torto, de
perneiras, gibão, guarda-peito e chapéu de couro com
barbicacho. O menino mais velho e Baleia ficariam admirados.
Capítulo VI - O Menino Mais Velho
DEU-SE aquilo porque Sinha Vitória não conversou um
instante com o menino mais velho. Ele nunca tinha ouvido
falar em inferno. Estranhando "a linguagem de Sinha Terta,
pediu informações. Sinha Vitória, distraída, aludiu vagamente
a certo lugar ruim demais, e como o filho exigisse uma
descrição, encolheu os ombros.
O menino foi à sala interrogar o pai, encontrou-o sentado
no chão, com as pernas abertas, desenrolando um meio de sola.
- Bota o pé aqui.
A ordem se cumpriu e Fabiano tomou medida da alpercata :
deu um traço com a ponta da faca atrás do calcanhar, outro
adiante do dedo grande. Riscou em seguida a forma do calçado
e bateu palmas - Arreda.
O pequeno afastou-se um pouco, mas ficou por ali rondando e
timidamente arriscou a pergunta. Não obteve resposta, voltou
à cozinha, foi pendurar-se à saia da mãe: - Como é?
Sinha Vitória falou em espetos quentes e fogueiras.
- A senhora viu?
Aí Sinha Vitória se zangou, achou-o insolente e aplicou-lhe
um cocorote.
O menino saiu indignado com a injustiça, atravessou o
terreiro, escondeu-se debaixo das catingueiras murchas, à
beira da lagoa vazia.
A cachorra Baleia acompanhou-o naquela hora difícil.
Repousava junto à trempe, cochilando no calor, à espera de um
osso. Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos
ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se de longe
em longe, punha na dona as pupilas negras onde a confiança
brilhava. Admitia a existência de um osso graúdo na panela, e
ninguém lhe tirava esta certeza, nenhuma inquietação lhe
perturbava os desejos moderados. As vezes recebia pontapés
sem motivo. Os pontapés estavam previstos e não dissipavam a
imagem do osso.
Naquele dia a voz estridente de Sinha Vitória e o cascudo
no menino mais velho arrancaram Baleia da modorra e deram-lhe
a suspeita de que as coisas não iam bem. Foi esconder-se num
canto, por detrás do pilão, fazendo-se miúda entre cumbucos e
cestos. Um minuto depois levantou o focinho e procurou
orientar-se. O vento morno que soprava da lagoa fixou-lhe a
resolução: esgueirou-se ao longo da parede, transpôs a janela
baixa da cozinha, atravessou o terreiro, passou pelo pé
de turco, topou a camarada, chorando, muito infeliz, à sombra
das catingueiras. Tentou minorar-lhe o padecimento saltando
em roda e balançando a cauda. Não podia sentir dor excessiva.
E como nunca se impacientava, continuou a pular, ofegante,
chamando a atenção do amigo. Afinal convenceu-o de que o
procedimento dele era inútil.
O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a cabeça da
cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho uma história. Tinha um
vocabulário quase tão minguado como o do papagaio que morrera
no tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de
gestos, Baleia respondia com o rabo, com a língua,
com movimentos fáceis de entender.
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente que
lhe mostrava simpatia. Afagou-a com os dedos magros e sujos,
e o animal encolheu-se para sentir bem o contato agradável,
experimentou uma sensação como a que lhe dava a cinza do
borralho.
Continuou a acariciá-la, aproximou do focinho dela a cara
enlameada, olhou bem no fundo os olhos tranqüilos.
Estivera metido no barreiro com o irmão, fazendo bichos de
barro, lambuzando-se. Deixara o brinquedo e fora interrogar
Sinha Vitória. Um desastre. A culpada era Sinha Terta, que na
véspera, depois de curar com reza a espinhela de Fabiano,
soltara uma palavra esquisita, chiando, o canudo do cachimbo
preso nas gengivas banguelas. Ele tinha querido que a palavra
virasse coisa o ficara desapontado quando a mãe se referira a
um lugar ruim, com espetos e fogueiras. Por isso rezingara,
esperando que ela fizesse o inferno transformar-se.
Todos os lugares conhecidos eram bons: o chiqueiro das
cabras, o curral, o barreiro, o pátio, o bebedouro - mundo
onde existiam seres reais, a família do vaqueiro e os bichos
da fazenda. Além havia uma serra distante e azulada, um monte
que a cachorra visitava, caçando preás, veredas quase
imperceptíveis na catinga, moitas o capões de mato,
impenetráveis bancos de macambira - e aí fervilhava uma
população de pedras vivas e plantas que procediam como gente.
Esses mundos viviam em paz, às vezes desapareciam as
fronteiras, habitantes dos dois lados – figura.
entendiam-se perfeitamente e auxiliavam-se. Existiam sem
dúvida em toda a parte forças maléficas, mas essas forças
eram sempre vencidas. E quando Fabiano amansava brabo,
evidentemente uma entidade protetora segurava-o na sela,
indicava-lhe os caminhos menos perigosos, livrava-o dos
espinhos e dos galhos.
Nem sempre as relações entre as criaturas haviam sido
amáveis. Antigamente os homens tinham fugido à toa, cansados
e famintos. Sinha Vitória, com o filho mais novo escanchado
no quarto, equilibrava o baú de folha na cabeça; Fabiano
levava no ombro a espingarda de pederneira; Baleia mostrava
as costelas através do pêlo escasso. Ele, o menino mais
velho, caíra no chão que lhe torrava os pés. Escurecera de
repente, os xiquexiques e os mandacarus haviam desaparecido.
Mal sentia as pancadas que Fabiano lhe dava com a bainha da
faca de ponta.
Naquele tempo o mundo era ruim. Mas depois se consertara,
para bem dizer as coisas ruins não tinham existido. No jirau
da cozinha arrumavam-se mantas de carne seca e pedaços de
toicinho. A sede não atormentava as pessoas, e à tarde;
aberta a porteira, o gado miúdo corria para o bebedouro.
Ossos e seixos transformavam-se às vezes nos entes que
povoavam as moitas, o morro, a serra distante e os bancos de
macambira.
Como não sabia falar direito, o menino balbuciava
expressões complicadas, repetia as sílabas, imitava os berros
dos animais, o barulho do vente, o som dos galhos que rangiam
na catinga, roçando-se. Agora tinha tido a idéia de aprender
uma palavra, com certeza importante porque figurava na
conversa de Sinha Terta. Ia decorá-la e transmiti-la ao
irmão e à cachorra. Baleia permaneceria indiferente, mas o
irmão se admiraria, invejoso.
- Inferno, inferno.
Não acreditava que um nome tão bonito servisse para
designar coisa ruim. E resolvera discutir com Sinha Vitória.
Se ela houvesse dito que tinha ido ao inferno, bem. Sinha
Vitória impunha-se, autoridade visível e poderosa. Se
houvesse feito menção de qualquer autoridade invisível e mais
poderosa, muito bem. Mas tentara convencê-la dando-lhe um
cocorote, e isto lhe parecia absurdo. Achava as pancadas
naturais quando as pessoas grandes se zangavam, pensava até
que a zanga delas era a causa única dos cascudos e puxavantes
de orelhas. Esta convicção tornava-o desconfiado, fazia-o
observar os pais antes de se dirigir a eles. Animara-se a
interrogar Sinha Vitória porque ela estava bem-disposta.
Explicou isto à cachorrinha com abundância de gritos e
gestos.
Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas,
fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos
desagradáveis e necessários Só tinha um meio de evitá-los, a
fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade
de alpercata batia-lhe no traseiro - saía latindo, ia
esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de
realizar o desejo, aquietava-se. Efetivamente a exaltação do
amigo era desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou
de novo. Seria bom dormir.
O menino beijou-lhe o focinho úmido, embalou-a. A alma dele
pôs-se a fazer voltas em redor da serra azulada e dos bancos
de macambira. Fabiano dizia que na serra havia tocas de
suçuaranas. E nos bancos de macambira, rendilhados de
espinhos, surgiam cabeças chatas de jararacas.
Esfregou as mãos finas, esgaravatou as unhas sujas. Pensou
nas figurinhas abandonadas junto ao barreiro, mas isto lhe
trouxe a recordação da palavra infeliz. Diligenciou afastar
do espírito aquela curiosidade funesta, imaginou que
não fizera a pergunta, não recebera portanto o cascudo.
Levantou-se. Via a janela da cozinha, o cocó de Sinha
Vitória, e isto lhe dava pensamentos maus. Foi sentar-se
debaixo de outra árvore, avistou a serra coberta de nuvens.
Ao escurecer a serra misturava-se com o céu e as estrelas
andavam em cima dela. Como era possível haver estrelas na
terra?
A cadelinha chegou-se aos pulos, cheirou-o, lambeu-lhe as
mãos e acomodou-se.
Como era possível haver estrelas na terra?
Entristeceu. Talvez Sinha Vitória dissesse a verdade. O
inferno devia estar cheio de jararacas e suçuaranas, e as
pessoas que moravam lá recebiam cocorotes, puxões de orelhas
e pancadas com bainha de faca.
Apesar de ter mudado de lugar, não podia livrar-se da
presença de Sinha Vitória. Repetiu que não havia acontecido
nada e tentou pensar nas estrelas que se acendiam na serra.
Inutilmente. Aquela hora as estrelas estavam apagadas.
Sentiu-se fraco e desamparado, olhou os braços magros, os
dedos finos, pôs-se a fazer no chão desenhos misteriosos.
Para que Sinha Vitória tinha dito aquilo?
Abraçou a cachorrinha com uma violência que a descontentou.
Não gostava de ser apertada, preferia saltar e espojar-se.
Farejando a panela, franzia as ventas e reprovava os modos
estranhos do amigo. Um osso grande subia e descia no caldo.
Esta imagem consoladora não a deixava.
O menino continuava a abraçá-la. E Baleia encolhia-se para
não magoá-lo, sofria a carícia excessiva. O cheiro dele era
bom, mas estava misturado com emanações que vinham da
cozinha. Havia ali um osso. Um osso graúdo, cheio de tutano e
com alguma carne.
Capítulo VII – Inverno
A FAMÍLIA estava reunida em torno do fogo, Fabiano sentado
no pilão caído, Sinha Vitória de pernas cruzadas, as coxas
servindo de travesseiros aos filhos. A cachorra Baleia, com o
traseiro no chão e o resto do corpo levantado, olhava as
brasas que se cobriam de cinza.
Estava um frio medonho, as goteiras pingavam lá fora, o
vento sacudia os ramos das catingueiras, e o barulho do rio
era como um trovão distante.
Fabiano esfregou as mãos satisfeito e empurrou os tições
com a ponta da alpercata. As brasas estalaram, a cinza caiu,
um círculo de luz espalhou-se em redor da trempe de pedras,
clareando vagamente os pés do vaqueiro, os joelhos da mulher
e os meninos deitados. - De quando em quando estes se mexiam,
porque o lume era fraco e apenas aquecia pedaços deles.
Outros pedaços esfriavam recebendo o ar que entrava pelas
rachaduras das paredes e pelas gretas da janela. Por isso não
podiam dormir. Quando iam pegando no sono, arrepiavam-se,
tinham precisão de virar-se, chegavam-se à trempe e ouviam a
conversa dos pais. Não era propriamente conversa, eram frases
soltas, espaçadas, com repetições e incongruências. As vezes
uma interjeição gutural dava energia ao discurso ambíguo. Na
verdade nenhum deles prestava atenção às palavras do outro:
iam exibindo as imagens que lhes vinham ao espírito, e as
imagens sucediam-se, deformavam-se, não havia meio de
dominá-las. Como os recursos de expressão eram minguados,
tentavam remediar a deficiência falando alto.
Fabiano tornou a esfregar as mãos e iniciou uma história
bastante confusa, mas como só estavam iluminadas as
alpercatas dele, o gesto passou despercebido. O menino mais
velho abriu os ouvidos, atento. Se pudesse ver o rosto do
pai, compreenderia talvez uma parte da narração, mas assim no
escuro a dificuldade era grande. Levantou-se, foi a um
canto da cozinha, trouxe de lá uma braçada de lenha. Sinha
Vitória aprovou este ato com um rugido, mas Fabiano condenou
a interrupção, achou que o procedimento do filho revelava
falta de respeito e estirou o braço para castigá-lo. O
pequeno escapuliu-se, foi enrolar-se na saia da mãe, que se
pôs francamente do lado dele.
- Hum! hum! Que brabeza!
Aquele homem era assim mesmo, tinha o coração perto da
goela.
- Estourado.
Remexeu as brasas com o cabo da quenga de coco, arrumou
entre as pedras achas de angico molhado, procurou acendê-las.
Fabiano ajudou-a: suspendeu a tagarelice, pôs-se de quatro
pés e soprou os carvões, enchendo muito as bochechas. Uma
fumarada invadiu a cozinha, as pessoas tossiram, enxugaram os
olhos. Sinha Vitória manejou o abano, e passado um minuto as
labaredas espirraram entre as pedras.
O círculo de luz aumentou, agora as figuras surgiam na
sombra, vermelhas. Fabiano, visível da barriga para baixo,
ia-se tornando indistinto daí para cima, era um negrume que
vagos clarões cortavam. Desse negrume saiu novamente a
parolagem mastigada.
Fabiano estava de bom humor. Dias antes a enchente havia
coberto as marcas postas no fim da terra de aluvião,
alcançava as catingueiras, que deviam estar submersas.
Certamente só apareciam as folhas, a espuma subia, lambendo
ribanceiras que se desmoronavam.
Dentro em pouco o despotismo de água ia acabar, mas Fabiano
não pensava no futuro. Por enquanto a inundação crescia,
matava bichos, ocupava grotas e várzeas. Tudo muito bem. E
Fabiano esfregava as mãos. Não havia o perigo da seca
imediata, que aterrorizara a família durante meses. A catinga
amarelecera, avermelhara-se, o gado principiara a emagrecer e
horríveis visões de pesadelo tinham agitado o sono das
pessoas. De repente um traço ligeiro rasgara o céu para os
lados da cabeceira do rio, outros surgiram mais claros, o
trovão roncara perto, na escuridão da meia-noite rolaram
nuvens cor de sangue. A ventania arrancara sucupiras e
imburanas, houvera relâmpagos em demasia - e Sinha Vitória se
escondera na camarinha com os filhos, tapando as orelhas,
enrolando-se nas cobertas. Mas aquela brutalidade findara de
chofre, a chuva caíra, a cabeça da cheia aparecera arrastando
troncos e animais mortos. A água tinha subido, alcançado a
ladeira, estava com vontade de chegar aos juazeiros do fim do
pátio. Sinha Vitória andava amedrontada. Seria possível que a
água topasse os juazeiros? Se isto acontecesse, a casa seria
invadida, os moradores teriam de subir o morro, viver uns
dias no morro, como preás.
Suspirava atiçando o fogo com o cabo da quenga de coco.
Deus não permitiria que sucedesse tal desgraça.
- An!
A casa era forte.
- An!
Os esteios de aroeira estavam bem fincados no chão duro. Se
o rio chegasse ali, derrubaria apenas os torrões que formavam
o enchimento das paredes de taipa. Deus protegeria a família.
- An!
As varas estavam bem amarradas com cipós nos esteios de
aroeira. O arcabouço da casa resistiria à fúria das águas. E
quando elas baixassem, a família regressaria. Sim, viveriam
todos no mato, como preás. Mas voltariam quando as águas
baixassem, tirariam do barreiro terra para vestir o esqueleto
da casa.
- An!
Sinha Vitória moveu o abano com força para não ouvir a
barulho do rio, que se aproximava. Seria que ele estava com
intenção de progredir? O abano zumbia, e o rumor da
enchente era um sopro, um sopro que esmorecia para lá dos
juazeiros.
Fabiano contava façanhas. Começara moderadamente, mas
excitara-se pouco a pouco e agora via os acontecimentos com
exagero e otimismo, estava convencido de que praticara feitos
notáveis. Necessitava esta convicção. Algum tempo antes
acontecera aquela desgraça: o soldado amarelo provocara-o na
feira, dera-lhe uma surra de facão e metera-o na cadeia.
Fabiano passara semanas capiongo, fantasiando vinganças,
vendo a criação definhar na catinga torrada. Se a seca
chegasse, ele abandonaria mulher e filhos, coseria a facadas
o soldado amarelo, depois mataria o juiz, o promotor e o
delegado. Estivera uns dias assim murcho, pensando na seca e
roendo a humilhação. Mas a trovoada roncara, viera a cheia, e
agora as goteiras pingavam, o vento entrava pelos buracos das
paredes.
Fabiano estava contente e esfregava as mãos. Como o frio
era grande, aproximou-as das labaredas. Relatava um fuzuê
terrível, esquecia as pancadas e a prisão, sentia-se capaz de
atos importantes.
O rio subia a ladeira, estava perto dos juazeiros. Não
havia notícia de que os houvesse atingido - e Fabiano,
seguro, baseado nas informações dos mais velhos, narrava uma
briga de que saíra vencedor. A briga era sonho, mas Fabiano
acreditava nela.
As vacas vinham abrigar-se junto à parede da casa, pegada
ao curral, a chuva fustigava-as, os chocalhos batiam. Iriam
engordar com o pasto novo, dar crias. O pasto cresceria no
campo, as árvores se enfeitariam, o gado se multiplicaria.
Engordariam todos, ele Fabiano, a mulher, os dois filhos e a
cachorra Baleia. Talvez Sinha Vitória adquirisse uma cama de
lastro de couro. Realmente o jirau de varas onde se
espichavam era incômodo.
Fabiano gesticulava. Sinha Vitória agitava o abano para
sustentar as labaredas no angico molhado. Os meninos,
sentindo frio numa banda e calor na outra, não podiam dormir
e escutavam as lorotas do pai. Começaram a discutir em voz
baixa uma passagem obscura da narrativa. Não conseguiram
entender-se, arengaram azedos, iam se atracando. Fabiano
zangou-se com a impertinência deles e quis puni-los. Depois
moderou-se, repisou o trecho incompreensível utilizando
palavras diferentes.
O menino mais novo bateu palmas, olhou as mãos de Fabiano,
que se agitavam por cima das labaredas, escuras e vermelhas.
As costas ficavam na sombra, mas as palmas estavam iluminadas
e cor de sangue. Era como se Fabiano tivesse esfolado um
animal. A barba ruiva e emaranhada estava invisível, os olhos
azulados e imóveis fixavam-se nos tições, a fala dura e rouca
entrecortava-se de silêncios. Sentado no pilão, Fabiano
derreava-se, feio e bruto, com aquele jeito de bicho lerdo
que não se agüenta em dois pés.
O menino mais velho estava descontente. Não podendo
perceber as feições do pai, cerrava os olhos para entendê-lo
bem. Mas surgira uma dúvida. Fabiano modificara a história -
e isto reduzia-lhe a verossimilhança. Um desencanto. Estirouse
e bocejou. Teria sido melhor a repetição das palavras.
Altercaria com o irmão procurando interpretá-las. Brigaria
por causa das palavras - e a sua convicção encorparia.
Fabiano devia tê-las repetido. Não. Aparecera uma variante, o
herói tinha-se tornado humano e contraditório. O menino mais
velho recordou-se de um brinquedo antigo, presente de seu
Tomás da bolandeira. Fechou os olhos, reabriu-os, sonolento.
O ar que entrava pelas rachas das paredes esfriava-lhe uma
perna, um braço, todo o lado direito. Virou-se, os pedaços de
Fabiano sumiram-se. O brinquedo se quebrara, o pequeno
entristecera vendo as peças inúteis. Lembrou-se dos currais
feitos de seixos miúdos, sob as catingueiras.
Agora a lagoa estava cheia, tinha coberto os currais que
ele construíra. O barreiro também se enchera, atingia a
parede da cozinha, as águas dele juntavam-se às da lagoa.
Para ir ao quintal onde havia craveiros e panelas de losna,
Sinha Vitória saía pela porta da frente, descia o copiar e
atravessava a porteira de baraúna. Atrás da casa, as cercas,
o pé de turco e as catingueiras estavam dentro da água. As
goteiras pingavam, os chocalhos das vacas tiniam, os sapos
cantavam. O som dos chocalhos era familiar, mas a cantiga dos
sapos e o rumor das goteiras causavam estranheza. Tudo estava
mudado. Chovia o dia inteiro, a noite inteira. As moitas e
capões de mato onde viviam seres misteriosos tinham sido
violados. Havia lá sapos. E a cantiga deles subia e descia,
uma toada lamentosa enchia os arredores. Tentou contar as
vozes, atrapalhou-se. Eram muitas, com certeza havia uma
infinidade de sapos nas moitas e nos capões. Que estariam
fazendo? Por que gritavam a cantoria gorgolejada e
triste? Nunca vira um deles, confundia-os com os habitantes
invisíveis da terra e dos bancos de macambira. Enrolou-se,
acomodou-se, adormeceu, uma banda aquecida pelo fogo, a outra
banda protegida pelas nádegas de Sinha Vitória.
O abano agitava-se, a madeira úmida chiava, o vulto de
Fabiano iluminava-se e escurecia.
Baleia, imóvel, paciente, olhava os carvões e esperava que
a família se recolhesse. Enfastiava-a o barulho que Fabiano
fazia. No campo, seguindo uma rês, se esgoelava demais.
Natural. Mas ali, a beira do fogo, para 'que tanto grito?
Fabiano estava-se cansando à toa. Baleia se enjoava,
cochilava e não podia dormir. Sinha Vitória devia retirar os
carvões e a cinza, varrer o chão, deitarse na cama de varas
com Fabiano. Os meninos se arrumariam na esteira, por baixo
do caritó, na sala. Era bom que a deixassem em paz. O dia
todo espiava os movimentos das pessoas, tentando adivinhar
coisas incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-se
das pulgas e daquela vigilância a que a tinham habituado.
Varrido o chão com vassourinha, escorregaria entre as pedras,
enroscar-se-ia, adormeceria no calor, sentindo o cheiro das
cabras molhadas e ouvindo rumores desconhecidos, o tiquetaque
das pingueiras, a cantiga dos sapos, o sopro do rio
cheio. Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.
Capítulo VIII – Festa
FABIANO, Sinha Vitória e os meninos iam à festa de Natal na
cidade. Eram três horas, fazia grande calor, redemoinhos
espalhavam por cima das árvores amarelas nuvens de poeira e
folhas secas.
Tinham fechado a casa, atravessado o pátio, descido a
ladeira, e pezunhavam nos seixos como bois doentes dos
cascos. Fabiano, apertado na roupa de brim branco feita por
Sinha Terta, com chapéu de beata, colarinho, gravata, botinas
de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que
ordinariamente não fazia. Sinha Vitória, enfronhada no
vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos
de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua -
e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e
paletó. Em casa sempre usavam camiSinhas de riscado ou
andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano
branco na loja e incumbira Sinha Terta de arranjar farpelas
para ele e para os filhos. Sinha Terta achara pouca a
fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a
velha pretendia furtar-lhe os retalhos. Em conseqüência as
roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.
Fabiano tentava não perceber essas desvantagens. Marchava
direito, a barriga para fora, as costas aprumadas, olhando a
serra distante. De ordinário olhava o chão, evitando as
pedras, os tocos, os buracos e as cobras. A posição
forçada cansou-o. E ao pisar a areia do rio, notou que assim
não poderia vencer as três léguas que o separavam da cidade.
Descalçou-se, meteu as meias no bolso, tirou o paletó, a
gravata e o colarinho, roncou aliviado. Sinha Vitória decidiu
imitá-lo: arrancou os sapatos e as meias, que amarrou
no lenço. Os meninos puseram as chinelinhas debaixo do braço
e sentiram-se à vontade.
A cachorra Baleia, que vinha atrás, incorporou-se ao grupo.
Se ela tivesse chegado antes provavelmente Fabiano a teria
enxotado. E Baleia passaria a festa junto às cabras que
sujavam o copiar. Mas com a gravata e o colarinho machucados
no bolso, o paletó no ombro e as botinas enfiadas num pau, o
vaqueiro achou-se perto dela e acolheu-a.
Retomou a posição natural: andou cambaio, a cabeça
inclinada. Sinha Vitória, os dois meninos e Baleia
acompanharam-no. A tarde foi comida facilmente e ao cair da
noite estavam na beira do riacho, à entrada da rua.
Aí Fabiano parou, sentou-se, lavou os pés duros, procurando
retirar das gretas fundas o barro que lá havia. Sem se
enxugar, tentou calçar-se - e foi uma dificuldade: os
calcanhares das meias de algodão formaram bolos nos peitos
dos pés e as botinas de vaqueta resistiram como virgens.
Sinha Vitória levantou a saia, sentou-se no chão e limpou-se
também. Os dois meninos entraram no riacho, esfregaram os
pés, saíram, calçaram as chinelinhas e ficaram espiando os
movimentos dos pais. Sinha Vitória aprontava-se e erguia-se,
mas Fabiano soprava arreliado. Tinha vencido a obstinação de
uma daquelas amaldiçoadas botinas; a outra emperrava, e ele,
com os dedos nas alças, fazia esforços inúteis.
Sinha Vitória dava palpites que irritavam o marido. Não havia
meio de introduzir o diabo do calcanhar no tacão. A um
arranco mais forte, a alça de trás rebentou-se, e o vaqueiro
meteu as mãos pela borracha, energicamente. Nada conseguindo,
levantou-se resolvido a entrar na rua assim mesmo, coxeando,
uma perna mais comprida que a outra. Com raiva excessiva, a
que se misturava alguma esperança, deu uma patada violenta no
chão. A carne comprimiu-se, os ossos estalaram, a
meia molhada rasgou-se e o pé amarrotado se encaixou entre as
paredes de vaqueta. Fabiano soltou um suspiro largo de
satisfação e dor. Em seguida tentou prender o colarinho duro
ao pescoço, mas os dedos trêmulos não realizaram a tarefa.
Sinha Vitória auxiliou-o: o botão entrou na casa estreita e a
gravata amarrou-se. As mãos sujas, suadas, deixaram no
colarinho manchas escuras.
- Está certo, grunhiu Fabiano.
Atravessaram a 'pinguela e alcançaram a rilã. Sinha Vitória
caminhava aos tombos, por causa dos saltos dos sapatos, e
conservava o guarda-chuva suspenso, com o castão para baixo e
a biqueira para cima, enrolada no lenço. Impossível dizer
porque Sinha Vitória levava o guarda-chuva com biqueira para
cima e o castão para baixo. Ela própria não saberia explicarse,
mas sempre vira as outras matutas procederem assim e
adotava o costume.
Fabiano marchava teso.
Os dois meninos espiavam os lampiões e adivinhavam casos
extraordinários. Não sentiam curiosidade, sentiam medo, e por
isso pisavam devagar, receando chamar a atenção das
pessoas. Supunham que existiam mundos diferentes da fazenda,
mundos maravilhosos na serra azulada. Aquilo, porém, era
esquisito. Como podia haver tantas casas e tanta gente? Com
certeza os, homens iriam brigar. Seria que o povo ali era
brabo e não consentia que eles andassem entre as
barracas? Estavam acostumados a agüentar cascudos e puxões de
orelhas. Talvez as criaturas desconhecidas não se
comportassem como Sinha Vitória, mas os pequenos retraíam-se,
encostavam-se às paredes, meio encandeados, os ouvidos cheios
de rumores estranhos.
Chegaram à igreja, entraram. Baleia ficou passeando na
calçada, olhando a rua, inquieta. Na opinião dela, tudo devia
estar no escuro, porque era noite, e a gente que andava no
quadro precisava deitar-se. Levantou o focinho, sentiu um
cheiro que lhe deu vontade de tossir. Gritavam demais ali
perto e havia luzes em abundância, mas o que a incomodava era
aquele cheiro de fumaça.
Os meninos também se espantavam. No mundo, subitamente
alargado, viam Fabiano e Sinha Vitória muito reduzidos,
menores que as figuras dos altares. Não conheciam altares,
mas presumiam que aqueles objetos deviam ser preciosos. As
luzes e os cantos extasiavam-nos. De luz havia, na fazenda, o
fogo entre as pedras da cozinha e o candeeiro de querosene
pendurado pela asa numa vara que saía da taipa; de canto, o
bemdito de Sinha Vitória e o aboio de Fabiano. O aboio era
triste, uma cantiga monótona e sem palavras que entorpecia o
gado.
Fabiano estava silencioso, olhando as imagens e as
velas acesas, constrangido na roupa nova, o pescoço esticado,
pisando, em brasas. A multidão apertava-o mais que a roupa,
embaraçava-o. De perneiras, gibão- e guarda-peito, andava
metido numa caixa, como tatu, mas saltava no lombo de um
bicho e voava na catinga. Agora não podia virar-se: mãos e
braços roçavam-lhe o corpo. Lembrou-se da surra que levara e
da noite passada na cadeia. A sensação que experimentava não
diferia muito da que tinha tido ao ser preso. Era como se as
mãos e os braços da multidão fossem agarralo, subjugá-lo,
espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor.
Evidentemente as criaturas que se juntavam ali não o viam,
mas Fabiano sentia-se rodeado de inimigos, temia envolver-se
em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-se
inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se,
estava amarrado. Lentamente conseguiu abrir caminho no
povaréu, esgueirou-se até junto da pia de água benta, onde
se deteve, receoso de perder de vista a mulher e os filhos.
Ergueu-se nas pontas dos pés, mas isto lhe arrancou um
grunhido: os calcanhares esfolados começavam a afligi-lo.
Distinguiu o cocó de Sinha Vitória, que se escondia atrás de
uma coluna. Provavelmente os meninos estavam com ela. A
igreja cada vez mais se enchia. Para avistar a cabeça da
mulher, Fabiano precisava estirar-se, voltar o rosto. E o
colarinho furava-lhe o pescoço. As botinas e o colarinho eram
indispensáveis. Não poderia assistir à novena calçado em
alpercatas, a camisa de algodão aberta, mostrando o peito
cabeludo. Seria desrespeito. Como tinha religião, entrava na
igreja uma vez por ano.
E sempre vira, desde que se entendera, roupas de festa
assim: calça e paletó engomados, batinas de elástico, chapéu
de baeta, colarinho e gravata. Não se arriscaria a prejudicar
a tradição, embora sofresse com ela. Supunha cumprir um
dever, tentava aprumar-se. Mas a disposição esmorecia:
o espinhaço vergava, naturalmente, os braços mexiam-se
desengonçados.
Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se
inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele.
Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o
fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na
medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e
tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham
encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os
miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco,
certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os
caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o
couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o
passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava
daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida
por Sinha Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o
chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar
nisto.
- Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.
Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram
ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa.
Por falta menor agüentara facão e dormira na cadeia. Ora, o
soldado amarelo. .. Sacudiu a cabeça, livrou-se da recordação
desagradável e procurou uma cara amiga na multidão. Se
encontrasse um conhecido, iria chamá-lo para a calçada,
abraçá-lo, sorrir, bater palmas. Depois falaria sobre gado.
Estremeceu, tentou ver o cocó de Sinha Vitória. Precisava ter
cuidado para não se distanciar da mulher e dos filhos.
Aproximou-se deles, alcançou-os no momento em que a igreja
começava a esvaziar-se.
Saíram aos encontrões, desceram os degraus. Empurrado,
machucado, Fabiano tornou a pensar no soldado amarelo. No
quadro, ao passar pelo jatobá, - virou o rosto. Sem motivo
nenhum, o desgraçado tinha ido provocá-lo, pisar-lhe o pé.
Ele se desviara, com bons modos. Como o outro insistisse,
perdera a paciência, tivera um rompante. Conseqüência: facão
no lombo e uma noite de cadeia.
Convidou a mulher e os filhos para os cavalinhos, arrumouos,
distraiu-se um pouco vendo-os rodar. Em seguida
encaminhou-os as barracas de jogo. Coçou-se, puxou o lenço,
desatou-o, contou o dinheiro, com a tentação de arriscá-lo no
bozó. Se fosse feliz, poderia comprar a cama de couro cru, a
sonho de Sinha Vitória. Foi beber cachaça numa tolda, voltou,
pôs-se a rondar indeciso, pedindo com os olhos a opinião da
mulher. Sinha Vitória fez um gesto de reprovação, e Fabiano
retirou-se, lembrando-se do jogo que tivera em casa de seu
Inácio, com o soldado amarelo. Fora roubado, com certeza fora
roubado. Avizinhou-se da tolda e bebeu mais cachaça. Pouca a
pouco ficou sem-vergonha.
- Festa é festa.
Bebeu ainda uma vez e empertigou-se, olhou as pessoas
desafiando-as. Estava resolvido a fazer uma asneira. Se
topasse o soldado amarelo, esbodegava-se com ele. Andou entre
as barracas, emproado, atirando coices no chão, insensível
às esfoladuras dos pés. Queria era desgraçar-se, dar um pano
de amostra àquele safado. Não ligava importância à mulher e
aos filhos, que o seguiam.
- Apareça um homem! berrou.
No barulho que enchia a praça ninguém notou a provocação. E
Fabiano foi esconder-se por detrás das barracas, para lá dos
tabuleiros de doces. Estava disposto a esbagaçar-se, mas
havia nele um resto de prudência. Ali podia irritarse,
dirigir ameaças e desaforos a inimigos
invisíveis. Impelido por forças opostas, expunha-se e
acautelava-se. Sabia que aquela explosão era perigosa, temia
que o soldado amarelo surgisse de repente, viesse plantar-lhe
no pé a reiúna. O soldado amarelo, falto de substância,
ganhava fumaça na companhia dos parceiros. Era bom evitá-lo.
Mas a lembrança dele tornava-se às vezes horrível. E Fabiano
estava tirando uma desforra. Estimulado pela cachaça,
fortalecia-se: - Cadê o valente? Quem é que tem coragem de
dizer que eu sou feio? Apareça um homem.
Lançava o desafio numa fala atrapalhada, com o vago receio
de ser ouvido. Ninguém apareceu. E Fabiano roncou alto,
gritou que eram todos uns frouxos, uns capados, sim senhor.
Depois de muitos berros, supôs que havia ali perto homens
escondidos, com medo dele. Insultou-os: - Cambada de ...
Parou agoniado, suando frio, a boca cheia de água, sem
atinar com a palavra. Cambada de quê? Tinha o nome debaixo da
língua., E a língua engrossava, perra, Fabiano cuspia, fixava
na mulher e nos filhos uns olhos vidrados. Recuou alguns
passos, entrou a engulhar. Em seguida aproximou-se –
figura
novamente das luzes, capengando, foi sentar-se na calçada de
uma loja. Betava desanimado, bambo; o entusiasmo arrefecera.
Cambada de que? Repetia a pergunta sem saber o que procurava.
Olhou de perto a cara da mulher, não conseguiu distinguir-lhe
os traços. Sinha Vitória perceberia a atrapalhação dele?
Havia ali outros matutos conversando, e Fabiano enjoou-os. Se
não estivesse tão ansiado, arrotando, suando, brigaria com
eles. A interrogação que lhe aperreava o espírito confuso
juntou-se a idéia de que aquelas pessoas não tinham o direito
de sentar-se na calçada. Queria que. o deixassem com a
mulher, os filhos e a cachorrinha. Cambada de quê? Soltou um
grito áspero, bateu palmas: - Cambada de cachorros.
Descoberta a expressão teimosa, alegrou-se. Cambada de
cachorros. Evidentemente os matutos como ele não passavam de
cachorros. Procurou com as mãos a mulher e os filhos,
certificou-se de que eles estavam acomodados. Uma contração
violenta no pescoço entortou-lhe o rosto, a boca encheu-se
novamente de saliva. Pôs-se a cuspir. Serenou, respirou com
força, passou os dedos por um fio de baba que lhe pendia de
beiço. Estava era tonto, com uma zoada infeliz nos ouvidos.
Ia jurar que mostrara valentia e correra perigo. Achava ao
mesmo tempo que havia cometido uma falta. Agora estava pesado
e com sono. Enquanto andara fazendo espalhafato, a cabeça
cheia de aguardente, desprezara as esfoladuras dos pés. Mas
esfriava, e as botinas de vaqueta magoavam-nos em demasia.
Arrancou-as, tirou as meias, libertou-se do colarinho, da
gravata e do paletó, enrolou tudo, fez um
travesseiro, estirou-se no cimento, puxou para os olhos o
chapéu de baeta. E adormeceu, com o estômago embrulhado.
Sinha Vitória achava-se em dificuldade: torcia-se para
satisfazer uma precisão e não sabia como se desembaraçar.
Podia esconder-se no fundo do quadro, por detrás das
barracas, para lá dos tamboretes das doceiras. Ergueu-se meio
decidida, tornou a acocorar-se. Abandonar os meninos, o
marido naquele estado? Apertou-se e observou os quatro cantos
com desespero, que a precisão era grande. Escapuliu-se
disfarçadamente, chegou a esquina da loja, onde havia um
magote de mulheres agachadas. E, olhando as frontarias das
casas e as lanternas de papel, molhou o chão e os pés das
outras matutas. Arrastou-se para junto da família, tirou do
bolso o cachimbo de barro, atochou-o, acendeu-o, largou
algumas baforadas longas de satisfação. Livre da necessidade,
viu com interesse o formigueiro que circulava na praça, a
mesa do leilão, as listas luminosas dos foguetes. Realmente
a vida não era má. Pensou com um arrepio na seca, na viagem
medonha que fizera em caminhos abrasados, vendo ossos e
garranchos. Afastou a lembrança ruim, atentou naquelas
belezas. O burburinho da multidão era doce, o realejo
fanhoso dos cavalinhos não descansava. Para a vida ser boa,
só faltava à Sinha Vitória uma cama igual à de seu Tomás da
bolandeira. Suspirou, pensando na cama de varas em que
dormia. Ficou ali de cócoras, cachimbando, os olhos e
os ouvidos muito abertos para não perder a festa.
Os meninos trocavam impressões cochichando, aflitos com o
desaparecimento da cachorra. Puxaram a manga da mãe. Que fim
teria levado Baleia? Sinha Vitória levantou o braço num
gesto mole e indicou vagamente dois pontos cardeais com o
canudo .do cachimbo. Os pequenos insistiram. Onde estaria a
cachorrinha? Indiferentes à igreja, às lanternas de papel,
aos bazares, às mesas de jogo e aos foguetes, só se
importavam com as pernas dos transeuntes. Coitadinha, andava
por aí perdida agüentando pontapés.
De repente Baleia apareceu. Trepou-se na calçada, mergulhou
entre as saias das mulheres, passou por cima de Fabiano e
chegou-se aos amigos, manifestando com a língua e com o rabo
um vivo contentamento. O menino mais velho agarrou-a. Estava
segura. Tentaram explicar-lhe que tinham tido susto enorme
por causa dela, mas Baleia não ligou importância à
explicação. Achava é que perdiam tempo num lugar esquisito,
cheio de odores desconhecidos. Quis latir, expressar oposição
a tudo aquilo, mas percebeu que não convenceria ninguém e
encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho dos seus
donos.
A opinião dos meninos assemelhava-se à dela. Agora olhavam
as lojas, as toldas, a mesa do leilão. E conferenciavam
pasmados. Tinham percebido que havia muitas pessoas no mundo.
Ocupavam-se em descobrir uma enorme quantidade de objetos.
Comunicaram baixinho um ao outro as surpresas que os enchiam.
Impossível imaginar tantas maravilhas juntas. O menino mais
novo teve uma dúvida e apresentou-a timidamente ao irmão.
Seria que aquilo tinha sido feito por gente? O menino mais
velho hesitou, espiou as lojas, as toldas iluminadas, as
moças bem vestidas. Encolheu os ombros. Talvez aquilo tivesse
sido feito por gente. Nova dificuldade chegou-lhe ao
espírito soprou-a no ouvido do irmão. Provavelmente aquelas
coisas tinham nomes. O menino mais novo interrogou-o com os
olhos. Sim, com certeza as preciosidades que se exibiam nos
altares da igreja e nas prateleiras das lojas tinham
nomes. Puseram-se a discutir a questão intrincada.
Como podiam os homens guardar tantas palavras?
Era impossível, ninguém conservaria tão grande soma de
conhecimentos. Livres dos nomes, as coisas ficavam distantes,
misteriosas. Não tinham sido feitas por gente. E os
indivíduos que mexiam nelas cometiam imprudência. Vistas de
longe, eram bonitas. Admirados e medrosos, falavam baixo para
não desencadear as forças estranhas que elas porventura
encerrassem.
Baleia cochilava, de quando em quando balançava a cabeça e
franzia o focinho. A cidade se enchera de suores que a
desconcertavam.
Sinha Vitória enxergava, através das barracas, a cama de
seu Tomás da bolandeira, uma cama de verdade.
Fabiano roncava de papo para cima, as abas do chapéu
cobrindo-lhe os olhos, o quengo sobre as botinas de vaqueta.
Sonhava, agoniado, e Baleia percebia nele um cheiro que o
tornava irreconhecível. Fabiano se agitava, soprando. M
Muitos soldados amarelos tinham aparecido, pisavam-lhe os pés
com enormes reiúnas e ameaçavam-no com facões terríveis.
Capítulo IX – Baleia
A CACHORRA Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o
pêlo caíra-lhe em vários pontos, as costelas avultavam num
fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam,
cobertas de moscas. As chagas da boca e a inchação dos beiços
dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um
princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um rosário
de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a
pior, roçava-se nas estacas do curral ou metia-se no mato,
impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas
murchas, agitando a cauda pelada e curta, grossa na base,
cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de
pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo e fez tenção
de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinha Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos
assustados, que adivinhavam desgraça e não se cansavam de
repetir a mesma pergunta: - Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de
Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que Baleia
corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os
três, para bem dizer não se diferençavam, rebolavam na areia
do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o
chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas Sinha
Vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e esforçouse
por tapar-lhes os ouvidos prendeu a cabeça do mais velho
entre as coxas e espalmou as mãos nas orelhas do segundo.
Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou
de subjugá-los, resmungando com energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se:
naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e justa.
Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano
da arma, as pancadas surdas da vareta na bucha. Suspirou.
Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como Sinha
Vitória tinha relaxado os músculos, deixou escapar o mais
taludo e soltou uma praga: - Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde,
zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um cocorote ao crânio
enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e Sinha Vitória, embalando
as crianças, enjoou-se da cadela achacada, gargarejou muxoxos
e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar
cachorro doido solto em casa. Mas compreendia que estava
sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e
lamentava que o marido não houvesse esperado mais um dia para
ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo
castanholas com os dedos. Sinha Vitória encolheu o pescoço e
tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era
impossível, levantou os, braços e, sem largar o filho,
conseguiu ocultar um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando a baraúna e as
porteiras, açulando um cão invisível contra animais
invisíveis: - Eco! eco!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à
janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro, viu Baleia
coçando-se a esfregar as peladuras no pé de turco, levou a
espingarda ao rosto. A cachorra espiou o dono desconfiada,
enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro
lado da árvore, agachada e arisca, mostrando apenas as
pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a
janela, esgueirou-se ao longo da cerca do curral, deteve-se
no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o
animal estivesse de frente e não apresentasse bom alvo,
adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar as catingueiras,
modificou a pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os
quartos traseiros e inutilizou uma perna de Baleia, que se
pos a latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, Sinha Vitória pegou-se à
Virgem Maria e os meninos rolaram na cama, chorando alto.
Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no
quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros e às
panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o
pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao copiar, mas temeu
encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras.
Demorou-se aí um instante, meio desorientada, saiu depois sem
destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E,
perdendo muito sangue, andou como gente, em dois pés,
arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis
recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia
uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-se ali: cobriase
de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se
levantava, tinha folhas secas e gravetos colados as feridas,
era um bicho diferente dos outros.
Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguerse,
endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteiras, mas o
resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição torcida,
mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas
no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal esmoreceu e
aquietou-se junto as pedras onde os meninos jogavam cobras
mortas.
Uma sede horrível queimava-lhe a garganta. Procurou ver as
pernas e não as distinguiu : um nevoeiro impedia-lhe a visão.
Pôs-se a latir e desejou morder Fabiano. Realmente não latia:
uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tornavam-se quase
imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas
polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra que ladeava a
pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O
nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o
cheiro vinha, fraco e havia nele partículas de outros
viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito.
Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade de
subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam
em liberdade. Começou a arquejar penosamente, fingindo
ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não
experimentou nenhum prazer. O olfato cada vez mais se
embotava: certamente os preás tinham fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano,
que lhe apareceu diante dos olhos meio vidrados, com um
objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a
tremer, convencida de que ele encerrava surpresas
desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e
encolher o rabo. Cerrou as pálpebras pesadas e julgou que o
rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha
nascido perto dele, numa camarinha, sob a cama de varas, e
consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o
gado quando o vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a
respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por baixo das
pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou.
Fabiano e a coisa perigosa tinham-se sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão,
com certeza o sol desaparecera.
Os chocalhos das cabras tilintaram para os lados do rio, o
fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de
noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-los ao
bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os
meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas
Baleia não atribuía a esse desastre a impotência em que se
achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar
as cabras: àquela hora cheiros de suçuarana deviam andar
pelas ribanceiras, rondar. as moitas afastadas. Felizmente os
meninos dormiam na esteira, por baixo do caritó onde Sinha
Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a
criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos
arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano
roncava na cama de varas. Estes sons não interessavam Baleia,
mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava,
emanações familiares revelavam-lhe a presença deles. Agora
parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos
desgovernados, a língua pendente e insensível. Não sabia o
que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no
quarto e a viagem difícil do barreiro ao fim do pátio
desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que
serviam de trempe. Antes de se deitar, Sinha Vitória retirava
dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha
o chão queimado, e aquilo ficava um bom lugar para cachorro
descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava.
E, findos os cochilos, numerosos preás corriam e
saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de
Baleia. Do peito para trás era tudo insensibilidade e
esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de
mandacaru penetravam na carne meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra
estava fria, certamente Sinha Vitória tinha deixado o fogo
apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de
preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano enorme. As
crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio
enorme, num chiqueiro enorme. O mundo ficaria todo cheio de
preás, gordos, enormes.
Capítulo X – Contas
FABIANO recebia na partilha a quarta parte dos bezerros e a
terça dos cabritos. Mas como não tinha roça e apenas se
limitava a semear na vazante uns punhados de feijão e milho,
comia da feira, desfazia-se dos animais, não chegava a ferrar
um bezerro ou assinar a orelha de um cabrito.
Se pudesse economizar durante alguns meses, levantaria a
cabeça. Forjara planos. Tolice, quem é do chão não se trepa.
Consumidos os. legumes, roídas as espigas de milho, recorria
a gaveta do amo, cedia por preço baixo o produto das
sortes, Resmungava, rezingava, numa aflição,
tentando espichar os recursos minguados, engasgava-se,
engolia em seco. Transigindo com outro, não seria roubado tão
descaradamente. Mas receava ser expulso da fazenda. E rendiase:
Aceitava o cobre e ouvia conselhos. Era bom pensar no
futuro, criar juízo. Ficava de boca aberta, vermelho, o
pescoço inchando. De repente estourava - Conversa. Dinheiro
anda num cavalo e ninguém pode viver sem comer. Quem é do
chão não se trepa.
Pouco a pouco o ferro do proprietário queimava os bichos de
Fabiano. E quando não tinha mais nada para vender, o
sertanejo endividava-se. Ao chegar a partilha, estava
encalacrado, e na hora das contas davam-lhe uma ninharia.
Ora, daquela vez, como das outras, Fabiano ajustou o gado,
arrependeu-se, enfim deixou a transação meio apalavrada e
foi consultar a mulher. Sinha Vitória mandou os meninos para
o barreiro, sentou-se na cozinha, concentrou-se, distribuiu
no chão sementes de várias espécies, realizou somas e
diminuições. No dia seguinte Fabiano voltou à cidade, mas ao
fechar o negócio notou que as operações de Sinha Vitória,
como de costume, diferiam das do patrão. Reclamou e obteve a
explicação habitual: a diferença era proveniente de juros.
Não se conformou: devia haver engano. Ele era bruto, sim
senhor, via-se perfeitamente que era bruto, mas a mulher
tinha miolo. Com certeza havia um erro no papel do branco.
Não se descobriu o erro, e Fabiano perdeu os estribos. Passar
a vida inteira assim no toco, entregando o que era dele de
mão beijada! Estava direito aquilo? Trabalhar como negro e
nunca arranjar carta de alforria!
O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou bom que o
vaqueiro fosse procurar serviço noutra fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou. Bem, bem. Não era
preciso barulho não. Se havia dito palavra à-toa, pedia
desculpa. Era bruto, não fora ensinado. Atrevimento não
tinha, conhecia o seu lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão
com gente rica? Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os
homens. Devia ser ignorância da mulher, provavelmente devia
ser ignorância da mulher. Até estranhara as contas dela.
Enfim, como não sabia ler (um bruto, sim senhor), acreditara
na sua velha. Mas pedia desculpa e jurava não cair noutra.
O amo abrandou, e Fabiano saiu de costas, o chapéu
varrendo o tijolo. Na porta, virando-se, enganchou as rosetas
das esporas, afastou-se tropeçando, os sapatões de couro cru
batendo no chão como cascos.
Foi até a esquina, parou, tomou fôlego. Não deviam tratá-lo
assim. Dirigiu-se ao quadro lentamente. Diante da bodega de
seu Inácio virou o rosto e fez uma curva larga. Depois que
acontecera aquela miséria, temia passar ali. Sentou-se numa
calçada, tirou do bolso o dinheiro, examinou-o, procurando
adivinhar quanto lhe tinham furtado. Não podia dizer em voz
alta que aquilo era um furto, mas era. Tomavam-lhe o gado
quase de graça e ainda inventavam juro. Que juro! O que havia
era safadeza.
- Ladroeira.
Nem lhe permitiam queixas. Porque reclamara, achara a coisa
uma exorbitância, o branco se levantara furioso, com quatro
pedras na mão. Para que tanto espalhafato?
- Hum! hum!
Recordou-se do que lhe sucedera anos atrás, antes da seca,
longe. Num dia de apuro recorrera ao porco magro que não
queria engordar no chiqueiro e estava reservado às despesas
do Natal: matara-o antes de tempo e fora vendê-lo na cidade.
Mas o cobrador da prefeitura chegara com o recibo e
atrapalhara-o. Fabiano fingira-se desentendido : não
compreendia nada, era bruto. Como o outro lhe explicasse que,
para vender o porco, devia pagar imposto, tentara convencê-lo
de que ali não havia porco, havia quartos de porco, pedaços
de carne. O agente se aborrecera, insultara-o, e Fabiano se
encolhera. Bem, bem. Deus o livrasse de história com o
governo. Julgava que podia dispor dos seus troços. Não
entendia de imposto.
- Um bruto, está percebendo?
Supunha que o cevado era dele. Agora se a prefeitura tinha
uma parte, estava acabado. Pois ia voltar para casa e comer a
carne. Podia comer a carne? Podia ou não podia? O funcionário
batera o pé agastado e Fabiano se desculpara, o chapéu de
couro na mão, o espinhaço curvo: - Quem foi que disse que
eu queria brigar? O melhor é a gente acabar com isso.
Despedira-se, metera a carne no saco e fora vendê-la noutra
rua, escondido. Mas, atracado pelo cobrador, gemera no
imposto e na multa. Daquele dia em diante não criara mais
porcos. Era perigoso criá-los.
Olhou as cédulas arrumadas na palma, os níqueis e as
pratas, suspirou, mordeu os beiços. Nem lhe restava o direito
de protestar. Baixava a crista. Se não baixasse, desocuparia
a terra, largar-se-ia com a mulher, os filhos pequenos e os
cacarecos. Para onde? Hem? Tinha para onde levar a mulher e
os meninos? Tinha nada!
Espalhou a vista pelos quatro cantos. Além dos telhados,
que lhe reduziam o horizonte, a campina se estendia, seca e
dura. Lembrou-se da marcha penosa que fizera através dela,
com a família, todos esmolambados e famintos.
Haviam escapado, e isto lhe parecia um milagre. Nem sabia
como tinham escapado.
Se pudesse mudar-se, gritaria bem alto que o roubavam.
Aparentemente resignado, sentia um ódio imenso a qualquer
coisa que era ao mesmo tempo a campina seca, o patrão, os
soldados e os agentes da prefeitura. Tudo na verdade
era contra ele. Estava acostumado, tinha a casca muito
grossa, mas às vezes se arreliava. Não havia paciência que
suportasse tanta coisa.
- Um dia um homem faz besteira e se desgraça.
Pois não estavam vendo que ele era de carne e osso? Tinha
obrigação de trabalhar para os outros, naturalmente, conhecia
o seu lugar. Bem. Nascera com esse destino, ninguém tinha
culpa de ele haver nascido com um destino ruim. Que fazer?
Podia mudar a sorte? Se lhe dissessem que era possível
melhorar de situação, espantar-se-ia. Tinha vindo ao mundo
para amansar brabo, curar feridas com rezas, consertar cercas
de inverno a verão. Era sina. O pai vivera assim, o avô
também. E para trás não existia família. Cortar mandacaru,
ensebar látegos - aquilo estava no sangue. Conformava-se, não
pretendia mais nada Se lhe dessem o que era dele, estava
certo. Não davam. Era um desgraçado, era como um
cachorro,.só recebia ossos. Por que seria que os homens
ricos ainda lhe tomavam uma parte dos ossos? Fazia até nojo
pessoas importantes se ocuparem com semelhantes porcarias.
Na palma da mão as notas estavam úmidas de suor. Desejava
saber o tamanho da extorsão. Da última vez que fizera contas
com o amo o prejuízo parecia menor. Alarmou-se. Ouvira
falar em juros e em prazos. Isto lhe dera uma impressão
bastante penosa: sempre que os homens sabidos lhe diziam
palavras difíceis, ele saía logrado. Sobressaltava-se
escutando-as. Evidentemente só serviam para encobrir
ladroeiras. Mas eram bonitas. As vezes decorava algumas e
empregava-as fora do propósito. Depois esquecia-as. Para que
um pobre da laia dele usar conversa de gente rica? Sinha
Terta é que tinha uma ponta de língua terrível. Era: falava
quase tão bem como as pessoas da cidade. Se ele soubesse
falar como Sinha Terta, procuraria serviço noutra fazenda,
haveria de arranjar-se. Não sabia. Nas horas de aperto dava
para gaguejar, embaraçava-se como um menino, coçava os
cotovelos, aperreado. Por isso esfolavam-no. Safados. Tomar
as coisas de um infeliz que não tinha onde cair morto! Não
viam que isso não estava certo? Que iam ganhar com semelhante
procedimento? Hem? Que iam ganhar?
- An!
Agora não criava porco e queria ver o tipo da prefeitura
cobrar dele imposto e multa. Arrancavam-lhe a camisa do corpo
e ainda por cima davam-lhe facão e cadeia. Pois não
trabalharia mais, ia descansar.
Talvez não fosse. Interrompeu o monólogo, levou uma
eternidade contando e recontando mentalmente o dinheiro.
Amarrotou-o com força, empurrou-o no bolso raso da calça,
meteu na casa estreita o botão de osso. Porcaria.
Levantou-se, foi até a porta de uma bodega, com vontade de
beber cachaça. Como havia muitas pessoas encostadas ao
balcão, recuou. Não gostava de se ver no meio do povo. Falta
de costume. As vezes dizia uma coisa sem intenção de ofender,
entendiam outra, e lá vinham questões. Perigoso entrar na
bodega. O único vivente que o compreendia era a mulher. Nem
precisava falar : bastavam os gestos. Sinha Terta é que se
explicava como gente da rua. Muito bom uma criatura ser
assim, ter recurso para se defender. Ele não tinha. Se
tivesse, não viveria naquele estado.
Um perigo entrar na bodega. Estava com desejo de beber um
quarteirão de cachaça, mas lembrava-se da última visita feita
à venda de seu Inácio. Se não tivesse tido a idéia de beber,
não lhe haveria sucedido aquele desastre. Nem podia tomar uma
pinga descansado. Bem. Ia voltar para casa e dormir.
Saiu lento, pesado, capiongo, as rosetas das esporas
silenciosas. Não conseguiria dormir. Na cama de varas havia
um pau com um nó, bem no meio. Só muito cansaço fazia um
cristão acomodar-se em semelhante dureza. Precisava fatigarse
no lombo de um cavalo ou passar o dia consertando cercas.
Derreado, bambo,, espichava-se e roncava como um porco. Agora
não lhe seria possível fechar os olhos. Rolaria a noite
inteira sobre as varas, matutando naquela perseguição.
Desejaria imaginar o que ia fazer para o futuro. Não ia fazer
nada. Matar-se-ia no serviço e moraria numa casa alheia,
enquanto o deixassem ficar. Depois sairia pelo mundo, iria
morrer de fome na catinga seca.
Tirou do bolso o rolo de fumo, preparou um cigarro com a
faca de ponta. Se ao menos pudesse recordar-se de fatos
agradáveis, a vida não seria inteiramente má.
Deixara a rua. Levantou a cabeça, viu uma estrela, depois
muitas estrelas. As figuras dos inimigos esmoreceram. Pensou
na mulher, nos filhos e na cachorra morta. Pobre de Baleia.
Era como se ele tivesse matado uma pessoa da família.
Capítulo XI - O Soldado Amarelo
FABIANO meteu-se na vereda que ia desembocar na lagoa seca,
torrada, coberta de catingueiras e capões de mato. Ia pesado,
o alo cheio a tiracolo, muitos látegos e chocalhos
pendurados num braço. O facão batia nos tocos. Espiava o chão
como de costume, decifrando rastos. Conheceu os da égua ruça
e da cria, marcas de cascos grandes e pequenos. A égua ruça,
com certeza. Deixara pêlos brancos num tronco de angico.
Urinara na areia e o mijo desmanchara as pegadas, o que não
aconteceria se se tratasse de um cavalo.
Fabiano ia desprecatado, observando esses sinais e outros
que se cruzavam, de viventes menores. Corcunda, parecia
farejar o solo - e a catinga deserta animava-se, os bichos
que ali tinham passado voltavam, apareciam-lhe diante dos
olhos miúdos.
Seguiu a direção que ~a égua havia tomado. Andara cerca de
cem braças quando o cabresto de cabelo que trazia no ombro se
enganchou num pé de quipá. Desembaraçou o cabresto, puxou o
facão, pôs-se a cortar as quipás e as palmatórias que
interrompiam a passagem.
Tinha feito um estrago feio, a terra se cobria de palmas
espinhosas. Deteve-se percebendo rumor de garranchos, voltouse
e deu de cara com o soldado amarelo que, um ano antes, o
levara a cadeia, onde ele agüentara uma surra e passara a
noite. Baixou a arma. Aquilo durou um segundo.
Menos: durou uma fração de segundo. Se houvesse durado mais
tempo, o amarelo teria caído esperneando na poeira, com o
quengo rachado. Como o impulso que moveu o braço de Fabiano
foi muito forte, o gesto que ele fez teria sido bastante para
um homicídio se outro impulso não lhe dirigisse o braço em
sentido contrário. A lâmina parou de chofre, junto à cabeça
do intruso, bem em cima do boné vermelho. A princípio o
vaqueiro não compreendeu nada. Viu apenas que estava ali um
inimigo. De repente notou que aquilo era um homem e, coisa
mais grave, uma autoridade. Sentiu um choque violento,
deteve-se, o braço ficou irresoluto, bambo, inclinando-se
para um lado e para outro.
O soldado, magrinho, enfezadinho, tremia. E Fabiano tinha
vontade de levantar o facão de novo. Tinha vontade, mas os
músculos afrouxavam. Realmente não quisera matar um cristão:
procedera como quando, a montar brabo, evitava galhos e
espinhos. Ignorava os movimentos que fazia na sela. Alguma
coisa o empurrava para a direita ou para a esquerda. Era essa
coisa que ia partindo a cabeça do amarelo. Se ela tivesse
demorado um minuto, Fabiano seria um cabra valente. Não
demorara. A certeza do perigo surgira - e ele estava
indeciso, de olho arregalado, respirando com dificuldade, um
espanto verdadeiro no rosto barbudo coberto de suor, o cabo
do facão mal seguro entre os dois dedos úmidos.
Tinha medo e repetia que estava em perigo, mas isto lhe
pareceu tão absurdo que se pôs a rir. Medo daquilo? Nunca
vira uma pessoa tremer assim. Cachorro. Ele não era dunga na
cidade? Não pisava os pés dos matutos, na feira?
Não botava gente na cadeia? Sem-vergonha, mofino.
Irritou-se. Porque seria que aquele safado batia os dentes
como um caititu? Não via que ele era incapaz de vingar-se?
Não via? Fechou a cara. A idéia do perigo ia-se sumindo. Que
perigo? Contra aquilo nem precisava facão, bastavam as unhas.
Agitando os chocalhos e os látegos, chegou a mão esquerda,
grossa e cabeluda, à cara do polícia, que recuou e se
encostou a uma catingueira. Se não fosse a catingueira, o
infeliz teria caído.
Fabiano pregou nele os olhos ensangüentados, meteu o facão
na bainha. Podia matá-lo com as unhas. Lembrou-se da surra
que levara e da noite passada na cadeia. Sim senhor. Aquilo
ganhava dinheiro para maltratar as criaturas inofensivas.
Estava certo? O rosto de Fabiano contraía-se, medonho, mais
feio que um focinho. Hem? Estava certo? Bulir com as
pessoas que não fazem mal a ninguém. Porque? Sufocava-se, as
rugas da testa aprofundavam-se, os pequenos olhos azuis
abriam-se demais, numa interrogação dolorosa.
O soldado encolhia-se, escondia-se por detrás da árvore. E
Fabiano cravava as unhas nas palmas calosas. Desejava ficar
cego outra vez. Impossível readquirir aquele instante de
inconsciência. Repetia que a arma era desnecessária, mas
tinha a certeza de que não conseguiria utilizá-la - e apenas
queria enganar-se. Durante um minuto a cólera que sentia por
se considerar impotente foi tão grande que recuperou a força
e avançou para o inimigo.
A raiva cessou, os dedos que feriam a palma descerraram-se
- e Fabiano estacou desajeitado, como um pato, o corpo
amolecido.
Grudando-se à catingueira, o soldado apresentava apenas um
braço, uma perna e um pedaço da cara, mas esta banda de homem
começava a crescer aos olhos do vaqueiro. E a outra parte, a
que estava escondida, devia ser maior. Fabiano tentou afastar
a idéia absurda: - Como a gente pensa coisas bestas!
Alguns minutos antes não pensava em nada, mas agora suava
frio e tinha lembranças insuportáveis. Era um sujeito
violento, de coração perto da goela. Não, era um cabra que se
arreliava algumas vezes - e quando isto acontecia, sempre se
dava mal. Naquela tarde, por exemplo, se não tivesse perdido
a paciência e xingado a mãe da autoridade, não teria dormido
na cadeia depois de agüentar zinco no lombo. Dois
excomungados tinham-lhe caído em cima, um ferro batera-lhe no
peito, outro nas costas, ele se arrastara tiritando como um
frango molhado. Tudo porque se esquentara e dissera uma
palavra inconsideradamente. Falta de criação. Tinha lá culpa?
O sarapatel se formara, o cabo abrira caminho entre os
feirantes que se apertavam em redor: - "Toca pra frente".
Depois surra e cadeia, por causa de uma tolice. Ele, Fabiano,
tinha sido provocado. Tinha ou não tinha? Salto de reiúna em
cima da alpercata. Impacientara-se e largara o palavrão.
Natural, xingar a mãe de uma pessoa não vale nada, porque
todo o mundo vê logo que a gente não tem a intenção de
maltratar ninguém. Um ditério sem importância. O amarelo
devia saber isso. Não sabia. Saíra-se com quatro pedras
– figura.
na mão, apitara. E Fabiano comera da banda podre. -
"Desafasta".
Deu um passo para a catingueira. Se ele gritasse agora
"desafasta", que faria o polícia? Não se afastaria, ficaria
colado ao pé de pau. Uma lazeira, a gente podia xingar a mãe
dele. Mas então ... Fabiano estirava o beiço e
rosnava. Aquela coisa arriada e achacada metia as pessoas na
cadeia, dava-lhes surra. Não entendia. Se fosse uma criatura
de saúde e muque, estava certo. Enfim apanhar do governo não
é desfeita, e Fabiano até sentiria orgulho ao recordar-se da
aventura. Mas aquilo... Soltou uns grunhidos. Porque motivo o
governo aproveitava gente assim? Só se ele tinha receio de
empregar tipos direitos. Aquela cambada só servia para morder
as pessoas inofensivas. Ele, Fabiano, seria tão ruim se
andasse fardado? Iria pisar os pés dos trabalhadores e
dar pancada neles? Não iria.
Aproximou-se lento, fez uma volta, achou-se em frente do
polícia, que embasbacou, apoiado ao tronco, a pistola e o
punhal inúteis. Esperou que ele se mexesse. Era uma lazeira,
certamente, mas vestia farda e não ia ficar assim, os olhos
arregalados, os beiços brancos, os dentes chocalhando como
bilros. Ia bater o pé, gritar, levantar a espinha, plantarlhe
o salto da reiúna em cima da alpercata. Desejava que ele
fizesse isso. A idéia de ter sido insultado, preso, moído por
uma criatura mofina era insuportável. Mirava-se
naquela covardia, via-se mais lastimoso e miserável que
o outro.
Baixou a cabeça, coçou os pêlos ruivos do queixo. Se o
soldado não puxasse o facão, não gritasse, ele, Fabiano,
seria um vivente muito desgraçado.
Devia sujeitar-se àquela tremura, àquela amarelidão? Era um
bicho resistente, calejado. Tinha nervo, queria brigar,
metera-se em espalhafatos e saíra de crista levantada.
Recordou-se de lutas antigas, em danças com fêmea e cachaça.
Uma vez, de lambedeira em punho, espalhara a negrada. Aí
Sinha Vitória começara a gostar dele. Sempre fora reimoso.
Iria esfriando com a idade? Quantos anos teria? Ignorava, mas
certamente envelhecia e fraquejava. Se possuísse espelhos,
veria rugas e cabelos brancos. Arruinado, um caco. Não
sentira a transformação, mas estava-se acabando.
O suor umedeceu-lhe as mãos duras. Então? Suando com medo
de uma peste que se escondia tremendo? Não era uma
infelicidade grande, a maior das infelicidades? Provavelmente
não se esquentaria nunca mais, passaria o resto da vida assim
mole e ronceiro. Como a gente muda! Era. Estava mudado. Outro
indivíduo, muito diferente do Fabiano que levantava poeira
nas salas de dança. Um Fabiano bom para agüentar facão no
lombo e dormir na cadeira.
Virou a cara, enxergou o facão de rasto. Aquilo nem era
facão, não servia para nada. Ora não servia!
- Quem disse que não servia?
Era um facão verdadeiro, sim senhor, movera-se como um raio
cortando palmas de quipá. E estivera a pique de rachar o
quengo de um sem-vergonha. Agora dormia na bainha rota, era
um troço inútil, mas tinha sido uma arma. Se aquela coisa
tivesse durado mais um segundo, o polícia estaria morto.
Imaginou-o assim, caído, as pernas abertas, os bugalhos
apavorados, um fio de sangue empastando-lhe os cabelos,
formando um riacho entre os seixos da vereda. Muito bem! Ia
arrastá-lo para dentro da catinga, entregá-lo aos urubus.
E não sentiria remorso. Dormiria com a mulher, sossegado, na
cama de varas. Depois gritaria aos meninos, que precisavam
criação. Era um homem, evidentemente.
Aprumou-se, fixou os olhos nos olhos do polícia, que se
desviaram. Um homem. Besteira pensar que ia ficar murcho o
resto da vida. Estava acabado? Não estava. Mas para que
suprimir aquele doente que bambeava e só queria ir para
baixo? Inutilizar-se por causa de uma fraqueza fardada que
vadiava na feira e insultava os pobres! Não se inutilizava,
não valia a pena inutilizar-se. Guardava a sua força.
Vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim
ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.
Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o
soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o
caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.
- Governo é governo.
Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao
soldado amarelo.
Capítulo XII - O Mundo Coberto de Penas
O MULUNGU do bebedouro cobria-se de arribações. Mau sinal,
provavelmente o sertão ia pegar fogo. Vinham em bandos,
arranchavam-se nas árvores da beira do rio, descansavam,
bebiam e, como em redor não havia comida, seguiam viagem para
o sul. O casal agoniado sonhava desgraças. O sol chupava os
poços, e aquelas excomungadas levavam o resto da água,
queriam matar o gado.
Sinha Vitória falou assim, mas Fabiano resmungou, franziu a
testa, achando a frase extravagante. Aves matarem bois e
cabras, que lembrança! Olhou a mulher, desconfiado, julgou
que ela estivesse tresvariando. Foi sentar-se no banco do
copiar, examinou o céu limpo, cheio de claridades de mau
agouro, que a sombra das arribações cortava. Um bicho de
penas matar o gado! Provavelmente Sinha Vitória não estava
regulando.
Fabiano estirou o beiço e enrugou mais a testa suada:
impossível compreender a intenção da mulher. Não atinava. Um
bicho tão pequeno! Achou a coisa obscura e desistiu de
aprofundá-la. Entrou em casa, trouxe o aió, preparou um
cigarro, bateu com o fuzil na pedra, chupou uma tragada
longa. Espiou os quatro cantos, ficou alguns minutos voltado
para o norte, coçando o queixo.
- Chi! Que fim de mundo!
Não permaneceria ali muito tempo. No silêncio comprido só
se ouvia um rumor de asas.
Como era que Sinha Vitória tinha dito? A frase dela tornou ao
espírito de Fabiano e logo a significação apareceu. As
arribações bebiam a água. Bem. O gado curtia sede e morria.
Muito bem. As arribações matavam o gado. Estava certo.
Matutando, a gente via que era assim, mas Sinha Vitória
largava tiradas embaraçosas. Agora Fabiano percebia o que ela
queria dizer. Esqueceu a infelicidade próxima, riu-se
encantado com a esperteza de Sinha Vitória. Uma pessoa como
aquela valia ouro. Tinha idéias, sim senhor, tinha muita
coisa no miolo. Nas situações difíceis encontrava saída.
Então! Descobrir que as arribações matavam o gado! E matavam.
Aquela hora o mulungu do bebedouro, sem folhas e sem flores,
uma barrancharia pelada, enfeitava-se de penas.
Desejou ver aquilo de perto, levantou-se, botou o aió a
tiracolo, foi buscar o chapéu de couro e a espingarda de
pederneira. Desceu o copiar, atravessou o pátio, avizinhou-se
da ladeira pensando na cachorra Baleia. Coitadinha. Tinhamlhe
aparecido aquelas coisas horríveis na boca, o pêlo caíra,
e ele precisara matá-la. Teria procedido bem? Nunca havia
refletido nisso. A cachorra estava doente. Podia consentir
que ela mordesse os meninos? Podia consentir? Loucura expor
as crianças à hidrofobia. Pobre da Baleia. Sacudiu a cabeça
para afastá-la do espírito. Era o diabo daquela espingarda
que lhe trazia a imagem da cadelinha. A espingarda, sem
dúvida. Virou o rosto defronte das pedras do fim do pátio,
onde Baleia aparecera fria, inteiriçada, com os olhos comidos
pelos urubus.
Alargou o passo, desceu a ladeira, pisou a terra de
aluvião, aproximou-se do bebedouro. Havia um bater doido de
asas por cima da poça de água preta, a garrancheira do
mulungu estava completamente invisível. Pestes. Quando elas
desciam do sertão, acabava-se tudo. O gado ia finar-se, até
os espinhos secariam.
Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se
noutro lugar, recomeçar a vida. Levantou a espingarda, puxou
o gatilho sem ponta,=~,ria. Cinco ou seis aves caíram no
chão, o resto se espantou, os galhos queimados surgiram
nus. Mas pouco a pouco se foram cobrindo, aquilo não tinha
fim.
Fabiano sentou-se desanimado na ribanceira do bebedouro,
carregou lentamente a espingarda com chumbo miúdo e não socou
a bucha, para a carga espalhar-se e alcançar muitos
inimigos. Novo tiro, novas quedas, mas isto não deu nenhum
prazer a Fabiano. Tinha ali comida para dois ou três dias; se
possuísse munição, teria comida para semanas e mês.
Examinou o polvarinho e o chumbeira, pensou na viagem,
estremeceu. Tentou iludir-se, imaginou que ela não se
realizaria se ele não a provocasse com idéias ruins.
Reacendeu o cigarro, procurou distrair-se falando baixo.
Sinha Terta era pessoa de muito saber naquelas beiradas. Como
andariam as contas com o patrão? Estava ali o que ele não
conseguiria nunca decifrar. Aquele negócio de juros engolia
tudo, e afinal o branco ainda achava que fazia favor. O
soldado amarelo...
Fabiano, encaiporado, fechou as mãos e deu murros na coxa.
Diabo. Esforçava-se por esquecer uma infelicidade, e vinham
outras infelicidades. Não queria lembrar-se do patrão nem do
soldado amarelo. Mas lembrava-se, com desespero, enroscandose
como uma cascavel assanhada. Era um infeliz, era a
criatura mais infeliz do mundo. Devia ter ferido naquela
tarde o soldado amarelo, devia tê-lo cortado a facão. Cabra
ordinário, mofino, encolhera-se e ensinara o caminho.
Esfregou a testa suada e enrugada. Para que recordar
vergonha? Pobre dele. Estava então decidido que viveria
sempre assim? Cabra safado, mole. Se não fosse tão fraco,
teria entrado no cangaço e feito misérias. Depois levaria um
tiro de emboscada ou envelheceria na cadeia,
cumprindo sentença, mas isto não era melhor que acabar-se
numa beira de caminho, assando no calor, a mulher e os filhos
acabando-se também. Devia ter furado o pescoço do amarelo com
faca de ponta, devagar. Talvez estivesse preso e respeitado,
um homem respeitado, um homem. Assim como estava, ninguém
podia respeitá-lo. Não era homem, não era nada. Agüentava
zinco no lombo e não se vingava.
- Fabiano, meu filho, tem coragem. Tem vergonha, Fabiano.
Mata o soldado amarelo. Os soldados amarelos são uns
desgraçados que precisam morrer. Mata o soldado amarelo e os
que mandam nele.
Como gesticulava com furor, gastando muita energia, pôs-se
a resfolegar e sentiu sede. Pela cara vermelha e queimada o
suor corria, tornava mais escura a barba ruiva. Desceu da
ribanceira, agachou-se à beira da água salobra, pôs-se a
beber ruidosamente nas palmas das mãos. Uma nuvem de
arribações voou assustada. Fabiano levantou-se, um brilho de
indignação nos olhos. - Miseráveis.
A cólera dele se voltava de novo contra as aves. Tornou a
sentar-se na ribanceira, atirou muitas vezes nos ramos do
mulungu, o chão ficou todo coberto de cadáveres. Iam ser
salgados, estendidos em cordas. Tencionou aproveitá-los como
alimento na viagem próxima. Devia gastar o resto do dinheiro
em chumbo e pólvora, passar um dia no bebedouro, depois
largar-se pelo mundo. Seria necessário mudar-se? Apesar de
saber perfeitamente que era necessário, agarrou-se a
esperanças frágeis. Talvez a seca não viesse,
talvez chovesse. Aqueles malditos bichos é que lhe faziam
medo. Procurou esquecê-los. Mas como poderia esquecê-los se
estavam ali, voando-lhe em torno da cabeça, agitando-se na
lama, empoleirados nos galhos, espalhados no chão, mortos? Se
não fossem eles, a seca não existiria. Pelo menos não
existiria naquele momento: viria depois, seria mais curta.
Assim, começava logo - e Fabiano sentia-a de longe. Sentia-a
como se ela já tivesse chegado, experimentava
adiantadamente a fome, a sede, as fadigas imensas das
retiradas. Alguns dias antes estava sossegado,
preparando látegos, consertando cercas. De repente, um
risco no céu, outros riscos, milhares de riscos
juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar
destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes
minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas
e a vermelhidão sinistra das tardes. Agora confirmavam-se as
suspeitas.
- Miseráveis.
As bichas excomungadas eram a causa da seca. Se pudesse
matá-las, a seca se extinguiria. Mexeu-se com violência,
carregou a espingarda furiosamente. A mão grossa, cabeluda,
cheia de manchas e descascada, tremia sacudindo a vareta, -
Pestes.
Impossível dar cabo daquela praga. Estirou os olhos pela
campina, achou-se isolado. Sozinho num mundo coberto de
penas, de aves que iam comê-lo. Pensou na mulher e suspirou.
Coitada de Sinha Vitória, novamente nos descampados,
transportando o baú de folha. Uma pessoa de tanto juízo
marchar na terra queimada, esfolar os pés nos seixos, era
duro. As arribações matavam o gado. Como tinha Sinha Vitória
descoberto aquilo. Difícil. Ele, Fabiano, espremendo os
miolos. Não diria semelhante frase. Sinha Vitória
fazia contas direito : sentava-se na cozinha, consultava
montes de sementes de várias espécies, correspondentes a milréis,
tostões e vinténs. E acertava. As contas do patrão eram
diferentes, arranjadas a tinta e contra o vaqueiro, mas
Fabiano sabia que elas estavam erradas e o patrão
queria enganá-lo. Enganava. Que remédio? Fabiano,
um desgraçado, um cabra, dormia na cadeia e agüentava zinco
no lombo. Podia reagir? Não podia. Um cabra. Mas as contas de
Sinha Vitória deviam ser exatas. Pobre de Sinha Vitória. Não
conseguiria nunca estender os ossos numa cama, o único desejo
que tinha. Os outros não se deitavam em camas? Receando
magoá-la, Fabiano concordava com ela, embora aquilo fosse um
sonho. Não poderiam dormir como gente. E agora iam ser
comidos pelas arribações.
Desceu da ribanceira, apanhou lentamente os cadáveres,
meteu-os no aió, que ficou cheio, empanzinado. Retirou-se
devagar. Ele, Sinha Vitória e os dois meninos comeriam as
arribações.
Se a cachorra Baleia estivesse viva, iria regalar-se.
Porque seria que o coração dele se apertava? Coitadinha da
cadela. Matara-a forçado, por causa da moléstia. Depois
voltara aos látegos, às cercas, às contas embaraçadas do
patrão. Subiu a ladeira, avizinhou-se dos juazeiros. Junto a
raiz de um deles a pobrezinha gostava de espojar-se, cobrirse
de garranchos e folhas secas. Fabiano suspirou, sentiu um
peso enorme por dentro. Se tivesse cometido um erro? Olhou a
planície torrada, o morro onde os preás saltavam,
confessou às catingueiras e aos alastrados que o animal
tivera hidrofobia, ameaçara as crianças. Matara-o por isso.
Aqui as idéias de Fabiano atrapalharam-se: a cachorra
misturou-se com as arribações, que não se distinguiam da
seca. Ele, a mulher e os dois meninos seriam comidos. Sinha
Vitória tinha razão : era atilada e percebia as coisas de
longe. Fabiano arregalava os olhos e desejava continuar a
admirá-la. Mas o coração grosso, como um cururu, enchia-se
com a lembrança da cadela. Coitadinha, magra, dura,
inteiriçada, os olhos arrancados pelos urubus.
Diante dos juazeiros, Fabiano apressou-se, Sabia lá se a alma
de Baleia andava por ali, fazendo visagem?
Chegou-se a casa, com medo. Ia escurecendo, e àquela hora
ele sentia sempre uns vagos terrores. Ultimamente vivia
esmorecido, mofino, porque as desgraças eram muitas.
Precisava consultar Sinha Vitória, combinar a viagem,
livrar-se das arribações, explicar-se, convencer-se de que
não praticara injustiça matando a cachorra. Necessário
abandonar aqueles lugares amaldiçoados. Sinha Vitória
pensaria como ele.
Capítulo XIII – Fuga
A VIDA na fazenda se tornara difícil. Sinha Vitória benziase
tremendo, manejava o rosário, mexia os beiços rezando
rezas desesperadas. Encolhido no banco do copiar, Fabiano
espiava a catinga amarela, onde as folhas secas se
pulverizavam, trituradas pelos redemoinhos, e os garranchos
se torciam, negros, torrados. No céu azul as últimas
arribações tinham desaparecido. Pouco a pouco os bichos se
finavam, devorados pelo carrapato. E Fabiano resistia,
pedindo a Deus um milagre.
Mas quando a fazenda se despovoou, viu que tudo estava
perdido, combinou a viagem com a mulher, matou o bezerro
morrinhento que possuíam, salgou a carne, largou-se com a
família, sem se despedir do amo. Não poderia nunca liquidar
aquela dívida exagerada. Só lhe restava jogar-se ao mundo,
como negro fugido.
Saíram de madrugada. Sinha Vitória meteu o braço pelo
buraco da parede e fechou a porta da frente com a taramela.
Atravessaram o pátio, deixaram na escuridão o chiqueiro e o
curral, vazios, de porteiras abertas, o carro de bois que
apodrecia, os juazeiros. Ao passar junto às pedras onde os
meninos atiravam cobras mortas, Sinha Vitória lembrou-se da
cachorra Baleia, chorou, mas estava invisível e ninguém
percebeu o choro.
Desceram a ladeira, atravessaram o rio seco, tomaram rumo
para o sul. Com a fresca da madrugada, andaram bastante, em
silêncio, quatro sombras no caminho estreito coberto de
seixos miúdos - os meninos à frente, conduzindo trouxas de
roupa, Sinha Vitória sob o baú de folha pintada e a cabaça de
água, Fabiano atrás, de facão de rasto e faca de ponta, a
cuia pendurada por uma correia amarrada ao cinturão, o aió a
tiracolo, a espingarda de pederneira num ombro, o saco da
matalotagem no outro. Caminharam bem três léguas antes que a
barra do nascente aparecesse Fizeram alto. E Fabiano depôs no
chão parte da carga, olhou o céu, as mãos em pala na
testa. Arrastara-se até ali na incerteza de que aquilo fosse
realmente mudança. Retardara-se e repreendera os meninos, que
se adiantavam, aconselhara-os -a poupar forças. A verdade é
que não queria afastar-se da fazenda. A viagem parecia-lhe
sem jeito, nem acreditava nela. Preparara-a lentamente,
adiara-a, tornara a prepará-la, e só se resolvera a partir
quando estava definitivamente perdido. Podia continuar a
viver num cemitério? Nada o prendia àquela terra dura,
acharia um lugar menos seco para enterrar-se. Era o que
Fabiano dizia, pensando em coisas alheias:" o chiqueiro e o
curral, que precisavam conserto, o cavalo de fábrica, bom
companheiro, a égua alazã, as catingueiras, as panelas de
losna, as pedras da cozinha, a cama de varas. E os pés dele
esmoreciam, as alpercatas calavam-se na escuridão. Seria
necessário largar tudo? As alpercatas chiavam de novo no
caminho coberto de seixos.
Agora Fabiano examinava o céu, a barra que tingia o
nascente, e não queria convencer-se da realidade. Procurou
distinguir qualquer coisa diferente da vermelhidão que todos
os dias espiava, com o coração aos baques. As mãos grossas,
por baixo da aba curva do chapéu, protegiam-lhe os olhos
contra a claridade e tremiam.
Os braços penderam, desanimados.
- Acabou-se.
Antes de olhar o céu, já sabia que ele estava negro num
lado, cor de sangue no outro, e ia tornar-se profundamente
azul. Estremeceu como se descobrisse uma coisa muito ruim.
Desde o aparecimento das arribações vivia desassossegado.
Trabalhava demais para não perder o sono. Mas no meio do
serviço um arrepio corria-lhe no espinhaço, à noite acordava
agoniado e encolhia-se num canto da cama de varas, mordido
pelas pulgas, conjecturando misérias.
A luz aumentou e espalhou-se na campina. Só aí principiou a
viagem. Fabiano atentou na mulher e nos filhos,- apanhou a
espingarda e o saco dos mantimentos, ordenou a marcha com uma
interjeição áspera.
Afastaram-se rápidos; como se alguém os tangesse, e as
alpercatas de Fabiano iam quase tocando os calcanhares dos
meninos. A lembrança da cachorra Baleia picava-o,
intolerável. Não podia livrar-se dela. Os mandacarus e os
alastrados vestiam a campina,, espinho, só espinho. E
Baleia aperreava-o. Precisava fugir daquela
vegetação inimiga.
Os meninos corriam. Sinha Vitória procurou com a vista o
rosário de contas brancas e azuis arrumado entre os peitos,
mas, com o movimento que fez, o baú de folha pintada ia
caindo. Aprumou-se e endireitou o baú, remexeu os beiços numa
oração. Deus Nosso Senhor protegeria os inocentes. Sinha
Vitória fraquejou, uma ternura imensa encheu-lhe o coração.
Reanimou-se, tentou libertar-se dos pensamentos tristes
e conversar com o marido por monossílabos. Apesar de ter boa
ponta de língua, sentia um aperto na garganta e não poderia
explicar-se. Mas achava-se desamparada e miúda na solidão,
necessitava um apoio, alguém que lhe desse coragem.
Indispensável ouvir qualquer som. A manhã, sem pássaros, sem
folhas e sem vento, progredia num silêncio de morte. A faixa
vermelha desaparecera, diluíra-se no azul que enchia o céu.
Sinha Vitória precisava falar. Se ficasse calada, seria como
um pé de mandacaru, secando, morrendo. Queria enganar-se,
gritar, dizer que era forte, e a quentura medonha, as árvores
transformadas em garranchos, a imobilidade e o silêncio não
valiam nada. Chegou-se a Fabiano, amparou-o e amparou-se,
esqueceu os objetos próximos, os espinhos, as arribações, os
urubus que farejavam carniça. Falou no passado, confundiu-o
com o futuro. Não poderia voltar a ser o que já tinham sido?
Fabiano hesitou, resmungou, como fazia sempre que lhe
dirigiam palavras incompreensíveis. Mas achou bom que Sinha
Vitória tivesse puxado conversa. Ia num desespero, o saco da
comida e o aió começavam a pesar excessivamente.
Sinha Vitória fez a pergunta, Fabiano matutou e andou bem
meia légua sem sentir. A princípio quis responder que
evidentemente eles eram o que tinham sido; depois achou que
estavam mudados, mais velhos e mais fracos. Eram outros, para
bem dizer. Sinha Vitória insistiu. Não seria bom tornarem a
viver como tinham vivido, muito longe? Fabiano agitava a
cabeça, vacilando. Talvez fosse, talvez não fosse.
Cochicharam uma conversa longa e entrecortada, cheia de malentendidos
e repetições. Viver como tinham vivido, numa
caSinha protegida pela bolandeira de seu Tomás. Discutiram e
acabaram reconhecendo que aquilo não valeria a pena, porque
estariam sempre assustados, pensando na seca. Aproximavam-se
agora dos lugares habitados, haveriam de achar morada. Não
andariam sempre à toa, como ciganos. O vaqueiro ensombrava-se
com a idéia de que se dirigia a terras onde talvez não
houvesse gado para tratar. Sinha Vitória tentou sossegá-lo
dizendo que ele poderia entregar-se a outras ocupações, e
Fabiano estremeceu, voltou-se, estirou os olhas em direção à
fazenda abandonada. Recordou-se dos animais feridos e logo
afastou a lembrança. Que fazia ali virado para trás? Os
animais estavam mortos. Encarquilhou as pálpebras contendo as
lágrimas, uma grande saudade espremeu-lhe o coração, mas um
instante depois vieram-lhe ao espírito figuras insuportáveis:
o patrão, o soldado amarelo, a cachorra Baleia inteiriçada
junto às pedras do fim do pátio.
Os meninos sumiam-se numa curva do caminho.- Fabiano
adiantou-se para alcançá-los. Era preciso aproveitar a
disposição deles, deixar que andassem à vontade. Sinha
Vitória acompanhou o marido, chegou-se aos filhos. Dobrando o
cotovelo da estrada, Fabiano sentia distanciar-se um pouco
dos lugares onde tinha vivido alguns anos; o patrão, o
soldado amarelo e a cachorra Baleia esmoreceram no seu
espírito.
E a conversa recomeçou. Agora Fabiano estava meio otimista.
Endireitou o saco da comida, examinou o rosto carnudo e as
pernas grossas da mulher. Bem. Desejou fumar. Como segurava
a boca do saco e a coronha da espingarda, não pôde realizar
o desejo. Temeu arriar, não prosseguir na caminhada.
Continuou a tagarelar, agitando a cabeça para afugentar uma
nuvem que, vista de perto, escondia" o patrão, o soldado
amarelo e a cachorra Baleia. Os pés calosos, duros como
cascos, metidos em alpercatas novas, caminhariam meses. Ou
não caminhariam? Sinha Vitória achou que sim. Fabiano
agradeceu a opinião dela e gabou-lhe as pernas grossas, as
nádegas volumosas, os peitos cheios. As bochechas de Sinha
Vitória avermelharam-se e Fabiano repetiu com entusiasmo o
elogio. Era. Estava boa, estava taluda, poderia andar muito.
Sinha Vitória riu e baixou os olhos. Não era tanto como ele
dizia não. Dentro de pouco tempo estaria magra, de seios
bambos. Mas recuperaria carnes. E talvez esse lugar
para onde iam fosse melhor que os outros onde tinham estado.
Fabiano estirou o beiço, duvidando. Sinha Vitória combateu a
dúvida. Porque não haveriam de ser gente, possuir uma cama
igual à de seu Tomás da bolandeira? Fabiano franziu a testa:
lá vinham os despropósitos. Sinha Vitória insistiu e dominouo.
Porque haveriam de ser sempre desgraçados, fugindo no mato
como bichos? Com certeza existiam no mundo coisas
extraordinárias. Podiam viver escondidos, como bichos?
Fabiano respondeu que não podiam.
- O mundo é grande.
Realmente para eles era bem pequeno, mas afirmavam que era
grande - e marchavam, meio confiados, meio inquietos. Olharam
os meninos, que olhavam os montes distantes, onde havia seres
misteriosos. Em que estariam pensando? zumbiu Sinha Vitória.
Fabiano estranhou a pergunta e rosnou uma objeção. Menino é
bicho miúdo, não pensa. Mas Sinha Vitória renovou a pergunta
- e a certeza do marido abalou-se. Ela devia ter razão. Tinha
sempre razão. Agora desejava saber que iriam fazer os filhos
quando crescessem.
- Vaquejar, opinou Fabiano.
Sinha Vitória, com uma careta enjoada, balançou a cabeça
negativamente, arriscando-se a derrubar o baú de folha. Nossa
Senhora os livrasse de semelhante desgraça. Vaquejar, que
idéia! Chegariam a uma terra distante, esqueceriam a catinga
onde havia montes baixos, cascalhos, rios secos, espinho,
urubus, bichos morrendo, gente morrendo. Não voltariam nunca
mais, resistiriam à saudade que ataca os sertanejos na mata.
Então eles eram bois para morrer tristes por falta
de espinhos? Fixar-se-iam muito longe, adotariam costumes
diferentes.
Fabiano ouviu os sonhos da mulher, deslumbrado, relaxou os
músculos, e o saco da comida escorregou-lhe no ombro.
Aprumou-se, deu um puxão à carga. A conversa de Sinha Vitória
servira muito: haviam caminhado léguas quase sem sentir. De
repente veio a fraqueza. Devia ser fome. Fabiano ergueu a
cabeça, piscou os olhos por baixo da aba negra e queimada do
chapéu de couro.
Meio-dia, pouco mais ou menos. Baixou os olhos encandeados,
procurou descobrir na planície. uma sombra ou sinal de água.
Estava realmente com um buraco no estômago. Endireitou o saco
de novo e, para conservá-lo em equilíbrio, andou pendido, um
ombro alto, outro baixo. O otimismo de Sinha Vitória já não
lhe fazia mossa. Ela ainda se agarrava a fantasias. Coitada.
Armar semelhantes planos, assim bamba, o peso do baú e da
cabaça enterrando-lhe o pescoço no corpo.
Foram descansar sob os garranchos de uma quixabeira,
mastigaram punhados de farinha e pedaços de carne, beberam na
cuia uns goles de água. Na testa de Fabiano o suor secava,
misturando-se a poeira que enchia as rugas fundas, embebendose
na correia do chapéu. A tontura desaparecera, o estômago
sossegara. Quando partissem, a cabaça não envergaria o
espinhaço de Sinha Vitória. Instintivamente procurou no
descampado indício de fonte. Um friozinho agudo arrepiou-o.
Mostrou os dentes sujos num riso infantil. Como podia ter
frio com semelhante calor? Ficou um instante assim besta,
olhando os filhos, a mulher e a bagagem pesada. O menino
mais velho esbrugava um osso com apetite. Fabiano lembrou-se
da cachorra Baleia, outro arrepio correu-lhe a espinha, o
riso besta esmoreceu.
Se achassem água ali por perto, beberiam muito, sairiam
cheios, arrastando os pés. Fabiano comunicou isto a Sinha
Vitória e indicou uma depressão do terreno. Era um bebedouro,
não era? Sinha Vitória estirou o beiço, indecisa, e Fabiano
afirmou o que havia perguntado. Então ele não conhecia
aquelas paragens? Estava a falar variedades? Se a mulher
tivesse concordado, Fabiano arrefeceria, pois lhe faltava
convicção; como Sinha Vitória tinha dúvidas, Fabiano
exaltava-se, procurava incutir-lhe coragem. Inventava o
bebedouro, descrevia-o, mentia sem saber que estava mentindo.
E Sinha Vitória excitava-se, transmitia-lhe esperanças.
Andavam por lugares conhecidos. Qual era o emprego de
Fabiano? Tratar de bichos, explorar os arredores, no lombo de
um cavalo. E ele explorava tudo. Para lá dos montes afastados
havia outro mundo, um mundo temeroso; mas para cá, na
planície, tinha de cor plantas e animais, buracos e pedras.
Os meninos deitaram-se e pegaram no sono. Sinha Vitória
pediu o binga ao companheiro e acendeu o cachimbo. Fabiano
preparou um cigarro. Por enquanto estavam sossegados. O
bebedouro indeciso tornara-se realidade. Voltaram a cochichar
projetos, as fumaças do cigarro e do cachimbo misturaram-se.
Fabiano insistiu nos seus conhecimentos topográficos, falou
no cavalo de fábrica. Ia morrer na certa, um animal tão bom.
Se tivesse vindo com eles, transportaria a bagagem. Algum
tempo comeria folhas secas, mas além dos montes encontraria
alimento verde. Infelizmente pertencia ao fazendeiro - e
definhava, sem ter quem lhe desse a ração. Ia morrer o amigo,
lazarento e com esparavões, num canto de cerca, vendo os
urubus chegarem banzeiros, saltando, os bicos ameaçando-lhe
os olhos. A lembrança das aves medonhas, que ameaçavam com os
bicos pontudos os olhos de criaturas vivas, horrorizou
Fabiano. Se elas tivessem paciência, comeriam tranqüilamente
a carniça. Não tinham paciência aquelas pestes vorazes que
voavam lá em cima, fazendo curvas.
- Pestes.
Voavam sempre, não se podia saber donde vinha tanto urubu.
- Pestes.
Olhou as sombras movediças que enchiam a campina. Talvez
estivessem fazendo círculos em redor do pobre cavalo
esmorecido num canto de cerca. Os olhos de Fabiano se
umedeceram. Coitado do cavalo. Estava magro, pelado,
faminto. e arredondava uns olhos que pareciam de gente -
Pestes.
O que indignava Fabiano era o costume que os miseráveis
tinham de atirar bicadas aos olhos de criaturas que já não se
podiam defender. Ergueu-se, assustado, como se os bichos
tivessem descido do céu azul e andassem ali perto, num vôo
baixo, fazendo curvas cada vez menores em torno do seu corpo,
de Sinha Vitória e dos meninos.
Sinha Vitória percebeu-lhe a inquietação na cara torturada
e levantou-se também, acordou os. filhos, arrumou os picuás.
Fabiano retomou o carrego. Sinha Vitória desatou-lhe a
correia presa ao cinturão, tirou a cuia e emborcou-a na
cabeça do menino mais velho, sobre uma rodilha de molambos.
Em cima pôs uma trouxa. Fabiano aprovou o arranjo, sorriu,
esqueceu os urubus e o cavalo. Sim senhor. Que mulher!
Assim ele ficaria com a carga aliviada e o pequeno teria um
guarda-sol. O peso da cuia era uma insignificância, mas
Fabiano achou-se leve, pisou rijo e encaminhou-se ao
bebedouro. Chegariam lá antes da noite, beberiam,
descansariam, continuariam a viagem com o luar. Tudo isso era
duvidoso, mas adquiria consistência. E a conversa recomeçou,
enquanto o sol descambava.
- Tenho comido toicinho com mais cabelo, declarou Fabiano
desafiando o céu, os espinhos e os urubus.
- Não é? murmurou Sinha Vitória sem perguntar, apenas
confirmando o que ele dizia.
Pouco a pouco uma vida nova, ainda confusa, se foi esboçando.
Acomodar-se-iam num sítio pequeno, o que parecia difícil a
Fabiano, criado solto no mato. Cultivariam um pedaço de
terra. Mudarse-iam depois para uma cidade, e os meninos
freqüentariam escolas, seriam diferentes deles. Sinha Vitória
esquentava-se. Fabiano ria, tinha desejo de esfregar as mãos
agarradas a boca do saco e à coronha da espingarda de
pederneira.
Não sentia a espingarda, o saco, as pedras miúdas que lhe
entravam nas alpercatas, o cheiro de carniças que empestavam
o caminho. As palavras de Sinha Vitória encantavam-no. Iriam
para diante, alcançariam uma terra desconhecida. Fabiano
estava contente e acreditava nessa terra, porque não sabia
como ela era nem onde era. Repetia docilmente as palavras de
Sinha Vitória, as palavras que Sinha Vitória murmurava porque
tinha confiança nele. E andavam para o sul, metidos naquele
sonho. Uma cidade grande, cheia de pessoas fortes. Os meninos
em escolas, aprendendo coisas difíceis e necessárias. Eles
dois velhinhos, acabando-se como uns cachorros, inúteis,
acabando-se como Baleia. Que iriam fazer? Retardaram-se,
temerosos. Chegariam a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nela. E o sertão continuaria a mandar gente
para lá. O sertão mandaria para a cidade homens fortes,
brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois meninos.





Um comentário:

Anônimo disse...

Campeão!! Adoro o livro Vidas Secas pdf sem dúvida é leitura obrigatória. Um clássico de nossa literatura.