segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

J. KRISNAMURTI







J. KRISHNAMURTI



MEDITAÇÕES





A mente meditativa é silenciosa. Não é o silêncio que o pensamento pode imaginar;
não é o silêncio de um calmo anoitecer; é o silêncio que vem quando o pensamento
com todas as suas imagens, palavras e percepções - cessa completamente.
Esta mente meditativva é a mente verdadeiramente religiosa
- religiosidade que não é tocada pelas igrejas, os templos ou os cânticos.

A mente religiosa é a explosão do amor - de um amor que não conhece a separação. Para ele, o longe é perto. Não é o amor de um só, ou de muitos; é, antes, um estado de amor no qual toda a divisão desaparece. Tal como a beleza ele também não cabe na medida das palavras. E só a partir deste silêncio a mente meditativa actua.

A meditação é uma das maiores artes da vida - talvez a maior, e não é possível aprendê-la de alguém. Nisso reside a sua beleza. Não está sujeita a nenhuma técnica, e portanto a nenhuma autoridade. Aprendermos a respeito de nós mesmos, observando-nos, vendo o modo como andamos, como comemos, reparando no que dizemos, nas conversas fúteis e maldizentes, na inimizade, no ciúme... estarmos atentos a tudo isto, em nós mesmos, sem qualquer escolha, faz parte da meditação. Assim, a meditação pode acontecer quando estamos sentados num autocarro ou passeamos nos bosques cheios de luz e de sombras, quando escutamos o canto das aves, quando olhamos o rosto da nossa mulher ou do nosso filho.

É curioso como a meditação se torna uma constante presença: não há um fim nem um princípio para ela. É como uma gota de chuva: nela estão todos os regatos, os grandes rios, os mares e as quedas de água... A gota de chuva alimenta a terra e o homem; sem ela, a terra seria um deserto. Sem a meditação, também o coração se torna um deserto, um lugar abandonado.

Meditar é ver se o cérebro, com todas as suas atividades, todas as suas experiências, pode ficar inteiramente silencioso; sem ser forçado a isso, porque no momento em que se força, nasce a dualidade. A entidade que diz, «gostaria de ter experiências maravilhosas, portanto tenho de forçar o meu cérebro a ficar quieto» - não conseguirá aquietá-lo. Mas se começarmos a procurar descobrir, a reparar, a escutar todos os movimentos do pensamento, o seu condicionamento, os seus interesses, os seus medos, os seus desejos, observando como o cérebro funciona, então veremos que ele se toma extraordinariamente quieto; mas essa quietude não é entorpecimento: ele está extremamente ativo e, portanto, silencioso. Um poderoso dínamo a trabalhar perfeitamente quase não se ouve; só quando há fricção, há ruído.

Silêncio e amplidão interior andam juntos. A imensidade do silêncio é a imensidade da mente em que não existe um centro.

A meditação requer um trabalho de grande empenhamento. Requer a mais alta forma de disciplina - não a do conformismo, da imitação, da obediência - mas uma disciplina que nasce de uma atenção constante, não apenas às coisas que nos rodeiam exteriormente, mas também interiormente. Assim, a meditação não é uma atividade de isolamento. Ela é ação na vida quotidiana, que exige cooperação, sensibilidade e inteligência. Sem lançarmos a base de uma vida reta, a meditação toma-se uma fuga, e não tem portanto valor algum. Uma vida reta não consiste em seguir a «moralidade» social, mas em estar liberto da avidez, da inveja, da procura de poder - todos eles criadores de inimizade. Não é pela ação da vontade que podemos libertar-nos deles, mas pela atenção que lhes damos por meio do auto-conhecimento. Se não conhecemos as atividades do «eu», a meditação torna-se uma forma de excitação ligada aos sentidos, e é portanto de muito pouco significado.

Andar sempre à procura de .«experiências transcendentes», mais variadas e intensas, é uma forma de fugir da realidade presente, daquilo que é, ou seja, de nós mesmos, da nossa própria mente condicionada. Uma mente desperta, inteligente, livre, que necessidade tem dessas experiências? A luz é luz; não anda à procura de mais luz.

Se não sabemos o que é a meditação - e ela é realmente muito extraordinnária - somos como cegos num mundo de cores vivas, de sombras e de luz em movimento. Meditar não é uma actividade intelectual, uma actividade mental, mas quando o coração «inunda» a mente, esta adquire uma qualidade inteiramente nova; fica, então, verdadeiramente sem limites, não só na sua capacidade de pensar e de agir com eficiência, mas também no sentir que está a viver num espaço imenso, onde fazemos parte de tudo.
A meditação é o movimento do amor. Não é o amor de um só ou de muitos. É a água que brota, inesgotável, e que qualquer pessoa pode beber, por um jarro qualquer, seja ele de ouro ou de barro. E acontece uma coisa singular, que nenhuma droga ou auto-hipnose pode fazer acontecer: a mente como que entra em si mesma, começando àsuperfície e penetrando sempre mais profundamente - até que «profundidade» e «altura» perdem o seu significado e toda a forma de medida cessa. Neste estado há completa paz - não um contentamento que surge como uma recompensa - mas uma paz que é ordem, beleza e intensidade. Pode ser destruída - tal como se pode destruir uma flor - e contudo, devido à sua subtileza e ausência de rigidez, ela é indestrutível. Esta meditação não pode ser aprendida de outrem. Temos de «começar» sem nada saber sobre ela, e de ir sempre de inocência em inocência.

O solo em que a mente meditativa pode desabrochar é o solo da vida quotidiana, com os seus conflitos, dores e fugazes alegrias. Deve nascer aí, para criar ordem, e a partir desta prosseguir constantemente. Mas se estamos apenas interessados em criar ordem, então essa mesma «ordem» trará a sua própria limitação, e a mente ficará dela prisioneira. Em todo este movimento, temos, de algum modo, de «começar» a partir do outro lado, a partir da outra margem, sem estarmos sempre preocupados com esta margem ou em como atravessar o rio. Temos de dar um mergulho na água, sem saber nadar. E a beleza da meditação é que nunca sabemos onde estamos, onde é que vamos, qual é o fim.

A meditação não é algo diferente da vida de todos os dias; não é isolarmo-nos no canto de um quarto, para meditar durante dez minutos, e depois sairmos dali e irmos destruir o nosso semelhante - não só metaforicamente como de maneira real. Meditar é algo da maior seriedade. Podeis fazê-Io durante o dia, no emprego, com a família, quando dizeis a alguém «Amo-te», quando cuidais dos vossos filhos... Mas depois dais-Ihes uma «educação» para se tomarem soldados e matarem, para serem nacionalistas e prestarem culto à bandeira, «educando-os» para entrarem na armadilha do mundo moderno. Observar tudo isso, compreender a vossa participação nisso, faz parte da meditação. E quando assim meditais encontrareis nesse meditar uma beleza extraordinária; agireis correctamente em todos os momentos; e se num dado momento assim não for, não importa; tentareis de novo agir correctamente - sem perder tempo em lamentações. A meditação não está separada da vida, faz parte dela.

Se nos esforçamos por meditar, não estamos a meditar. Se nos esforçamos por sermos bons, a bondade não floresce. Se cultivamos a humildade, ela fica ausente. A meditação é a brisa que entra quando deixamos a janela aberta; mas se deliberadamente a mantemos aberta, com o propósito de atrair a brisa, ela não aparece.



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O Amor

Trad. Hugo Veloso



A NECESSIDADE de segurança nas relações gera inevitàvelmente o sofrimento e o mêdo. Essa busca de segurança atrai a insegurança. Já encontrastes alguma vez segurança em alguma de vossas relações? Já? A maioria de nós quer a segurança no amar e no ser amado, mas existirá amor quando cada um está a buscar a própria segurança, seu caminho próprio? Nós não somos amados porque não sabemos amar.
Que é o amor? Esta palavra está tão carregada e corrompida, que quase não tenho vontade de empregá-la. Todo o mundo fala de amor tôda revista e jornal e todo missionário discorre interminàvelmente sôbre o amor. Amo a minha pátria, amo o meu rei, amo um certo livro, amo aquela montanha, amo o prazer, amo minha espôsa, amo a Deus. O amor é uma idéia? Se é, pode então ser cultivado, nutrido, conservado com carinho, moldado, torcido de tôdas as maneiras possíveis. Quando dizeis que amais a Deus, que significa isso? Significa que amais uma projeção de vossa própria imaginação, uma projeção de vós mesmo, revestida de certas formas de respeitabilidade, conforme o que pensais ser nobre e sagrado; o dizer “Amo a Deus” é puro contra-censo. Quando adorais a Deus, estais adorando a vós mesmo; e isso não é amor.


Incapazes, que somos, de compreender essa coisa humana chamada amor, fugimos para abstrações. O amor pode ser a solução final de tôdas as dificuldades, problemas e aflições humanas. Assim, como iremos descobrir o que é o amor? Pela simples definição? A Igreja o tem definido de uma maneira, a sociedade de outra, e há também desvios e perversões de tôda espécie. A adoração de uma certa pessoa, o amor carnal, a troca de emoções, o companheirismo — será isso o que se entende por amor? Essa foi sempre a norma, o padrão, que se tornou tão pessoal, sensual, limitado, que as religiões declararam que o amor é muito mais do que isso. Naquilo que denominam “amor humano”, vêem elas que existe prazer, competição, ciúme, desejo de possuir, de conservar, de controlar, de influir no pensar de outrem e, sabendo da complexidade dessas coisas, dizem as religiões que deve haver outra espécie de amor — divino, belo, imaculado, incorruptível.

Em todo o mundo, certos homens chamados “santos" sempre sustentaram que olhar para uma mulher é pecaminoso; dizem que não podemos aproximar-nos de Deus se nos entregamos ao sexo e, por conseguinte, o negam, embora êles próprios se vejam devorados por êle. Mas, negando o sexo, êsses homens arrancam os próprios olhos, decepam a própria língua, uma vez que estão negando tôda a beleza da Terra. Deixaram famintos os seus corações e a sua mente; são entes humanos “desidratados”; baniram a beleza, porque a beleza está ligada à mulher.

Pode o amor ser dividido em sagrado e profano, humano e divino, ou só há amor? O amor é para um só e não para muitos? Se digo “Amo-te”, isso exclui o amor a outro? O amor é pessoal ou impessoal? Moral ou imoral? Familial ou não familial? Se amais a humanidade, podeis amar o indivíduo? O amor é sentimento? Emoção? O amor é prazer e desejo? Tôdas essas perguntas indicam — não é verdade? —que temos idéias a respeito do amor, idéias sôbre o que êle deve ou não deve ser, um padrão, um código criado pela cultura em que vivemos.

Assim, para examinarmos a questão do amor — o que é o amor — devemos primeiramente libertar-nos das incrustações dos séculos, lançar fora todos os ideais e ideologias sôbre o que ele deve ou não deve ser. Dividir qualquer coisa em o que deveria ser e o que é, é a maneira mais ilusória de enfrentar a vida.
Ora, como iremos saber o que é essa chama que denominamos amor — não a maneira de expressá-lo a outrem, porém o que de próprio significa? Em primeiro lugar, rejeitarei tudo o que a Igreja, a sociedade, meus pais e amigos, tôdas as pessoas e todos os livros disseram a seu respeito, porque desejo descobrir por mim mesmo o que ele é. Eis um problema imenso, que interessa a tôda a humanidade; há milhares de maneiras de defini-lo e eu próprio me vejo todo enredado neste ou naquele padrão, conforme a coisa que, no momento, me dá gôsto ou prazer. Por conseguinte, para compreender o amor, não devo em primeiro lugar libertar-me de minhas inclinações e preconceitos? Vejo-me confuso, dilacerado pelos meus próprios desejos e, assim, digo entre mim: “Primeiro, dissipa a tua confusão. Talvez tenhas possibilidade de descobrir o que é o amor através do que de não é".
O govêrno ordena: “Vai e mata, por amor à pátria!” Isso é amor? A religião preceitua: “Abandona o sexo, pelo amor de Deus”. Isso é amor? O amor é desejo? Não digais que não. Para a maioria de nós, e; desejo acompanhado de prazer, prazer derivado dos sentidos, pelo apêgo e o preenchimento sexual. Não sou contrário ao sexo, mas vêde o que de implica. O que o sexo vos dá momentâneamente é o total abandono de vós mesmo, mas, depois, voltais à vossa agitação; por conseguinte, desejais a constante repetição dêsse estado livre de preocupação, de problema, do “eu”. Dizeis que amais vossa espôsa. Nesse amor está implicado o prazer sexual, o prazer de terdes uma pessoa em casa para cuidar dos filhos e cozinhar. Dependeis dela; ela vos deu o seu corpo, suas emoções, seus incentivos, um certo sentimento de segurança e bem-estar. Um dia, ela vos abandona; aborrece-se ou foge com outro homem, -e eis destruído todo o vosso equilíbrio emocional; essa perturbação, de que não gostais, chama-se ciúme. Nêle existe sofrimento, ansiedade, ódio e violência. Por conseguinte, o que realmente estais dizendo é: “Enquanto me pertences, eu te amo; mas, tão logo deixes de pertencer-me, começo a odiar-te. Enquanto posso contar contigo para satisfação de minhas necessidades sociais e outras, amo-te, mas, tão logo deixes de atender a minhas necessidades,não gosto mais de ti”. Há, pois, antagonismo entre ambos, há separação, e quando vos sentis separados um do outro, não há amor. Mas, se puderdes viver com vossa espôsa sem que o pensamento crie todos êsses estados contraditórios, essas intermináveis contendas dentro de vós mesmo, talvez então — talvez —sabereis o que é o amor. Sereis então completamente livre, e ela também; ao passo que, se dela dependeis para os vossos prazeres, sois seu escravo. Portanto, quando uma pessoa ama, deve haver liberdade — a pessoa deve estar livre, não só da outra, mas também de si própria.

No estado de pertencer a outro, de ser psicologicamente nutrido por outro, de outro depender — em tudo isso existe sempre, necessàriamente, a ansiedade, o mêdo, o ciúme, a culpa, e enquanto existe mêdo, não existe amor. A mente que se acha nas garras do sofrimento jamais conhecerá o amor; o sentimentalismo e a emotividade nada, absolutamente nada, têm que ver com o amor. Por conseguinte, o amor nada tem em comum com o prazer e o desejo.

O amor não é produto do pensamento, que é o passado. O pensamento não pode de modo nenhum cultivar o amor. O amor não se deixa cercar e enredar pelo ciúme; porque o ciúme vem do passado. O amor é sempre o presente ativo. Não é “amarei" ou “amei". Se conheceis o amor, não seguireis ninguém. O amor não obedece. Quando se ama, não há respeito nem desrespeito.

Não sabeis o que significa amar realmente alguém —amar sem ódio, sem ciúme, sem raiva, sem procurar interferir no que o outro faz ou pensa, sem condenar, sem comparar —não sabeis o que isso significa? Quando há amor, há comparação? Quando amais alguém de todo o coração, com tôda a vossa mente, todo o vosso corpo, todo o vosso ser, existe comparação? Quando vos abandonais completamente a êsse amor, não existe ‘‘o outro’’.

O amor tem responsabilidades e deveres, e emprega tais palavras? Quando fazeis alguma coisa por dever, há nisso amor? No dever não há amor. A estrutura do dever, na qual o ente humano se vê aprisionado, o está destruindo. Enquanto sois obrigado a fazer uma coisa, porque é vosso dever fazê-la, não amais a coisa que estais fazendo. Quando há amor, não há dever nem responsabilidade.
A maioria dos pais, infelizmente, pensa que são responsáveis por seus filhos, e seu senso de responsabilidade toma a forma de preceituar-lhes o que devem fazer e o que não devem fazer, o que devem ser e o que não devem ser. Querem que os filhos conquistem uma posição segura na sociedade. Aquilo a que chamam responsabilidade faz parte daquela respeitabilidade que êles cultivam; e a mim me parece que, onde há respeitabilidade, não existe ordem; só lhes interessa o tornar-se um perfeito burguês. Preparando os filhos para se adaptarem à sociedade, estão perpetuando a guerra, o conflito e a brutalidade. Pode-se chamar a isso zêlo e amor?

Zelar, com efeito, é cuidar como se cuida de uma árvore ou de uma planta, regando-a, estudando as suas necessidades, escolhendo o solo mais adequado, tratá-la com carinho e ternura; mas, quando preparais os vossos filhos para se adaptarem à sociedade, os estais preparando para serem mortos. Se amásseis vossos filhos, não haveria guerras.

Quando perdeis alguém que amais, verteis lágrimas; essas lágrimas são por vós mesmo ou pelo morto? Estais pranteando a vós mesmo ou ao outro? Já chorastes por outrem? Já chorastes o vosso filho, morto no campo de batalha? Chorastes, decerto, mas essas lágrimas foram produto da auto-compaixão ou chorastes porque um ente humano foi morto? Se chorais por auto-compaixão, vossas lágrimas nada significam, porque estais interessado em vós mesmo. Se chorais porque vos foi arrebatada uma pessoa em quem “depositastes” muita afeição, não se trata de uma afeição real. Se chorais a morte de vosso irmão, chorai 'por ele'! É muito fácil chorardes por vós mesmo porque êle partiu. Aparentemente, chorais porque vosso coração foi atingido, mas não foi atingido por causa dele; foi atingido pela auto-compaixão, e a auto-compaixão vos endurece, vos fecha, vos torna embotado e estúpido.

Quando chorais por vós mesmo, será isso amor? —chorar porque ficastes sozinho, porque perdestes o vosso poder; queixar-vos de vossa triste sina, de vosso ambiente — sempre vós a verter lágrimas. Se compreenderdes êsse fato, e isso significa pôr-vos em contato com êle tão diretamente como quando tocais uma árvore ou uma coluna ou uma mão, vereis então que o sofrimento é produto do “eu”, o sofrimento é
criado pelo pensamento, o sofrimento é produto do tempo. Há três anos eu tinha meu irmão; hoje êle é morto e estou sozinho, desolado, não tenho mais a quem recorrer para ter confôrto ou companhia, e isso me traz lágrimas aos olhos.

Podeis ver tudo isso acontecer dentro de vós mesmo, se o observardes. Podeis vê-lo de maneira plena, completa, num relance, sem precisardes do tempo analítico. Podeis ver num momento tôda a estrutura e natureza dessa coisa desvaliosa e insignificante, chamada “eu" — minhas lágrimas, minha família, minha nação, minha crença, minha religião — tôda essa fealdade está em vós. Quando a virdes com vosso coração, e não com vossa mente, quando a virdes do fundo de vosso coração, tereis então a chave que acabará com o sofrimento.

O sofrimento e o amor não podem coexistir, mas no mundo cristão idealizaram o sofrimento, crucificaram-no para o adorar, dando a entender que ninguém pode escapar ao sofrimento a não ser por aquela única porta; tal é a estrutura de uma sociedade religiosa, exploradora.

Assim, ao perguntardes o que é o amor, podeis ter muito mêdo de ver a resposta. Ela pode significar uma completa reviravolta; poderá dissolver a família; podeis descobrir que não amais vossa espôsa ou marido ou filhos (vós os amais?); podeis ter de demolir a casa que construístes; podeis nunca mais voltar ao templo.

Mas, se desejais continuar a descobrir, vereis que o mêdo não é amor, a dependência não é amor, o ciúme não é amor, a posse e o domínio não são amor, responsabilidade e dever não são amor, auto-compaixão não é amor, a agonia de não ser amado não é amor, que o amor não é o oposto do ódio, como também a humildade não é o oposto da vaidade. Dessarte, se fordes capaz de eliminar tudo isso, não à fôrça, porém lavando-o assim como a chuva fina lava a poeira de muitos dias depositada numa fôlha, então, talvez, encontrareis aquela flor peregrina que o homem sempre buscou sequiosamente.

Se não tendes amor — não em pequenas gôtas, mas em abundância; se não estais transbordando de amor, o mundo irá ao desastre. Intelectualmente, sabeis que a unidade humana é a coisa essencial e que o amor constitui o único caminho para ela, mas quem pode ensinar-vos a amar? Poderá uma autoridade, um método, um sistema ensinar-vos a amar? Se alguém vo-lo ensina, isso não é amor. Podeis dizer: “Eu me exercitarei para o amor. Sentar-me-ei todos os dias para refletir sôbre êle. Exercitar-me-ei para ser bondoso, delicado e me forçarei a ser atencioso com os outros”? — Achais que podeis disciplinar-vos para amar, que podeis exercer a vontade para amar? Quando exerceis a vontade e a disciplina para amar, o amor vos foge pela janela. Pela prática de um certo método ou sistema de amar, podeis tornar-vos muito hábil, ou mais bondoso, ou entrar num estado de não violência, mas nada disso tem algo em comum com o amor.

Neste mundo tão dividido e árido não há amor, porque o prazer e o desejo têm a máxima importância, e, todavia, sem amor, vossa vida diária é sem significação. Também, não podeis ter o amor se não tendes a beleza. A beleza não é uma certa coisa que vêdes — não é uma bela árvore, um belo quadro, um belo edifício ou uma bela mulher; só há beleza quando o vosso coração e a vossa mente sabem o que é o amor. Sem o amor e aquêle percebimento da beleza, não há virtude, e sabeis muito bem que tudo o que fizerdes — melhorar a sociedade, alimentar os pobres — só criará mais malefício, porque, quando não há amor, só há fealdade e pobreza em vosso coração e vossa mente. Mas, quando há amor e beleza, tudo o que se faz é correto, tudo o que se faz é ordem. Se sabeis amar, podeis fazer o que desejardes, porque o amor resolverá todos os outros problemas.

Alcançamos, assim, êste ponto: Poderá a mente encontrar o amor sem precisar de disciplina, de pensamento, de coerção, de nenhum livro, instrutor ou guia — encontrá-lo assim como se encontra um belo pôr-de-sol?

Uma coisa me parece absolutamente necessária: a paixão sem motivo, a paixão não resultante de compromisso ou ajustamento, a paixão que não é lascívia. O homem que não sabe o que é paixão, jamais conhecerá o amor, porque o amor só pode existir quando a pessoa se desprende totalmente de si própria.
A mente que busca não é uma mente apaixonada, e não buscar o amor é a única maneira de encontrá-lo; encontrá-lo inesperadamente e não como resultado de qualquer esfôrço ou experiência. Esse amor, como vereis, não é do tempo; ele é tanto pessoal como impessoal, tanto um só como multidão. Como uma flor perfumosa, podeis aspirar-lhe o perfume, ou passar por êle sem o notardes. Aquela flor é para todos e para aquêle que se curva para aspirá-la profundamente e olhá-la com deleite. Quer estejamos muito perto, no jardim, quer muito longe, isso é indiferente à flôr, porque ela está cheia de seu perfume e pronta a reparti-lo com todos.

O amor é uma coisa nova, fresca, viva. Não tem ontem nem amanhã. Está além da confusão do pensamento. Só a mente inocente sabe o que é o amor, e a mente inocente pode viver no mundo não inocente. Só é possível encontrá-la, essa coisa maravilhosa que o homem sempre buscou sequiosamente por meio de sacrifícios, de adoração, das relações, do sexo, de tôda espécie de prazer e de dor, só é possível encontrá-la quando o pensamento, alcançando a compreensão de si próprio, termina naturalmente. O amor não conhece oposto, não conhece conflito.

Podeis perguntar: “Se encontro êsse amor, que será de minha mulher, de minha família? Eles precisam de segurança”. Fazendo essa pergunta, mostrais que nunca estivestes fora do campo do pensamento, fora do campo da consciência. Quando tiverdes alguma vez estado fora dêsse campo, nunca fareis uma tal pergunta, porque sabereis o que é o amor em que não há pensamento e, por conseguinte, não há o tempo. Podeis ler tudo isto hipnotizado e encantado, mas ultrapassar realmente o pensamento e o tempo — o que significa transcender o sofrimento é estar cônscio de uma dimensão diferente, chamada “amor".

Mas, não sabeis como chegar-vos a essa fonte maravilhosa — e, assim, que fazeis? Quando não sabeis o que fazer, nada fazeis, não é verdade? Nada, absolutamente. Então, interiormente, estais completamente em silêncio. Compreendeis o que isso significa? Significa que não estais buscando, nem desejando, nem perseguindo; não existe centro nenhum. Há, então, o amor. ("Liberte-se do passado". Cultrix, São Paulo, 1983).


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O que é meditação
Krishnamurti

NESTA TARDE desejo falar sôbre um assunto tão importante como o tempo, a morte e o amor, a cujo respeito estivemos falando outro dia. É necessário compreendê-lo, porque compreendendo o que é a meditação, estaremos aptos a compreender o tão complexo problema do viver. A meditação não é coisa separada do viver. Para se compreender o conteúdo, o significado a beleza e a grande profundeza do viver, com suas aflições, suas ânsias e temores, e necessário compreender igualmente o mui complexo problema ou questão da meditação.

Para o examinarmos um tanto profundamente, se possível, a esta hora, é necessário, antes de tudo esclarecer que não vamos lançar as bases de nenhum sistema, método ou exercício, porem simplesmente investigar, pois o simples ato de investigar e compreender a meditação, é meditação. Por conseguinte, em primeiro lugar, devemos ver, por nós mesmos, com muita clareza, o que não é meditação, e o que é meditação. São duas coisas muito distintas: o que é e o que não é. Examinaremos primeiramente o que não é meditação: e, pela rejeição daquilo que não e meditação, começaremos a descobrir o que e meditação.

Ora, quando fazemos uso da palavra “rejeitar”, com ela não queremos referir-nos a uma rejeição intelectual de palavras, porem, antes, à rejeição daquilo que pensamos ser a correta maneira de pensar, à rejeição de todos os sistemas, métodos, das futilidades que a mente inventa, na esperança de apreender algo de misterioso. E, para rejeitar, requer-se, não só raciocínio, análise, equilíbrio, mas também, acima de tudo, inteligência; e tudo isso exige energia. Não se pode rejeitar coisa nenhuma apenas verbalmente, pois, nesse caso, a rejeição nenhum significado tem na vida. Não se atingem as profundezas de nosso ser se, incidentalmente, esporádica ou ocasionalmente, rejeitais alguma coisa. Mas, se perceberdes de maneira total o significado de uma coisa e, depois, com a compreensão dessa totalidade, a rejeitardes, ela terá sido, então, eliminada de vosso método, de modo que podereis aplicar vossa energia e vossa atenção numa direção totalmente diferente. É o que vamos fazer nesta tarde.

Vamos meditar conjuntamente; vamos conjuntamente explorar êsse nosso estranho viver — que tão desvalioso parece que o homem vive a buscar, para êle, um alvo, uma finalidade. Estamos, todos juntos, investigando, cada um por si, o verdadeiro significado, e a profundeza, e a beleza, e a glória do viver. E essa investigação tem de ser feita com uma mente muito esclarecida.

Assim, em primeiro lugar, necessitamos de um espírito crítico, não disposto a aceitar coisa alguma, nem mesmo a própria experiência. Porque somos por demais ingênuos, queremos crer, queremos aceitar e ser guiados; e, visto que nossa própria vida é tão cheia de incerteza, de confusão, de mesquinhez, temos esperança de que um certo guru, um certo método — mesmo muito antigo — nos ajudará de alguma maneira a transcender esses conflitos, essas angústias e desditas. E, assim, estamos muito dispostos a aceitar todo aquêle — principalmente a pessoa religiosa, o sanyasi, o guru — que nos oferece um certo método de meditação; mas, dessa mesma pessoa religiosa devemos duvidar. Um ente humano inteligente, desperto, equilibrado, não deve “aceitar” nenhuma pessoa religiosa, inclusive a minha própria. Porque tanto tememos as coisas da vida — a perda do emprêgo, a morte, as incertezas, o êrro, a impossibilidade de alcançarmos o que chamamos Deus, aquêle mistério que o homem vem procurando desvendar através dos séculos; porque nossa vida é tão insignificante, tão sem valor e superficial, e nosso espírito também tão superficial, vulgar, infantil, preferimos “aceitar aquele que diz: “Eu sei, vós não sabeis; portanto, segui-me !“ — Não fazemos uso de nossa razão, nosso senso-comum; por isso, permanecemos insignificantes, superficiais.
Mas, se começardes a questionar, a duvidar, a exigir, a ser “impiedoso” com vós mesmo e com todo aquêle que vos oferece algum método — estais então no verdadeiro “estado de investigação”. A menos que vos investigueis profundamente, em vosso interior, não tendes possibilidade de descobrir o que é verdadeiro.
Ninguem vos pode levar a esse descobrimento, e, por consequencia, nenhum sistema. A verdade nao e uma coisa estática, que fica a vossa espera, enquanto seguis um sistema uniforme, enquanto praticais dia a dia um certo método, enquanto aprimorais a vossa mente e o vosso coração para alcançar aquêle estado a que chamais “a verdade”.
A Verdade não espera por vós!
Por conseguinte, cumpre perceber que todo método — não importa por quem tenha sido estabelecido — Buda, Sankara, ou em quer que seja — só pode amesquinhar mais ainda a mente. Porque, praticando, dia após dia, um certo sistema a mente se torna mecanica. Quando a mente pratica seguidamente uma certa coisa, assemelha-se àqueles que praticam pula todos os dias, repetindo, interminàvelmente. palavras, palavras, palavras sem muita significação. O puja. a meditação que praticam, nada têm em comum com o seu viver. São indivíduos embusteiros, ambiciosos, ávidos, cheios de rancor e de inveja, nunca deixam de “recolher-se a seu canto”, em casa, para meditar — mas continuam com a mesma hipocrisia de todos os dias.
Assim, sua mente, que já é mesquinha, que já é superficial, que já está a mistificar a si e ao próximo; sua mente, por mais que pratique um método e por meio dêle espere alcançar seus pequeninos deuses, nunca descobrirá o que é verdadeiro. Por conseguinte, permanecem êles, dia após dia. na angústia, no sofrimento, num estado de total confusão. Portanto, e necessário que cada um perceba com tôda a clareza, por si próprio, a total futilidade do hábito mecânico, do seguir um método.
Vêde, por favor, estamos aqui investigando juntos. Não estais aceitando minha palavra. Não estais substituindo o vosso guru por êste orador; isso seria verdadeiramente desastroso. Mas, estamos aqui em comunhão, com o fim de descobrirmos a Verdade, de descobrirmos por nós mesmos o estado de espírito próprio da meditação — descobrir êsse estado de espírito e não o como meditar.
Como dissemos, o método, por mais bem fundado, e consolidado pela tradição, não pode conduzir o homem a outra coisa senão a um resultado mecânico. Podeis ver e praticar uma certa coisa diàriamente; mas, isso não libertará a vossa mente das penas e da solidão e da agonia da vida. Ternos de compreender isso, e não um certo deus espúrio inventado pelo homem. Todos os deuses são invenções do homem; porque a verdade não pode ser descrita; o desconhecido não pode ser formulado em palavras; ao que não tem nome, não se pode dar nome; a mente tem de alcançá-lo impremeditadamente, — inocente, fresca, não-contaminada.

Assim sendo, o método, a infinita repetição de palavras, não levam ninguém a Verdade. Tampouco as orações, que são meras súplicas. Orais porque desejais felicidade, prazer, porque desejais algo. Desejais a paz na terra, e por ela rezais. Não podeis ter paz na terra, rezando. Só haverá paz na terra se fordes pacífico. Deus não vai dar-vos a paz; vós tendes de ser pacífico quer dizer, sem rivalidades, nem ódio, nem violências, nem divisões de nacionalidades; sem serdes muçulmanos, ou hinduístas, ou sikhs, ou parás, chineses, russos ou americanos. Tendes de ser pacífico; e, então, tereis a paz na Terra.

Quando em vosso coração, em vosso espírito, sois pacífico, então não orais, nem precisais de ajuda alguma. Assim, as orações das igrejas, dos guias, e dos santos, que estão simplesmente explorando o povo, nada significam, nenhum valor têm. A oração poderá produzir um certo resultado — um resultado mecanico. Há pessoas que rezam, não para terem Deus, para terem paz, mas para terem as coisas que desejam. Desejam geladeiras, casas, prosperidade desejam dinheiro, desejam passar em seus exames. E qual a diferença entre essas pessoas e aquelas que rezam para terem o céu, a paz? Não há diferença.

Precisamos, pois, compreender o significado da oração. O homem que reza para ter uma geladeira, a obtém, porque concentrou o espírito e tôdas as energias nesse desejo de uma coisa fora dêle próprio. Mas, a paz não está fora de vós. Vós tendes de criá-la, de torná-la existente; deveis deixar de ter nacionalidade. Estamos aqui em comunhão uns com os outros; não estais apenas a escutar-me. Se desejais a paz, deveis deixar de ser sikh, muçulmano, pará; tendes de trabalhar pela paz. E a oração é uma fuga a isso.

Assim sendo, os métodos — a repetição de palavras, de orações — não conduzem o homem a verdade, visto que são processos egocêntricos a serviço de interêsses egoístas. E a mente vulgar que ora, que pede, que solicita, que repete palavras, em circunstância nenhuma pode descobrir o que se acha além das palavras. Vós e eu estamos, nesta tarde, falando a êste respeito; estamos rejeitando tudo aquilo, não verbal ou intelectualmente, porém realmente, porque se trata da verdade — não porque o orador o diga, mas porque o é de fato. E quando se percebe claramente uma coisa como fato, pomo-la de parte, porque já não tem significação alguma.

As várias posturas que uma pessoa assume na chamada meditação, o respirar corretamente, o sentar-se corretamente, e demais exterioridades superficiais, têm um certo efeito de quietar o corpo. Naturalmente, se uma pessoa se põe a respirar regularmente, tranqüilamente, o organismo físico se torna quieto; mas sua mente continua superficial. Não se pode tornar a mente ampla, profunda, sã, vigorosa, lúcida, por meio da respiração. Podeis fazer isso durante dez mil anos, e continuareis com a mesma mente vulgar. Isso, portanto, precisa também ser posto de lado.

E há, também, as novas drogas que se estão experimentando na América e na França: Mescalina, L. S. D. -25, etc. Muitas pessoas as tomam para terem uma experiência extraordinária do real; pensam que, tomando uma pílula, se transportarão ao nirvana. O efeito dessas drogas (nós não as experimentamos!) é êste: tornam, temporàriamente, o sistema nervoso supersensível, superaguçado. A mente se torna muito alertada, muito sensível, penetrante, lúcida; vê as coisas muito mais intensamente; a flor se torna então muito mais bela. Mas os efeitos dependem da pessoa que toma a droga; se já tem ligeiras disposições artísticas, ou filosóficas, ou supersticioso-religiosas, terá a adequada experiência; e esta, naturalmente, lhe dá um extraordinário sentimento de ter apreendido algo de misterioso. Como sabeis, se um homem toma uma bebida alcoólica, esta o ajuda a vencer suas inibições e êle se sente, naquele momento, extraordinàriamente livre, fala com desembaraço e sutileza. Mas, nem o bebedor, nem o homem que toma drogas de qualquer espécie, está mais perto do Real. Talvez o “pecador”, o homem que não toma drogas, não segue gurus nem se senta numa certa postura, pensando, meditando, mesmerizando-se talvez esse homem, que chamais 'pecador, esteja muito mais perto', porque não finge ser o que não é, e sabe o que é.
Vemos, pois, que nenhum desses sistemas — orações, repetição de palavras, imagens, respiração, drogas — que nada disso dará resultados, porquanto a mente continua superficial. Esta é, pois, a primeira coisa que se precisa compreender: que a mente vulgar, a mente superficial, a mente confusa, o que quer que faça a fim de fugir de si própria, nunca encontrará “o que não tem nome”. Compreendido isso, o indivíduo retorna a si próprio.
Ora bem. É isso o que vamos fazer, vós e eu, nesta tarde — não teórica, porém realmente. Vós e eu vamos encarar-nos de frente, olhar-nos, impiedosamente; e, como resultado dessa observação de nós mesmos, a qual requer uma certa vigilância — de que trataremos mais adiante — estaremos aptos a descobrir o que realmente somos, o fato, o que é, e não o que deveria ser, que é pura imaginação. E daí, então, poderemos prosseguir. Isso temos de fazer juntos. Não estais aqui puramente a escutar-me; estamos aprendendo juntos. Para compreender, não deveis estar confundidos por sistemas, métodos, orações, crenças, etc. Tudo isso tem de ser pôsto de parte; isso será muito difícil para a maioria das pessoas, que querem crer. A mente que crê é a mais vulgar e a mais estúpida. Podeis crer, mas só “experimentareis” aquilo que credes, naturalmente.
Temos, pois, de compreender todo esse processo de “experimentar”; disso vamos tratar agora. Para a maioria de nós, o viver diário é desestimulante e muito pouco significativo. Passar todos os dias pela entediante rotina do emprego, ter um pouco de satisfação sexual, ocasionalmente, ter problemas inumeráveis, causadores de ansiedades, de medo, de aflição, e um ou outro momento de alegria — tal é nosso caminho costumeiro, nossa vida. A esse gênero de vida queremos furtar-nos; sendo tudo aquilo de tão pouco valor, queremos sensações diferentes, experiências diferentes e diferentes visões. Assim sendo, tratamos de procurar outra coisa. Queremos experiências mais grandiosas. Prestai atenção à psicologia, à razão, a sensatez do que estamos dizendo. Queremos experiências mais amplas, mais profundas, mais plenas; e as temos em conformidade com nosso fundo, nosso condicionamento.
Quando falamos de experiência, entendemos “reação a um desafio”, a reação a um desafio da sociedade, da economia social. etc. —, repito: reação a um desafio. E essa reação ao desafio é "experiência”; é o resultado de vosso condicionamento, como hinduísta, como budista, comunista, técnico, etc. Esse é o vosso fundo, vosso temperamento, vosso estado de espírito; daí é que reagis, que “respondeis” a qualquer desafio que se apresenta; e essa reação é “experiência”. Assim, pois, em conformidade com vosso fundo, com vosso, condicionamento, vosso temperamento, vossas emoções, “projetais” coisas; e tais “projeções” constituem vossas experiências - Vemo-nos, assim, colhidos numa rêde de intermináveis experiências, experiências resultantes de nossas próprias “projeções”, conforme os desafios que recebemos. Não vamos entrar em minúcias a êste respeito; mas fácil vos será compreendê-lo, se estais escutando verdadeiramente, se estais aprendendo.
Assim, a mente que busca experiências — prestai atenção, por favor! — está meramente a furtar-se ao fato — o que é. Assim, devemos estar sumamente vigilantes, a fim de não exigirmos experiência de espécie alguma. Percebeis o que estamos fazendo? Estamos despojando a mente de tudo o que é falso, despojando-a das crenças nos deuses, nos sacerdotes, no puja, na recitação de orações, e, mesmo, da exigência de super-experiências — experiências supra-sensíveis. Não estamos falando ilogicamente, porém lógica e sensatamente. Atrás do que se está dizendo, está a razão; não se trata de nenhuma fantasia ou capricho. Assim, pois, se estais seguindo o que estamos dizendo, sem lhe conferirdes nenhum caráter de autoridade, vereis que de vossa mente terão sido varridas tôdas as cargas que a sociedade e as religiões vos impuseram; estareis, então, frente a frente com vós mesmo.
Ora, o compreender a si próprio é absolutamente necessário. Meditar é esvaziar a mente, e, nesse estado de vazio, ocorre a “explosão” que nos lança no desconhecido. A mente que esta repleta, que está carregada de problemas, a mente que se acha em conflito, que não explorou as profundezas de si própria, não tem possibilidade de esvaziar-se. E a meditação e o esvaziar da mente, não no final, porém imediatamente, fora do tempo.
Investiguemos agora o estado da mente que aprende a respeito de si própria. Porque, se não aprendeis a respeito de vós mesmo, não tendes base para qualquer investigação ou outra exploração mais profunda; se não aprendeis a respeito de vós mesmo, ficais meramente a enganar-vos, a hipnotizar-vos para aceitar todo gênero de crenças, de dogmas, de orações. de visões. Deveis. pois. aprender a respeito de vos mesmo; esta é a base essencial. E podeis fazê-lo, instantaneamente e de modo completo; e esta é a única maneira de aprenderdes a respeito de vós mesmo — e não pelo processo da análise ou do exame introspectivo, que requer tempo. Mas. como já dissemos não há amanhã. não há instante seguinte; só há o presente. só o agora tremendamente ativo; e, para compreendê-lo. deveis afastar de todo, de vossa mente. a idéia de 'compreensão gradual'.
Agora, para aprendermos a respeito de nós mesmos, necessitamos de uma certa vigilância. Não estamos dando a essa palavra nenhum significado místico. Trata-se da vigilância comum de cada dia: estar-se consciente das côres, das árvores, da sordidez da imundície; estar consciente da espôsa e dos filhos — observá-los, ver como se vestem, de que maneira falam. Estar simplesmente — consciente. Sabeis o que entendo por essa palavra? Ao entrardes nesta tenda, perceber as
cores, perceber as várias pessoas sentadas, como estão sentadas, se bocejam, se estão sonolentas, cansadas, forçando-se a escutar, na esperança de obterem alguma coisa, os tiques nervosos que estão executando.
Perceber, sem condenar, sem julgar; observar pura e simplesmente e sem escolha, olhar sem condenação, interpretação comparação; nisso há grande beleza, e grande clareza na observação. Se dessa maneira vos observardes sem escolha, então, nesse percebimento, existe atenção, nenhuma entidade existe como “observador”, nem “coisa observada”. Não há “observador” a olhar aquilo a que está observando.
Agora, é preciso diferençar entre concentração e atenção. Concentração é processo de esfôrço, de exclusão, de repressão, de forçar todo o vosso pensamento, tôda a vossa energia num certo canal, por um dado momento, excluindo todos os outros pensamentos, tôda “distração”, assim chamada. Essa a espécie de concentração que a maioria de vós pratica em suas ocupações e quando está tentando a chamada “meditação”. Sois educados, desde os dias de colegiais, para concentrar-vos, para aplicar ou forçar a atenção numa dada coisa: no trabalho que estais executando, na página que estais lendo. Mas, a todos os momentos, outros pensamentos surgem, insinuam-se outras impressões, às quais tentais resistir. A concentração, pois, é um processo de exclusão e a atenção não é.

Estar atento implica que não há distração. Quando estais atento, “recebeis” o todo e não apenas a parte; vedes os presentes, as formas de suas cabeças, as côres, as luzes. Estais consciente e, por conseguinte, atento. Nessa atenção não há observador nem coisa observada, porque, nela, todo o vosso ser, vossa mente, vosso corpo, vossos nervos, vossos ouvidos, vossos olhos — tudo está atento; por conseguinte, não há divisão. Nesse estado de atenção há auto-observação. Não há, portanto, auto-condenação. Não se pode aprender se se está condenando. Não se pode aprender, se se está comparando. Não se pode aprender, se se está a dizer: “Serei aquilo amanhã”.

Assim, a mente que está atenta se acha num estado de não-contradição e, por conseguinte, num estado em que nenhum esfôrço existe. Esse estado é absolutamente necessário. Do contrário, se êle não fôr possível, a mente não pode ser esvaziada. Vereis por que é necessário o “estado de atenção”. A mente, em geral, é “barulhenta”. Está sempre a “tagarelar”. Sempre monologando, ou dizendo repetidamente o que irá fazer, o que fêz, o que deve fazer, etc. Nunca está quieta. E pensais que, para se produzir êsse estado de quietude mental, deveis praticar algum método — método que, por sua vez, se torna mecânico.

Mas, se estiverdes consciente de cada pensamento, ao surgir, sem julgar, sem condenar nem aceitar — porém simplesmente num estado de atenção — vereis que a mente se torna extraordinàriamente quieta; não a disciplinastes para a tornardes quieta, pois isso é de efeito mortal.
Porque, se se disciplina a mente, ela se torna superficial, vazia, morta. A mente deve ser viva, vigorosa, plena, cheia de vitalidade.

Se estais atento, dessa atenção vem sua peculiar disciplina, não solicitada, não-repressiva. Só a mente que dessa maneira se disciplinou, pela atenção sobre si própria e não mediante compulsão e ajustamento — só essa mente é lúcida. Então, a mente que está atenta aprendeu a respeito de si própria, a respeito de seus conscientes e inconscientes motivos, fantasias, ilusões, temores, ambições, avidez, ciúme, competição, e tôdas as demais coisas que somos nós; quando a mente, mediante vigilância, aprendeu a respeito de si própria, torna-se então quieta, não disciplinada, não narcotizada por drogas, não-rnesmerizada. Essa é a mente tranqüila. Ela tem de estar tranqüila, do contrario não estará vazia.

A mente de todos nós é o resultado de dois milhões de anos de tempo. Ela está condicionada e moldada; sob a compulsão de muitas impressões, sujeita a grande tensão, de ordem consciente e inconsciente; impelida pelas circunstâncias. Essa mente, pois, se não estiver totalmente quieta — quieta, e não exigindo, nem procurando — não ficara vazia.
Tôda coisa nova só pode verificar-se no vazio. Um novo ente humano é concebido no ventre vazio. A mente, por conseguinte, deve estar vazia, e não ser “posta vazia” mediante pensamento inibitivo, controlador, repressivo; isso não e vazio, porém apenas outra forma de fuga à realidade. E a realidade sois vós mesmo, o que verdadeiramente sois, e não o Super-Atman, que é invenção de nossas avós, de nossos pais, dos Sankaras e Budas. Tudo isso tem de ir-se, para que a mente se torne completamente vazia e tranqüila.
Então, nesse vazio, há um movimento que e criação. Nesse vazio, há a energia de que a mente necessita para alcançar a Imensidade. E todo asse processo, do comêço “negativo” até o fim, o qual não é uma fuga da vida, porém a própria compreensão da vida — todo asse processo é meditação. E vereis, então, que estareis meditando em todo o correr do dia, e não num certo minuto do dia; estareis meditando no escritório, no ônibus, onde quer que vos encontreis. Estareis diretamente em contato com a vida. Estareis meditando, enquanto falais, porque estareis vigilante; estareis atento ao que estareis dizendo e a como o estareis dizendo, a como falareis com vosso serviçal, se o tendes. Estareis vigilante, estareis atento; por conseguinte, a mente, que é limitada, estreita, vulgar, agrilhoada pelo tempo, se libertará. Só essa mente pode encontrar o Eterno.

Essa, a beleza da meditação. Nela, não há compulsão nem esfôrço de espécie alguma. E o homem que é capaz de meditar, o homem que compreendeu o que é a meditação, só esse, e nenhum outro, pode dar ajuda.

Nova Deli, 8 de novembro de 1964



domingo, 30 de janeiro de 2011

Marilena Chaui








Convite à Filosofia


De Marilena Chaui


Ed. Ática, São Paulo, 2000.


Introdução
Para que Filosofia?


As evidências do cotidiano


Em nossa vida cotidiana, afirmamos, negamos, desejamos, aceitamos ou recusamos coisas, pessoas, situações. Fazemos perguntas como "que horas são?", ou "que dia é hoje?". Dizemos frases como "ele está sonhando", ou "ela ficou maluca". Fazemos afirmações como "onde há fumaça, há fogo", ou "não saia na chuva para não se resfriar". Avaliamos coisas e pessoas, dizendo, por exemplo, "esta casa é mais bonita do que a outra" e "Maria está mais jovem do que Glorinha".
Numa disputa, quando os ânimos estão exaltados, um dos contendores pode gritar ao outro: "Mentiroso! Eu estava lá e não foi isso o que aconteceu", e alguém, querendo acalmar a briga, pode dizer: "Vamos ser objetivos, cada um diga o que viu e vamos nos entender".
Também é comum ouvirmos os pais e amigos dizerem que somos muito subjetivos quando o assunto é o namorado ou a namorada. Freqüentemente, quando aprovamos uma pessoa, o que ela diz, como ela age, dizemos que essa pessoa "é legal".
Vejamos um pouco mais de perto o que dizemos em nosso cotidiano.
Quando pergunto "que horas são?" ou "que dia é hoje?", minha expectativa é a de que alguém, tendo um relógio ou um calendário, me dê a resposta exata. Em que acredito quando faço a pergunta e aceito a resposta? Acredito que o tempo existe, que ele passa, pode ser medido em horas e dias, que o que já passou é diferente de agora e o que virá também há de ser diferente deste momento, que o passado pode ser lembrado ou esquecido, e o futuro, desejado ou temido. Assim, uma simples pergunta contém, silenciosamente, várias crenças não questionadas por nós.
Quando digo "ele está sonhando", referindo-me a alguém que diz ou pensa alguma coisa que julgo impossível ou improvável, tenho igualmente muitas crenças silenciosas: acredito que sonhar é diferente de estar acordado, que, no sonho, o impossível e o improvável se apresentam como possível e provável, e também que o sonho se relaciona com o irreal, enquanto a vigília se relaciona com o que existe realmente.
Acredito, portanto, que a realidade existe fora de mim, posso percebê-la e conhecê-la tal como é, sei diferenciar realidade de ilusão.
A frase "ela ficou maluca" contém essas mesmas crenças e mais uma: a de que sabemos diferenciar razão de loucura e maluca é a pessoa que inventa uma realidade existente só para ela. Assim, ao acreditar que sei distinguir razão de loucura, acredito também que a razão se refere a uma realidade que é a mesma para todos, ainda que não gostemos das mesmas coisas.
Quando alguém diz "onde há fumaça, há fogo" ou "não saia na chuva para não se resfriar", afirma silenciosamente muitas crenças: acredita que existem relações de causa e efeito entre as coisas, que onde houver uma coisa certamente houve uma causa para ela, ou que essa coisa é causa de alguma outra (o fogo causa a fumaça como efeito, a chuva causa o resfriado como efeito). Acreditamos, assim, que a realidade é feita de causalidades, que as coisas, os fatos, as situações se encadeiam em relações causais que podemos conhecer e, até mesmo, controlar para o uso de nossa vida.
Quando avaliamos que uma casa é mais bonita do que a outra, ou que Maria está mais jovem do que Glorinha, acreditamos que as coisas, as pessoas, as situações, os fatos podem ser comparados e avaliados, julgados pela qualidade (bonito, feio, bom, ruim) ou pela quantidade (mais, menos, maior, menor). Julgamos, assim, que a qualidade e a quantidade existem, que podemos conhecê-las e usá-las em nossa vida.
Se, por exemplo, dissermos que "o sol é maior do que o vemos", também estamos acreditando que nossa percepção alcança as coisas de modos diferentes, ora tais como são em si mesmas, ora tais como nos aparecem, dependendo da distância, de nossas condições de visibilidade ou da localização e do movimento dos objetos.
Acreditamos, portanto, que o espaço existe, possui qualidades (perto, longe, alto, baixo) e quantidades, podendo ser medido (comprimento, largura, altura). No exemplo do sol, também se nota que acreditamos que nossa visão pode ver as coisas diferentemente do que elas são, mas nem por isso diremos que estamos sonhando ou que ficamos malucos.
Na briga, quando alguém chama o outro de mentiroso porque não estaria dizendo os fatos exatamente como aconteceram, está presente a nossa crença de que há diferença entre verdade e mentira. A primeira diz as coisas tais como são, enquanto a segunda faz exatamente o contrário, distorcendo a realidade.
No entanto, consideramos a mentira diferente do sonho, da loucura e do erro porque o sonhador, o louco e o que erra se iludem involuntariamente, enquanto o mentiroso decide voluntariamente deformar a realidade e os fatos.
Com isso, acreditamos que o erro e a mentira são falsidades, mas diferentes porque somente na mentira há a decisão de falsear.
Ao diferenciarmos erro de mentira, considerando o primeiro uma ilusão ou um engano involuntários e a segunda uma decisão voluntária, manifestamos silenciosamente a crença de que somos seres dotados de vontade e que dela depende dizer a verdade ou a mentira.
Ao mesmo tempo, porém, nem sempre avaliamos a mentira como alguma coisa ruim: não gostamos tanto de ler romances, ver novelas, assistir a filmes? E não são mentira? É que também acreditamos que quando alguém nos avisa que está mentindo, a mentira é aceitável, não seria uma mentira "no duro", "pra valer".
Quando distinguimos entre verdade e mentira e distinguimos mentiras inaceitáveis de mentiras aceitáveis, não estamos apenas nos referindo ao conhecimento ou desconhecimento da realidade, mas também ao caráter da pessoa, à sua moral. Acreditamos, portanto, que as pessoas, porque possuem vontade, podem ser morais ou imorais, pois cremos que a vontade é livre para o bem ou para o mal.
Na briga, quando uma terceira pessoa pede às outras duas para que sejam "objetivas" ou quando falamos dos namorados como sendo "muito subjetivos", também estamos cheios de crenças silenciosas. Acreditamos que quando alguém quer defender muito intensamente um ponto de vista, uma preferência, uma opinião, até brigando por isso, ou quando sente um grande afeto por outra pessoa, esse alguém "perde" a objetividade, ficando "muito subjetivo".
Com isso, acreditamos que a objetividade é uma atitude imparcial que alcança as coisas tais como são verdadeiramente, enquanto a subjetividade é uma atitude parcial, pessoal, ditada por sentimentos variados (amor, ódio, medo, desejo). Assim, não só acreditamos que a objetividade e a subjetividade existem, como ainda acreditamos que são diferentes e que a primeira não deforma a realidade, enquanto a segunda, voluntária ou involuntariamente, a deforma.
Ao dizermos que alguém "é legal" porque tem os mesmos gostos, as mesmas idéias, respeita ou despreza as mesmas coisas que nós e tem atitudes, hábitos e costumes muito parecidos com os nossos, estamos, silenciosamente, acreditando que a vida com as outras pessoas - família, amigos, escola, trabalho, sociedade, política - nos faz semelhantes ou diferentes em decorrência de normas e valores morais, políticos, religiosos e artísticos, regras de conduta, finalidades de vida.
Achando óbvio que todos os seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais discordam e com os quais entram em conflito, acreditamos que somos seres sociais, morais e racionais, pois regras, normas, valores, finalidades só podem ser estabelecidos por seres conscientes e dotados de raciocínio.
Como se pode notar, nossa vida cotidiana é toda feita de crenças silenciosas, da aceitação tácita de evidências que nunca questionamos porque nos parecem naturais, óbvias. Cremos no espaço, no tempo, na realidade, na qualidade, na quantidade, na verdade, na diferença entre realidade e sonho ou loucura, entre verdade e mentira; cremos também na objetividade e na diferença entre ela e a subjetividade, na existência da vontade, da liberdade, do bem e do mal, da moral, da sociedade.
A atitude filosófica
Imaginemos, agora, alguém que tomasse uma decisão muito estranha e começasse a fazer perguntas inesperadas. Em vez de "que horas são?" ou "que dia é hoje?", perguntasse: O que é o tempo? Em vez de dizer "está sonhando" ou "ficou maluca", quisesse saber: O que é o sonho? A loucura? A razão?
Se essa pessoa fosse substituindo sucessivamente suas perguntas, suas afirmações por outras: “Onde há fumaça, há fogo”, ou “não saia na chuva para não ficar resfriado”, por: O que é causa? O que é efeito?; “seja objetivo”, ou “eles são muito subjetivos”, por: O que é a objetividade? O que é a subjetividade?; “Esta casa é mais bonita do que a outra”, por: O que é “mais”? O que é “menos”? O que é o belo?
Em vez de gritar “mentiroso!”, questionasse: O que é a verdade? O que é o falso? O que é o erro? O que é a mentira? Quando existe verdade e por quê? Quando existe ilusão e por quê?
Se, em vez de falar na subjetividade dos namorados, inquirisse: O que é o amor? O que é o desejo? O que são os sentimentos?
Se, em lugar de discorrer tranqüilamente sobre “maior” e “menor” ou “claro” e “escuro”, resolvesse investigar: O que é a quantidade? O que é a qualidade?
E se, em vez de afirmar que gosta de alguém porque possui as mesmas idéias, os mesmos gostos, as mesmas preferências e os mesmos valores, preferisse analisar: O que é um valor? O que é um valor moral? O que é um valor artístico? O que é a moral? O que é a vontade? O que é a liberdade?
Alguém que tomasse essa decisão, estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência.
Ao tomar essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica.
Assim, uma primeira resposta à pergunta “O que é Filosofia?” poderia ser: A decisão de não aceitar como óbvias e evidentes as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os valores, os comportamentos de nossa existência cotidiana; jamais aceitá-los sem antes havê-los investigado e compreendido.
Perguntaram, certa vez, a um filósofo: “Para que Filosofia?”. E ele respondeu: “Para não darmos nossa aceitação imediata às coisas, sem maiores considerações”.
A atitude crítica
A primeira característica da atitude filosófica é negativa, isto é, um dizer não ao senso comum, aos pré-conceitos, aos pré-juízos, aos fatos e às idéias da experiência cotidiana, ao que “todo mundo diz e pensa”, ao estabelecido.
A segunda característica da atitude filosófica é positiva, isto é, uma interrogação sobre o que são as coisas, as idéias, os fatos, as situações, os comportamentos, os valores, nós mesmos. É também uma interrogação sobre o porquê disso tudo e de nós, e uma interrogação sobre como tudo isso é assim e não de outra maneira. O que é? Por que é? Como é? Essas são as indagações fundamentais da atitude filosófica.
A face negativa e a face positiva da atitude filosófica constituem o que chamamos de atitude crítica e pensamento crítico.
A Filosofia começa dizendo não às crenças e aos preconceitos do senso comum e, portanto, começa dizendo que não sabemos o que imaginávamos saber; por isso, o patrono da Filosofia, o grego Sócrates, afirmava que a primeira e fundamental verdade filosófica é dizer: “Sei que nada sei”. Para o discípulo de Sócrates, o filósofo grego Platão, a Filosofia começa com a admiração; já o discípulo de Platão, o filósofo Aristóteles, acreditava que a Filosofia começa com o espanto.
Admiração e espanto significam: tomamos distância do nosso mundo costumeiro, através de nosso pensamento, olhando-o como se nunca o tivéssemos visto antes, como se não tivéssemos tido família, amigos, professores, livros e outros meios de comunicação que nos tivessem dito o que o mundo é; como se estivéssemos acabando de nascer para o mundo e para nós mesmos e precisássemos perguntar o que é, por que é e como é o mundo, e precisássemos perguntar também o que somos, por que somos e como somos.
Para que Filosofia?
Ora, muitos fazem uma outra pergunta: afinal, para que Filosofia?
É uma pergunta interessante. Não vemos nem ouvimos ninguém perguntar, por exemplo, para que matemática ou física? Para que geografia ou geologia? Para que história ou sociologia? Para que biologia ou psicologia? Para que astronomia ou química? Para que pintura, literatura, música ou dança? Mas todo mundo acha muito natural perguntar: Para que Filosofia?
Em geral, essa pergunta costuma receber uma resposta irônica, conhecida dos estudantes de Filosofia: “A Filosofia é uma ciência com a qual e sem a qual o mundo permanece tal e qual”. Ou seja, a Filosofia não serve para nada. Por isso, se costuma chamar de “filósofo” alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua, pensando e dizendo coisas que ninguém entende e que são perfeitamente inúteis.
Essa pergunta, “Para que Filosofia?”, tem a sua razão de ser.
Em nossa cultura e em nossa sociedade, costumamos considerar que alguma coisa só tem o direito de existir se tiver alguma finalidade prática, muito visível e de utilidade imediata.
Por isso, ninguém pergunta para que as ciências, pois todo mundo imagina ver a utilidade das ciências nos produtos da técnica, isto é, na aplicação científica à realidade.
Todo mundo também imagina ver a utilidade das artes, tanto por causa da compra e venda das obras de arte, quanto porque nossa cultura vê os artistas como gênios que merecem ser valorizados para o elogio da humanidade. Ninguém, todavia, consegue ver para que serviria a Filosofia, donde dizer-se: não serve para coisa alguma.
Parece, porém, que o senso comum não enxerga algo que os cientistas sabem muito bem. As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros, obtidos graças a procedimentos rigorosos de pensamento; pretendem agir sobre a realidade, através de instrumentos e objetos técnicos; pretendem fazer progressos nos conhecimentos, corrigindo-os e aumentando-os.
Ora, todas essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na existência da verdade, de procedimentos corretos para bem usar o pensamento, na tecnologia como aplicação prática de teorias, na racionalidade dos conhecimentos, porque podem ser corrigidos e aperfeiçoados.
Verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a Filosofia quem as formula e busca respostas para elas.
Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo. No entanto, como apenas os cientistas e filósofos sabem disso, o senso comum continua afirmando que a Filosofia não serve para nada.
Para dar alguma utilidade à Filosofia, muitos consideram que, de fato, a Filosofia não serviria para nada, se “servir” fosse entendido como a possibilidade de fazer usos técnicos dos produtos filosóficos ou dar-lhes utilidade econômica, obtendo lucros com eles; consideram também que a Filosofia nada teria a ver com a ciência e a técnica.
Para quem pensa dessa forma, o principal para a Filosofia não seriam os conhecimentos (que ficam por conta da ciência), nem as aplicações de teorias (que ficam por conta da tecnologia), mas o ensinamento moral ou ético. A Filosofia seria a arte do bem viver. Estudando as paixões e os vícios humanos, a liberdade e a vontade, analisando a capacidade de nossa razão para impor limites aos nossos desejos e paixões, ensinando-nos a viver de modo honesto e justo na companhia dos outros seres humanos, a Filosofia teria como finalidade ensinar-nos a virtude, que é o princípio do bem-viver.
Essa definição da Filosofia, porém, não nos ajuda muito. De fato, mesmo para ser uma arte moral ou ética, ou uma arte do bem-viver, a Filosofia continua fazendo suas perguntas desconcertantes e embaraçosas: O que é o homem? O que é a vontade? O que é a paixão? O que é a razão? O que é o vício? O que é a virtude? O que é a liberdade? Como nos tornamos livres, racionais e virtuosos? Por que a liberdade e a virtude são valores para os seres humanos? O que é um valor? Por que avaliamos os sentimentos e as ações humanas?
Assim, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia não é o conhecimento da realidade, nem o conhecimento da nossa capacidade para conhecer, mesmo se disséssemos que o objeto da Filosofia é apenas a vida moral ou ética, ainda assim, o estilo filosófico e a atitude filosófica permaneceriam os mesmos, pois as perguntas filosóficas - o que, por que e como - permanecem.
Atitude filosófica: indagar
Se, portanto, deixarmos de lado, por enquanto, os objetos com os quais a Filosofia se ocupa, veremos que a atitude filosófica possui algumas características que são as mesmas, independentemente do conteúdo investigado. Essas características são:
- perguntar o que a coisa, ou o valor, ou a idéia, é. A Filosofia pergunta qual é a realidade ou natureza e qual é a significação de alguma coisa, não importa qual;
- perguntar como a coisa, a idéia ou o valor, é. A Filosofia indaga qual é a estrutura e quais são as relações que constituem uma coisa, uma idéia ou um valor;
- perguntar por que a coisa, a idéia ou o valor, existe e é como é. A Filosofia pergunta pela origem ou pela causa de uma coisa, de uma idéia, de um valor.
A atitude filosófica inicia-se dirigindo essas indagações ao mundo que nos rodeia e às relações que mantemos com ele. Pouco a pouco, porém, descobre que essas questões se referem, afinal, à nossa capacidade de conhecer, à nossa capacidade de pensar.
Por isso, pouco a pouco, as perguntas da Filosofia se dirigem ao próprio pensamento: o que é pensar, como é pensar, por que há o pensar? A Filosofia torna-se, então, o pensamento interrogando-se a si mesmo. Por ser uma volta que o pensamento realiza sobre si mesmo, a Filosofia se realiza como reflexão.
A reflexão filosófica
Reflexão significa movimento de volta sobre si mesmo ou movimento de retorno a si mesmo. A reflexão é o movimento pelo qual o pensamento volta-se para si mesmo, interrogando a si mesmo.
A reflexão filosófica é radical porque é um movimento de volta do pensamento sobre si mesmo para conhecer-se a si mesmo, para indagar como é possível o próprio pensamento.
Não somos, porém, somente seres pensantes. Somos também seres que agem no mundo, que se relacionam com os outros seres humanos, com os animais, as plantas, as coisas, os fatos e acontecimentos, e exprimimos essas relações tanto por meio da linguagem quanto por meio de gestos e ações.
A reflexão filosófica também se volta para essas relações que mantemos com a realidade circundante, para o que dizemos e para as ações que realizamos nessas relações.
A reflexão filosófica organiza-se em torno de três grandes conjuntos de perguntas ou questões:
1. Por que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos e fazemos o que fazemos? Isto é, quais os motivos, as razões e as causas para pensarmos o que pensamos, dizermos o que dizemos, fazermos o que fazemos?
2. O que queremos pensar quando pensamos, o que queremos dizer quando falamos, o que queremos fazer quando agimos? Isto é, qual é o conteúdo ou o sentido do que pensamos, dizemos ou fazemos?
3. Para que pensamos o que pensamos, dizemos o que dizemos, fazemos o que fazemos? Isto é, qual é a intenção ou a finalidade do que pensamos, dizemos e fazemos?
Essas três questões podem ser resumidas em: O que é pensar, falar e agir? E elas pressupõem a seguinte pergunta: Nossas crenças cotidianas são ou não um saber verdadeiro, um conhecimento?
Como vimos, a atitude filosófica inicia-se indagando: O que é? Como é? Por que é?, dirigindo-se ao mundo que nos rodeia e aos seres humanos que nele vivem e com ele se relacionam. São perguntas sobre a essência, a significação ou a estrutura e a origem de todas as coisas.
Já a reflexão filosófica indaga: Por quê?, O quê?, Para quê?, dirigindo-se ao pensamento, aos seres humanos no ato da reflexão. São perguntas sobre a capacidade e a finalidade humanas para conhecer e agir.
Filosofia: um pensamento sistemático
Essas indagações fundamentais não se realizam ao acaso, segundo preferências e opiniões de cada um de nós. A Filosofia não é um “eu acho que” ou um “eu gosto de”. Não é pesquisa de opinião à maneira dos meios de comunicação de massa. Não é pesquisa de mercado para conhecer preferências dos consumidores e montar uma propaganda.
As indagações filosóficas se realizam de modo sistemático.
Que significa isso?
Significa que a Filosofia trabalha com enunciados precisos e rigorosos, busca encadeamentos lógicos entre os enunciados, opera com conceitos ou idéias obtidos por procedimentos de demonstração e prova, exige a fundamentação racional do que é enunciado e pensado. Somente assim a reflexão filosófica pode fazer com que nossa experiência cotidiana, nossas crenças e opiniões alcancem uma visão crítica de si mesmas. Não se trata de dizer “eu acho que”, mas de poder afirmar “eu penso que”.
O conhecimento filosófico é um trabalho intelectual. É sistemático porque não se contenta em obter respostas para as questões colocadas, mas exige que as próprias questões sejam válidas e, em segundo lugar, que as respostas sejam verdadeiras, estejam relacionadas entre si, esclareçam umas às outras, formem conjuntos coerentes de idéias e significações, sejam provadas e demonstradas racionalmente.
Quando o senso comum diz “esta é minha filosofia” ou “isso é a filosofia de fulana ou de fulano”, engana-se e não se engana.
Engana-se porque imagina que para “ter uma filosofia” basta alguém possuir um conjunto de idéias mais ou menos coerentes sobre todas as coisas e pessoas, bem como ter um conjunto de princípios mais ou menos coerentes para julgar as coisas e as pessoas. “Minha filosofia” ou a “filosofia de fulano” ficam no plano de um “eu acho” coerente.
Mas o senso comum não se engana ao usar essas expressões porque percebe, ainda que muito confusamente, que há uma característica nas idéias e nos princípios que nos leva a dizer que são uma filosofia: a coerência, as relações entre as idéias e entre os princípios. Ou seja, o senso comum pressente que a Filosofia opera sistematicamente, com coerência e lógica, que a Filosofia tem uma vocação para formar um todo daquilo que aparece de modo fragmentado em nossa experiência cotidiana.
Em busca de uma definição da Filosofia
Quando começamos a estudar Filosofia, somos logo levados a buscar o que ela é. Nossa primeira surpresa surge ao descobrirmos que não há apenas uma definição da Filosofia, mas várias. A segunda surpresa vem ao percebermos que, além de várias, as definições parecem contradizer-se. Eis porque muitos, cheios de perplexidade, indagam: afinal, o que é a Filosofia que sequer consegue dizer o que ela é?
Uma primeira aproximação nos mostra pelo menos quatro definições gerais do que seria a Filosofia:
1. Visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura. Filosofia corresponde, de modo vago e geral, ao conjunto de idéias, valores e práticas pelos quais uma sociedade apreende e compreende o mundo e a si mesma, definindo para si o tempo e o espaço, o sagrado e o profano, o bom e o mau, o justo e o injusto, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso, o possível e o impossível, o contingente e o necessário.
Qual o problema dessa definição? Ela é tão genérica e tão ampla que não permite, por exemplo, distinguir a Filosofia e religião, Filosofia e arte, Filosofia e ciência. Na verdade, essa definição identifica Filosofia e Cultura, pois esta é uma visão de mundo coletiva que se exprime em idéias, valores e práticas de uma sociedade.
A definição, portanto, não consegue acercar-se da especificidade do trabalho filosófico e por isso não podemos aceitá-la.
2. Sabedoria de vida. Aqui, a Filosofia é identificada com a definição e a ação de algumas pessoas que pensam sobre a vida moral, dedicando-se à contemplação do mundo para aprender com ele a controlar e dirigir suas vidas de modo ético e sábio.
A Filosofia seria uma contemplação do mundo e dos homens para nos conduzir a uma vida justa, sábia e feliz, ensinando-nos o domínio sobre nós mesmos, sobre nossos impulsos, desejos e paixões. É nesse sentido que se fala, por exemplo, numa filosofia do budismo.
Esta definição, porém, nos diz, de modo vago, o que se espera da Filosofia (a sabedoria interior), mas não o que é e o que faz a Filosofia e, por isso, também não podemos aceitá-la.
3. Esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido. Nesse caso, começa-se distinguindo entre Filosofia e religião e até mesmo opondo uma à outra, pois ambas possuem o mesmo objeto (compreender o Universo), mas a primeira o faz através do esforço racional, enquanto a segunda, por confiança (fé) numa revelação divina.
Ou seja, a Filosofia procura discutir até o fim o sentido e o fundamento da realidade, enquanto a consciência religiosa se baseia num dado primeiro e inquestionável, que é a revelação divina indemonstrável.
Pela fé, a religião aceita princípios indemonstráveis e até mesmo aqueles que podem ser considerados irracionais pelo pensamento, enquanto a Filosofia não admite indemonstrabilidade e irracionalidade. Pelo contrário, a consciência filosófica procura explicar e compreender o que parece ser irracional e inquestionável.
No entanto, esta definição também é problemática, porque dá à Filosofia a tarefa de oferecer uma explicação e uma compreensão totais sobre o Universo, elaborando um sistema universal ou um sistema do mundo, mas sabemos, hoje, que essa tarefa é impossível.
Há pelo menos duas limitações principais a esta pretensão totalizadora: em primeiro lugar, porque a explicação sobre a realidade também é oferecida pelas ciências e pelas artes, cada uma das quais definindo um aspecto e um campo da realidade para estudo (no caso das ciências) e para a expressão (no caso das artes), já não sendo pensável uma única disciplina que pudesse abranger sozinha a totalidade dos conhecimentos; em segundo lugar, porque a própria Filosofia já não admite que seja possível um sistema de pensamento único que ofereça uma única explicação para o todo da realidade. Por isso, esta definição também não pode ser aceita.
4. Fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. A Filosofia, cada vez mais, ocupa-se com as condições e os princípios do conhecimento que pretenda ser racional e verdadeiro; com a origem, a forma e o conteúdo dos valores éticos, políticos, artísticos e culturais; com a compreensão das causas e das formas da ilusão e do preconceito no plano individual e coletivo; com as transformações históricas dos conceitos, das idéias e dos valores.
A Filosofia volta-se, também, para o estudo da consciência em suas várias modalidades: percepção, imaginação, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo e paixões, procurando descrever as formas e os conteúdos dessas modalidades de relação entre o ser humano e o mundo, do ser humano consigo mesmo e com os outros. Finalmente, a Filosofia visa ao estudo e à interpretação de idéias ou significações gerais como: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição, mudança, etc.
Sem abandonar as questões sobre a essência da realidade, a Filosofia procura diferenciar-se das ciências e das artes, dirigindo a investigação sobre o mundo natural e o mundo histórico (ou humano) num momento muito preciso: quando perdemos nossas certezas cotidianas e quando as ciências e as artes ainda não ofereceram outras certezas para substituir as que perdemos.
Em outras palavras, a Filosofia se interessa por aquele instante em que a realidade natural (o mundo das coisas) e a histórica (o mundo dos homens) tornam-se estranhas, espantosas, incompreensíveis e enigmáticas, quando o senso comum já não sabe o que pensar e dizer e as ciências e as artes ainda não sabem o que pensar e dizer.
Esta última descrição da atividade filosófica capta a Filosofia como análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), como reflexão (isto é, volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e como crítica (das ilusões e dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artísticas), essas três atividades (análise, reflexão e crítica) estando orientadas pela elaboração filosófica de significações gerais sobre a realidade e os seres humanos. Além de análise, reflexão e crítica, a Filosofia é a busca do fundamento e do sentido da realidade em suas múltiplas formas indagando o que são, qual sua permanência e qual a necessidade interna que as transforma em outras. O que é o ser e o aparecer-desaparecer dos seres?
A Filosofia não é ciência: é uma reflexão crítica sobre os procedimentos e conceitos científicos. Não é religião: é uma reflexão crítica sobre as origens e formas das crenças religiosas. Não é arte: é uma interpretação crítica dos conteúdos, das formas, das significações das obras de arte e do trabalho artístico. Não é sociologia nem psicologia, mas a interpretação e avaliação crítica dos conceitos e métodos da sociologia e da psicologia. Não é política, mas interpretação, compreensão e reflexão sobre a origem, a natureza e as formas do poder. Não é história, mas interpretação do sentido dos acontecimentos enquanto inseridos no tempo e compreensão do que seja o próprio tempo. Conhecimento do conhecimento e da ação humanos, conhecimento da transformação temporal dos princípios do saber e do agir, conhecimento da mudança das formas do real ou dos seres, a Filosofia sabe que está na História e que possui uma história.
Inútil? Útil?
O primeiro ensinamento filosófico é perguntar: O que é o útil? Para que e para quem algo é útil? O que é o inútil? Por que e para quem algo é inútil?
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados visíveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”. Desse ponto de vista, a Filosofia é inteiramente inútil e defende o direito de ser inútil.
Não poderíamos, porém, definir o útil de outra maneira?
Platão definia a Filosofia como um saber verdadeiro que deve ser usado em benefício dos seres humanos.
Descartes dizia que a Filosofia é o estudo da sabedoria, conhecimento perfeito de todas as coisas que os humanos podem alcançar para o uso da vida, a conservação da saúde e a invenção das técnicas e das artes.
Kant afirmou que a Filosofia é o conhecimento que a razão adquire de si mesma para saber o que pode conhecer e o que pode fazer, tendo como finalidade a felicidade humana.
Marx declarou que a Filosofia havia passado muito tempo apenas contemplando o mundo e que se tratava, agora, de conhecê-lo para transformá-lo, transformação que traria justiça, abundância e felicidade para todos.
Merleau-Ponty escreveu que a Filosofia é um despertar para ver e mudar nosso mundo.
Espinosa afirmou que a Filosofia é um caminho árduo e difícil, mas que pode ser percorrido por todos, se desejarem a liberdade e a felicidade.
Qual seria, então, a utilidade da Filosofia?
Se abandonar a ingenuidade e os preconceitos do senso comum for útil; se não se deixar guiar pela submissão às idéias dominantes e aos poderes estabelecidos for útil; se buscar compreender a significação do mundo, da cultura, da história for útil; se conhecer o sentido das criações humanas nas artes, nas ciências e na política for útil; se dar a cada um de nós e à nossa sociedade os meios para serem conscientes de si e de suas ações numa prática que deseja a liberdade e a felicidade para todos for útil, então podemos dizer que a Filosofia é o mais útil de todos os saberes de que os seres humanos são capazes.

Capítulo 1


A origem da Filosofia


A palavra filosofia
A palavra filosofia é grega. É composta por duas outras: philo e sophia. Philo deriva-se de philia, que significa amizade, amor fraterno, respeito entre os iguais. Sophia quer dizer sabedoria e dela vem a palavra sophos, sábio.
Filosofia significa, portanto, amizade pela sabedoria, amor e respeito pelo saber. Filósofo: o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber.
Assim, filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita.
Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V antes de Cristo) a invenção da palavra filosofia. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-la ou amá-la, tornando-se filósofos.
Dizia Pitágoras que três tipos de pessoas compareciam aos jogos olímpicos (a festa mais importante da Grécia): as que iam para comerciar durante os jogos, ali estando apenas para servir aos seus próprios interesses e sem preocupação com as disputas e os torneios; as que iam para competir, isto é, os atletas e artistas (pois, durante os jogos também havia competições artísticas: dança, poesia, música, teatro); e as que iam para contemplar os jogos e torneios, para avaliar o desempenho e julgar o valor dos que ali se apresentavam. Esse terceiro tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é como o filósofo.
Com isso, Pitágoras queria dizer que o filósofo não é movido por interesses comerciais - não coloca o saber como propriedade sua, como uma coisa para ser comprada e vendida no mercado; também não é movido pelo desejo de competir - não faz das idéias e dos conhecimentos uma habilidade para vencer competidores ou “atletas intelectuais”; mas é movido pelo desejo de observar, contemplar, julgar e avaliar as coisas, as ações, a vida: em resumo, pelo desejo de saber. A verdade não pertence a ninguém, ela é o que buscamos e que está diante de nós para ser contemplada e vista, se tivermos olhos (do espírito) para vê-la.
A Filosofia é grega
A Filosofia, entendida como aspiração ao conhecimento racional, lógico e sistemático da realidade natural e humana, da origem e causas do mundo e de suas transformações, da origem e causas das ações humanas e do próprio pensamento, é um fato tipicamente grego.
Evidentemente, isso não quer dizer, de modo algum, que outros povos, tão antigos quanto os gregos, como os chineses, os hindus, os japoneses, os árabes, os persas, os hebreus, os africanos ou os índios da América não possuam sabedoria, pois possuíam e possuem. Também não quer dizer que todos esses povos não tivessem desenvolvido o pensamento e formas de conhecimento da Natureza e dos seres humanos, pois desenvolveram e desenvolvem.
Quando se diz que a Filosofia é um fato grego, o que se quer dizer é que ela possui certas características, apresenta certas formas de pensar e de exprimir os pensamentos, estabelece certas concepções sobre o que sejam a realidade, o pensamento, a ação, as técnicas, que são completamente diferentes das características desenvolvidas por outros povos e outras culturas.
Vejamos um exemplo. Os chineses desenvolveram um pensamento muito profundo sobre a existência de coisas, seres e ações contrários ou opostos, que formam a realidade. Deram às oposições o nome de dois princípios: Yin e Yang. Yin é o princípio feminino passivo na Natureza, representado pela escuridão, o frio e a umidade; Yang é o princípio masculino ativo na Natureza, representado pela luz, o calor e o seco. Os dois princípios se combinam e formam todas as coisas, que, por isso, são feitas de contrários ou de oposições. O mundo, portanto, é feito da atividade masculina e da passividade feminina.
Tomemos agora um filósofo grego, por exemplo, o próprio Pitágoras. Que diz ele? Que a Natureza é feita de um sistema de relações ou de proporções matemáticas produzidas a partir da unidade (o número 1 e o ponto), da oposição entre os números pares e ímpares, e da combinação entre as superfícies e os volumes (as figuras geométricas), de tal modo que essas proporções e combinações aparecem para nossos órgãos dos sentidos sob a forma de qualidades contrárias: quente-frio, seco-úmido, áspero-liso, claro-escuro, grande-pequeno, doce-amargo, duro-mole, etc. Para Pitágoras, o pensamento alcança a realidade em sua estrutura matemática, enquanto nossos sentidos ou nossa percepção alcançam o modo como a estrutura matemática da Natureza aparece para nós, isto é, sob a forma de qualidades opostas.
Qual a diferença entre o pensamento chinês e o do filósofo grego?
O pensamento chinês toma duas características (masculino e feminino) existentes em alguns seres (os animais e os humanos) e considera que o Universo inteiro é feito da oposição entre qualidades atribuídas a dois sexos diferentes, de sorte que o mundo é organizado pelo princípio da sexualidade animal ou humana.
O pensamento de Pitágoras apanha a Natureza numa generalidade muito mais ampla do que a sexualidade própria a alguns seres da Natureza, e faz distinção entre as qualidades sensoriais que nos aparecem e a estrutura invisível da Natureza, que, para ele, é de tipo matemático e alcançada apenas pelo intelecto, ou inteligência.
São diferenças desse tipo, além de muitas outras, que nos levam a dizer que existe uma sabedoria chinesa, uma sabedoria hindu, uma sabedoria dos índios, mas não há filosofia chinesa, filosofia hindu ou filosofia indígena.
Em outras palavras, Filosofia é um modo de pensar e exprimir os pensamentos que surgiu especificamente com os gregos e que, por razões históricas e políticas, tornou-se, depois, o modo de pensar e de se exprimir predominante da chamada cultura européia ocidental da qual, em decorrência da colonização portuguesa do Brasil, nós também participamos.
Através da Filosofia, os gregos instituíram para o Ocidente europeu as bases e os princípios fundamentais do que chamamos razão, racionalidade, ciência, ética, política, técnica, arte.
Aliás, basta observarmos que palavras como lógica, técnica, ética, política, monarquia, anarquia, democracia, física, diálogo, biologia, cronologia, gênese, genealogia, cirurgia, ortopedia, pedagogia, farmácia, entre muitas outras, são palavras gregas, para percebermos a influência decisiva e predominante da Filosofia grega sobre a formação do pensamento e das instituições das sociedades européias ocidentais.
É por isso que, em decorrência do predomínio da economia capitalista criada pelo Ocidente e que impõe um certo tipo de desenvolvimento das ciências e das técnicas, falamos, por exemplo, em “ocidentalização dos chineses”, “ocidentalização dos árabes”, etc. Com isso queremos significar que modos de pensar e de agir, criados no Ocidente pela Filosofia grega, foram incorporados até mesmo por culturas e sociedades muito diferentes daquela onde nasceu a Filosofia.
É pelo mesmo motivo que falamos em “orientalismos” e “orientalistas” para indicar pessoas que buscam no budismo, no confucionismo, no Yin e no Yang, nos mantras, nas pirâmides, nas auras, nas pedras e cristais maneiras de pensar e de explicar a realidade, a Natureza, a vida e as ações humanas que não são próprias ou específicas do Ocidente, isto é, são diferentes do padrão de pensamento e de explicação que foram criados pelos gregos a partir do século VII antes de Cristo, época em que nasce a Filosofia.
O legado da Filosofia grega para o Ocidente europeu
Por causa da colonização européia das Américas, nós também fazemos parte - ainda que de modo inferiorizado e colonizado - do Ocidente europeu e assim também somos herdeiros do legado que a Filosofia grega deixou para o pensamento ocidental europeu.
Desse legado, podemos destacar como principais contribuições as seguintes:
● A idéia de que a Natureza opera obedecendo a leis e princípios necessários e universais, isto é, os mesmos em toda a parte e em todos os tempos. Assim, por exemplo, graças aos gregos, no século XVII da nossa era, o filósofo inglês Isaac Newton estabeleceu a lei da gravitação universal de todos os corpos da Natureza.
A lei da gravitação afirma que todo corpo, quando sofre a ação de um outro, produz uma reação igual e contrária, que pode ser calculada usando como elementos do cálculo a massa do corpo afetado, a velocidade e o tempo com que a ação e a reação se deram.
Essa lei é necessária, isto é, nenhum corpo do Universo escapa dela e pode funcionar de outra maneira que não desta; e esta lei é universal, isto é, válida para todos os corpos em todos os tempos e lugares.
Um outro exemplo: as leis geométricas do triângulo ou do círculo, conforme demonstraram os filósofos gregos, são universais e necessárias, isto é, seja em Tóquio em 1993, em Copenhague em 1970, em Lisboa em 1810, em São Paulo em 1792, em Moçambique em 1661, ou em Nova York em 1975, as leis do triângulo ou do círculo são necessariamente as mesmas.
● A idéia de que as leis necessárias e universais da Natureza podem ser plenamente conhecidas pelo nosso pensamento, isto é, não são conhecimentos misteriosos e secretos, que precisariam ser revelados por divindades, mas são conhecimentos que o pensamento humano, por sua própria força e capacidade, pode alcançar.
● A idéia de que nosso pensamento também opera obedecendo a leis, regras e normas universais e necessárias, segundo as quais podemos distinguir o verdadeiro do falso. Em outras palavras, a idéia de que o nosso pensamento é lógico ou segue leis lógicas de funcionamento.
Nosso pensamento diferencia uma afirmação de uma negação porque, na afirmação, atribuímos alguma coisa a outra coisa (quando afirmamos que “Sócrates é um ser humano”, atribuímos humanidade a Sócrates) e, na negação, retiramos alguma coisa de outra (quando dizemos “este caderno não é verde”, estamos retirando do caderno a cor verde).
Nosso pensamento distingue quando uma afirmação é verdadeira ou falsa. Se alguém apresentar o seguinte raciocínio: “Todos os homens são mortais. Sócrates é homem. Logo, Sócrates é mortal”, diremos que a afirmação “Sócrates é mortal” é verdadeira, porque foi concluída de outras afirmações que já sabemos serem verdadeiras.
● A idéia de que as práticas humanas, isto é, a ação moral, a política, as técnicas e as artes dependem da vontade livre, da deliberação e da discussão, da nossa escolha passional (ou emocional) ou racional, de nossas preferências, segundo certos valores e padrões, que foram estabelecidos pelos próprios seres humanos e não por imposições misteriosas e incompreensíveis, que lhes teriam sido feitas por forças secretas, invisíveis, sejam elas divinas ou naturais, e impossíveis de serem conhecidas.
● A idéia de que os acontecimentos naturais e humanos são necessários, porque obedecem a leis naturais ou da natureza humana, mas também podem ser contingentes ou acidentais, quando dependem das escolhas e deliberações dos homens, em condições determinadas.
Dessa forma, uma pedra cai porque seu peso, por uma lei natural, exige que ela caia natural e necessariamente; um ser humano anda porque as leis anatômicas e fisiológicas que regem o seu corpo fazem com que ele tenha os meios necessários para a locomoção.
No entanto, se uma pedra, ao cair, atingir a cabeça de um passante, esse acontecimento é contingente ou acidental. Por quê? Porque, se o passante não estivesse andando por ali naquela hora, a pedra não o atingiria. Assim, a queda da pedra é necessária e o andar de um ser humano é necessário, mas que uma pedra caia sobre minha cabeça quando ando é inteiramente contingente ou acidental.
Todavia, é muito diferente a situação das ações humanas. É verdade que é por uma necessidade natural ou por uma lei da Natureza que ando. Mas é por deliberação voluntária que ando para ir à escola em vez de andar para ir ao cinema, por exemplo. É verdade que é por uma lei necessária da Natureza que os corpos pesados caem, mas é por uma deliberação humana e por uma escolha voluntária que fabrico uma bomba, a coloco num avião e a faço despencar sobre Hiroshima.
Um dos legados mais importantes da Filosofia grega é, portanto, essa diferença entre o necessário e o contingente, pois ela nos permite evitar o fatalismo - “tudo é necessário, temos que nos conformar e nos resignar” -, mas também evitar a ilusão de que podemos tudo quanto quisermos, se alguma força extranatural ou sobrenatural nos ajudar, pois a Natureza segue leis necessárias que podemos conhecer e nem tudo é possível por mais que o queiramos.
● A idéia de que os seres humanos, por Natureza, aspiram ao conhecimento verdadeiro, à felicidade, à justiça, isto é, que os seres humanos não vivem nem agem cegamente, mas criam valores pelo quais dão sentido às suas vidas e às suas ações.
A Filosofia surge, portanto, quando alguns gregos, admirados e espantados com a realidade, insatisfeitos com as explicações que a tradição lhes dera, começaram a fazer perguntas e buscar respostas para elas, demonstrando que o mundo e os seres humanos, os acontecimentos e as coisas da Natureza, os acontecimentos e as ações humanas podem ser conhecidos pela razão humana, e que a própria razão é capaz de conhecer-se a si mesma.
Em suma, a Filosofia surge quando se descobriu que a verdade do mundo e dos humanos não era algo secreto e misterioso, que precisasse ser revelado por divindades a alguns escolhidos, mas que, ao contrário, podia ser conhecida por todos, através da razão, que é a mesma em todos; quando se descobriu que tal conhecimento depende do uso correto da razão ou do pensamento e que, além da verdade poder ser conhecida por todos, podia, pelo mesmo motivo, ser ensinada ou transmitida a todos.





Capítulo 2


O nascimento da Filosofia



Ouvindo a voz dos poetas
Escutemos, por um instante, a voz dos poetas, porque ela costuma exprimir o que chamamos de “sentimento do mundo”, o sentimento da velhice e da juventude perene do mundo, da grandeza e da pequeneza dos humanos ou dos mortais.
Assim, o poeta grego Arquíloco escreveu:
E não te esqueças, meu coração,
que as coisas humanas apenas
mudanças incertas são.
Outro poeta grego, Teógnis, cantando sobre a brevidade da vida, dizia:
Choremos a juventude e a velhice também,
pois a primeira foge e a segunda sempre vem.
Também o poeta grego Píndaro falava do sentimento das coisas humanas como passageiras:
A glória dos mortais num só dia cresce,
Mas basta um só dia, contrário e funesto,
para que o destino, impiedoso, num gesto
a lance por terra e ela, súbito, fenece.
Mas não só a vida e os feitos dos humanos são breves e frágeis. Os poetas também exprimem o sentimento de que o mundo é tecido por mudanças e repetições intermináveis. A esse respeito, a poetisa brasileira Orides Fontela escreveu:
O vento, a chuva, o sol, o frio
Tudo vai e vem, tudo vem e vai.
E o poeta brasileiro, Carlos Drummond, por sua vez, lamentou:
Como a vida muda.
Como a vida é muda.
Como a vida é nuda.
Como a vida é nada.
Como a vida é tudo.
...
Como a vida é senha
de outra vida nova
...
Como a vida é vida
ainda quando morte
...
Como a vida é forte
em suas algemas.
...
Como a vida é bela
...
Como a vida vale
mais que a própria vida
sempre renascida.
O sentimento de renovação e beleza do mundo, da vida, dos seres humanos é o que transparece nos versos do poeta brasileiro Mário Quintana, nos seguintes versos:
Quando abro a cada manhã a janela do meu quarto
É como se abrisse o mesmo livro
Numa página nova...
E, por isso, em outros versos seus, lemos:
O encanto
sobrenatural
que há
nas coisas da Natureza!
...
se nela algo te dá
encanto ou medo,
não me digas que seja feia
ou má,
é, acaso, singular...
Numa das obras poéticas mais importantes da cultura do Ocidente europeu, as Metamorfoses, o poeta romano Ovídio exprimiu todos esses sentimentos que experimentamos diante da mudança, da renovação e da repetição, do nascimento e da morte das coisas e dos seres humanos. Na parte final de sua obra, lemos:
Não há coisa alguma que persista em todo o Universo. Tudo flui, e tudo só apresenta uma imagem passageira. O próprio tempo passa com um movimento contínuo, como um rio... O que foi antes já não é, o que não tinha sido é, e todo instante é uma coisa nova. Vês a noite, próxima do fim, caminhar para o dia, e à claridade do dia suceder a escuridão da noite... Não vês as estações do ano se sucederem, imitando as idades de nossa vida? Com efeito, a primavera, quando surge, é semelhante à criança nova... A planta nova, pouco vigorosa, rebenta em brotos e enche de esperança o agricultor. Tudo floresce. O fértil campo resplandece com o colorido das flores, mas ainda falta vigor às folhas. Entra, então, a quadra mais forte e vigorosa, o verão: é a robusta mocidade, fecunda e ardente. Chega, por sua vez, o outono: passou o fervor da mocidade, é a quadra da maturidade, o meio-termo entre o jovem e o velho; as têmporas embranquecem. Vem, depois, o tristonho inverno: é o velho trôpego, cujos cabelos ou caíram como as folhas das árvores, ou, os que restaram, estão brancos como a neve dos caminhos. Também nossos corpos mudam sempre e sem descanso... E também a Natureza não descansa e, renovadora, encontra outras formas nas formas das coisas. Nada morre no vasto mundo, mas tudo assume aspectos novos e variados... Todos os seres têm sua origem noutros seres. Existe uma ave a que os fenícios dão o nome de fênix. Não se alimenta de grãos ou ervas, mas das lágrimas do incenso e do suco da amônia. Quando completa cinco séculos de vida, constrói um ninho no alto de uma grande palmeira, feito de folhas de canela, do aromático nardo e da mirra avermelhada. Ali se acomoda e termina a vida entre perfumes. De suas cinzas, renasce uma pequena fênix, que viverá outros cinco séculos... Assim também é a Natureza e tudo o que nela existe e persiste.
O que perguntavam os primeiros filósofos
Por que os seres nascem e morrem? Por que os semelhantes dão origem aos semelhantes, de uma árvore nasce outra árvore, de um cão nasce outro cão, de uma mulher nasce uma criança? Por que os diferentes também parecem fazer surgir os diferentes: o dia parece fazer nascer a noite, o inverno parece fazer surgir a primavera, um objeto escuro clareia com o passar do tempo, um objeto claro escurece com o passar do tempo?
Por que tudo muda? A criança se torna adulta, amadurece, envelhece e desaparece. A paisagem, cheia de flores na primavera, vai perdendo o verde e as cores no outono, até ressecar-se e retorcer-se no inverno. Por que um dia luminoso e ensolarado, de céu azul e brisa suave, repentinamente, se torna sombrio, coberto de nuvens, varrido por ventos furiosos, tomado pela tempestade, pelos raios e trovões?
Por que a doença invade os corpos, rouba-lhes a cor, a força? Por que o alimento que antes me agradava, agora, que estou doente, me causa repugnância? Por que o som da música que antes me embalava, agora, que estou doente, parece um ruído insuportável?
Por que o que parecia uno se multiplica em tantos outros? De uma só árvore, quantas flores e quantos frutos nascem! De uma só gata, quantos gatinhos nascem!
Por que as coisas se tornam opostas ao que eram? A água do copo, tão transparente e de boa temperatura, torna-se uma barra dura e gelada, deixa de ser líquida e transparente para tornar-se sólida e acinzentada. O dia, que começa frio e gelado, pouco a pouco, se torna quente e cheio de calor.
Por que nada permanece idêntico a si mesmo? De onde vêm os seres? Para onde vão, quando desaparecem? Por que se transformam? Por que se diferenciam uns dos outros? Mas também, por que tudo parece repetir-se? Depois do dia, a noite; depois da noite, o dia. Depois do inverno, a primavera, depois da primavera, o verão, depois deste, o outono e depois deste, novamente o inverno. De dia, o sol; à noite, a lua e as estrelas. Na primavera, o mar é tranqüilo e propício à navegação; no inverno, tempestuoso e inimigo dos homens. O calor leva as águas para o céu e as traz de volta pelas chuvas. Ninguém nasce adulto ou velho, mas sempre criança, que se torna adulto e velho.
Foram perguntas como essas que os primeiros filósofos fizeram e para elas buscaram respostas.
Sem dúvida, a religião, as tradições e os mitos explicavam todas essas coisas, mas suas explicações já não satisfaziam aos que interrogavam sobre as causas da mudança, da permanência, da repetição, da desaparição e do ressurgimento de todos os seres. Haviam perdido força explicativa, não convenciam nem satisfaziam a quem desejava conhecer a verdade sobre o mundo.
O nascimento da Filosofia
Os historiadores da Filosofia dizem que ela possui data e local de nascimento: final do século VII e início do século VI antes de Cristo, nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente as que formavam uma região denominada Jônia), na cidade de Mileto. E o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.
Além de possuir data e local de nascimento e de possuir seu primeiro autor, a Filosofia também possui um conteúdo preciso ao nascer: é uma cosmologia. A palavra cosmologia é composta de duas outras: cosmos, que significa mundo ordenado e organizado, e logia, que vem da palavra logos, que significa pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Assim, a Filosofia nasce como conhecimento racional da ordem do mundo ou da Natureza, donde, cosmologia.
Apesar da segurança desses dados, existe um problema que, durante séculos, vem ocupando os historiadores da Filosofia: o de saber se a Filosofia - que é um fato especificamente grego - nasceu por si mesma ou dependeu de contribuições da sabedoria oriental (egípcios, assírios, persas, caldeus, babilônios) e da sabedoria de civilizações que antecederam à grega, na região que, antes de ser a Grécia ou a Hélade, abrigara as civilizações de Creta, Minos, Tirento e Micenas.
Durante muito tempo, considerou-se que a Filosofia nascera por transformações que os gregos operaram na sabedoria oriental (egípcia, persa, caldéia e babilônica). Assim, filósofos como Platão e Aristóteles afirmavam a origem oriental da Filosofia. Os gregos, diziam eles, povo comerciante e navegante, descobriram, através das viagens, a agrimensura dos egípcios (usada para medir as terras, após as cheias do Nilo), a astrologia dos caldeus e dos babilônios (usada para prever grandes guerras, subida e queda de reis, catástrofes como peste, fome, furacões), as genealogias dos persas (usadas para dar continuidade às linhagens e dinastias dos governantes), os mistérios religiosos orientais referentes aos rituais de purificação da alma (para livrá-la da reencarnação contínua e garantir-lhe o descanso eterno), etc. A Filosofia teria nascido pelas transformações que os gregos impuseram a esses conhecimentos.
Dessa forma, da agrimensura, os gregos fizeram nascer duas ciências: a aritmética e a geometria; da astrologia, fizeram surgir também duas ciências: a astronomia e a meteorologia; das genealogias, fizeram surgir mais uma outra ciência: a história; dos mistérios religiosos de purificação da alma, fizeram surgir as teorias filosóficas sobre a natureza e o destino da alma humana.
Todos esses conhecimentos teriam propiciado o aparecimento da Filosofia, isto é, da cosmologia, de sorte que a Filosofia só teria podido nascer graças as saber oriental.
Essa idéia de uma filiação oriental da Filosofia foi muito defendida oito séculos depois de seu nascimento (durante os séculos II e III depois de Cristo), no período do Império Romano. Quem a defendia? Os pensadores judaicos, como Filo de Alexandria, e os Padres da Igreja, como Eusébio de Cesaréia e Clemente de Alexandria.
Por que defendiam a origem oriental da Filosofia grega? Pelo seguinte motivo: a Filosofia grega tornara-se, em toda a Antigüidade clássica, e para os poderosos da época, os romanos, a forma superior ou mais elevada do pensamento e da moral.
Os judeus, para valorizar seu pensamento, desejavam que a Filosofia tivesse uma origem oriental, dizendo que o pensamento de filósofos importantes, como Platão, tinha surgido no Egito, onde se originara o pensamento de Moisés, de modo que havia uma ligação entre a Filosofia grega e a Bíblia.
Os Padres da Igreja, por sua vez, queriam mostrar que os ensinamentos de Jesus eram elevados e perfeitos, não eram superstição, nem primitivos e incultos, e por isso mostravam que os filósofos gregos estavam filiados a correntes de pensamento místico e oriental e, dessa maneira, estariam próximos do cristianismo, que é uma religião oriental.
No entanto, nem todos aceitaram a tese chamada “orientalista”, e muitos, sobretudo no século XIX da nossa era, passaram a falar na Filosofia como sendo o “milagre grego”.
Com a palavra “milagre” queriam dizer várias coisas:
● que a Filosofia surgiu inesperada e espantosamente na Grécia, sem que nada anterior a preparasse;
● que a Filosofia grega foi um acontecimento espontâneo, único e sem par, como é próprio de um milagre;
● que os gregos foram um povo excepcional, sem nenhum outro semelhante a eles, nem antes e nem depois deles, e por isso somente eles poderiam ter sido capazes de criar a Filosofia, como foram os únicos a criar as ciências e a dar às artes uma elevação que nenhum outro povo conseguiu, nem antes e nem depois deles.
Nem oriental, nem milagre
Desde o final do século XIX da nossa era e durante o século XX, estudos históricos, arqueológicos, lingüísticos, literários e artísticos corrigiram os exageros das duas teses, isto é, tanto a redução da Filosofia à sua origem oriental, quanto o “milagre grego”.
Retirados os exageros do orientalismo, percebe-se que, de fato, a Filosofia tem dívidas com a sabedoria dos orientais, não só porque as viagens colocaram os gregos em contato com os conhecimentos produzidos por outros povos (sobretudo os egípcios, persas, babilônios, assírios e caldeus), mas também porque os dois maiores formadores da cultura grega antiga, os poetas Homero e Hesíodo, encontraram nos mitos e nas religiões dos povos orientais, bem como nas culturas que precederam a grega, os elementos para elaborar a mitologia grega, que, depois, seria transformada racionalmente pelos filósofos.
Assim, os estudos recentes mostraram que mitos, cultos religiosos, instrumentos musicais, dança, música, poesia, utensílios domésticos e de trabalho, formas de habitação, formas de parentesco e formas de organização tribal dos gregos foram resultado de contatos profundos com as culturas mais avançadas do Oriente e com a herança deixada pelas culturas que antecederam a grega, nas regiões onde ela se implantou.
Esses mesmos estudos apontaram, porém, que, se nos afastarmos dos exageros da idéia de um “milagre grego”, podemos perceber o que havia de verdadeiro nessa tese. De fato, os gregos imprimiram mudanças de qualidade tão profundas no que receberam do Oriente e das culturas precedentes, que até pareceria terem criado sua própria cultura a partir de si mesmos. Dessas mudanças, podemos mencionar quatro que nos darão uma idéia da originalidade grega:
1. Com relação aos mitos: quando comparamos os mitos orientais, cretenses, micênicos, minóicos e os que aparecem nos poetas Homero e Hesíodo, vemos que eles retiraram os aspectos apavorantes e monstruosos dos deuses e do início do mundo; humanizaram os deuses, divinizaram os homens; deram racionalidade a narrativas sobre as origens das coisas, dos homens, das instituições humanas (como o trabalho, as leis, a moral);
2. Com relação aos conhecimentos: os gregos transformaram em ciência (isto é, num conhecimento racional, abstrato e universal) aquilo que eram elementos de uma sabedoria prática para o uso direto na vida.
Assim, transformaram em matemática (aritmética, geometria, harmonia) o que eram expedientes práticos para medir, contar e calcular; transformaram em astronomia (conhecimento racional da natureza e do movimento dos astros) aquilo que eram práticas de adivinhação e previsão do futuro; transformaram em medicina (conhecimento racional sobre o corpo humano, a saúde e a doença) aquilo que eram práticas de grupos religiosos secretos para a cura misteriosa das doenças. E assim por diante;
3. Com relação à organização social e política: os gregos não inventaram apenas a ciência ou a Filosofia, mas inventaram também a política. Todas as sociedades anteriores a eles conheciam e praticavam a autoridade e o governo. Mas, por que não inventaram a política propriamente dita?
Nas sociedades orientais e não-gregas, o poder e o governo eram exercidos como autoridade absoluta da vontade pessoal e arbitrária de um só homem ou de um pequeno grupo de homens que decidiam sobre tudo, sem consultar a ninguém e sem justificar suas decisões para ninguém.
Os gregos inventaram a política (palavra que vem de polis, que, em grego, significa cidade organizada por leis e instituições) porque instituíram práticas pelas quais as decisões eram tomadas a partir de discussões e debates públicos e eram adotadas ou revogadas por voto em assembléias públicas; porque estabeleceram instituições públicas (tribunais, assembléias, separação entre autoridade do chefe da família e autoridade pública, entre autoridade político-militar e autoridade religiosa) e sobretudo porque criaram a idéia da lei e da justiça como expressões da vontade coletiva pública e não como imposição da vontade de um só ou de um grupo, em nome de divindades.
Os gregos criaram a política porque separaram o poder político e duas outras formas tradicionais de autoridade: a do chefe de família e a do sacerdote ou mago;
4. Com relação ao pensamento: diante da herança recebida, os gregos inventaram a idéia ocidental da razão como um pensamento sistemático que segue regras, normas e leis de valor universal (isto é, válidas em todos os tempos e lugares. Assim, por exemplo, em qualquer tempo e lugar 2 + 2 serão sempre 4; o triângulo sempre terá três lados; o Sol sempre será maior do que a Terra, mesmo que ele pareça menor do que ela, etc.).
Mito e Filosofia
Resolvido esse problema, agora temos um outro que também tem ocupado muito os estudiosos. O novo problema pode ser assim formulado: a Filosofia nasceu realizando uma transformação gradual sobre os mitos gregos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos?
O que é um mito?
Um mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa (origem dos astros, da Terra, dos homens, das plantas, dos animais, do fogo, da água, dos ventos, do bem e do mal, da saúde e da doença, da morte, dos instrumentos de trabalho, das raças, das guerras, do poder, etc.).
A palavra mito vem do grego, mythos, e deriva de dois verbos: do verbo mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e do verbo mytheo (conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Para os gregos, mito é um discurso pronunciado ou proferido para ouvintes que recebem como verdadeira a narrativa, porque confiam naquele que narra; é uma narrativa feita em público, baseada, portanto, na autoridade e confiabilidade da pessoa do narrador. E essa autoridade vem do fato de que ele ou testemunhou diretamente o que está narrando ou recebeu a narrativa de quem testemunhou os acontecimentos narrados.
Quem narra o mito? O poeta-rapsodo. Quem é ele? Por que tem autoridade? Acredita-se que o poeta é um escolhido dos deuses, que lhe mostram os acontecimentos passados e permitem que ele veja a origem de todos os seres e de todas as coisas para que possa transmiti-la aos ouvintes. Sua palavra - o mito - é sagrada porque vem de uma revelação divina. O mito é, pois, incontestável e inquestionável.
Como o mito narra a origem do mundo e de tudo o que nele existe?
De três maneiras principais:
1. Encontrando o pai e a mãe das coisas e dos seres, isto é, tudo o que existe decorre de relações sexuais entre forças divinas pessoais. Essas relações geram os demais deuses: os titãs (seres semi-humanos e semidivinos), os heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), os humanos, os metais, as plantas, os animais, as qualidades, como quente-frio, seco-úmido, claro-escuro, bom-mau, justo-injusto, belo-feio, certo-errado, etc.
A narração da origem é, assim, uma genealogia, isto é, narrativa da geração dos seres, das coisas, das qualidades, por outros seres, que são seus pais ou antepassados.
Tomemos um exemplo da narrativa mítica.
Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, isto é, o nascimento do deus Eros (que conhecemos mais com o nome de Cupido):
Houve uma grande festa entre os deuses. Todos foram convidados, menos a deusa Penúria, sempre miserável e faminta. Quando a festa acabou, Penúria veio, comeu os restos e dormiu com o deus Poros (o astuto engenhoso). Dessa relação sexual, nasceu Eros (ou Cupido), que, como sua mãe, está sempre faminto, sedento e miserável, mas, como seu pai, tem mil astúcias para se satisfazer e se fazer amado. Por isso, quando Eros fere alguém com sua flecha, esse alguém se apaixona e logo se sente faminto e sedento de amor, inventa astúcias para ser amado e satisfeito, ficando ora maltrapilho e semimorto, ora rico e cheio de vida.
2. Encontrando uma rivalidade ou uma aliança entre os deuses que faz surgir alguma coisa no mundo. Nesse caso, o mito narra ou uma guerra entre as forças divinas, ou uma aliança entre elas para provocar alguma coisa no mundo dos homens.
O poeta Homero, na Ilíada, que narra a guerra de Tróia, explica por que, em certas batalhas, os troianos eram vitoriosos e, em outras, a vitória cabia aos gregos. Os deuses estavam divididos, alguns a favor de um lado e outros a favor do outro. A cada vez, o rei dos deuses, Zeus, ficava com um dos partidos, aliava-se com um grupo e fazia um dos lados - ou os troianos ou os gregos - vencer uma batalha.
A causa da guerra, aliás, foi uma rivalidade entre as deusas. Elas apareceram em sonho para o príncipe troiano Paris, oferecendo a ele seus dons e ele escolheu a deusa do amor, Afrodite. As outras deusas, enciumadas, o fizeram raptar a grega Helena, mulher do general grego Menelau, e isso deu início à guerra entre os humanos.
3. Encontrando as recompensas ou castigos que os deuses dão a quem os desobedece ou a quem os obedece.
Como o mito narra, por exemplo, o uso do fogo pelos homens? Para os homens, o fogo é essencial, pois com ele se diferenciam dos animais, porque tanto passam a cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer no inverno quanto podem fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra.
Um titã, Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os humanos. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens?
Os deuses fizeram uma mulher encantadora, Pandora, a quem foi entregue uma caixa que conteria coisas maravilhosas, mas nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males no mundo.
Vemos, portanto, que o mito narra a origem das coisas por meio de lutas, alianças e relações sexuais entre forças sobrenaturais que governam o mundo e o destino dos homens. Como os mitos sobre a origem do mundo são genealogias, diz-se que são cosmogonias e teogonias.
A palavra gonia vem de duas palavras gregas: do verbo gennao (engendrar, gerar, fazer nascer e crescer) e do substantivo genos (nascimento, gênese, descendência, gênero, espécie). Gonia, portanto, quer dizer: geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmos, como já vimos, quer dizer mundo ordenado e organizado. Assim, a cosmogonia é a narrativa sobre o nascimento e a organização do mundo, a partir de forças geradoras (pai e mãe) divinas.
Teogonia é uma palavra composta de gonia e theós, que, em grego, significa: as coisas divinas, os seres divinos, os deuses. A teogonia é, portanto, a narrativa da origem dos deuses, a partir de seus pais e antepassados.
Qual é a pergunta dos estudiosos? É a seguinte: A Filosofia, ao nascer, é, como já dissemos, uma cosmologia, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações e repetições das coisas; para isso, ela nasce de uma transformação gradual dos mitos ou de uma ruptura radical com os mitos? Continua ou rompe com a cosmogonia e a teogonia?
Duas foram as respostas dadas.
A primeira delas foi dada nos fins do século XIX e começo do século XX, quando reinava um grande otimismo sobre os poderes científicos e capacidades técnicas do homem. Dizia-se, então, que a Filosofia nasceu por uma ruptura radical com os mitos, sendo a primeira explicação científica da realidade produzida pelo Ocidente.
A segunda resposta foi dada a partir de meados do século XX, quando os estudos dos antropólogos e dos historiadores mostraram a importância dos mitos na organização social e cultural das sociedades e como os mitos estão profundamente entranhados nos modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Por isso, dizia-se que os gregos, como qualquer outro povo, acreditavam em seus mitos e que a Filosofia nasceu, vagarosa e gradualmente, do interior dos próprios mitos, como uma racionalização deles.
Atualmente consideram-se as duas respostas exageradas e afirma-se que a Filosofia, percebendo as contradições e limitações dos mitos, foi reformulando e racionalizando as narrativas míticas, transformando-as numa outra coisa, numa explicação inteiramente nova e diferente.
Quais são as diferenças entre Filosofia e mito? Podemos apontar três como as mais importantes:
1. O mito pretendia narrar como as coisas eram ou tinham sido no passado imemorial, longínquo e fabuloso, voltando-se para o que era antes que tudo existisse tal como existe no presente. A Filosofia, ao contrário, se preocupa em explicar como e por que, no passado, no presente e no futuro (isto é, na totalidade do tempo), as coisas são como são;
2. O mito narrava a origem através de genealogias e rivalidades ou alianças entre forças divinas sobrenaturais e personalizadas, enquanto a Filosofia, ao contrário, explica a produção natural das coisas por elementos e causas naturais e impessoais.
O mito falava em Urano, Ponto e Gaia; a Filosofia fala em céu, mar e terra. O mito narra a origem dos seres celestes (os astros), terrestres (plantas, animais, homens) e marinhos pelos casamentos de Gaia com Urano e Ponto. A Filosofia explica o surgimento desses seres por composição, combinação e separação dos quatro elementos - úmido, seco, quente e frio, ou água, terra, fogo e ar.
3. O mito não se importava com contradições, com o fabuloso e o incompreensível, não só porque esses eram traços próprios da narrativa mítica, como também porque a confiança e a crença no mito vinham da autoridade religiosa do narrador. A Filosofia, ao contrário, não admite contradições, fabulação e coisas incompreensíveis, mas exige que a explicação seja coerente, lógica e racional; além disso, a autoridade da explicação não vem da pessoa do filósofo, mas da razão, que é a mesma em todos os seres humanos.
Condições históricas para o surgimento da Filosofia
Resolvido esse problema, temos ainda um último a solucionar: O que tornou possível o surgimento da Filosofia na Grécia no final do século VII e no início do século VI antes de Cristo? Quais as condições materiais, isto é, econômicas, sociais, políticas e históricas que permitiram o surgimento da Filosofia?
Podemos apontar como principais condições históricas para o surgimento da Filosofia na Grécia:
● as viagens marítimas, que permitiram aos gregos descobrir que os locais que os mitos diziam habitados por deuses, titãs e heróis eram, na verdade, habitados por outros seres humanos; e que as regiões dos mares que os mitos diziam habitados por monstros e seres fabulosos não possuíam nem monstros nem seres fabulosos. As viagens produziram o desencantamento ou a desmistificação do mundo, que passou, assim, a exigir uma explicação sobre sua origem, explicação que o mito já não podia oferecer;
● a invenção do calendário, que é uma forma de calcular o tempo segundo as estações do ano, as horas do dia, os fatos importantes que se repetem, revelando, com isso, uma capacidade de abstração nova, ou uma percepção do tempo como algo natural e não como um poder divino incompreensível;
● a invenção da moeda, que permitiu uma forma de troca que não se realiza através das coisas concretas ou dos objetos concretos trocados por semelhança, mas uma troca abstrata, uma troca feita pelo cálculo do valor semelhante das coisas diferentes, revelando, portanto, uma nova capacidade de abstração e de generalização;
● o surgimento da vida urbana, com predomínio do comércio e do artesanato, dando desenvolvimento a técnicas de fabricação e de troca, e diminuindo o prestígio das famílias da aristocracia proprietária de terras, por quem e para quem os mitos foram criados; além disso, o surgimento de uma classe de comerciantes ricos, que precisava encontrar pontos de poder e de prestígio para suplantar o velho poderio da aristocracia de terras e de sangue (as linhagens constituídas pelas famílias), fez com que se procurasse o prestígio pelo patrocínio e estímulo às artes, às técnicas e aos conhecimentos, favorecendo um ambiente onde a Filosofia poderia surgir;
● a invenção da escrita alfabética, que, como a do calendário e a da moeda, revela o crescimento da capacidade de abstração e de generalização, uma vez que a escrita alfabética ou fonética, diferentemente de outras escritas - como, por exemplo, os hieróglifos dos egípcios ou os ideogramas dos chineses -, supõe que não se represente uma imagem da coisa que está sendo dita, mas a idéia dela, o que dela se pensa e se transcreve;
● a invenção da política, que introduz três aspectos novos e decisivos para o nascimento da Filosofia:
1. A idéia da lei como expressão da vontade de uma coletividade humana que decide por si mesma o que é melhor para si e como ela definirá suas relações internas. O aspecto legislado e regulado da cidade - da polis - servirá de modelo para a Filosofia propor o aspecto legislado, regulado e ordenado do mundo como um mundo racional.
2. O surgimento de um espaço público, que faz aparecer um novo tipo de palavra ou de discurso, diferente daquele que era proferido pelo mito. Neste, um poeta-vidente, que recebia das deusas ligadas à memória (a deusa Mnemosyne, mãe das Musas, que guiavam o poeta) uma iluminação misteriosa ou uma revelação sobrenatural, dizia aos homens quais eram as decisões dos deuses que eles deveriam obedecer.
Agora, com a polis, isto é, a cidade política, surge a palavra como direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião, discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como a palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.
A política, valorizando o humano, o pensamento, a discussão, a persuasão e a decisão racional, valorizou o pensamento racional e criou condições para que surgisse o discurso ou a palavra filosófica.
3. A política estimula um pensamento e um discurso que não procuram ser formulados por seitas secretas dos iniciados em mistérios sagrados, mas que procuram, ao contrário, ser públicos, ensinados, transmitidos, comunicados e discutidos. A idéia de um pensamento que todos podem compreender e discutir, que todos podem comunicar e transmitir, é fundamental para a Filosofia.
Principais características da Filosofia nascente
O pensamento filosófico em seu nascimento tinha como traços principais:
● tendência à racionalidade, isto é, a razão e somente a razão, com seus princípios e regras, é o critério da explicação de alguma coisa;
● tendência a oferecer respostas conclusivas para os problemas, isto é, colocado um problema, sua solução é submetida à análise, à crítica, à discussão e à demonstração, nunca sendo aceita como uma verdade, se não for provado racionalmente que é verdadeira;
● exigência de que o pensamento apresente suas regras de funcionamento, isto é, o filósofo é aquele que justifica suas idéias provando que segue regras universais do pensamento. Para os gregos, é uma lei universal do pensamento que a contradição indica erro ou falsidade. Uma contradição acontece quando afirmo e nego a mesma coisa sobre uma mesma coisa (por exemplo: “Pedro é um menino e não um menino”, “A noite é escura e clara”, “O infinito não tem limites e é limitado”). Assim, quando uma contradição aparecer numa exposição filosófica, ela deve ser considerada falsa;
● recusa de explicações preestabelecidas e, portanto, exigência de que, para cada problema, seja investigada e encontrada a solução própria exigida por ele;
● tendência à generalização, isto é, mostrar que uma explicação tem validade para muitas coisas diferentes porque, sob a variação percebida pelos órgãos de nossos sentidos, o pensamento descobre semelhanças e identidades.
Por exemplo, para meus olhos, meu tato e meu olfato, o gelo é diferente da neblina, que é diferente do vapor de uma chaleira, que é diferente da chuva, que é diferente da correnteza de um rio. No entanto, o pensamento mostra que se trata sempre de um mesmo elemento (a água), passando por diferentes estados e formas (líquido, sólido, gasoso), por causas naturais diferentes (condensação, liquefação, evaporação).
Reunindo semelhanças, o pensamento conclui que se trata de uma mesma coisa que aparece para nossos sentidos de maneiras diferentes, e como se fossem coisas diferentes. O pensamento generaliza porque abstrai (isto é, separa e reúne os traços semelhantes), ou seja, realiza uma síntese.
E o contrário também ocorre. Muitas vezes nossos órgãos dos sentidos nos fazem perceber coisas diferentes como se fossem a mesma coisa, e o pensamento demonstrará que se trata de uma coisa diferente sob a aparência da semelhança.
No ano de 1992, no Brasil, os jovens estudantes pintaram a cara com as cores da bandeira nacional e saíram às ruas para exigir o impedimento do presidente da República.
Logo depois, os candidatos a prefeituras municipais contrataram jovens para aparecer na televisão com a cara pintada, defendendo tais candidaturas. A seguir, as Forças Armadas brasileiras, para persuadir jovens a servi-las, contrataram jovens caras-pintadas para aparecer como soldados, marinheiros e aviadores. Ao mesmo tempo, várias empresas, pretendendo vender seus produtos aos jovens, contrataram artistas jovens para, de cara pintada, fazer a propaganda de seus produtos.
Aparentemente, teríamos sempre a mesma coisa - os jovens rebeldes e conscientes, de cara pintada, símbolo da esperança do País. No entanto, o pensamento pode mostrar que, sob a aparência da semelhança percebida, estão diferenças, pois os primeiros caras-pintadas fizeram um movimento político espontâneo, os segundos fizeram propaganda política para um candidato (e receberam para isso), os terceiros tentaram ajudar as Forças Armadas a aparecer como divertidas e juvenis, e os últimos, mediante remuneração, estavam transferindo para produtos industriais (roupas, calçados, vídeos, margarinas, discos, iogurtes) um símbolo político inteiramente despolitizado e sem nenhuma relação com sua origem.
Separando as diferenças, o pensamento realiza, nesse caso, uma análise.