segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ramayana de Chevalier


Ramayana de Chevalier

Saudade da infância



Era no colégio do meu pai, aos primeiros albores de minha vida. Os sonhos, ainda multicores, não tinham forma. O calor, idêntico. Pelas tardes estivais, fagulhantes de luz, o pregão dos doceiros era em gaita de folha. Um assovio musical, longo e agudo, enchendo a rua. E os bondes, pesados e barulhentos, chacoalhavam a poeira e reduziam a pó os cacos das garrafas, da próxima trança de papagaios.

Por essa época, ainda criança, eu escolhia a sombra que descia sobre o quintal e ali ficava, sentado, a observar as árvores militarizadas, ou subia ao muro de trás, divertindo-me com os cães vadios e obscenos, ou com a molecagem da Baixa. De tarde, fatigado e cheio de suor, tomava meu banho quase morno, porque a caixa dágua ficava ao sol. E, à noitinha, lá estava eu na calçada, batendo papo com os outros garotos do colégio, ou contando as aventuras da última fita de cinema para os vizinhos. Vida simples, vida de bairro humilde, de cidade pequena.

Nunca me queixo do calor. Ao contrário, pelas nove horas da noite, muitas vezes o sono me surpreendeu escutando o toque de silêncio do quartel da Polícia Militar, com uma leve sensação de frio noturno. E, pelas madrugadas engalinhadas de cantos alegres, eu acordava, preguiçoso de deixar o leito, sentindo arrepios de umidade gostosa.

Depois, viajei. Esbati-me, como um fardo sequioso, pelas arestas do mundo. Onde havia um sexo, aí estava a minha bandurra. Onde morasse um sofrimento, aí comparecia, piedoso, o meu coração. E conheci outros climas, amenidades estranhas, delícias montanhesas, primaveras veludosas como peles femininas, invernos elegantes e acolhedores.

Conheci o valor de um abraço sob um edredom de penas, a carícia de uma ternura mansa dentro do outuono (sic) triste. Caíram folhas de árvores solenes, uma a uma, diante de mim, como se fugissem do galho materno, a dormir no chão. E as rajadas magníficas do vento sul, esbofetearam-me no rosto, emprestando ao meu olhar o brilho forte dos vencedores.

Nos Andes, nos pampas, nas ribas tristes do Paraguai, no planalto de Piratininga, por onde passei, da orla inenarrável da costa fluminense às coxilhas mansas da terra lageana, amei à Terra com um amor cosmopolita. Desequilibrei o meu sistema termo-regulador.
Hoje, de regresso aos meus pagos, sinto calor. O menino de ontem não revelou o seu segredo ao homem de agora. Os revérberos da estreia causticante, nas vidraças que agonizam em reflexos, me tornam soturno, abichornado, entre parêntesis. Sou, hoje, um aficionado número um da sesta. A rede tem hoje um significado muito mais profundo e mais místico.

Quando a ciência nutricionista atribui à lentidão equatorial o caráter de defesa do homem contra o clima, está perfeitamente certa. Os ingleses, franceses, holandeses, que aqui vieram, também chegaram ligeirinhos e europeus no seu passo, no seu dinamismo. Traziam invernos nos nervos e nos sonhos. Depois, foram amolecendo. Em cinco anos, passaram a falar devagarinho. Em dez, andavam disputando o passo com os tracajás.

Mais tarde, ficaram fregueses do tacacá e começaram a comer o coração das melancias. Terminaram fazendo pipi nas calças sem vinco. Assim, todos os dolicocéfalos loiros que aportam por essas bandas.

Tenho inveja da criança que eu fui. Não sentia calor, brincava de sol a sol, mirava o “bichão”, frente a frente, empinando o meu “banda de asa”. Melhor seria não ter conhecido mais nada, lugar algum, povo nenhum, antes que as minhas calças percam o vinco...

Publicado em O Jornal. Manaus, 23 set. 1958









Espanando a memória



ERA de noite e eu estava com pressa. Mesmo sem causa, Manaus já dá pressa em quem está de carro. O asfalto faz isso. Estamos adquirindo uma fisionomia atual e civilizadíssima. O asfalto é um tobogã do progresso. Mas, como eu ia dizendo, era de noite, quando passei junto ao obelisquinho em frente ao “roadway”. Quatro velas estavam acesas. Quatro. Tremeluzindo, chorando, nas suas lágrimas de cera. Estavam ali, postas pelo povo. O “demos” grego, anônimo, gigantesco, imortal. O povo. Que mãos colocaram ali aquelas velas? Não importa. Elas significavam uma mensagem dos humildes a Getúlio Vargas. Não quero examinar a sua política, não desejo senti-lo como cacique. Aquelas velas despertaram, no meu íntimo, um desfile de recordações.
Era no Rio de Janeiro, e havia pouco terminara o drama revolucionário de 1930. A Junta Militar já havia ido comunicar ao presidente Washington Luís, que ele estava deposto. O cardeal dom Sebastião Leme que já se encontrava no Palácio da Princesa Isabel, onde residia o presidente, para acompanhá-lo, numa pá de cal melancólica, até à sua prisão no Forte do Leme. Tudo como se houvesse uma peça teatral, sem ensaio. Lentamente, de faces encovadas, o Sr. Washigton Luis saiu de sua câmara, acompanhado de S. Eminência. Era um dia claro mas sem sol. Quando surgiu na varanda, ao alto da escadaria que despeja para os jardins dianteiros, o general Mailan D´Angrone, então Chefe Militar do Palácio, adiantou-se majestosamente e deu a ordem para a tropa que esperava, perfilada e firme, diante do edifício:
“Á Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, em continência!”

Ouviu-se um ruído de coices de armas, o ajuste dos fuzis ao tronco, olhares brilhantes de soldados obedientes, e o presidente Washington Luís desceu, solene, devagar, mirando o povo que se aglomerava na rua Pinheiro Machado, para entrar no carro oficial que o conduziria à prisão e ao exílio. O Rio estava esfuziante. Havia terminado a revolução e os panfletos terríveis de Mário Rodrigues estavam sendo fiscalizados pela censura. A derradeira manchete dessa fase, em A Crítica, dizia: “Acaba de chegar ao Rio de Janeiro, o senhor Getúlio Vargas, o anti-Cristo de rabo de porca”.

Era assim a violência das paixões naquele momento. Getulio apareceu ao povo, pouco depois, moço, de ar jovial, e envergando a sua farda de general da Revolução. Dois anos depois, saltava eu de novo no Rio, dessa vez fardado para as trincheiras de 1932. Engajado no III Batalhão do 9º R.I., segui como tenente para o Vale do Paraíba. Era um dos defensores do governo Vargas. Até hoje, tenho honra nisso. Servi às ordens do general P. Góis, no Exército de Leste. Tomei parte no ataque a Queluz, e Areias, a Silveiras, o mais feroz de todos, a Barro Vermelho, a Cunha e fiz ocupação em Tremembé e Taubaté. Demorasse mais um pouquinho revolução e eu teria ficado morto no ataque a Engenheiro Neiva, uma fortificação de cimento armado. Fiz ponta de vanguarda, fui ferido, repousei no Hospital de Lorena, lutei na frente, faminto, barbado, rastejando com os meus soldados. Em Silveiras, entrei com o III do 9º, de parabellum, entre os soldados em baioneta calada. Minha fé de ofício é honrosa e simples. Fui promovido por ato de bravura. Sempre com o pensa-mento voltado para o Chefe da Nação, tolerante, bondoso e trabalhista.


Assisti, anos mais tarde, à humilhação do gigante. Foi no dia da prisão de Gregório Fortunato, nos jardins do Palácio do Catete. Antes de entrar no automóvel que o levaria ao Galeão, Fortunato ainda discutia no jardim. Cercavam-no soldados da Aeronáutica e oficiais. Junto à grade do lado, eu observava a cena. E no segundo andar, dentre as frinchas da venziana, vi um vulto que contemplava, em silêncio, toda a teatral prisão do chefe da guarda pessoal.
Era o presidente Vargas. Nada podia fazer. Nada esperava mais. Tinha prometido ao grupo de emergência, constituído no Galeão, que o levariam até lá, preso, para depor. O homem que viera nas asas da revolução de 30, o chefe político do uma Nação que ele impulsionara para a frente, o Chefe supremo dos exércitos em 1932, o ditador das Américas, o Grande Líder, o presidente Constitucional do Brasil, depois, iria descer do seu pedestal, para comparecer, como um preso comum, diante de oficiais que ele promovera, diante de oficiais que ele havia ajudado a generalar-se.
Era ao crepúsculo e eu não pude ver os seus olhos. Das frinchas, ele se despedia, tristemente, do seu amigo e escudeiro. Durante mais de vinte anos, a sua vida fora guardada por aquele cão de fila negro e fiel. Alguns dias depois, passara eu a noite mal dormida, com os acontecimentos. A cidade do Rio estava com os nervos de poraquê. Pelas oito horas da manhã, abri o rádio, todos acordados em minha casa, esperando a notícia da prisão do Grande Presidente. Foi então que escutamos a mensagem:
“Alô! Alô! Brasil! Atenção! Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Dornelles Vargas”.
Foi o maior choque que já sofri em minha vida. Todos, de mim as minhas filhas, a minha pupila, todos choramos. O Rio, o Brasil inteiro chorou. Só não o fizeram os que continuaram a maquinar traições contra sua memória. Tive vontade de sair de casa, armado, para desafiar todo mundo. Era o desespero, era a ferida popular. Se ele tivesse apelado para o povo, nenhum poder o derrubaria! Agradeço, “àquelas quatro velas, estas lembranças estão sentidas. Só havia quatro velas acesas. Mas elas valeram por um milhão delas. Porque foram colocadas pelos que, ainda hoje, choram pelo maior dos brasileiros de todos os tempos.
 A GAZETA. Manaus, 20 de abril de 1961


Cazaquistão.
Ramayana de Chevalier, 1958

Em Manaus, Ramayana de Chevalier tomou de sua pena brilhante e produziu o texto que reproduzo. Também ele, o texto, cinquentenário, publicado em A Gazeta, em 14 de abril. Ano dessas aventuras - 1961.


Estamos vivendo a hora cósmica. Nossa casa é pequena para a vertigem do nosso sonho. A ciência soviética acaba de penetrar no universo oleoso e silente do firmamento estelar. As cadelas que precederam ao salto humano pelo silêncio sideral merecem nossa mais carinhosa gratidão. Agora sentimos, em toda a sua extensão, de como foram ridículos e imbecis os santinhos da Sociedade Protetora dos Animais, com os seus protestos líricos. Depois dessas cadelas magníficas, o homem foi lançado, pela primeira vez na história da humanidade, a uma velocidade de 600 mil quilômetros/hora, numa altitude de 340 mil metros acima do solo, completando, em uma hora e meia de relógio, a volta em torno do planeta.

Note-se, para efeito de raciocínio, que o nosso planeta Terra é lançado no espaço a uma razão de 104 mil quilômetros por hora, dando-nos a perfeita ilusão de estabilidade e fixidez, de tanta estabilidade que iludiu aos astrônomos antecessores do Copérnico. Numa velocidade, pois, algumas vezes maior do que a massa do planeta, esse bólido russo conseguiu levar um ser humano a uma altura jamais suspeitada, num deslocamento alucinante, que trouxe, como prova, uma série de hipóteses cosmológicas que a Relatividade Restrita de Einstein havia, teoricamente, comprovado.
Uma delas é a absoluta ausência de luz no espaço cósmico. A outra, que representa uma afirmação categórica da teoria corpuscular, é a que declara que, na visão do firmamento, a luz, lançada como um oceano corpuscular através do infinito, só é sentida quando encontra a massa dos planetas ou dos cometas transeuntes. A visão que o astronauta Gagarin teve do espaço cósmico, mergulhado nele a uma profundidade de 340 quilômetros distante da Terra, confere com as anotações de Einstein e com a moderna teoria mecânica celeste e da física corpuscular. O espaço é negro. Ao longe, Gagarin conseguiu entrever o seu planeta, mergulhado num azul claríssimo, resultado do impacto do feixe luminoso nas camadas atmosféricas e na própria massa da Terra. A sua visão deve ter sido angelical. Assim devem os anjos contemplar à Terra e Deus, como Lei, na sua escuridão permanente, assiste à vitória dos seus filhos, sem comoções.
Revista Veja, 20 abr. 2011


A vinda do astronauta, em perfeito estado físico, como de resto já havia chegado os animais enviados ao espaço, assegura também uma razão admirável à teoria einsteiniana do espaço pessoal, arrastando cada um de nós o seu universo de bolso em torno de si. O que acontece com o microclima para os vegetais, existe também para o ser humano, quanto às inerências de sua condição biológica e sensorial.
O homem conduz o seu próprio universo. Os planetas, com a sua atmosfera, as suas nuvens, as suas diferenças climáticas, volitam em torno do Sol, num arranco de 104 mil quilômetros por hora, no que tange ao nosso “habitat”. Os de maior volume, certamente se deslocarão em velocidades superiores, de acordo com o seu empuxo necessário. Dentro dessa concepção, o homem, como indivíduo, também arrasta consigo o seu continente cósmico, capaz de isolá-lo e de mantê-lo, num equilíbrio de compensação, dentro de um esquema de resistência pessoal à velocidade.
Não podem ser selvagens, nem atrasados, nem primitivos, aqueles que possuem cientistas capazes de tais cometimentos. Parece não ter razão o presidente do Banco de Boston, quando nega à Rússia qualquer virtude. A exploração do homem pelo homem está perdendo na competição com a ciência socialista.
Gagarin, hoje, não é astronauta russo. É um cidadão do mundo, que veio concorrer para provar que todos somos irmãos e que a ciência, quanto mas prestigiada pelo Estado, mais frutos dará e mais novidades oferecerá aos sedentos de sabedoria e de liberdade... 













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Recordando o Passado

Ildefonso Pinheiro

Antes de falar em Ramayana de Chevalier, é preciso recordar o antigo Instituto Chevalier onde o seu pai, professor José Chevalier fincou o marco conclamador do dito instituto, cujo nome tornou-se flâmula desta terra. Lembro-me perfeitamente que o instituto foi instalado pela primeira vez na Rua dos Andradas, num amplo sobrado que ainda hoje pode ser visto em seu estilo colonial, de beleza atraente. 

O Instituto Chevalier ali foi instalado em 1911 ou 1912, tendo permanecido por muito tempo. Depois mudou-se para a rua Dr. Moreira, esquina com a Quintino Bocaiuva, onde atualmente se encontra a Hospedaria Garrido. Aí funcionavam diversos cursos tendo como professores — José Chevalier e Paulo Eleuterio que, entusiasmados pelo Escotismo, passaram a lecionar esta disciplina que Olavo Bilac com suas belas canções impulsionara o povo brasileiro de Norte ao Sul. Assim, ao amanhecer de cada dia estavam os dois mestres dedicados a convocar os meninos daquela época para tão sublime conquista espiritual. 
Entre os novos escoteiros encontrava-se Ramayana de Chevalier, moço sagaz, em cujos olhos existia a esperança para o Brasil de mais um filho culto e radiante. Ele foi um soldado impulsionado pelo sentimento poético de Olavo Bilac com suas canções patrióticas, pois tocavam os corações pela chama sagrada do ideal, do amor pela liberdade e pelo progresso do Brasil. 
No desenvolver dos tempos, Ramayana de Chevalier fora tido como um espirito fadado às ciências e às letras. Ao seu lado encontravam-se Leopoldo Peres, André Araújo, Carlos de Araújo Lima, Olavo das Neves e muitos outros que conduziam a bandeira da ordem e do progresso, nos seus corações. Nesse desenvolver de dias, noites e meses, anos se passaram e chegamos ao ano de 1941 quando encontrei Ramayana de Chevalier viajando no navio Santos, do Loide Brasileiro, de Manaus à cidade Maravilhosa. 
Nessa comprida viagem de 22 dias o navio fora transformado numa Academia de Letras, onde os astros fulguravam com seus espíritos de jornalista, poeta, sociólogo, que eu ainda hoje conservo em minha retina, fazendo reviver aqueles dias felizes, nos quais Ramayana de Chevalier, André Araújo, Genesino Braga e Aguinaldo Archer Pinto transformaram aquela cidade flutuante num ambiente de artes e de cultura. 
Em 1950 o vi e senti ao lado de Adalberto Vale com o seu verbo brilhante e sedutor quando saudava a gleba verde com o seu discurso pela passagem da entrega do “Hotel Amazonas” à cidade de Manaus.
Suas frases refeitas de imagens estelares tinham o encanto das flores às margens dos rios, a murmurar por todo este Amazonas que surpreende e catequiza tudo o que tiver a felicidade de o contemplar em sua apoteose maravilhosa.
A inauguração do “Hotel Amazonas” marca o divisor de suas épocas. Esta formidável iniciativa da Prudência Capitalização, através do gênio empreendedor de Adalberto Ferreira Valle, que Assis Chateaubriand classificou no seu brilhante artigo Dos Grisões à Amazônia com o único rival do anexo do Copacabana Palace, representa nas suas linhas arquitetônicas, na excelência do seu material prestante, no arremesso de suas colunatas, no emaranhado modernismo dos seus detalhes técnicos, um monumento ao amazonense singular, cujo espirito, envolto nas tarlatanas da graça e do poder positivo, jamais se esqueceu, como o fez Ruy, do ninho onde nascera... 

Sobre Ramayana de Chevalier o ministro Jorge Mendes, na sessão do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas pedirá um minuto de silêncio para prestarem uma homenagem póstuma ao grande amazonense, dizendo: "Ramayana de Chevalier, como homem teve os erros, mas, nas letras, vejo-o iluminado ao lado de Álvaro Maia como os dois maiores amazonenses". 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Caio Fernando Abreu




Caio Fernando Abreu

Aqueles dois

(História de aparente mediocridade e repressão)
Para Rofran Fernandes
— "I announce adhesiveness,
I say it shall be limitless,
unloosen il
I say you shall yet find the
friend youwere looking for."
(Walt Whitman: So Long!)

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.
Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.
                                                                                        II Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
                                                                                III Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.
Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
                                                                            IV Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
                                                                            V Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.
Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
 
 

Linda, uma história horrível



Caio Fernando Abreu
 Para Sergio Keuchguerian
"Você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus."
(Cazuza: "Só as mães são felizes")
 

Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.
— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.
— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.
— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.
— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.
Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.
— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.
—A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.
— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.
— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.
Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.
— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.
— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.
— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?
— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.
— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?
A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:
— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.
— A Cândida morreu, mãe.
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião.
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.
 
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