terça-feira, 24 de agosto de 2010

OTTO MARIA CARPEAUX






MEU DANTE




Otto Maria Carpeaux





Assim como Galileu, na mocidade, exercitou sua imaginação de matemático, calculando e medindo os espaços fantásticos do Inferno, assim um físico de hoje poderia calcular e medir a altura fantástica da montanha de livros e estudos que já se escreveram sobre a Divina Comédia: o número resultante seria mesmo astronômico. Chegamos tarde e só podemos suspirar como La Bruyére: Tout est dit, et 1 ‘on vient trop tard depuis plus de sept cent ans qu’il y a des hommes, et qui pensent. De nada adiantaria a ambição de acrescentar mais uma ou outra interpretação engenhosa de uma metáfora, de um verso. Mas temos, cada um, nossas experiências pessoais com a leitura de Dante; e servem, pelo menos, para testemunhar ao Poeta nossa gratidão e nossa reverência, no setecentésimo aniversário do seu nascimento.

Reverência, sobretudo, e ela provoca uma dúvida quanto àquele pronome possessivo. Meu Dante -
quem teria o direito de empregar esse pronome de uma quase intimidade pessoal? A figura de Dante é, como dizem os ingleses, awe inspiring. Ou, como se exprimem os estudiosos da psicologia das religiões, Dante é numinoso. E, em todos os séculos, o único leigo (e não canonizado como santo) ao qual foi dedicada uma encíclica de um Papa: em 1921, no seiscentésimo aniversário de sua morte. E, ao que se saiba, a única grande figura da história humana que nunca um desenhista ousou caricaturar. Quem poderia chamar “meu” a tão alto espírito?


Mesmo chamá-lo “nosso”, “nostro”, só é privilégio dos florentinos, e estes não podem pronunciar-lhe o nome sem lembrar-se das maldições que o exilado lhes mandou:

Godi, Fiorenza, poi che se’ so grande,
che per mare e per terra batti 1 ‘ali,
e por lo ‘nferno trio nome si spande!

Dante pode ter sido, em vida, um homem intratável, irrascível e orgulhoso, convencido do seu direito de ser lembrado e venerado por todos os séculos. Mas essa pretensão enorme se reduz, afinal,
à exigência de ser lido. Como poderíamos venerar condignamente as cinzas guardadas no túmulo de Ravena senão pela leitura do poema sacro, ai quale ha posto mano e cielo e terra? Essa exigência de Dante transparece nas palavras em que Brunetto Latini, o autor do Tesoro, se dirige a Dante no Inferno:

Sieti raccomandato ii mio Tesoro
nel qual io vivo ancora, e pii non chieggio.

“Não pede mais.” Mas é imensa essa nossa responsabilidade, nós a quem o tesouro inesgotável da Divina Comédia é raccomandato: para lê-la e relê-la.

Certa vez respondi a um repórter literário que quis saber das minhas leituras habituais: “Todos os anos costumo reler a Divina Comédia inteira”. É verdade.
Mas depois assaltaram-me as dúvidas. Não me lembro exatamente quem disse talvez fosse Tommaseo: Legger Dante è un dovere, rileggerlo è un bisogno. Ler Dante é um dever, sim, fosse mesmo só porque o próprio poeta diz - mostrò cio che potea la lingua nostra. Reler, também, mas por quê? E como?

Por que reler sempre a Comédia, se a memória é capaz de guardar mais ou menos fielmente os pontos mais altos, aqueles que se gravaram na consciência da humanidade? Não há quem ignore os famosos “grandes episódios”: Francesca da Rimini e Paolo que se perderam no amor sobre a leitura do livro alcoviteiro:

Quel giorno più non vi leggemo avante;

Pier delle Vigne, o suicida; Farinata, altivo, desafiando Deus, o mundo e os demônios
Com ‘avesse 1 ‘inferno in gran dispitto;

Ugolino e seu destino terrível; Ulisses que tentou os fins do mundo -
Infin che ‘1 mar fu sopra noi richi uso.

E não há quem não guarde na memória os muitos versos citáveis, a começar pelo intróito do Inferno que virou lugar-comum:

Lasciate ogni speranza, voi ch ‘entrate,

até sua antítese:

L ‘amor che move ii sole e 1 ‘altre stelle;

e esse outro verso que tantas vezes, durante a vida toda, me fortaleceu contra o tédio das controvérsias e contra a malecidência dos covardes e contra elogios e hostilidades efêmeras:

Non ragioniam di lor, ma guarda e passa.

O próprio Dante parece ter previsto essa inextinguibilidade dos seus versos:

Tu lasci tal vestígio,
per quel eh ‘i ‘odo, in me e tanto chiaro,
ché Leté nol può torre né far higio.

Mas será esta a maneira certa de ler Dante? Conforme uma lenda antiga, o poeta teria escolhido o metro da terzina, com seu ferrenho esquema de rimas, para que ninguém pudesse tirar nem acrescentar um único verso. A Comédia é - em que pese a teoria do nosso mestre Benedetto Croce, que já tanto me perturbou - uma estrutura inteira, uma Ganzheit, como dizem os alemães, mas é preciso amadurecer até perceber, sentir, compreender isso e é preciso ler, reler e ler mais uma vez a obra até chegar a tanto e para isso até servem as leituras erradas dos primeiros anos e as leituras erráticas dos anos de vida ativa e as leituras distraídas das horas de ócio, até que em boa hora se nos abrem os olhos, nel mezzo dei cammin di nostra vita...

Meu primeiro Dante era uma edição para a mocidade, fartamente ilustrada por um artista medíocre qualquer, de quem não sei mais o nome, mas em compensação cuidadosamente expurgada. Passaram -se, desde então, tantos anos, não, tantos decênios, que só guardo recordação frágil daquela edição e, no entanto, por motivo especial que vou logo revelar, consegui já então verificar os expurgos feitos. No episódio deFrancesca da Rimini, no canto V do Inferno, os editores sacrificaram os dubbiosi disiri do verso 119 e o piacer si forte do verso 104; e o verso 136 - “La bocca mi baciò tutto tremante” caiu totalmente fora. Mas o expurgador também tremeu ao mutilar assim o poema; e para tranqüilizar sua consciência reuniu num apêndice os trechos suprimidos, para maior comodidade dos leitores juvenis. Se tivesse editado assim um Rabelais ou mesmo um Shakespeare, teria saído um dos livros mais pornográficos do mundo, e isto ad usum Delphini. Mas Dante é casto. Tanto mais aquele ilustrador soltou as rédeas de sua imaginação sádica. Lembro-me como se fosse hoje de suas gravuras, de mediocridade incrível: Francesca e Paolo, perseguidos pelo vendaval, estavam suspensos no ar como executados na forca; os Malebolge pareciam-se com ruas sinistras de subúrbio; os diabos, cozinheiros que com longas colheres remexiam os condenados em panelas ferventes; até os santos no Paraíso assustaram o leitor com barbas de tamanho sobrenatural. Quem me dera reaver agora esse livro feio, desaparecido junto com Robinson e Gulliver no naufrágio e esquecimento da infância. Talvez conseguisse ressuscitar um pouco da fé ingênua com que o leitor juvenil tomava tudo aquilo por absoluta verdade, as penas do Inferno, as nuvens que se desprendem do Purgatório e os esplendores divinos do Paraíso. Pois naquele tempo mais remoto hoje para mim que o tempo de Dante eu era realista, mais realista que a doutrina escolástica do poeta, e o outro mundo era mais verdadeiro que este que eu, feliz, ainda não conhecia. Era a realidade. Desaparecido aquele livro, surgiu outro Dante, o das edições da Divina Comédia, para o uso no ensino secundário, inexpurgado e sem ilustrações, mas com muitas notas explicativas ao pé de página, manuseadas por um estudante que já tinha lido Flaubert e um ou outro romance de Zola, e estava estupefato por reencontrar num poeta do século XIV o mais sugestivo realismo poético: o murmurar das águas frias do Adige (Inf, XII, 5) e aquela primeira metáfora de toda a literatura universal tirada do trabalho industrial, os fogos no arsenal dos venezianos.

Quale nell ‘arzanà de ‘Viniziani
boille l ‘inverso la tenace peca..

e naquele adjetivo que antecipa as correspondances de Baudelaire e todas as sinestesias da poesia moderna:

Lo giorno se n ‘andava, e 1 ‘aere bruno...

O outro mundo de Dante é todo real como este porque são propriamente idênticos; e o exercício de imaginação do jovem Galileu, calculando e medindo a altura de Lúcifer no mais baixo círculo do Inferno, foi boa preparação para o calcular e medir a velocidade dos corpos na queda e a distância da lua.

Não somente o Inferno de Dante é realidade. Realidade, embora um pouco antecipada, também é seu Paraíso, espécie de science-fiction da Idade Média; apenas muito mais perto da astronomia ptolemaica, então vigente, do que são científicos os science-fictions que ignoram soberanamente a astronomia de hoje; e, com todo o sabor da erudição teológica, mais humano. Pois as imaginações dos nossos dias são inspiradas pela técnica, mas a de Dante estava iluminada pela

Luce intellettual, piena d'amore.

Quem diz realismo, também diz humorismo. São inseparáveis - senão, a realidade chegaria a inspirar-nos o suicídio. Mas Dante, com toda sua simpatia pelo destino de Pier delle Vigne, estava acima da tentação, e em sua ira indignada contra todas as injustiças terrestres havia algo do gran dispitto do Farinata e algo da fúria vingativa dos demônios e sente-se uma simpatia propriamente humorística para com os diabos aos quais inventou nomes tão pitorescos: Malacoda e Scarmiglione, Alichino e Calabrina, Cagnazzo e Barbariccia, Draghignazzo e Ciriatto, Graffiacane, Rubicante e Farfarello. Parecem os sinistros-humorísticos servidores do Castelo de Kafka, desse Castelo cujo dono tem alguma semelhança com o da città di Dite. Também poderiam ser os nomes de malandros num racconto romano de Moravia. São humoristas sul generis, como os buffoni e os frades devassos e os vigaristas que povoaram as ruas de Florença de Boccaccio, formando o coro humorístico de acontecimentos grandiosos e trágicos que ensangüentaram as mesmas ruas; e foram essas ruas que me ensinaram o verdadeiro realismo de Dante Alighieri.

Encontrando-me em Florença, pela primeira vez, confesso que a mais forte impressão não foi a cúpula do Duomo, nem a fachada do Palazzo Pitti nem o Panteão de Santa Croce nem os quadros dos Uffizi
nem as esculturas do Bargello, mas talvez com exceção da Cappella Medici certos letreiros que
uma Administração municipal ilustrada tinha mandado colocar nas esquinas das ruas ou ao lado do portão de casas: pequenos ladrilhos de mármore, com dizeres relativos a acontecimentos ou personagens históricos relacionados com aquelas ruas e prédios; e os dizeres eram versos da Divina Comédia. Foram esses letreiros que me ensinaram o realismo histórico de Dante: a identidade do Inferno com a vida turbulenta, odiosa, vingativa do “Trecento” em Florença, a identidade da vida de Dante com o Purgatório e, em sua fé católica e filosofia escolástica, a realidade do Paraíso.

Numa das paredes laterais do Duomo de Florença existe um afresco - não é de alta qualidade artística e o pintor, Domenico di Michelino, não deixou nome imortal. Mas imortal é o assunto do quadro; à direita, a cidade de Florença, circunvalada de seus muros medievais dentro dos quais se reconhecem as silhuetas características do Duomo e do Palazzo Vecchio; à esquerda, embaixo, o abismo aberto do Inferno e, mais em cima, o monte do Purgatório e o paraíso terrestre: no alto, as esferas do céu; no meio, o altíssimo Poeta, com seu livro aberto na mão, olhando, serena mas severamente, para sua cidade e apontando-lhe com a outra mão a porta do Inferno. É um admirável resumo pictórico da Comédia e de sua significação atual, histórica. e não sei por que os guias, em Florença, não mostram esse quadro, antes de tudo, ao turista desejoso de compreender algo da incomparável grandeza dessa cidade em vez de persegui-lo por toda parte com seus alto-falantes idiotas, chamando very nice a Noite de Miguel Ángelo e invaluable os quadros do humilde Fra Angelico e perturbando a paz dos Giardini Boboli e de San Miniato. Só o barulho infernal que fazem lembra o “Trecento” e o Inferno.

Muitas vezes me demorei na quase vazia catedral de Savonarola, contemplando o quadro de Domenico di Michelino e acreditava ver o poeta abrir a boca e lançar a terrível maldição contra a volubilidade política da Florença “trecentesca”, as Constituições violadas e derrubadas, os golpes e revoltas, as inflações, as convulsões de doença da vida pública da cidade:

che foi tanto sottili
provvedimenti, eh ‘a mezzo novembre
non giugne quel che tu d’ottobre fili.
Quante volte, dei tempo che rimembre,
íegge, monda, officio e costume
hai tu mutato, e rinovato membre?
E se ben ti ricordi e vedi lume,
vedrai te sim igliante a quelía inferma
che no può Provar posa in su ie piume,
ma con dar volta suo dobre scherma

"...Dei tempo che rimembre!” O “Trecento” é uma remota recordação histórica, mas os versos dantescos são de uma perfeita e terrível atualidade. Quando eu, pela primeira vez, os recordei, no silêncio do Duomo de Florença, já tinha recomeçado lá fora a luta fraticida, apenas os Guelfos e Guibelinos do século XX ostentavam outros rótulos e tinham outras cores suas bandeiras. Foram os anos de 1930; violação de Constituições, golpes e revoltas, inflações, convulsões, e enfim, milhares e mais milhares foram atingidos pelo mesmo destino de Dante e de tantos outros italianos nobres: o exílio.

Também experimentei o exílio:

Nei mezzo dei cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura
chè ia diritta via era smarrita.

No Evangelho, Jesus aconselha aos discípulos rezar “para que sua fuga não aconteça no inverno”. Pois bem, minha fuga aconteceu no inverno e tão impiedosa foi a perseguição que nem sequer consegui levar comigo o meu Dante, o exemplar tão usado que já estava em pedaços a encadernação barata. Mas já não precisava do livro para recordar certos versos gravados para sempre na memória, e entre esses versos aqueles que descrevem a sorte do exilado, o sabor amargo do pão no estrangeiro e a dura vergonha de bater, em vão, a portas fechadas
e descer as escadas, subidas com o último resto de esperança, assim como a Dante foi profetizado
o caminho do calvário do fuoruscito:

Tu proverai si tome sa di sale
lo pane altrui, e come è duro calle
lo scendere e 1 ‘sabir per 1 ‘altrui scale.

Mas achei a minha Verona. E não posso despedir-me dessas recordações sem lembrar que entre os amigos generosos, na hora do maior perigo, também havia generosos italianos. Enfim, encontrei o asilo na Bélgica e a nova pátria no Brasil, primeiro justamente aqui em São Paulo:

E quindi uscimmo a riveder le stelle.

Mas tenho para mim que sem essas experiências teria ficado incompleta minha experiência de Dante. Só passando pelas Malebolge desse mundo sem perder a vista para as stelle, se tem o Dante inteiro;
o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Só então se compreende o sentido vital da Divina Comédia, autobiografia espiritual do poeta e biografia permanente da existência humana.

O voi eh ‘avete e l ‘intelleti sani,
mirate la dottrina che s ‘asconde
solo ‘1 velame de li versi strani.

Foi essa compreensão que me livrou, enfim, da leitura episódica, como também do mero esteticismo que se esgota na admiração boquiaberta da perfeição formal do poema, do qual não se pode tirar um verso nem acrescentar um sem que o conjunto fique mutilado.É a compreensão existencial, mas já sem self-pity romântica, que é a base da interpretação estrutural dessa obra, a mais perfeita que jamais saiu de mente humana. E o reconhecimento do impiedoso realismo dantesco, mas sem esquecer que se trata de poesia, de “fantástico” no sentido de Croce: non fancy - que Coleridge condenava - mas imagination estruturada como se fosse realidade. Este já não é meu Dante, mas é meu Dante.

Olhando para trás, para o caminho percorrido, acredito perceber que as fases de minha leitura de Dante coincidem, embora em diferente ordem cronológica, com as fases que a critica dantesca percorreu. A leitura cheia de curiosidade de fatos reais, mas remotos e estranhos, corresponde à crítica factual dos positivistas; o relacionamento dos episódios e versos emocionantes à experiência própria da vida, corresponde à crítica dos românticos; e a compreensão do poema como um todo enquadrado em seu tempo e válido para todos os tempos corresponde à critica historicista. Haverá, amanhã, outras compreensões criticas e mais outras e mais outras, e meu Dante já terá deixado de ser meu porque ele sobrevive a todos nós. E quanto terei compreendido da dottrina che s ‘asconde sotto
‘1 velame de li versi strani?

O próprio Dante distinguiu quatro níveis de interpretação e compreensão do poema: o sentido literal e histórico, o sentido alegórico e tipológico, o sentido tropológico ou moral são outros nomes, escolásticos, daquelas fases de critica e, enfim, o sentido anagógico, ou místico. Mas será este último jamais acessível a nós mortais?
A questão é de ambição. Há quem escolha como lema de sua vida o verso mais famoso da Comédia:

E la sua volontate é nos tra pace.

Mas já que foi “Meu Dante” o tema que me foi proposto, peço licença para continuar na primeira pessoa do singular e confessar que minha ambição não voa tão alto. Como Petrarca, paire non trovo, a não ser que a encontre no último momento, quando a noite chamará para partir e quando, tendo visto tudo pela última vez, me lembrarei do meu Dante, com versos dele:

Ma la notte risurge e oramai
é da partir, ché tutto avem veduto.








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A lição de Canudos, sempre atual




Otto Maria Carpeaux



Todos, no Brasil, conhecemos Canudos. A rebelião dos sertanejos baianos, sob a chefia do sectário místico que se chamava Antônio Conselheiro, sacudiu fundamente os primeiros anos da vida republicana do País. É um dos episódios mais fascinantes da história brasileira e sobre este tema foi escrita uma das obras-primas da literatura nacional: Os Sertões, de Euclides da Cunha, que assistira às expedições militares contra aqueles fanáticos, notando como aqueles homens violentos, ignorantes, bárbaros chegaram a perturbar a pacata vida provinciana do Brasil de 1897, assustando os burgueses, os bacharéis, os poetas e até os oficiais do Exército.

Sobre os fatos de Canudos existem muitos livros e inúmeros estudos esparsos. Cada geração, das que se sucedem, encontra algo de novo naquela história impressionante. Nossa época atual também é capaz de encontrar algo de inusitado naquele acontecimento: um aspecto que antes não se tinha percebido. Canudos é, novamente, uma atualidade.

Euclides foi o primeiro que escreveu sobre Canudos. Era ex-oficial do Exército, grande escritor, homem culto e até erudito, mais tarde alto funcionário do Itamarati, professor do Colégio Pedro II e membro da Academia Brasileira de Letras, enfim: pertencia às classes dirigentes do País. Mas a revolta de Canudos ensinou-lhe o fato de que a grande maioria dos brasileiros eram homens do campo, analfabetos, roídos pelas doenças, iludidos pelas superstições, um povo esmagado pela miséria. Esta era a realidade brasileira. Seguindo as lições da ciência de seu tempo, Euclides explicou essa realidade bárbara pelo clima adverso, pela esterilidade das terras e pela esterilidade mental das massas brasileiras, desses mulatos e mestiços que não têm capacidade para conquistar pelo trabalho um decente nível de vida. Explicou o acontecimento de Canudos em função da raça e do ambiente físico.

Mas a raça e o ambiente físico são fatores imutáveis. Ninguém é nem será jamais capaz de modificá-los. Então, sempre será assim como foi? Desgraças como a revolta selvagem dos miseráveis analfabetos de Canudos seriam capazes de repetir-se novamente? Mas então era preciso manter essas massas irresponsáveis sob o guante da disciplina severa dos governos fortes. Canudos parece ser, assim, justificativa perene para a existência e a manutenção das ditaduras.

Entretanto, assim não o é. Euclides da Cunha tinha estudado os aspectos geográficos e raciais de Canudos. Um estudioso de nossos dias, Rui Facó, examinou os aspectos sociais de Canudos: os fatores que não são imutáveis, mas que a história criou no passado e que, por isso, a história do futuro poderá modificar ou mesmo abolir. Quais foram esses fatores sociais de Canudos?

Os historiadores brasileiros costumam zombar da incrível ignorância desse chamado Antônio Conselheiro, desse sectário que chefiava os sertanejos de Canudos: pois em 1897, oito anos depois da proclamação da República, o homem ainda não queria tomar conhecimento dela e teimava em professar sua lealdade ao para ele ainda Imperador D. Pedro II. Mas, se olharmos mais de perto para a realidade de então, perceberemos que o homem tinha razão: a República não tinha, para os sertanejos, mudado nada, e o Brasil, sob um presidente da República, era o mesmo Brasil do Imperador, continuando os sertanejos dominados pelos mesmos latifundiários. O Brasil oficial negava, indignado, esse fato. Só um analfabeto poderia pensar assim. Acontece que os latifundiários, eles próprios, também pensavam assim. Pois quando os sertanejos de Canudos começaram a reunir-se em torno de seu chefe de seita, o major proprietário de terras da região, um típico barão-feudal, retirou dali sua família e seus pertences. O barão já parecia ter percebido o que Rui Facó nos ensina hoje: que o misticismo sectário de Canudos era a expressão da esperança de acabar com a miséria que há séculos oprimia os camponeses brasileiros e que continua a oprimí-los. Homens ignorantes e supersticiosos como aqueles, não sabiam nada de reivindicações sociais. Esperavam da Igreja a redenção, e quando os bispos e vigários, ligados às classes dominantes, não ouviram o grito de desespero, os sertanejos de Canudos separaram-se da Igreja, tornando-se sectários. O verdadeiro motivo dos movimentos rebeldes nos campos brasileiros é a estrutura da sociedade brasileira. Essa estrutura não é um fato da Natureza ou da Raça, que seria imutável. Foi criada pelos homens no passado e poderá ser modificada pelos homens, no futuro. Basta que se queira. Mas se queira de maneira adequada.

Como modificar a estrutura da sociedade brasileira, se ela é protegida e garantida pela política, pelas forças armadas, pelos grupos conservadores e por todos os Poderes Públicos?

Isso também nos ensinou Antônio Conselheiro. Mas só hoje começamos a compreender sua lição. É uma faceta de Canudos que até os dias que correm nunca foi devidamente apreciada: o aspecto tático-militar.

Como começaram as coisas? Os sertanejos de Canudos estavam, por volta de 1895, pacatamente reunidos em seu reduto, apenas trabalhando para seu sustento e o dos seus. Mas é isso que homens como o então Barão de Jeremoabo não toleram: pois querem que os camponeses trabalhem para o sustento dos barões, como hoje os grandes proprietários de terras querem que os camponeses trabalhem para o seu sustento. Surgiram, então, boatos de violências perpetradas pelos sertanejos e boatos da natureza perigosa das superstições que eles professavam; assim como ainda hoje surgem a toda hora, boatos de rebeldia, de "atos de terrorismo", e da periculosidade de "ideologias exóticas". Então, as autoridades resolveram agir.

Em novembro de 1896, o governo do Estado da Bahia mandou para

Canudos um batalhão da polícia estadual, bem armado, sob o comando do Tenente Pires Ferreira. Os sertanejos, atacados, defenderam-se com espingardas de caça, facões de mato e cacetes de madeira - e na escaramuça de Uauá obrigaram os policiais a fugir.

Em janeiro de 1897, o governo da Bahia voltou ao ataque, contando com o apoio do governo federal. Mandou para Canudos tropas estaduais e federais, sob o comando do Major Febrônio de Brito - que sofreu nova derrota.

Em fins de fevereiro de 1897, seguiu para Canudos verdadeiro destacamento misto, composto das três armas: infantaria, cavalaria e artilharia, sob o comando do Coronel Moreira César, temido pela sua energia e ferocidade e as tropas foram novamente derrotadas pelos sertanejos precariamente armados, que conheciam melhor o terreno e se tinham espalhado pela retaguarda das tropas. O próprio Coronel Moreira César foi, no campo de batalha, morto pelos rebeldes.

Enfim, só em junho de 1897, acabou tudo, mas, para tanto, foi necessário reunir três brigadas de infantaria, acompanhadas da artilharia, sob o comando do General Artur Oscar, que conquistou Canudos e mandou fuzilar milhares de sertanejos, cujos corpos foram barbaramente mutilados. Eis como não foi fácil vencer Canudos.

Sobre esse aspecto tático militar de Canudos não se falou nada, até hoje. Não se fala nada, aliás, sobre muitas coisas. Homenageia-se Euclides da Cunha, o historiador de Canudos, como grande figura das letras nacionais e do Exército Brasileiro e da Academia, mas não se conta ao povo que esse mesmo Euclides, em novembro de 1888, ousou jogar seu sabre de oficial aos pés do ministro da Guerra, para protestar contra uma lei iníqua. E não se conta que o mesmo Euclides organizou em São José do Rio Pardo, em 1.° de maio de 1901, a primeira festa de 1º de Maio socialista em solo brasileiro. Não querem saber de tais atos de rebelião social de um oficial do Exército Brasileiro. Pois sabem que fatores sociais explicam a fraqueza de qualquer exército do mundo, ante a revolta organizada dos oprimidos.

O Exército Brasileiro de 1897 podia ser, em comparação com os exércitos das grandes potências, materialmente obsoleto e taticamente fraco. Mas, em comparação com os sertanejos de Canudos, era tática e materialmente superior. Entretanto, mostrou-se vulnerável à tática das guerrilhas.

O Exército Brasileiro de hoje continua a não poder se comparar com os exércitos das grandes potências, seja em número, seja em apetrechos bélicos. Mas, os exércitos das grandes potências tampouco podem contra as guerrilhas. Antônio Conselheiro é o precursor de Mao-Tsé-Tung na China, de Boumedienne na Argélia e dos Vietcongues no Vietnã. Canudos foi a semente da China Brasileira, da Argélia Brasileira, do Vietcongue Brasileiro.

Mas - dirão vocês! - apesar de tudo os sertanejos de Canudos foram enfim derrotados! Sim, porque eram guerrilheiros improvisados e não conheciam bem os princípios da guerrilha: concentraram-se num reduto em vez de se espalharem pela região. Foi um erro.

Mas também os erros constituem ensinamento. O Canudos da segunda metade do século XX não será um reduto, um foco só, uma base só, mas o País inteiro. Será? Mas quando? Podemos esperar. E esperar indefinidamente? Não. Não é preciso esperar tanto.

Quando, em novembro de 1888, o então cadete Euclides da Cunha, em presença de todo o corpo de generais brasileiros, jogou seu sabre aos pés do ministro da Guerra do imperador, ninguém poderia saber que só um ano depois, em novembro de 1889, a monarquia, com todos os seus generais e ministros, já estaria desaparecida muito depressa: só um ano! Hoje, que as coisas andam muito mais depressa, é lícito acreditar que não precisaremos esperar muito, sobretudo se seguirmos os ensinamentos da lição de Canudos.

[Artigo datilografado, não assinado, que se encontra entre os papéis de Otto Maria Carpeaux, depositados na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Uma correção autógrafa, na penúltima linha, a palavra depressa, autoriza a atribuição.]

© 1997 Revista Cultura Vozes






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RETRATO DO VIRTUOSE


Os grandes violinistas, quando chamados pelo público depois do fim do concerto, deixam-se ainda arrancar algumas peças extras, umas danças ou capriccios inofensivos, valoriza-dos por dificuldades técnicas artificialmente acumuladas que deslumbram a platéia. Às vezes, entre esses extras aparecem peças algo diferentes, de dificuldade extraordinária, mas também de força elementar, quase demoníaca: a um grande poeta já sugeriram imagens das mais esquisitas — um minuto em salão aristocrático do Rococó, um assassínio por ciúmes, corais fúne-bres, ou remorsos violentos do criminoso, o grito de triunfo do diabo, até uma forte arcada de desespero interromper as visões fantásticas. Essas peças são de Paganini.
Biógrafos, libretistas e cineastas maltrataram-no bastante:
às vezes aparece como gênio sobre-humano, outras vezes como charlatão ridículo. Talvez fosse isto e aquilo ao mesmo tempo?
A vida de Nicolo Paganni foi mesmo sensacional como um filme, rápido e de fim abrupto. Nascera em Gênova como filho de um estivador que reconheceu cedo o talento musical do menino; o pai viveria explorando-o. Impôs ao pobre garoto exercícios intermináveis, dez, doze, catorze horas por dia, man-tendo-o trancado num quarto escuro. Mais tarde, Paganini con-servará esse “método”: como amante das Elisa Bacciochi e Paulina Borghese, princesas de estilo rococó na época napoleô-nica, trancou-se nas abandonadas vilas de caça de Parma e Lucca, ensaiando a execução de peças dificílimas em duas cor-das só, enfim em uma corda só. Também se aproveitou da so-lidão para estudar perante o espelho poses fantásticas, diabóli-cas, que assustaram depois os cortesãos. Rapidamente o sonho das cortes napoleônicas se desvaneceu. Para gostar daquelas poses só ficou o judeu inglês George Hanys, homem muito esperto, o primeiro grande empresário da vida musical do século XIX. Foi ele que levou o mestre, que contava então já com mais de 40 anos, para Viena. Em 1828, Paganini deu o primeiro con-certo, empolgando, subjugando o público da cidade de Beetho-ven. Em 1829 e 1831 repetiram-se em Berlim e Paris os êxitos sensacionais, devidos à virtuosidade extraordinária do violinista - e à sua apresentação não menos extraordinária. No palco apa-receu um sujeito alto, palidíssimo, magérrimo, vestindo fraque lamentável, curvando-se perante o público em reverências enor-mes, ridículas, sinistras, diabólicas. Contudo o recital começou com obras de feição clássica que o próprio Paganini compusera no estilo nobre do século XVIII; o seu concerto La Campanella é uma obra-prima à maneira de Corelli e Tartini, dos grandes mestres do passado. Depois, o salão aristocrático transforma-se em sala dos bailes fantásticos do Carnaval de Veneza, em lugar de reunião noturna das Bruxas, é assim como se chamam aque-las pequenas peças de Paganini - a mão esquerda do violinista toca acordes inéditos de três, de quatro tons, a velocidade cresce rapidamente, pizzicati infernais alternam com acordes sonoros de que o violino parecia incapaz, o virtuose já toca em uma corda só verdadeiras sinfonias, até uma forte arcada fazer desa-parecer, de repente, a visão diabólica. Assim Heine descreveu, num folhetim famoso, o concerto de Paganini. Depois, nova-mente as reverências meio cômicas, meio sinistras: com um sorriso sarcástico despede-se o mestre, carregando para o hotel um dinheirão tal como nunca um músico ganhara. Desaparece no dia seguinte, viajando ou antes fugindo para outra cidade. Dizia-se que deixam um cheiro de enxofre.
Já em Viena, na ocasião do primeiro concerto, os supers-ticiosos explicaram as artes extraordinárias do virtuose, por um pacto que teria concluído com o diabo; alegaram ter visto um homenzinho corcunda, muito suspeito em sua companhia. Em Paris — onde Heine o ouviu - acusaram-no de um assassínio misterioso; em Londres, do rapto de uma menina. Em Bruxelas, os católicos chegaram a vaiar o novo Fausto. De repente, Paga-nini desapareceu. Já amontoara bastante dinheiro? Ou então, o
próprio diabo o levara? Na verdade, morreu na Riviera, de tu-berculose da laringe. As autoridades eclesiásticas recusaram o enterro ritual. Deixou... Vinte e cinco milhões de francos, um Guarnierio preciosíssimo (guardado hoje no museu de Gênova) e sete Stradivarius, dos quais o melhor desapareceu sem vestí-gios. Assim como se perderam as armas do violinista Paganini. Da sua vida fantástica apenas ficou vaga reminiscência, como uma sombra na parede, como se fosse reminiscência de cinema.
Nunca mais um virtuose conseguiu tanto êxito, nem um Liszt, nem um Sarasate. Os virtuoses de hoje, então, são pobres diabos em comparação com Paganini, que o mais severo dos seus críticos contemporâneos, Fétis, comparara a Napoleão. Aí se vislumbra a explicação do fenômeno. A Europa de 1830 era, depois das tempestades da Revolução e das Guerras Napoleôni-cas, essencialmente apolítica. Governos patriarcais e polícias vi-gilantes nem permitiam a ocupação com os negócios públicos. Notícias de teatro e concerto encheram os jornais. Eram os dias áureos do pianista Liszt, da cantora Henriette Sountag, da bai-larina Taglioni. Em vez de a gente se bater nas barricadas, lu-tava-se nas ruas para tirar os cavalos do coche da cantora, para levar nos ombros o pianista. Paganini foi o maior entre esses Napoleão da sala de concerto. E aqueles dias idílicos e fantás-ticos não voltam mais. No entanto a explicação fica incompleta.
As nossas salas de concerto, hoje, são muito maiores do que naqueles tempos. Enche-as uma massa muito mais numerosa, capaz de tempestades de entusiasmo, violentas e contagiosas. Recursos inéditos de publicidade e da técnica conquistam o mundo aos cantores, aos pianistas, aos violinistas, que carregam cheques e mais cheques. Em comparação, Paganini foi um pobre-diabo. Também o seria na sala de concerto, porque aquelas artes inéditas que deslumbraram Viena e Paris são hoje domínio de todos os mestres do instrumento: todos sabem tocar acordes, bater pizzicati, usar uma corda só, fingindo polifonias, aumentar a velocidade até o público perder o fôlego. Muitos entre eles dis-põem de uma cultura musical pelo menos tão sólida como fora Paganini, embora lhes faltem as suas ligações com a grande
tradição dos Corelli e Tartini. Mas o que certamente lhes falta é a personalidade demoníaca; existe, conforme Nietzsche, um dir--se-ia genial. E no gênio, elemento mistificador que se aproxima do charlatanismo. Gênio e charlatão ao mesmo tempo, Paganini foi a expressão máxima, embora fugitiva, da música romântica.
No tempo de Paganini nasceu o culto romântico do génio; Carlyle é quase contemporâneo seu. Contemporâneo seu é, exa-tamente, Balzac, que foi, conforme Sainte-Beuve, o primeiro grão-mestre da “literatura industrializada”. Os que pagaram com preços fantásticos os camarotes nos concertos de Paganini foram os banqueiros do juste-milieu, os primeiros empresários de es-tradas de ferro. O culto romântico do gênio é uma espécie de reação desesperada da arte contra a época da industrialização. Os próprios concertos de música industrializaram-se, sendo transfe-ridos dos salões aristocráticos para as grandes salas públicas. A intimidade entre artista e conhecedor foi substituída pelo sensa-cionalismo. Até um Byron foi sensacionalista, encenando peran-te o público a sua própria pessoa. Paganini, homem de outros tempos, venceu porque também sabia encenar-se.
Com efeito, veio de outros tempos: filho do século XVIII, herdeiro da tradição sólida dos Corelli e Tartini, os seus concer-tos, como La Campanella, dão testemunho disso. Até os 40 anos de idade não pensou em tocar para o grande público. Para ele, mesmo depois da Revolução Francesa, a cultura musical do Rococó sobreviveu nas pequenas cortes napoleônicas da Itália. Mas em 1815 começou o século XIX. Do salão, Paganini pulou para o palco; foi um salto-mortal diabólico, transformando-o em feiticeiro do violino, em mistura curiosa de charlatão e prima-dona. A esse virtuosismo Paganini subordinou sua técnica iné-dita do instrumento. A essa técnica serviram recursos inéditos da publicidade, os artigos pagos nos jornais, os escândalos arranja-dos, os boatos diabólicos habilmente espalhados. E o diabo que realizou esses milagres infernais, e suspeito homenzinho corcun-da, foi Mr. George Hartys, o primeiro grande empresário. Fala-va-se muito, então, da avareza de Paganini, acumulando mi-lhões. Mas esse homem foi capaz de dar 25 mil francos de uma
vez para ajudar o gênio Berlioz, então desconhecido, pobre e ridicularizado. Na verdade, Paganini foi, nos tempos de adoles-cência do capitalismo, o primeiro artista que não quis dar de presente a sua arte, exigindo honorários decentes da parte de banqueiros e empresários de estradas de ferro. Foi mesmo o primeiro artista-capitalista. Na sala de concertos, sabia improvi-sar às maravilhas, assim como aqueles improvisaram especula-ções na Bolsa. Mas a sua técnica, nos seus negócios, era mais sólida. Foi possivelmente a única vez que se realizou a síntese completa e perfeita de grande arte e grande charlatanaria, reuni-das numa grande personalidade demoníaca.
Depois, a personalidade foi derrotada pela publicidade. A organização venceu a arte. A técnica tomou-se independente. O violino mecanizou-se. Os violinistas de hoje sabem fazer tudo o que Paganini sabia fazer, e mais. A propaganda é todo-poderosa:
até é capaz de inventar gênios, sendo já ninguém capaz de dis-tingui-los dos charlatães. Alguns contemporâneos vienenses de Paganini entristeceram-se porque a sua sombra diabólica fez esquecer a grande sombra de Beethoven, morto um ano antes do primeiro concerto do virtuose. Um século mais tarde, Paganini está esquecido, mas um Spengler prevê o dia em que Beethoven lhe acompanhará o destino: quando uma humanidade tecnica-mente civilizadíssima não verá mais nada numa partitura do mestre do que um farrapo de papel. Então, da nossa civilização inteira não ficaria nada do que uma sombra fantástica na parede, como se fosse reminiscência de cinema.







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SOBRE A TÉCNICA DE CONRAD



No prefácio de um dos seus romances, Joseph Conrad definiu a tarefa do romancista da maneira seguinte: “E a minha tarefa fazer ouvir as coisas ao leitor pelo poder da palavra escrita, fazê-lo ouvir, sentir e principalmente ver. Isto, e mais nada, mas é tudo”. Parece a profissão de fé de um poeta descritivo, pour qui le monde visible existe. Fazer ouvir, sentir, ver, sugerir-nos que teríamos assistido a um acontecimento inventado, não é pouca coisa. Contudo, a técnica que consegue esse fim, parece-nos antes o ponto de partida do que a finalidade da arte novelística. E esta técnica (“mais nada”) seria tudo? E o enredo, os personagens, a psicologia, os problemas? Aquela definição afigura-se-nos muito modesta. Não se compreende, então, o esforço enorme que Conrad dedicou às suas obras: as noites de insónia, as discussões intermináveis, os acessos de desespero e auto-acusações de incapacidade, tudo isso de que a correspondência de Conrad dá testemunho comovente. Toda aquela profunda preocupação artística e moral, só para “fazer ver”?
O que foi afinal aquilo que criou tantas dificuldades até se tomar visível? Sabe-se que Conrad explorou materiais autobiográficos; pretendeu “fixar” as reminiscências dos seus tempos de oficial da marinha mercante:, tempestades e calmas perigosas, portos exóticos, contrabandistas e amotinados, crimes abomináveis no interior da Malásia e do Congo, incêndios, traições e salvações no alto-mar - enfim o arsenal inteiro do romance de aventuras. O símbolo da obra de Conrad seria um navio, sulcando o mar noturno com destino desconhecido, um navio carregando cadáveres de assassinados mas iluminado pela inspiração heróica de cumprir o dever. England expects every officer and man to do his duty this day e sempre; a preocupação do romancista de ligar os seus ideais às tradições da bandeira inglesa seria capaz de comover oficiais reformados da marinha daquele país que passam o ócio lendo romances - mas nem para todos a bandeira inglesa significa liberdade; e isso não facilita a tarefa de nos identificar pela simpatia com os personagens e acontecimentos até os “ver”. Contudo a crítica literária reconhece unanimemente a grandeza de Conrad na sua preocupação com os “valores” que “mantêm a terra e suspendem o céu” de uma humanidade “abandonada por Deus”. Mas aí nos ocorre que os portadores dos ideais conradianos - dever, fidelidade, sacrifício - são gente da marinha mercante, agentes de casas comerciais em países exóticos e outros assalariados. Em tempo de paz, até os soldados de Sua Majestade Britânica são mercenários. Cadê o heroísmo?
Não é fácil tornar acreditável uma documentação desta espécie. O romance de aventuras comum nem tem essa pretensão; basta provocar no leitor um interesse momentâneo, subcutâneo, o “suspense”, que desaparece logo depois da leitura. Conrad pretende, porém, infiltrar-se na nossa consciência. Aos valores permanentes que a sua arte representa corresponde a verdade permanente dos seus enredos e caracteres. Força é acreditarmos realmente na verdade do que o romancista nos conta, assim como acreditamos na realidade de acontecimentos aos quais temos assistido. Para esse fim é preciso torná-los visíveis.
Como conseguir isso? Os realistas-naturalistas, de Balzac a Zola, pretenderam produzir aquela impressão, descrevendo tudo, acumulando pormenores. Flaubert, que também cometeu o Bonnet de Bovary, abraçou pelo menos na teoria outro ideal, o do mot juste. Ensinou ao seu discípulo Maupassant a “ver uma árvore, em vez de descrever a árvore inteira, com todos os pormenores, observá-la longamente até descobrir um pormenor, um único, que ninguém ainda observara; depois, exprimir esse pormenor significativo pelo mot juste - e a árvore estará visível. Conrad adorava essa teoria; mas não chegou a imitá-la. Sabia observar como poucos; mas o seu reduzido domínio da língua inglesa impediu-lhe encontrar o mot juste. Em compensação, compreendeu profundamente a natureza do precioso conselho flaubertiano: o máximo da visibilidade é conseguido pela limitação voluntária do raio de observação. E ótimo método para descrever objetos. Mas a tarefa do romancista consiste em movimentar os seus objetos. Então Conrad aproveitou-se de maneira engenhosíssima do método da “limitação voluntária do raio de observação”.
Os romancistas de todos os tempos contaram diretamente os destinos dos seus personagens. Sabiam (quer dizer, inventaram) tudo deles, comunicando ao leitor o que convinha para provocar interesse, explicar motivos, tomar compreensíveis o começo, o meio e o fim. Os romancistas eram, em relação aos seus enredos, oniscientes. Conrad, sabendo limitado o raio de ação da sua memória, renunciou à onisciência. Eis a raiz da sua técnica.
O personagem principal da novela The Heart of Darkness é Kurtz, agente de uma empresa no interior do Congo, sujeito terrivelmente pervertido pelo calor, pelo sadismo, pelo ambiente selvagem, acabando em meio dos indígenas. Conrad, viajando pelo Congo, conheceu pessoalmente esse personagem sinistro; mas soube da história dele só pelos boatos que percorreram a colônia. Então, o novelista não se sentiu capaz de contar diretamente os acontecimentos. Inventou o personagem de um capitão Marlow, este também insuficientemente informado, que volta para a Inglaterra, encarregado de dizer a verdade à noiva de Kurtz. Durante a viagem talvez não tenha pensado nas dificuldades da sua missão. O aspecto do Tâmisa nas névoas evoca-lhe as trevas do continente africano. Pouco a pouco surgem-lhe, como através de um véu, as lembranças. Enfim, não terá a coragem de dizer a verdade à moça. O leitor tampouco saberá tudo da história de Kurtz; mas sabe o que basta para nunca o esquecer jamais, porque o viu.
A história, indiretamente narrada, de Kurtz foi uma primeira tentativa. Mas Conrad não largará mais seu precioso informador Marlow. Este reapareceu em Lord Jim, história de um jovem oficial de marinha mercante que abandonou covardemente o navio sinistrado e os passageiros, passando depois a vida no
ostracismo em perdidos portos exóticos, esperando a oportunidade para restabelecer sua honra por um ato de sacrifício. Após rápida introdução sobre os antecedentes de Jim, Marlow toma a palavra: ele, que assistiu ao processo contra Jim perante o tribunal marítimo, conta o que soube aos seus amigos, depois de um jantar em Londres. E muito, muito depois, um dos amigos que jantaram com Marlow naquela noite recebeu do capitão uma carta, relatando o heroísmo final de Jim. Aí Marlow já aparece com duas vozes diferentes: os acontecimentos trágicos no alto-mar e perante o tribunal refletem-se numa conversa com café e charutos; o fim heróico de Jim é lido à luz duma lâmpada noturna, na capital do Império, que precisa de homens assim.
Marlow volta na obra-prima de Conrad, The Chance, seu romance mais complexo. Aí, o capitão sabe, o que sabe, só de segunda e terceira mão: pelo tenente Powell, testemunha fiel, ingénua e incompreensiva; por Mrs. Fyne, mulher hostil à heroína Flora, e pelo próprio Fyne - mas o que estes sabem sobre a vida de Flora, só sabem mesmo pela própria Flora, que pretende ocultar sua vida tempestuosa, só pouco a pouco revelada pelos acontecimentos que a redimirão. E nestes três “espelhos” narrativos reflete-se o espírito de Marlow, que pretende decifrar o enigma da “chance”: da oportunidade que a vida nos oferece para vencermos o fado.
Apenas em Victory Conrad não empregou o intermediário Marlow: aí, o mal aparece abertamente na pessoa do fantástico Davy Jones (nome que os marujos ingleses dão à morte) e o ideal na pessoa da perdida Lena, salvando, pelo sacrifício da própria vida, o cético Heyst, que não acreditava em sacrifícios. Aí a presença de Marlow não foi precisa para tomar acreditável o fim. É a vitória de Conrad sobre a sua própria técnica.
São “histórias marítimas”, “romances exóticos”. Mas não é o exotismo que importa; foi a técnica novelística de Conrad que lhe custou noites de insónia, revolucionando a arte do romance.
No romance, a técnica de Conrad significa uma revolução. Mas na realidade, não. Pois na vida ninguém nos conta sua biografia inteira quando o conhecemos. E só em pedaços, pouco a pouco, e de maneira sempre incompleta que se nos desvendam as vidas dos outros - e as nossas próprias vidas. Experimentamos a vida assim como lemos os romances de Conrad: daí, a sua técnica é um supremo recurso para “imitar” a realidade, para fazer-nos ver e acreditar. Foi difícil; mas não porque os enredos de Conrad eram exóticos, e sim porque a vida é assim, complicada e difícil. A vida, a minha, a vossa, a da humanidade inteira, também se parece com uma viagem pelo mar noturno, destino desconhecido, talvez para a victory, talvez para o desastre. Esperam-se os crimes e covardias; é difícil acreditar no sacrifício, no heroísmo, no simples cumprimento do dever. Nem se pode pensar nisso: vivemos simplesmente para ganhar a vida, assim como os mercenários a soldo de Sua Majestade Britânica. Mas estes já deram, mais do que uma vez, o exemplo de perder a vida assalariada para salvar, “mediante pagamento”, a liberdade de todos e a “suma do que dá valor à vida”, merecendo o epitáfio que Alfred Edward Housman, pensando nos heróis de Conrad, lhes dedicou:

These, in the day when heaven was falling,
The hour when earth’ s foundations fled,
Follow’ d their mercenary calling
And took their wages and are dead.

Their shoulders held the sky suspended.
They stood, and earth’s foudations stay,
‘What God abandon’d these defended,
And saved the sum of things for pag.





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SOBRE A TÉCNICA DE CONRAD



No prefácio de um dos seus romances, Joseph Conrad definiu a tarefa do romancista da maneira seguinte: “E a minha tarefa fazer ouvir as coisas ao leitor pelo poder da palavra escrita, fazê-lo ouvir, sentir e principalmente ver. Isto, e mais nada, mas é tudo”. Parece a profissão de fé de um poeta descritivo, pour qui le monde visible existe. Fazer ouvir, sentir, ver, sugerir-nos que teríamos assistido a um acontecimento inventado, não é pouca coisa. Contudo, a técnica que consegue esse fim, parece-nos antes o ponto de partida do que a finalidade da arte novelística. E esta técnica (“mais nada”) seria tudo? E o enredo, os personagens, a psicologia, os problemas? Aquela definição afigura-se-nos muito modesta. Não se compreende, então, o esforço enorme que Conrad dedicou às suas obras: as noites de insónia, as discussões intermináveis, os acessos de desespero e auto-acusações de incapacidade, tudo isso de que a correspondência de Conrad dá testemunho comovente. Toda aquela profunda preocupação artística e moral, só para “fazer ver”?
O que foi afinal aquilo que criou tantas dificuldades até se tomar visível? Sabe-se que Conrad explorou materiais autobiográficos; pretendeu “fixar” as reminiscências dos seus tempos de oficial da marinha mercante:, tempestades e calmas perigosas, portos exóticos, contrabandistas e amotinados, crimes abomináveis no interior da Malásia e do Congo, incêndios, traições e salvações no alto-mar - enfim o arsenal inteiro do romance de aventuras. O símbolo da obra de Conrad seria um navio, sulcando o mar noturno com destino desconhecido, um navio carregando cadáveres de assassinados mas iluminado pela inspiração heróica de cumprir o dever. England expects every officer and man to do his duty this day e sempre; a preocupação do romancista de ligar os seus ideais às tradições da bandeira inglesa seria capaz de comover oficiais reformados da marinha daquele país que passam o ócio lendo romances - mas nem para todos a bandeira inglesa significa liberdade; e isso não facilita a tarefa de nos identificar pela simpatia com os personagens e acontecimentos até os “ver”. Contudo a crítica literária reconhece unanimemente a grandeza de Conrad na sua preocupação com os “valores” que “mantêm a terra e suspendem o céu” de uma humanidade “abandonada por Deus”. Mas aí nos ocorre que os portadores dos ideais conradianos - dever, fidelidade, sacrifício - são gente da marinha mercante, agentes de casas comerciais em países exóticos e outros assalariados. Em tempo de paz, até os soldados de Sua Majestade Britânica são mercenários. Cadê o heroísmo?
Não é fácil tornar acreditável uma documentação desta espécie. O romance de aventuras comum nem tem essa pretensão; basta provocar no leitor um interesse momentâneo, subcutâneo, o “suspense”, que desaparece logo depois da leitura. Conrad pretende, porém, infiltrar-se na nossa consciência. Aos valores permanentes que a sua arte representa corresponde a verdade permanente dos seus enredos e caracteres. Força é acreditarmos realmente na verdade do que o romancista nos conta, assim como acreditamos na realidade de acontecimentos aos quais temos assistido. Para esse fim é preciso torná-los visíveis.
Como conseguir isso? Os realistas-naturalistas, de Balzac a Zola, pretenderam produzir aquela impressão, descrevendo tudo, acumulando pormenores. Flaubert, que também cometeu o Bonnet de Bovary, abraçou pelo menos na teoria outro ideal, o do mot juste. Ensinou ao seu discípulo Maupassant a “ver uma árvore, em vez de descrever a árvore inteira, com todos os pormenores, observá-la longamente até descobrir um pormenor, um único, que ninguém ainda observara; depois, exprimir esse pormenor significativo pelo mot juste - e a árvore estará visível. Conrad adorava essa teoria; mas não chegou a imitá-la. Sabia observar como poucos; mas o seu reduzido domínio da língua inglesa impediu-lhe encontrar o mot juste. Em compensação, compreendeu profundamente a natureza do precioso conselho flaubertiano: o máximo da visibilidade é conseguido pela limitação voluntária do raio de observação. E ótimo método para descrever objetos. Mas a tarefa do romancista consiste em movimentar os seus objetos. Então Conrad aproveitou-se de maneira engenhosíssima do método da “limitação voluntária do raio de observação”.
Os romancistas de todos os tempos contaram diretamente os destinos dos seus personagens. Sabiam (quer dizer, inventaram) tudo deles, comunicando ao leitor o que convinha para provocar interesse, explicar motivos, tomar compreensíveis o começo, o meio e o fim. Os romancistas eram, em relação aos seus enredos, oniscientes. Conrad, sabendo limitado o raio de ação da sua memória, renunciou à onisciência. Eis a raiz da sua técnica.
O personagem principal da novela The Heart of Darkness é Kurtz, agente de uma empresa no interior do Congo, sujeito terrivelmente pervertido pelo calor, pelo sadismo, pelo ambiente selvagem, acabando em meio dos indígenas. Conrad, viajando pelo Congo, conheceu pessoalmente esse personagem sinistro; mas soube da história dele só pelos boatos que percorreram a colônia. Então, o novelista não se sentiu capaz de contar diretamente os acontecimentos. Inventou o personagem de um capitão Marlow, este também insuficientemente informado, que volta para a Inglaterra, encarregado de dizer a verdade à noiva de Kurtz. Durante a viagem talvez não tenha pensado nas dificuldades da sua missão. O aspecto do Tâmisa nas névoas evoca-lhe as trevas do continente africano. Pouco a pouco surgem-lhe, como através de um véu, as lembranças. Enfim, não terá a coragem de dizer a verdade à moça. O leitor tampouco saberá tudo da história de Kurtz; mas sabe o que basta para nunca o esquecer jamais, porque o viu.
A história, indiretamente narrada, de Kurtz foi uma primeira tentativa. Mas Conrad não largará mais seu precioso informador Marlow. Este reapareceu em Lord Jim, história de um jovem oficial de marinha mercante que abandonou covardemente o navio sinistrado e os passageiros, passando depois a vida no
ostracismo em perdidos portos exóticos, esperando a oportunidade para restabelecer sua honra por um ato de sacrifício. Após rápida introdução sobre os antecedentes de Jim, Marlow toma a palavra: ele, que assistiu ao processo contra Jim perante o tribunal marítimo, conta o que soube aos seus amigos, depois de um jantar em Londres. E muito, muito depois, um dos amigos que jantaram com Marlow naquela noite recebeu do capitão uma carta, relatando o heroísmo final de Jim. Aí Marlow já aparece com duas vozes diferentes: os acontecimentos trágicos no alto-mar e perante o tribunal refletem-se numa conversa com café e charutos; o fim heróico de Jim é lido à luz duma lâmpada noturna, na capital do Império, que precisa de homens assim.
Marlow volta na obra-prima de Conrad, The Chance, seu romance mais complexo. Aí, o capitão sabe, o que sabe, só de segunda e terceira mão: pelo tenente Powell, testemunha fiel, ingénua e incompreensiva; por Mrs. Fyne, mulher hostil à heroína Flora, e pelo próprio Fyne - mas o que estes sabem sobre a vida de Flora, só sabem mesmo pela própria Flora, que pretende ocultar sua vida tempestuosa, só pouco a pouco revelada pelos acontecimentos que a redimirão. E nestes três “espelhos” narrativos reflete-se o espírito de Marlow, que pretende decifrar o enigma da “chance”: da oportunidade que a vida nos oferece para vencermos o fado.
Apenas em Victory Conrad não empregou o intermediário Marlow: aí, o mal aparece abertamente na pessoa do fantástico Davy Jones (nome que os marujos ingleses dão à morte) e o ideal na pessoa da perdida Lena, salvando, pelo sacrifício da própria vida, o cético Heyst, que não acreditava em sacrifícios. Aí a presença de Marlow não foi precisa para tomar acreditável o fim. É a vitória de Conrad sobre a sua própria técnica.
São “histórias marítimas”, “romances exóticos”. Mas não é o exotismo que importa; foi a técnica novelística de Conrad que lhe custou noites de insónia, revolucionando a arte do romance.
No romance, a técnica de Conrad significa uma revolução. Mas na realidade, não. Pois na vida ninguém nos conta sua biografia inteira quando o conhecemos. E só em pedaços, pouco a pouco, e de maneira sempre incompleta que se nos desvendam as vidas dos outros - e as nossas próprias vidas. Experimentamos a vida assim como lemos os romances de Conrad: daí, a sua técnica é um supremo recurso para “imitar” a realidade, para fazer-nos ver e acreditar. Foi difícil; mas não porque os enredos de Conrad eram exóticos, e sim porque a vida é assim, complicada e difícil. A vida, a minha, a vossa, a da humanidade inteira, também se parece com uma viagem pelo mar noturno, destino desconhecido, talvez para a victory, talvez para o desastre. Esperam-se os crimes e covardias; é difícil acreditar no sacrifício, no heroísmo, no simples cumprimento do dever. Nem se pode pensar nisso: vivemos simplesmente para ganhar a vida, assim como os mercenários a soldo de Sua Majestade Britânica. Mas estes já deram, mais do que uma vez, o exemplo de perder a vida assalariada para salvar, “mediante pagamento”, a liberdade de todos e a “suma do que dá valor à vida”, merecendo o epitáfio que Alfred Edward Housman, pensando nos heróis de Conrad, lhes dedicou:

These, in the day when heaven was falling,
The hour when earth’ s foundations fled,
Follow’ d their mercenary calling
And took their wages and are dead.

Their shoulders held the sky suspended.
They stood, and earth’s foudations stay,
‘What God abandon’d these defended,
And saved the sum of things for pag.








sexta-feira, 20 de agosto de 2010

TRISTÃO DE ATHAYDE



















CARTA DE MESTRE ALCEU:
Petrópolis, 1-4-81
Meu caro colega Rogel

Muito obrigado pelo livro em caminho. Já o folheei. Comecei pelo fim como recomendou. Como você começou na nossa vela Faculdade, hoje é o velho professor que está no fim orgulhoso do antigo aluno e não arrependido do que lhe tenha dado. Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência.
Do velho
Alceu

["Tradução" da letra de Alceu por A.C. Villaça].








TRISTÃO DE ATHAYDE

Em 1971, no auge da ditadura militar, Tristão de Athayde foi a única voz a protestar, publicamente, contra o desaparecimento do ex-deputado cassado Rubens Paiva, cujo corpo até hoje não foi encontrado. Segundo depoimento de testemunhas, Paiva morreu, provavelmente, no quartel da Polícia do Exército, no Rio, depois de sofrer maus tratos no quartel da antiga Terceira Zona Aérea.


TRÁGICA INTERROGAÇÃO (25/02/1971)
Há vários meses que o Brasil inteiro participava do drama provocado pelo seqüestro do cônsul Aloísio Gomide por terroristas uruguaios. Revoltou-se contra a implacabilidade do Governo uruguaio, que se recusou terminantemente a proceder, como os seus seqüestradores, da maneira racional e humana com que agiu, em casos semelhantes, o nosso próprio Governo. E finalmente acompanhou, comovido, os passos que a esposa do nosso cônsul deu para obter, particularmente, com o apoio da generosidade do povo brasileiro, o que não conseguiu da intolerância do Governo uruguaio.
Pois bem, chegou a hora de participarmos todos de um drama semelhante, ocorrido entre nós e que é cercado de circunstâncias ainda mais revoltantes. É o caso do engenheiro e ex-Deputado Rubens Beyodt Paiva, preso em sua residência no dia 20 de janeiro e até hoje totalmente desaparecido. Do nosso cônsul se sabe que esteve em poder dos tupamaros e foi libertado, graças a um resgate em dinheiro. Do outro seqüestrado, porém, nada conseguem saber, bem sua família, nem seus advogados. Nem mesmo se conhece, os motivos de sua prisão. Deputado federal por S. Paulo, teve seus direitos políticos suspensos em 1964. Mas nunca mais, desde então, participou de atividades políticas. Não foi aberto contra ele qualquer inquérito policial-militar. Não lhe foi feita jamais qualquer acusação. Dedicou-se desde então, exclusivamente, à sua família e à sua carreira profissional. Inesperadamente, no Dia de S. Sebastião, é preso, em sua residência, juntamente com uma filha de 16 anos e sua sua esposa. Aquela foi liberada no dia seguinte. Esta, 12 dias depois. Foram todos levados para o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita. Quando, dias depois, mostraram à sua esposa um álbum de fotografias dos presos daqueles dias, ela pôde ver claramente não só sua própria fotografia, e da filhinha, mas também a do seu marido. Solicitado habeas-corpus ao Superior Tribunal Militar, pelo advogado Lino Machado Filho, as informações dadas pelo comandante do I Exército foram de que nem o engenheiro, nem sua esposa nem sua filha tinham estado em unidades da área do I Exército!
A inquietação da família cresceu de vulto com uma notícia anônima, distribuída aos jornais e divulgada pela televisão no dia 28 de janeiro, insinuando que houve no Alto da Boa Vista uma operação de resgate (?), feita por terroristas, de um preso de alta categoria social. Notícia absolutamente inverossímil e desacompanhada de qualquer autenticidade ou da mais vaga comprovação. A vítima desse misterioso desaparecimento nunca pertenceu a qualquer movimento político, desde sua cassação como Deputado federal, e não tem ligação alguma com elementos subversivos. Só há três fatos inequívocos em todo esse enredo: foi preso em sua residência por agentes do poder público; recolhido a um quartel da Polícia do Exército e desde então ninguém consegue saber do seu destino. E tal situação angustiosa dura há mais de um mês, embora todos os recursos legais tenham sido utilizados para se conseguirem informações sobre o paradeiro da vítima desse verdadeiro seqüestro.
O mínimo a que tem direito a opinião pública em face de um atentado tão insólito, que não só angustia um lar de modo intolerável, mas põe em risco a segurança de todos os lares em nossa terra, é seguramente uma clara informação das autoridades públicas. E um inquérito promovido para averiguar os acontecimentos e localizar a vítima. Na carta que a Conferência Nacional dos Bispos acaba de dirigir, solidarizando-se com D. Valdir Calheiros, Bispo de Volta Redonda, há o seguinte trecho: "Ousamos esperar que, daqui para frente, não se prendam pessoas sem observância das prescrições legais de comunicação à autoridade judicial, tornando-as incomunicáveis sem que elas nem seus familiares saibam como esse fato sucedeu".
Que dizer de um caso em que se sabe como o fato se deu, mas não por que se deu e, o que é mais trágico, qual o destino dado à vítima de tão revoltante atentado!





TRISTÃO DE ATAÍDE
O romantismo
O romantismo foi um sonho de brasileirismo. E um sonho que não podemos deplorar porque dêle saiu o primeiro grande impulso coletivo para a nossa literatura.
A figura central de todo êle, como valor estético, foi Castro Alves. A figura central, porém, como valor social e simbólico, foi José de Alencar.
Finara-se já, ou pelo menos finalizará a sua fase criadora, a primeira geração romântica. Mas a nova geração recebia ainda o legado de nacionalismo. Alencar representa então a figura nacional por excelência. Não é um puro homem de letras, como seria Castro Alves, um artista em que tudo tendesse à ficção. Tomou parte ardente na vida pública. Foi ministro. Foi político. Foi publicista. E deixou-se morrer de desgostos políticos. Ligou as duas faces da formação nacional - a vida real e a vida ideal da raça brasileira. Procurou a verdade e a ficção. Nunca as dissociou. E, nesta, sentiu como ninguém tôda a complexidade pátria, tôda a variedade de aspectos que procurou refletir em sua obra de romancista. Fêz uma obra menos de inspiração que de vontade.
Ao contrário de Castro Alves. Não havia neste, como havia em Alencar, a intenção literária. Foi um grande inconsciente no elemento vital de sua arte. E, por isso, tanto mais profunda a sua repercussão. Pode-se dizer que até hoje nenhum artista brasileiro foi tão naturalmente brasileiro como
êste. O que não importa dizer que sua poesia não esteja impregnada de hugolatria. O romantismo, porém, correspondia realmente ao gôsto da época, entre nós, e sobretudo ao papel que Castro Alves representou na solução do problema capital do Império.
Muitos outros cantaram a Abolição, mas só êle foi realmente o poeta da Abolição. E a ação invisível dos seus versos valeu por campanhas políticas. Outros trabalhavam a razão ou a consciência. Ele conquistou o sentimento, pela imagem.
Antes dêle, porém, já perdera em parte o romantismo sua feição puramente nacionalista. Os byronianos pouco se importavam com os problemas públicos.
Seu pesadelo eram as paixões. Era o coração que os atormentava. Era o subjetivismo delirante, por vêzes genial como nos lampejos de Alvares de Azevedo, que lhes guiava a chama literária. O homem brasileiro já se sentia tranqüilo nos limites de sua pátria, e voltava-se então para si mesmo A serenidade imperial já permitia uma literatura livre do tormento social.
Gonzaga cantara o amor blandicioso, de rendilhados e ovelhinhas, mas escrevia ao mesmo tempo as "Cartas Chilenas", e conspirava. Gonçalves Dias soubera modular com lirismo o remorso do coração, mas o que fêz realmente com todo o seu lusismo, foi impregnar-se quanto possível de natureza tropical e completar a independência política de sua terra. E, com êle, seus contemporâneos.
Só a geração seguinte começou a sentir, em parte, que já havia uma pátria livre. E que as letras já podiam ser apenas uma voz do coração.



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Poesia Planetária





Alceu Amoroso Lima





Meses atrás, para respirar um ar mais puro dó que o poluído pelo ambiente político de uma ditadura de pacotilha em liquidação, voltei-me para os poetas. E os encontrei bem longe daqueles que fizeram do modernismo o quinto grande momento poético de nossas letras. E tive então a oportunidade de escrever o seguinte, a propósito dos vultos mais recentes deste nosso pós-modernismo, como Gilberto Mendonça Teles, Gerardo Mello Mourão, Jamil Haddat, Marcos Konder Reis e tantos mais, pois a florada é grande. "Se a preocupação nacionalista e por vezes regionalista, populista ou tropicalista, foi uma nota típica do modernismo, e o nacionalismo o marcou profundamente, o planetarismo é que está marcando o pós-modernismo e a atual posição de nossa poesia. Não que os nossos poetas mais destacados deste momento se declarem, como J. L. Borges, "europeus residentes nos subúrbios do Velho Mundo". Mas tudo indica que se colocam no centro do grande ciclone mundial em que estão todos envolvidos. Ao mesmo tempo no centro e na circunferência, desse tornado universal" (JB. 28-7-78).

Nesse grupo do planetarismo poético deste início de fim de século, se destaca, do modo mais impressionante e original, a figura universitária e sobretudo meta-universitária do poeta e crítico Affonso Romano de Sant'Ana. Como sempre considerei a crítica como uma forma de criação e não apenas de apreciação literária, a presença simultânea, neste momento, dois grandes críticos que são ao mesmo tempo, grandes poetas, Gilberto Mendonca Teles e Affonso Romano de Sant'Ana
, é a prova de um dos traços mais típicos de nossas letras atuais, destacado aliás por Affonso Romano no trabalho que apresentou ao 1º Encontro com a Literatura Brasileira (S. Paulo 25/30 setembro, 1977). Esse traço é a atual vitalidade literária, em contraste e protesto contra a mortalidade política. Ao contrário da coexistência pacífica dos modernistas com as autoridades públicas do seu tempo. As ditaduras políticas, como a lança de Amfortas, podem cicatrizar as próprias feridas que produzem. Esse trabalho crítico de Affonso Sant'Ana é a página mais completa e mais original que já foi escrita sobre a poesia brasileira contemporânea e seus "sete diferentes grupos". Essa passagem da poesia de água destilada a que aspiraram os parnasianos e os simbolistas, à poesia de água nascente e seu tratamento químico depurador, até mesmo à poesia "sórdida" a que Ferreira Goulart concorreu com seu famoso Poema Sujo, constitui um caminho em direção à vida, em sua totalidade e em suas contradições, da água nascente mais pura às águas mais poluídas. Daí também, deste anseio de vitalismo prático das mais jovens gerações. esse salto do localismo ao planetarismo, de que Affonso Sant'Ana é, seguramente, um dos expoentes destacados.


Seu grande poema mais recente e porventura o fruto mais maduro e sumarento de seu longo, variado e fecundo roteiro poético e critico, é A Grande Fala do índio Guarani Perdido na História e Outras Derrotas (Sumus Editorial - S. Paulo - Rio, capa e vinhetas de Glauco Rodrigues, 180 págs. 1979).

Referi-me, acima, a J. L. Borges, o grande poeta latino-americano de renome universal, cantando os feitos das ditaduras militares que lhe permitem isolar-se em sua torre de marfim, pulsando o seu alaúde. Affonso Sant'Ana se coloca em posição diametralmente oposta a Borges. Não que ponha sua criatividade poética a serviço de qualquer causa política, por mais justa e universal que seja. Mas se abre à vida, em sua totalidade, do modo mais feroz, digamos assim, e longe de se situar "nos subúrbios do Velho Mundo", coloca-se em pleno continentalismo do Novo Mundo, com suas aspirações universais e suas frustrações patéticas. Não é à toa que, como subtítulo de seu poema cíclico, coloca o ambicioso subtítulo de Moderno Popol Vuh. Como se sabe, esse poema guatemalteco, em. língua quiché, de meados do século XVI, já era um grito de alarme e de agonia contra o fim de uma civilização milenar e autóctone, ameaçada pela conquista dos soldados do Velho Mundo político e imperialista, mas também redimida pelos missionários de um Novo Mundo espirtual, que transcendia a todos os imperialismos políticos, dos velhos e de novos continentes.

Affonso Sant'Ana, em seu poema brasílico, que surge quatro séculos depois do grito do genial indígena anônimo guatemalteco, começa com uma angústia e termina com um desafio. Vai muito mais longe do que o Popol Vuh. Pois coloca face a face o homem supercivilizado do século XX e o selvagem ou pré-civilizado, se considerarmos a civilização como sendo o alargamento, pela cultura e pela técnica, do conhecimento do mundo e de sua dominação pela inteligência do homem moderno.

Affonso Sant'Ana tem uma cultura poética universal. Leu tudo e tudo assimilou, até a saturação. Até o desespero. Consciente ou inconscientemente, partiu do verso famoso de Mallarmé "le ciel vide hélas, et j'ai lu tous les livres". Leu aparentemente o que é possível ler de todos os livros, mas não chegou a esvaziar o céu, pelo que se denota, não de algumas invectivas ateístas do herói guarani, mas de certas passagens de sua copiosa bibliografia critica. Por isso mesmo, o drama latente que faz a beleza profunda de seu poema é o contato e o contraste entre o homem da natureza que tudo intui e nada leu, com o homem de cultura, que tudo leu mas também tudo tenta intuir. E chegou à conclusão da vaidade total de todo acúmulo de saber, principalmente em face do mistério da poesia. Pois seu poema é uma longa e patética interrogação em torno do poder e do alcance da poesia, não só como beleza formal, no sentido estético, mas como alcance formal no sentido epistemológieo, em que forma significa aquilo que é.

O mistério da poesia e do seu sentido profundo persegue esse grande poeta-crítico, ao menos desde os seus escritos de Los Angeles (l966), reunidos em um dos seus livros mais analíticos, Poesia Sobre Poesia. O canto do seu herói epônimo do nativismo americano começa, e não apenas começa, mas tropeça a cada passo, na grande, constante e dramática interrogação: "Onde lerei eu os poemas do meu tempo?" E do mesmo modo como, na sua meditação crítico-poética anterior, procura cirurgicamente dissecar o que é a poesia que existe nele próprio e nos poetas em geral, no seu grande poema cíclico disseca o seu longo roteiro poético-crítico à procura do "ouro da mina". E nesses 18 cantos do poema chega, constantemente, a momentos de alta poesia, como no canto 10, em que a própria forma tipográfica dá ao seu canto amazônico uma beleza de rio-mar.

Esse poema merece uma análise em profundidade, como aquele que o poeta-crítico dedica à obra de Carlos Drummond de Andrade, que considera naturalmente como sendo o ponto central e genial de toda poesia brasüeira moderna.

Depois de Basílio da Gama, de Santa Rita Durão, de Gonçalves Dias, de Alencar, de Raul Bopp, de Cassiano Ricardo, de Mário de Andrade, de Darcy Ribeiro. Affonso Romano de Sant'Ana retoma o tema lndianista e o leva a um horizonte planetário, a que nenhum de seus predecessores o levou. Seu poema é um ponto alto em nossas letras. E até em nosso momento político, como reação contra sua mediocridade e conformismo.


Pois tudo é poesia.






ALCEU AMOROSO LIMA

ADEUS À DISPONIBILIDADE LITERÁRIA




NÃO é sem certa emoção, asseguro, que tomo do lápis para recomeçar, ainda uma vez, êste velho rodapé.
Foi precisamente há vinte e cinco anos que, encontrando acidentalmente Renato Lopes, na Avenida Rio Branco, numa clara manhã de março de 1919, convidou-me êle para tomar a seção de “Bibliografia” no jornal que tinha em mente fundar. Queria fazer, dizia-me, um jornal dos “tímidos”, dos inéditos, dos não jornalistas profissionais, dos amadores de boa vontade. E citava os nomes de Manuel Amoroso Costa, de Miguel Osório de Almeida, de Delgado de Carvalho, e outros que iria convidar, para trabalharem e colaborarem junto dele, de Bertino de Miranda, de Arrojado Lisboa, de João Lopes.
Outro, bem outro que o de hoje era o ambiente social e literário em que ia encetar urna faina, aceita então com o alvorôço da mocidade e hoje retomada no limiar das últimas etapas, depois de várias interrupções em que nela figuraram três nomes que lhe deram um brilho que faltava ao seu iniciador, Agrippino Grieco, Otávio Tarqüínio de Sousa e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Três circunstâncias influem, nitidamente, para marcar o contraste entre 1919 e 1944: a Conversão, o Tempo e os Acontecimentos.
A primeira, ocorrida nove anos mais tarde, ia ser, para alguns, uma “decepção”. Deveria ser mais do que isso, uma despedida. Não o foi entretanto. Tornou-se apenas uma passagem da disponibilidade ao ancoramento. Será preciso advertir que o ancoramento cristão é coisa muito diversa da imagem náutica correspondente? Converter-se não significa parar, mas apenas saber para onde segue a viagem.
No seu panegírico de S. Bento, escreveu Bossuet que—”Tôda a doutrina do Evangelho, tôda disciplina cristã, tôda perfeição da vida monástica, está contida inteiramente numa só palavra Egredere: sai.. “—de tal modo se nos ordena caminhar sem descanso, que nem mesmo em Deus nos é permitido repousar, pois se acima d’Ele nada podemos pretender, há sempre n’Ele novos progressos a fazer.
Converter-se, mesmo imperfeitamente, é compreender o sentido da viagem empreendida e ter mais nítida a noção de nossa condição de “viajantes”.
Para muitos, porém, que assistem de fora, a aventura é apenas perder a liberdade. No caso, era sacrificar totalmente a independência do critico à disciplina, quando não, ao partidarismo do crente. Se o fiz, fiz mal. Terei sido mau crítico e mau crente. Pois nenhuma exigência intrínseca pedia o sacrifício da mínima parcela de liberdade. Saber onde está o Caminho não é nunca impedir a circulação por todos os caminhos. Ao contrário, é facilitar tôdas as excursões, sem perigo de se perder por elas, desde que se tenha sempre em mente o traçado do roteiro autêntico. Já tenho quinze anos de experiência da nova fase. E posso afirmar sem hesitação que, por mim, me sinto hoje tão livre, ao menos, quanto o era no dia em que, há vinte e cinco anos, redigia, sem nenhuma posição filosófica ou religiosa definida, a primeira destas crônicas bibliográficas. Bem sinto que mudei muito, como muito mais ainda mudaram as coisas e talvez os homens que me cercam. Bem sinto procurando o que havia de mais estável no fundo das intenções de outrora, antes de l928—ter sido um ideal puramente cultural o que então me animava a escrever. Hoje, coloco êsse ideal cultural como uma etapa, apenas, de um caminho mais longo; como uma estação intermediária de um ponto final mais alto e mais distante. Essa a mudança capital que a Conversão penso ter operado no crítico totalmente disponível, em 1919, que fazia da Cultura um valor em si. Digo mal, um fim em si, pois não falta à cultura um valor em si. O que lhe falta, como seria se fôsse um fim último, é ser medida de todos os valôres. Cultura é passagem para um Bem mais alto. Ultrapassar, porém, não é nem desconhecer, nem diminuir. No caso, foi apenas valorizar. Foi dar à Literatura um sentido mais digno e mais nobre. Foi conceder-lhe uma responsabilidade maior. Foi sentir, de mais perto, o seu contacto com tôda a vida. E foi até, posso afirmá-lo lealmente, urna compreensão muito mais ampla da liberdade literária. Pois sempre que não colocamos a disciplina, a Regra, na eminência supraterrena, em que deve pairar, a conseqüência é a multiplicação temporal das “regrinhas” efêmeras e dos preceitos acidentais. Sabemos todos não haver autoridade mais rígida, do que aquela que tem a consciência de sua precariedade. Só não abusa da fôrça quem a tem em sua plenitude ou quem sabe, pelo menos, onde está essa plenitude. Eis o sentido da palavra tremenda da Escritura: “Veritas liberabit vos”. É a verdade que nos torna livres. Pois só ela nos desliga da servidão aos sofismas e aos régulos.
Se não havia, na conversão do crítico, uma perda da liberdade quanto às idéias, poderia havê-la quanto às pessoas. Ainda aqui rejeito a objeção. Crer é ser intolerante quanto aos fundamentos da Fé. Mas é abrir o coração, do modo mais amplo, a todos os que erram e a todos os que pecam, a todos os que falam e a todos os que escrevem. Pois a conseqüência da Fé, quanto às pessoas, é colocar a Caridade, como o fêz 5. Paulo, acima de tôdas as virtudes. E caridade é compreensão, é antecipação, é sempre sair de si mesmo, egredere, como dizia Bossuet. Se o crítico perdeu a compreensão quanto às pessoas, se foi mais estreito, mais mesquinho, mais intolerante nos seus juízos—errou de nôvo, como crítico e como crente. Pois na base de uma e de outra atitude, só há uma fôrça libertadora e invencível—é o Amor. “Crítica é Amor”, dizia Hello. “Crer é Amar”, dizia Santo Agostinho.
Ainda aqui a Conversão, como a graça, não podia alterar a natureza. A não ser que fôsse mal compreendida e mal praticada. Se o foi, a culpa é do crítico. Não da sua conversão. Esta só podia e só devia ter-lhe aberto os olhos e libertado a palavra. Por isso é que posso repetir, sem sombra de dissimulação:—sinto..me hoje ao menos tão livre, para a crítica literária, como no primeiro dia em que, sem rumo consciente, comecei estas crônicas.
Se algum laço nôvo me tolhe essa liberdade, não é da Conversão que me vem e sim daquele segundo elemento que vejo interpor-se entre hoje e 1919—o Tempo.
Viver é durar. Durar é aderir às coisas e aos homens. É desprender-se, cada vez mais dificilmente, de uns e de outros. Daí haver, na velhice, um apêgo muito maior à vida, do que na mocidade. As crianças falam rindo da morte. Os moços arriscam fàcilmente a vida. Os homens maduros começam a temer a velhice. E os velhos se apegam desesperadamente à existência. Só os moços se suicidam. Só êles desdenham a vida e enfrentam a morte. Envelhecer é, portanto, apegar-se aos homens e às coisas. E com isso, perder a liberdade.
O tempo nos torna, dia a dia, mais escravos da vida. E por isso mesmo nos encarcera entre amizades, preconceitos, escrúpulos, temores, que a mocidade desconhece.
Há, portanto, muito mais a temer da mão do tempo do que da mão de Deus. Esta é que nos liberta. Aquela a que nos consome e serviliza. Saber envelhecer é, por isso mesmo, a mais difícil e a mais necessária das artes. Pois é aprender a desligar-se dos laços crescentes a que o tempo nos vai acorrentando.
Vinte e cinco anos se passaram desde o dia inicial desta secção. Nesses cinco lustros o trabalho do tempo foi, como sempre, inexorável e incessante. E, como sempre, contraditório ao trabalho da Conversão. Pois enquanto esta nos traz a volta à mocidade, pela Esperança e à alegria pelo Desapêgo—o Tempo nos leva impiedosamente às mesquinhas satisfações do quotidiano. Henri de Regnier tem razão, se acaso o Tempo fôr o único senhor: “vivre avilit”. iS o Tempo que tira ao crítico a sua independência, pelo amor às situações adquiridas, pelo respeito às relações pessoais, pelo temor de desagradar a êste ou àquele, pelo ceticismo, pelo comodismo, pela indiferença que traz consigo às nossas almas desarmadas contra a sua tirania crescente.
Cinco lustros representam, sem dúvida, o pêso terrível do Tempo sôbre uma existência. Contra êle é que é mister defender-se. Nêle está, realmente, o perigo de uma invencível decadência. Procurarei, na medida do possível, remediar essa passagem, pela análise da sua ação corrosiva. E procurando, por outro lado, o que pode haver, no próprio Tempo, de sadio pela eliminação de cedas escórias com que os extremismos da mocidade tornam a crítica mais uma aventura e um debate pessoal, do que uma serena e objetiva comunicação de idéias e transposição de formas. O que perde em vivacidade poderá ganhar em serenidade. O que perde em independência, com a inevitável série de considerações pessoais a ter em conta, pode ganhar em justiça, pois à medida que envelhecemos somos mais inclinados a ornar as coisas como são e não como quisera que fôssem o nosso dogmatismo juvenil.
Nesses vinte e cinco anos, não foi apenas a Conversão que dividiu em dois uma existência, não foi apenas o Tempo que envolveu a nossa vida nessa rêde sutilíssima de laços invisíveis de que só uma vigilância contínua nos consegue livrar. Foram, também, os Acontecimentos que se desencadearam sôbre o mundo, de modo imprevisto. Em 1919, o mundo saía de um pesadelo. A nossa geração, já marcada pela guerra e pela revolução, que a havia arrancado à displicência de 1913, entrava num período eufórico de esperanças na Paz, que iria trazer ao Ocidente mais felicidade, ao Brasil mais consciência de sua personalidade nacional e à obra literária um horizonte mais vasto de realizações. Foi então a aventura modernista, que em 1919 apenas bruxuleava em várias insatisfações pessoais e em 1922 ia explodir numa onda coletiva.
1919-1939 foi um vintênio que contará de modo decisivo, na história da humanidade. Liquidaram-se as esperanças de 1918 e prepararam-se as catástrofes de 1939 em diante. Hoje estamos, de nôvo, em plena tormenta. Uma tormenta incomparàvelmente mais radical que a de 1914 a 1918. A nova guerra representa uma revolução muito mais profunda. Revolução em que todos os valôres se acham em jôgo e de que vai nascer na opinião de alguns, um mundo novinho em fôlha e, segundo outros, um mundo em que os valôres da vida e da morte, da verdade e do êrro, do sofrimento e da alegria, vão de nôvo opor-se de modo mais patético que nunca. Sou naturalmente dêsses últimos. Já o tenho dito tantas vêzes que e inútil repetir.
Os acontecimentos desencadeados sôbre o mundo arrastaram, de modo invencível, os destinos da literatura. Uns ainda a consideram como uma atividade acadêmica, que se processa friamente ou sentimentalmente pelo arranjo de certas formas, pela evocação de certas imagens, pela aproximação de certos conceitos. Quando não pela conquista de certas posições.
Outros a vêem colocada, em pleno desencadear dos acontecimentos, trazida para a arena, arrastada pelos cabelos, supliciada, solicitada por tôdas as paixões, por todos os fanatismos que hoje mais do que nunca se desencadearam de todos os quadrantes e ameaçada por tôdas as corrupções como capaz de tôdas as redenções.
Estou naturalmente entre êsses últimos. E justamente por sentir vivamente que a literatura é o oposto de um divertimento mundano e, hoje mais do que nunca, está participando vitalmente dos acontecimentos do mundo, é que a julgo digna, como jamais, de merecer a nossa dedicação.
Dela nada espero. Continuo hoje, como há vinte e cinco anos atrás, a ser apenas a seu respeito aquêle amador de boa vontade, a que um amigo fazia apêlo para o seu jornal. Se de alguma coisa me envaideço, nesses cinco lustros tão escassos em motivos de envaidecimento pessoal, é de nunca me ter deixado enfeudar pelo demônio da literatura. É de nunca me ter deixado profissionalizar. Considero-me tão alheio a qualquer espécie de grupo, de escola, de corrilho, de capela literária, de academismo, ou de antiacademismo como ao iniciar estas atividades. Por mais que a má fé de uns ou a ilusão de outros queiram atribuir-me êste ou aquêle partidarismo, esta ou aquela facção, posso afirmar, perante Deus, que me sinto ainda nisso tão livre como outrora.
Há uma disponibilidade a que não disse adeus—a da minha consciência liberta de compromissos de ordem profana. E o terreno literário é de ordem profana. Nêle me sinto, como em 1919, guiado apenas pela vontade de bem servir honestamente, sem ilusões quanto às possibilidades, mas sem compromissos de espécie alguma, o que me parece digno de ser servido. Há hoje, em campo, o que não havia em 1919—uma crítica literária ativa e bem dotada de algumas personalidades acima do comum. Em 1919 era quase o vácuo, Os grandes críticos do naturalismo haviam passado. Ainda não haviam nascido, ou estavam nos bancos escolares, os futuros grandes críticos do modernismo. Era o terreno livre para uma tarefa fácil. Hoje, é o campo ocupado para uma tarefa difícil. A literatura se tornou muito mais complexa. Houve uma revolução de formas exteriores. Houve também outra revolução de formas profundas. O ambiente de batalha e não mais o ambiente de armistício, como em 1919, é o que domina por tôda parte. O próprio lirismo cheira a fumo. As letras são cada vez menos uma jóia parnasiana, uma alegoria simbolista, ou uma aventura modernista —para serem a expressão mais viva do sangue, do suor, da poeira e das lágrimas em que o maior dos estadistas vivos resumiu suas esperanças, no momento mais trágico desta luta de vida e morte.
Na hora em que o veneno contra o qual se lançaram as fôrças da Liberdade, ameaça atingi-las a elas próprias, pelo nôvo Munique que se prepara no terror das Fôrças desencadeadas se a tempo não reagirem—os horizontes literários se cobrem do clarao dos incêndios e não dos “dedos de rosa” da aurora homérica de 1919.
Os acontecimentos marcaram e continuam a marcar os novos tempos com as garras de sua mão de aço. A literatura está empenhada, hoje em dia, na grande e trágica aventura da própria civilização. E por isso mesmo é muito mais empolgante a volta à liça ensangüentada de hoje, do que o foi, há vinte e cinco anos passados, a entrada na areia branca do terreno baldio de então. A ela não trago, nem mais nem menos, do que trazia naquele tempo. Trago a mesma alma, embora marcada pela Conversão, pelo Tempo e pelos Acontecimentos; o mesmo desejo de fazer, com honestidade, uma tarefa adequada à mediocridade dos meios de que disponho.
“Não discutir, construir”, continua a ser o lema a que há muito tem procurado ser fiel uma natureza que não alimenta ilusões a seu respeito. Volto ainda com menos ilusões. Mas, com o ânimo cada vez mais disposto a dar o pouco que tenha sem reservas e sem secretas intenções.
Quanto tempo durarão êstes últimos estudos?
Só Deus o sabe. Retomo-os com a disposição de sempre, no próximo dia em que tôda a natureza e a humanidade que crê celebra a maior festa da Cristandade. A essência do cristianismo se reduz a duas palavras: —Morte e Ressurreição. Hoje comemoramos a festa suprema da Ressurreição que é para nós a medida da Morte. O que ela nos traz—no meio das trevas mais terríveis que nos cercam e das ameaças, ainda mais trágicas, que o futuro talvez nos reserve, é a certeza da vitória final do Bem e da Verdade.
Neste espírito de ressurreição e de vida é que retomo a tarefa interrompida, com o mesmo ânimo de outrora e uma consciência ainda mais nítida, do nosso dever de presença. O futuro dirá por quanto tempo e de que modo. Loué par les uns, blamé par Les autres... Que importa? Os bons amigos são a alegria de nossa vida. E os bons inimigos tão necessários à nossa obra, como ao Estado uma boa oposição. Cultivo os meus com o carinho com que Candide cultivava o seu jardim no fim da vida...
E agora, a uns e a outros, digo de todo o coração: mãos à obra.
Ao retomar contacto, neste rodapé, com a literatura em sentido mais estrito, isto é com a prosa de ficção e a poesia, como pretendo fazer, não creio seja deslocado lembrar ou relembrar o ponto de vista crítico em que me coloco. Será, porventura, um dever para com os autores e os leitores. Um dos erros do nosso tempo é o que poderíamos chamar—a metafísica implícita. 12 agir, consciente ou inconscientemente, de acôrdo com um ponto de vista, com uma concepção geral da vida e, portanto, de acôrdo com uma metafísica, sem entretanto confessá-la ou mesmo sem procurar conhecê-la. Assim como Monsieur Jourdain fazia prosa sem saber o que fazia, assim também todo mundo faz metafísica sem saber ou sem querer. Mesmo quando afirma que não o faz, já dizia Aristóteles, pois negar um pensamento “para lá da física” já é ter uma metafísica.
É assim que tôda crítica supõe uma filosofia da vida. Quando mais não seja a filosofia de não ter uma filosofia da vida, o que é mesmo o ponto de vista mais corrente.
Em suma, penso que um dos deveres primordiais de quem escreve, como aliás de quem procura viver decentemente, é jogar um jôgo franco. É procurar não se iludir nem iludir os outros. É fugir das metafísicas implícitas ou disfarçadas e pôr as cartas na mesa, como se diz numa linguagem tão em moda nos dias que correm...
Começarei, portanto, dizendo quais as modalidades de crítica que não pretendo fazer, para depois esboçar as linhas gerais, do que desejaria empreender. Ë oportuno, aliás, recordar antes de tudo, a famosa frase do Cardeal Lavigerie a quem perguntavam o que faria se lhe dessem uma bofetada: “O que eu devia fazer eu o sei; o que faria, porém, ignoro”.
Oito são as modalidades de crítica literária, que me esforçarei por não fazer, já que a tôdas considero condenáveis ou parciais. Quatro de plano inferior e quatro de plano superior.
As quatro modalidades de crítica literária inferior, a meu ver, são: a eclética, a pessoal, a partidária e a gramatical.
A crítica eclética é a que não parte de qualquer orientação definida. Ë a que fica na superfície das obras, nos caprichos do momento, na obediência à moda, na facilidade de tudo aceitar ou rejeitar de acôrdo com preferências puramente opinativas e ocasionais. Ë a feição detestável do amadorismo, dêsse amadorismo que possui outros aspectos tão decisivamente recomendáveis. A crítica eclética é a crítica irresponsável, que passa como passam as asas e as quilhas.
A crítica pessoal é a que vê os autores e não as obras. E naqueles o amigo ou o inimigo, segundo a terminologia tão em voga na doutrina política totalitária. O personalismo crítico pode ter uma forma elevada, mas parcial, quando apenas focaliza os autores em detrimento das obras. Sua face corrente, porém, é o favoritismo ou a má fé sistemática, que lhe tiram, de antemão, todo prestígio.
A crítica partidária é a caricatura de certas críticas superiores como a sociológica ou mesmo a metafísica. O conceito de grupo, de partido, está hoje muito em voga. E como vivemos em uma época passional, mítica e particularista—é corrente a tendência a erigir seu grupo, sua capelinha, sua escola em medida suprema de valor literário e tudo julgar de acôrdo com êsse fanatismo inicial. S o individualismo da modalidade anterior, transportado para o campo grupal coletivo. Já não é apenas o meu capricho em face dêste ou daquele autor, com quem simpatizo, ou antipatizo como se vê 110 personalismo crítico vulgar. É o meu grupo, são os meus amigos e eu, unidos em tôrno de certos preconceitos, que nos erigimos em medida de todos os valôres. Esse partidarismo crítico é também, freqüentemente, unia corruptela da critica sociológica quando o veneno político intervém, para pôr a crítica a serviço de uma paixão partidária, seja da oposição, seja do govêrno. Em regra, quando se faz crítica partidária na oposição, vai se fazer crítica oficial no govêrno, quando o nosso Partido triunfa.
Essa crítica partidária se apresenta, também, sob modalidade de crítica negativa e polêmica, que não julga de acôrdo com a justiça mas com o interêsse, ou a vontade de divertir certo público malsão.
A crítica gramatical, enfim, é a que julga de acôrdo com um padrão de pureza filológica mais ou menos largo, segundo a inteligência ou a estupidez do crítico. A estreiteza de espírito, a mesquinharia do estalão, é o pêso dessa crítica, que vai desde o “apito” mais ou menos ridículo dos que se gabam de ser “guardas-civis das letras” e vivem a julgar o valor das obras na base dos solecismos, reais ou imaginários, dos galicismos, dos desrespeitos às regras sacrossantas dos “mestres da linguagem”—até a hostilidade a tôda renovação dos idiomas ou a justa reação contra os que confundem originalidade autêntica com tapeação.
São essas, a meu ver, quatro modalidades inferiores de crítica, que faço o possível de evitar. As quatro modalidades superiores, mas parciais são: a estética, a sociológica, a psicológica e a moralista.
Enquanto as quatro inferiores partem da ausência de qualquer posição geral definida, em face da vida, essas outras representam a conseqüência consciente ou inconsciente, de uma filosofia geral da existência.
A crítica estética parte da supremacia da Arte. Para ela na hierarquia dos valôres, esta é situada acima de todos os demais, de modo a se colocar o artista para lá do bem e do mal. Foi no fim do século passado, com o parnasianismo e o simbolismo, que essa crítica estética teve o seu grande desenvolvimento, embora fôsse no romantismo e no surto da liberdade em arte que realmente tenha tido origem, o estetismo continua a ser, hoje em dia, com o modernismo, uma das modalidades mais importantes da crítica, senão a mais importante. Se houve uma revolução no conceito de beleza, não houve senão uma seqüência no seu primado como valor, em face de tudo o mais.
A crítica sociológica parte, não mais do primado da Arte, mas do primado da Sociedade. Foi com o naturalismo que essa modalidade de crítica nasceu, modernamente. Entre nós, foi a que animou a grande obra de Sílvio Romero ao passo que a crítica estética objetiva explica a posição de José Veríssimo. Quanto a Araripe Júnior, passou da crítica sociológica objetiva, dos seus primeiros ensaios, para a crítica estética subjetiva, de suas últimas produções. Essa crítica sociológica está hoje de nôvo em pleno foco tal a importância que os problemas político-sociais adquiriram em nosso tempo. Estamos assistindo entre nós, por exemplo, ao triunfo do esquerdismo, depois de um efêmero equilíbrio com o direitismo.
Pois bem, tanto num caso como no outro, vemos a crítica oscilar de acôrdo com a posição político-social dos autores. Vemos o repúdio ao puro estetismo, à arte pela arte, à crítica pela crítica e a afirmação de que os valôres da Democracia ou da Revolução, com o esquerdismo triunfante, ou da Autoridade e da Naçao, com o direitismo moribundo (aquém do Prata...(1) que são os valôres supremos. A crítica, segundo essa atitude, deve colocar-se a serviço do Ideal Social. A Política e não a Arte é que passa a ser o supremo estalão de valôres. A travessia do Pruth passa a ter, para muitos da nova geração, uma importância mil vêzes maior que a leitura de Proust, que há vinte anos deslumbrou nossa própria geração, cansada, da outra guerra e por alguns momentos embalada no estetismo Morand-Giraudoux de 1920!
Creio ser, essa crítica sociológica, a que vai contar, em breve, com o maior número de adeptos, ao menos naquele campo da metafísica implícita, que também é, muitas vêzes, uma metafísica efêmera. Pois a primeira conseqüência de não tomarmos conhecimento explícito de nossas atitudes profundas é fazer com que elas oscilem ao sabor dos acontecimentos. E amanhecermos amanhã sustentando pontos de vista totalmente opostos aos de ontem. É o que sucede, muitas vêzes, com a outra posição crítica que passamos a situar—o impressionismo.
É o nome mais corrente da crítica psicológica. Ainda hoje os nomes de Anatole France, de Jules Lemaitre, de Remy de Gourmont—que parecem aliás voltar de tempos imemoriais, de sombras cimerianas, depois de milênios de ausência, tal a profundidade do abismo de dor a que desceram a alma e o corpo da França— ainda hoje êsses velhos fantasmas deixam cair no coração dos críticos as palavras sedutoras com que os faziam transformar-se em outros tantos “Jardins de Epicuro”, em que a cultura das impressões estéticas, como de rosas do espírito, ocupa todo o tempo dos jardineiros hipersensíveis. Há nesse impressionismo crítico uma grande dose de verdade, enquanto crítica é meditação sôbre a beleza e esta um ato de visão em que a experiência profunda do nosso Eu é irredutível a qualquer sistema de Regras e Programas. Há também um culto da irresponsabilidade opinativa que se torna incompatível com uma atitude não meramente egotista perante o universo. A crítica psicológica e impressionista não será a que mais satisfaça as novas gerações, penetradas de preocupações políticas, revolucionárias ou tecnológicas. Mas, ainda é a que prevalece nos meios mais estritamente literários.
Temos finalmente, a critica moralista ou apologética que parte da primazia da moral para julgar as obras de arte em função do erviço que possam prestar ao progresso moral da humanidade ou mesmo ao triunfo da Verdade religiosa.
Por mais elevados que sejam os objetivos dessa crítica, também ela representa apenas uma face das coisas e deturpa mesmo a natureza da atividade estética. O moralismo-estético, aliás, é apenas o contra-êrro do imoralismo estético. Ambos se anulam como falseando as verdadeiras relações entre Arte e Moral, problema dos mais delicados e difíceis de solução prática e por isso mesmo dos que mais se prestam a extremismos contraditórios.
Nenhuma dessas formas de crítica superior, para nem falar das quatro anteriores, me parece corresponder à verdadeira posição de uma crítica que poderíamos chamar de autênticamente construtiva. Antes de indicar os pontos cardeais dessa crítica, desejo desde logo dizer que qualquer dessas formas críticas que não me satisfazem totalmente pode ser tratada de quatro maneiras—Com inteligência ou sem inteligência; com honestidade ou sem honestidade. Uma coisa não implica a outra, como qualquer pessoa de bom senso concordará.
Quando passo, portanto, a dizer qual a concepção crítica que gostaria de praticar ou antes que tentarei aplicar na medida de minhas fraquezas, não desconheço a possibilidade da inteligência ou da honestidade no êrro, bem como da estupidez ou da desonestidade, na verdade. Quando entendo haver uma forma crítica mais completa, e verdadeira—nem por sombra julgo estar em condições intelectuais de a realizar, como deveria ser realizada. É inútil acrescentar que a carência de espaço obriga a uma rigidez de expressão que só o tempo e as oportunidades poderão esclarecer. Limito-me às linhas mais gerais.
Cinco conceitos podem resumir os pontos fundamentais sôbre que deve assentar a meu ver, uma crítica construtiva: totalidade, hierarquia de valôres, originalidade, simultaneidade, autonomia.
A preocupação da Totalidade, de ver o mundo em todos os seus aspectos, deve ser a primeira preocupação do crítico. Nunca se fechar num recanto da verdade, mas encará—la por todos os lados. Creio, aliás, ser esta uma preocupação muito atual. Ires livros mais ou menos medíocres nesses últimos dez anos terão possivelmente representado, por algum tempo, a opinião mediana de uma época: o Livro de San Michele de Axel Munthe; O Homem, esse Desconhecido de Carrel e o Um Mundo Só de Willkie. Há um decênio, antes da guerra, a opinião média do público procurava o divertimento na literatura e o encontrava naquela xaropada divertida do nórdico transportado para o sol mediterrâneo. Há cinco anos, os sofrimentos da crise e da guerra em perspectiva faziam o Homem entrar em si mesmo e a verificação dos mistérios dessa humanidade, que lhe haviam ensinado estar para sempre totalmente desvendados, levaram-no a encontrar na obra do grande cientista francês um eco de sua própria inquietação antropológica.
Hoje, é o destino das nações que preocupa o homem da rua, que lê e não se limita a passar pelas coisas distraidamente. E no livro do político norte-americano vem encontrar alguma coisa dêsses dois sentimentos que se entrechocam no ambiente de hoje—o sentimento da variedade dos problemas universais e o sentimento da unidade do homem nessa multiplicidade. O mundo é “um só”, dentro de sua pluralidade e tôdas as soluções que excluírem essa totalidade serão imperfeitas. O homem de hoje sente que as soluções parciais não podem satisfazer. Sente que anda no ar uma dissociação, um separatismo, um isolamento que não podem perdurar.
Essa sêde de totalidade pode ser falsamente satisfeita pelas soluções puramente políticas.
O maior dos erros modernos é o totalitarismo, por ser justamente a aparência de uma solução total. Esse totalitarismo é substancialmente falso porque arrasta a ruína da Liberdade. Mas não basta a Democracia Política para restaurar a Liberdade perdida. A sede de totalidade do homem “dissociado” de nossos dias só pode ser satisfeita por uma Mística real, isto é, pela integração da ordem natural na ordem sobrenatural. Poucos concordarão comigo. Para a maioria só são possíveis as místicas profanas. Mas a verdade pura é esta: para que os homens tenham mais felicidade, para que a Liberdade não seja uma palavra vã, para que a sociedade seja mais justa, para que os ricos não esmaguem tanto os pobres, para que os fortes não tripudiem sôbre os fracos, não basta voltar ‘‘a um mundo só” E preciso subir a um ‘‘mundo outro”, que explique e seja a razão de ser do nosso. Haverá sempre “pobres” entre nós, O homem sofre sempre, em todos os regimes de vida. E só a ascensão pelas sete Beatitudes pode repousar o seu coração. Essa a “Totalidade” que deve estar na base de tôda atividade intelectual de nossos dias. E, por conseguinte, de “tôda atividade crítica”. A crítica ou o crítico não podem “viver no seu canto”, cuidando de suas atividades analíticas e profissionais relativas, com os olhos fechados para a vida. Precisa ter uma filosofia “total” da vida. E o único meio de não tornar absoluta a sua relatividade. E de a exercer, portanto, dentro de sua verdadeira natureza. A renovação da critica, enfim, está ligada à renovação da Cristandade, o problema maior de nossos dias, como de todos os dias. Pois a decomposição da Cristandade se opera a cada minuto. Como a cada momento podemos, ou não renová-la.
Vejo a crítica, pois, como um recanto particular de uma filosofia total da vida, que inclui o Tempo e a Eternidade, o homem e Deus. A crítica que entendo fazer se baseia, pois, numa Metafísica Cristã. E essa metafísica não repudia valor algum. Procura, ao contrário, colocar cada qual no seu lugar. Daí o segundo fundamento dessa crítica: a hierarquia de valóres.
Essa hierarquia—Arte, Ciência, Filosofia, Religião—por sua vez se estende, nao numa subordinação absoluta de valôres e sim numa disposição orgânica, pois a realidade é sempre um conjunto e tôda dissociação implica uma diminuição da vida, em suas condições profundas.
Essa organicidade supõe, por sua vez, a simultaneidade de todos os elementos em jôgo. Todos convivem e atuam reciprocamente uns sôbre os outros. Não é possível, senão artificialmente, isolar os elementos e desconhecer a sua simultaneidade. Arte, Ciência, Filosofia, Religião são apenas pontos de vista relativos de um Conjunto, cujos elementos dinâmicos se encontram em perene reciprocidade de ação.
Finalmente, o que essa distribuição de valôres nos ensina é a autonomia relativa de cada um dêles. Nenhum anula o outro. Nenhum pode arrancar o outro à sua colocação no conjunto. Os valôres estéticos, que são os que aqui diretamente nos interessam, possuem, portanto, completa autonomia. São valôres que se explicam por si mesmos. Que têm o seu fim em si mesmos. Uma obra de arte existe, pois, como tal, e não como obra religiosa, política, científica ou moralizante. Não pode, por sua vez, dissociar-se da totalidade dos demais sêres. A arte pela arte é um contra-senso. Mas a arte, para êste ou aquêle fim ainda é um contra-senso maior. A crítica é uma meditação desinteressada sôbre as obras de arte, seus autores e seu ambiente. E portanto, uma atividade essencialmente livre. Até certo ponto, uma aventura do espírito, uma interrogação, uma experiência, uma tentativa de recriação da obra criada. O crítico é apenas um autor em segunda potência. E quando, há muitos anos, tanto insisti no expressionismo crítico, era justamente para acentuar essa posição criadora do crítico, limitada pela sua matéria própria: a obra, o autor, o ambiente. Não há, pois, a bem dizer, uma crítica cristã ou uma crítica social, ou uma crítica impressionista. Há críticos cristãos, sociólogos ou impressionistas, que fazem ou não, crítica livre. Essa crítica, livre de todo preconceito, é que entendo fazer. Uma filosofia da vida não é um preconceito: é um pós-conceito, uma afirmação de—ser homem.
Procuro, como cristão, e como trinitário, isto é, católico, fazer crítica desinteressada e livre. Crítica justa. Penso que a crítica não é uma atividade que possa desligar-se de uma filosofia da vida. Mas tampouco é por si, uma filosofia, ou um partido, ou um sistema, O essencial é sabermos preservar a nossa liberdade, a nossa honestidade, a nossa lucidez, na base do cumprimento do dever essencial de tôda a crítica:—a obediência à obra, ao autor e ao ambiente, re-pensados e re-sentidos pelo crítico, O essencial é saber manter a independência da critica, sem dissociá-la dos grandes problemas sociais e metassociais, particularmente da renovação perene da Cristandade, que é a renovação constante, em nós e nos outros, do Caminho, da Verdade, da Vida.
Essa a crítica construtiva e total que tento fazer, nos limites das fracas disponibilidades que Deus me concedeu.
Justiça absoluta para com tôda realidade literária, por mais contrária que seja às minhas próprias convicções.
Franqueza absoluta na expressão dessa recriação literária que éa atitude formal dessa atividade meditativa sôbre a literatura.
Cuidado de nunca me deixar prender por um ponto de vista unilateral, nem mesmo o do plano superior do julgamento.
Eis aí algumas indicações, para que autores e leitores possam, com tôda liberdade e, naturalmente, com tôda lealdade, fazer com o crítico o mesmo que êle pretende fazer com os criticados...
1. Inútil dizer que isso foi escrito em 1944. .—N. do A., 1969.