sexta-feira, 20 de agosto de 2010
TRISTÃO DE ATHAYDE
CARTA DE MESTRE ALCEU:
Petrópolis, 1-4-81
Meu caro colega Rogel
Muito obrigado pelo livro em caminho. Já o folheei. Comecei pelo fim como recomendou. Como você começou na nossa vela Faculdade, hoje é o velho professor que está no fim orgulhoso do antigo aluno e não arrependido do que lhe tenha dado. Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência.
Do velho
Alceu
["Tradução" da letra de Alceu por A.C. Villaça].
TRISTÃO DE ATHAYDE
Em 1971, no auge da ditadura militar, Tristão de Athayde foi a única voz a protestar, publicamente, contra o desaparecimento do ex-deputado cassado Rubens Paiva, cujo corpo até hoje não foi encontrado. Segundo depoimento de testemunhas, Paiva morreu, provavelmente, no quartel da Polícia do Exército, no Rio, depois de sofrer maus tratos no quartel da antiga Terceira Zona Aérea.
TRÁGICA INTERROGAÇÃO (25/02/1971)
Há vários meses que o Brasil inteiro participava do drama provocado pelo seqüestro do cônsul Aloísio Gomide por terroristas uruguaios. Revoltou-se contra a implacabilidade do Governo uruguaio, que se recusou terminantemente a proceder, como os seus seqüestradores, da maneira racional e humana com que agiu, em casos semelhantes, o nosso próprio Governo. E finalmente acompanhou, comovido, os passos que a esposa do nosso cônsul deu para obter, particularmente, com o apoio da generosidade do povo brasileiro, o que não conseguiu da intolerância do Governo uruguaio.
Pois bem, chegou a hora de participarmos todos de um drama semelhante, ocorrido entre nós e que é cercado de circunstâncias ainda mais revoltantes. É o caso do engenheiro e ex-Deputado Rubens Beyodt Paiva, preso em sua residência no dia 20 de janeiro e até hoje totalmente desaparecido. Do nosso cônsul se sabe que esteve em poder dos tupamaros e foi libertado, graças a um resgate em dinheiro. Do outro seqüestrado, porém, nada conseguem saber, bem sua família, nem seus advogados. Nem mesmo se conhece, os motivos de sua prisão. Deputado federal por S. Paulo, teve seus direitos políticos suspensos em 1964. Mas nunca mais, desde então, participou de atividades políticas. Não foi aberto contra ele qualquer inquérito policial-militar. Não lhe foi feita jamais qualquer acusação. Dedicou-se desde então, exclusivamente, à sua família e à sua carreira profissional. Inesperadamente, no Dia de S. Sebastião, é preso, em sua residência, juntamente com uma filha de 16 anos e sua sua esposa. Aquela foi liberada no dia seguinte. Esta, 12 dias depois. Foram todos levados para o quartel da Polícia do Exército, na Rua Barão de Mesquita. Quando, dias depois, mostraram à sua esposa um álbum de fotografias dos presos daqueles dias, ela pôde ver claramente não só sua própria fotografia, e da filhinha, mas também a do seu marido. Solicitado habeas-corpus ao Superior Tribunal Militar, pelo advogado Lino Machado Filho, as informações dadas pelo comandante do I Exército foram de que nem o engenheiro, nem sua esposa nem sua filha tinham estado em unidades da área do I Exército!
A inquietação da família cresceu de vulto com uma notícia anônima, distribuída aos jornais e divulgada pela televisão no dia 28 de janeiro, insinuando que houve no Alto da Boa Vista uma operação de resgate (?), feita por terroristas, de um preso de alta categoria social. Notícia absolutamente inverossímil e desacompanhada de qualquer autenticidade ou da mais vaga comprovação. A vítima desse misterioso desaparecimento nunca pertenceu a qualquer movimento político, desde sua cassação como Deputado federal, e não tem ligação alguma com elementos subversivos. Só há três fatos inequívocos em todo esse enredo: foi preso em sua residência por agentes do poder público; recolhido a um quartel da Polícia do Exército e desde então ninguém consegue saber do seu destino. E tal situação angustiosa dura há mais de um mês, embora todos os recursos legais tenham sido utilizados para se conseguirem informações sobre o paradeiro da vítima desse verdadeiro seqüestro.
O mínimo a que tem direito a opinião pública em face de um atentado tão insólito, que não só angustia um lar de modo intolerável, mas põe em risco a segurança de todos os lares em nossa terra, é seguramente uma clara informação das autoridades públicas. E um inquérito promovido para averiguar os acontecimentos e localizar a vítima. Na carta que a Conferência Nacional dos Bispos acaba de dirigir, solidarizando-se com D. Valdir Calheiros, Bispo de Volta Redonda, há o seguinte trecho: "Ousamos esperar que, daqui para frente, não se prendam pessoas sem observância das prescrições legais de comunicação à autoridade judicial, tornando-as incomunicáveis sem que elas nem seus familiares saibam como esse fato sucedeu".
Que dizer de um caso em que se sabe como o fato se deu, mas não por que se deu e, o que é mais trágico, qual o destino dado à vítima de tão revoltante atentado!
TRISTÃO DE ATAÍDE
O romantismo
O romantismo foi um sonho de brasileirismo. E um sonho que não podemos deplorar porque dêle saiu o primeiro grande impulso coletivo para a nossa literatura.
A figura central de todo êle, como valor estético, foi Castro Alves. A figura central, porém, como valor social e simbólico, foi José de Alencar.
Finara-se já, ou pelo menos finalizará a sua fase criadora, a primeira geração romântica. Mas a nova geração recebia ainda o legado de nacionalismo. Alencar representa então a figura nacional por excelência. Não é um puro homem de letras, como seria Castro Alves, um artista em que tudo tendesse à ficção. Tomou parte ardente na vida pública. Foi ministro. Foi político. Foi publicista. E deixou-se morrer de desgostos políticos. Ligou as duas faces da formação nacional - a vida real e a vida ideal da raça brasileira. Procurou a verdade e a ficção. Nunca as dissociou. E, nesta, sentiu como ninguém tôda a complexidade pátria, tôda a variedade de aspectos que procurou refletir em sua obra de romancista. Fêz uma obra menos de inspiração que de vontade.
Ao contrário de Castro Alves. Não havia neste, como havia em Alencar, a intenção literária. Foi um grande inconsciente no elemento vital de sua arte. E, por isso, tanto mais profunda a sua repercussão. Pode-se dizer que até hoje nenhum artista brasileiro foi tão naturalmente brasileiro como
êste. O que não importa dizer que sua poesia não esteja impregnada de hugolatria. O romantismo, porém, correspondia realmente ao gôsto da época, entre nós, e sobretudo ao papel que Castro Alves representou na solução do problema capital do Império.
Muitos outros cantaram a Abolição, mas só êle foi realmente o poeta da Abolição. E a ação invisível dos seus versos valeu por campanhas políticas. Outros trabalhavam a razão ou a consciência. Ele conquistou o sentimento, pela imagem.
Antes dêle, porém, já perdera em parte o romantismo sua feição puramente nacionalista. Os byronianos pouco se importavam com os problemas públicos.
Seu pesadelo eram as paixões. Era o coração que os atormentava. Era o subjetivismo delirante, por vêzes genial como nos lampejos de Alvares de Azevedo, que lhes guiava a chama literária. O homem brasileiro já se sentia tranqüilo nos limites de sua pátria, e voltava-se então para si mesmo A serenidade imperial já permitia uma literatura livre do tormento social.
Gonzaga cantara o amor blandicioso, de rendilhados e ovelhinhas, mas escrevia ao mesmo tempo as "Cartas Chilenas", e conspirava. Gonçalves Dias soubera modular com lirismo o remorso do coração, mas o que fêz realmente com todo o seu lusismo, foi impregnar-se quanto possível de natureza tropical e completar a independência política de sua terra. E, com êle, seus contemporâneos.
Só a geração seguinte começou a sentir, em parte, que já havia uma pátria livre. E que as letras já podiam ser apenas uma voz do coração.
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Poesia Planetária
Alceu Amoroso Lima
Meses atrás, para respirar um ar mais puro dó que o poluído pelo ambiente político de uma ditadura de pacotilha em liquidação, voltei-me para os poetas. E os encontrei bem longe daqueles que fizeram do modernismo o quinto grande momento poético de nossas letras. E tive então a oportunidade de escrever o seguinte, a propósito dos vultos mais recentes deste nosso pós-modernismo, como Gilberto Mendonça Teles, Gerardo Mello Mourão, Jamil Haddat, Marcos Konder Reis e tantos mais, pois a florada é grande. "Se a preocupação nacionalista e por vezes regionalista, populista ou tropicalista, foi uma nota típica do modernismo, e o nacionalismo o marcou profundamente, o planetarismo é que está marcando o pós-modernismo e a atual posição de nossa poesia. Não que os nossos poetas mais destacados deste momento se declarem, como J. L. Borges, "europeus residentes nos subúrbios do Velho Mundo". Mas tudo indica que se colocam no centro do grande ciclone mundial em que estão todos envolvidos. Ao mesmo tempo no centro e na circunferência, desse tornado universal" (JB. 28-7-78).
Nesse grupo do planetarismo poético deste início de fim de século, se destaca, do modo mais impressionante e original, a figura universitária e sobretudo meta-universitária do poeta e crítico Affonso Romano de Sant'Ana. Como sempre considerei a crítica como uma forma de criação e não apenas de apreciação literária, a presença simultânea, neste momento, dois grandes críticos que são ao mesmo tempo, grandes poetas, Gilberto Mendonca Teles e Affonso Romano de Sant'Ana
, é a prova de um dos traços mais típicos de nossas letras atuais, destacado aliás por Affonso Romano no trabalho que apresentou ao 1º Encontro com a Literatura Brasileira (S. Paulo 25/30 setembro, 1977). Esse traço é a atual vitalidade literária, em contraste e protesto contra a mortalidade política. Ao contrário da coexistência pacífica dos modernistas com as autoridades públicas do seu tempo. As ditaduras políticas, como a lança de Amfortas, podem cicatrizar as próprias feridas que produzem. Esse trabalho crítico de Affonso Sant'Ana é a página mais completa e mais original que já foi escrita sobre a poesia brasileira contemporânea e seus "sete diferentes grupos". Essa passagem da poesia de água destilada a que aspiraram os parnasianos e os simbolistas, à poesia de água nascente e seu tratamento químico depurador, até mesmo à poesia "sórdida" a que Ferreira Goulart concorreu com seu famoso Poema Sujo, constitui um caminho em direção à vida, em sua totalidade e em suas contradições, da água nascente mais pura às águas mais poluídas. Daí também, deste anseio de vitalismo prático das mais jovens gerações. esse salto do localismo ao planetarismo, de que Affonso Sant'Ana é, seguramente, um dos expoentes destacados.
Seu grande poema mais recente e porventura o fruto mais maduro e sumarento de seu longo, variado e fecundo roteiro poético e critico, é A Grande Fala do índio Guarani Perdido na História e Outras Derrotas (Sumus Editorial - S. Paulo - Rio, capa e vinhetas de Glauco Rodrigues, 180 págs. 1979).
Referi-me, acima, a J. L. Borges, o grande poeta latino-americano de renome universal, cantando os feitos das ditaduras militares que lhe permitem isolar-se em sua torre de marfim, pulsando o seu alaúde. Affonso Sant'Ana se coloca em posição diametralmente oposta a Borges. Não que ponha sua criatividade poética a serviço de qualquer causa política, por mais justa e universal que seja. Mas se abre à vida, em sua totalidade, do modo mais feroz, digamos assim, e longe de se situar "nos subúrbios do Velho Mundo", coloca-se em pleno continentalismo do Novo Mundo, com suas aspirações universais e suas frustrações patéticas. Não é à toa que, como subtítulo de seu poema cíclico, coloca o ambicioso subtítulo de Moderno Popol Vuh. Como se sabe, esse poema guatemalteco, em. língua quiché, de meados do século XVI, já era um grito de alarme e de agonia contra o fim de uma civilização milenar e autóctone, ameaçada pela conquista dos soldados do Velho Mundo político e imperialista, mas também redimida pelos missionários de um Novo Mundo espirtual, que transcendia a todos os imperialismos políticos, dos velhos e de novos continentes.
Affonso Sant'Ana, em seu poema brasílico, que surge quatro séculos depois do grito do genial indígena anônimo guatemalteco, começa com uma angústia e termina com um desafio. Vai muito mais longe do que o Popol Vuh. Pois coloca face a face o homem supercivilizado do século XX e o selvagem ou pré-civilizado, se considerarmos a civilização como sendo o alargamento, pela cultura e pela técnica, do conhecimento do mundo e de sua dominação pela inteligência do homem moderno.
Affonso Sant'Ana tem uma cultura poética universal. Leu tudo e tudo assimilou, até a saturação. Até o desespero. Consciente ou inconscientemente, partiu do verso famoso de Mallarmé "le ciel vide hélas, et j'ai lu tous les livres". Leu aparentemente o que é possível ler de todos os livros, mas não chegou a esvaziar o céu, pelo que se denota, não de algumas invectivas ateístas do herói guarani, mas de certas passagens de sua copiosa bibliografia critica. Por isso mesmo, o drama latente que faz a beleza profunda de seu poema é o contato e o contraste entre o homem da natureza que tudo intui e nada leu, com o homem de cultura, que tudo leu mas também tudo tenta intuir. E chegou à conclusão da vaidade total de todo acúmulo de saber, principalmente em face do mistério da poesia. Pois seu poema é uma longa e patética interrogação em torno do poder e do alcance da poesia, não só como beleza formal, no sentido estético, mas como alcance formal no sentido epistemológieo, em que forma significa aquilo que é.
O mistério da poesia e do seu sentido profundo persegue esse grande poeta-crítico, ao menos desde os seus escritos de Los Angeles (l966), reunidos em um dos seus livros mais analíticos, Poesia Sobre Poesia. O canto do seu herói epônimo do nativismo americano começa, e não apenas começa, mas tropeça a cada passo, na grande, constante e dramática interrogação: "Onde lerei eu os poemas do meu tempo?" E do mesmo modo como, na sua meditação crítico-poética anterior, procura cirurgicamente dissecar o que é a poesia que existe nele próprio e nos poetas em geral, no seu grande poema cíclico disseca o seu longo roteiro poético-crítico à procura do "ouro da mina". E nesses 18 cantos do poema chega, constantemente, a momentos de alta poesia, como no canto 10, em que a própria forma tipográfica dá ao seu canto amazônico uma beleza de rio-mar.
Esse poema merece uma análise em profundidade, como aquele que o poeta-crítico dedica à obra de Carlos Drummond de Andrade, que considera naturalmente como sendo o ponto central e genial de toda poesia brasüeira moderna.
Depois de Basílio da Gama, de Santa Rita Durão, de Gonçalves Dias, de Alencar, de Raul Bopp, de Cassiano Ricardo, de Mário de Andrade, de Darcy Ribeiro. Affonso Romano de Sant'Ana retoma o tema lndianista e o leva a um horizonte planetário, a que nenhum de seus predecessores o levou. Seu poema é um ponto alto em nossas letras. E até em nosso momento político, como reação contra sua mediocridade e conformismo.
Pois tudo é poesia.
ALCEU AMOROSO LIMA
ADEUS À DISPONIBILIDADE LITERÁRIA
NÃO é sem certa emoção, asseguro, que tomo do lápis para recomeçar, ainda uma vez, êste velho rodapé.
Foi precisamente há vinte e cinco anos que, encontrando acidentalmente Renato Lopes, na Avenida Rio Branco, numa clara manhã de março de 1919, convidou-me êle para tomar a seção de “Bibliografia” no jornal que tinha em mente fundar. Queria fazer, dizia-me, um jornal dos “tímidos”, dos inéditos, dos não jornalistas profissionais, dos amadores de boa vontade. E citava os nomes de Manuel Amoroso Costa, de Miguel Osório de Almeida, de Delgado de Carvalho, e outros que iria convidar, para trabalharem e colaborarem junto dele, de Bertino de Miranda, de Arrojado Lisboa, de João Lopes.
Outro, bem outro que o de hoje era o ambiente social e literário em que ia encetar urna faina, aceita então com o alvorôço da mocidade e hoje retomada no limiar das últimas etapas, depois de várias interrupções em que nela figuraram três nomes que lhe deram um brilho que faltava ao seu iniciador, Agrippino Grieco, Otávio Tarqüínio de Sousa e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Três circunstâncias influem, nitidamente, para marcar o contraste entre 1919 e 1944: a Conversão, o Tempo e os Acontecimentos.
A primeira, ocorrida nove anos mais tarde, ia ser, para alguns, uma “decepção”. Deveria ser mais do que isso, uma despedida. Não o foi entretanto. Tornou-se apenas uma passagem da disponibilidade ao ancoramento. Será preciso advertir que o ancoramento cristão é coisa muito diversa da imagem náutica correspondente? Converter-se não significa parar, mas apenas saber para onde segue a viagem.
No seu panegírico de S. Bento, escreveu Bossuet que—”Tôda a doutrina do Evangelho, tôda disciplina cristã, tôda perfeição da vida monástica, está contida inteiramente numa só palavra Egredere: sai.. “—de tal modo se nos ordena caminhar sem descanso, que nem mesmo em Deus nos é permitido repousar, pois se acima d’Ele nada podemos pretender, há sempre n’Ele novos progressos a fazer.
Converter-se, mesmo imperfeitamente, é compreender o sentido da viagem empreendida e ter mais nítida a noção de nossa condição de “viajantes”.
Para muitos, porém, que assistem de fora, a aventura é apenas perder a liberdade. No caso, era sacrificar totalmente a independência do critico à disciplina, quando não, ao partidarismo do crente. Se o fiz, fiz mal. Terei sido mau crítico e mau crente. Pois nenhuma exigência intrínseca pedia o sacrifício da mínima parcela de liberdade. Saber onde está o Caminho não é nunca impedir a circulação por todos os caminhos. Ao contrário, é facilitar tôdas as excursões, sem perigo de se perder por elas, desde que se tenha sempre em mente o traçado do roteiro autêntico. Já tenho quinze anos de experiência da nova fase. E posso afirmar sem hesitação que, por mim, me sinto hoje tão livre, ao menos, quanto o era no dia em que, há vinte e cinco anos, redigia, sem nenhuma posição filosófica ou religiosa definida, a primeira destas crônicas bibliográficas. Bem sinto que mudei muito, como muito mais ainda mudaram as coisas e talvez os homens que me cercam. Bem sinto procurando o que havia de mais estável no fundo das intenções de outrora, antes de l928—ter sido um ideal puramente cultural o que então me animava a escrever. Hoje, coloco êsse ideal cultural como uma etapa, apenas, de um caminho mais longo; como uma estação intermediária de um ponto final mais alto e mais distante. Essa a mudança capital que a Conversão penso ter operado no crítico totalmente disponível, em 1919, que fazia da Cultura um valor em si. Digo mal, um fim em si, pois não falta à cultura um valor em si. O que lhe falta, como seria se fôsse um fim último, é ser medida de todos os valôres. Cultura é passagem para um Bem mais alto. Ultrapassar, porém, não é nem desconhecer, nem diminuir. No caso, foi apenas valorizar. Foi dar à Literatura um sentido mais digno e mais nobre. Foi conceder-lhe uma responsabilidade maior. Foi sentir, de mais perto, o seu contacto com tôda a vida. E foi até, posso afirmá-lo lealmente, urna compreensão muito mais ampla da liberdade literária. Pois sempre que não colocamos a disciplina, a Regra, na eminência supraterrena, em que deve pairar, a conseqüência é a multiplicação temporal das “regrinhas” efêmeras e dos preceitos acidentais. Sabemos todos não haver autoridade mais rígida, do que aquela que tem a consciência de sua precariedade. Só não abusa da fôrça quem a tem em sua plenitude ou quem sabe, pelo menos, onde está essa plenitude. Eis o sentido da palavra tremenda da Escritura: “Veritas liberabit vos”. É a verdade que nos torna livres. Pois só ela nos desliga da servidão aos sofismas e aos régulos.
Se não havia, na conversão do crítico, uma perda da liberdade quanto às idéias, poderia havê-la quanto às pessoas. Ainda aqui rejeito a objeção. Crer é ser intolerante quanto aos fundamentos da Fé. Mas é abrir o coração, do modo mais amplo, a todos os que erram e a todos os que pecam, a todos os que falam e a todos os que escrevem. Pois a conseqüência da Fé, quanto às pessoas, é colocar a Caridade, como o fêz 5. Paulo, acima de tôdas as virtudes. E caridade é compreensão, é antecipação, é sempre sair de si mesmo, egredere, como dizia Bossuet. Se o crítico perdeu a compreensão quanto às pessoas, se foi mais estreito, mais mesquinho, mais intolerante nos seus juízos—errou de nôvo, como crítico e como crente. Pois na base de uma e de outra atitude, só há uma fôrça libertadora e invencível—é o Amor. “Crítica é Amor”, dizia Hello. “Crer é Amar”, dizia Santo Agostinho.
Ainda aqui a Conversão, como a graça, não podia alterar a natureza. A não ser que fôsse mal compreendida e mal praticada. Se o foi, a culpa é do crítico. Não da sua conversão. Esta só podia e só devia ter-lhe aberto os olhos e libertado a palavra. Por isso é que posso repetir, sem sombra de dissimulação:—sinto..me hoje ao menos tão livre, para a crítica literária, como no primeiro dia em que, sem rumo consciente, comecei estas crônicas.
Se algum laço nôvo me tolhe essa liberdade, não é da Conversão que me vem e sim daquele segundo elemento que vejo interpor-se entre hoje e 1919—o Tempo.
Viver é durar. Durar é aderir às coisas e aos homens. É desprender-se, cada vez mais dificilmente, de uns e de outros. Daí haver, na velhice, um apêgo muito maior à vida, do que na mocidade. As crianças falam rindo da morte. Os moços arriscam fàcilmente a vida. Os homens maduros começam a temer a velhice. E os velhos se apegam desesperadamente à existência. Só os moços se suicidam. Só êles desdenham a vida e enfrentam a morte. Envelhecer é, portanto, apegar-se aos homens e às coisas. E com isso, perder a liberdade.
O tempo nos torna, dia a dia, mais escravos da vida. E por isso mesmo nos encarcera entre amizades, preconceitos, escrúpulos, temores, que a mocidade desconhece.
Há, portanto, muito mais a temer da mão do tempo do que da mão de Deus. Esta é que nos liberta. Aquela a que nos consome e serviliza. Saber envelhecer é, por isso mesmo, a mais difícil e a mais necessária das artes. Pois é aprender a desligar-se dos laços crescentes a que o tempo nos vai acorrentando.
Vinte e cinco anos se passaram desde o dia inicial desta secção. Nesses cinco lustros o trabalho do tempo foi, como sempre, inexorável e incessante. E, como sempre, contraditório ao trabalho da Conversão. Pois enquanto esta nos traz a volta à mocidade, pela Esperança e à alegria pelo Desapêgo—o Tempo nos leva impiedosamente às mesquinhas satisfações do quotidiano. Henri de Regnier tem razão, se acaso o Tempo fôr o único senhor: “vivre avilit”. iS o Tempo que tira ao crítico a sua independência, pelo amor às situações adquiridas, pelo respeito às relações pessoais, pelo temor de desagradar a êste ou àquele, pelo ceticismo, pelo comodismo, pela indiferença que traz consigo às nossas almas desarmadas contra a sua tirania crescente.
Cinco lustros representam, sem dúvida, o pêso terrível do Tempo sôbre uma existência. Contra êle é que é mister defender-se. Nêle está, realmente, o perigo de uma invencível decadência. Procurarei, na medida do possível, remediar essa passagem, pela análise da sua ação corrosiva. E procurando, por outro lado, o que pode haver, no próprio Tempo, de sadio pela eliminação de cedas escórias com que os extremismos da mocidade tornam a crítica mais uma aventura e um debate pessoal, do que uma serena e objetiva comunicação de idéias e transposição de formas. O que perde em vivacidade poderá ganhar em serenidade. O que perde em independência, com a inevitável série de considerações pessoais a ter em conta, pode ganhar em justiça, pois à medida que envelhecemos somos mais inclinados a ornar as coisas como são e não como quisera que fôssem o nosso dogmatismo juvenil.
Nesses vinte e cinco anos, não foi apenas a Conversão que dividiu em dois uma existência, não foi apenas o Tempo que envolveu a nossa vida nessa rêde sutilíssima de laços invisíveis de que só uma vigilância contínua nos consegue livrar. Foram, também, os Acontecimentos que se desencadearam sôbre o mundo, de modo imprevisto. Em 1919, o mundo saía de um pesadelo. A nossa geração, já marcada pela guerra e pela revolução, que a havia arrancado à displicência de 1913, entrava num período eufórico de esperanças na Paz, que iria trazer ao Ocidente mais felicidade, ao Brasil mais consciência de sua personalidade nacional e à obra literária um horizonte mais vasto de realizações. Foi então a aventura modernista, que em 1919 apenas bruxuleava em várias insatisfações pessoais e em 1922 ia explodir numa onda coletiva.
1919-1939 foi um vintênio que contará de modo decisivo, na história da humanidade. Liquidaram-se as esperanças de 1918 e prepararam-se as catástrofes de 1939 em diante. Hoje estamos, de nôvo, em plena tormenta. Uma tormenta incomparàvelmente mais radical que a de 1914 a 1918. A nova guerra representa uma revolução muito mais profunda. Revolução em que todos os valôres se acham em jôgo e de que vai nascer na opinião de alguns, um mundo novinho em fôlha e, segundo outros, um mundo em que os valôres da vida e da morte, da verdade e do êrro, do sofrimento e da alegria, vão de nôvo opor-se de modo mais patético que nunca. Sou naturalmente dêsses últimos. Já o tenho dito tantas vêzes que e inútil repetir.
Os acontecimentos desencadeados sôbre o mundo arrastaram, de modo invencível, os destinos da literatura. Uns ainda a consideram como uma atividade acadêmica, que se processa friamente ou sentimentalmente pelo arranjo de certas formas, pela evocação de certas imagens, pela aproximação de certos conceitos. Quando não pela conquista de certas posições.
Outros a vêem colocada, em pleno desencadear dos acontecimentos, trazida para a arena, arrastada pelos cabelos, supliciada, solicitada por tôdas as paixões, por todos os fanatismos que hoje mais do que nunca se desencadearam de todos os quadrantes e ameaçada por tôdas as corrupções como capaz de tôdas as redenções.
Estou naturalmente entre êsses últimos. E justamente por sentir vivamente que a literatura é o oposto de um divertimento mundano e, hoje mais do que nunca, está participando vitalmente dos acontecimentos do mundo, é que a julgo digna, como jamais, de merecer a nossa dedicação.
Dela nada espero. Continuo hoje, como há vinte e cinco anos atrás, a ser apenas a seu respeito aquêle amador de boa vontade, a que um amigo fazia apêlo para o seu jornal. Se de alguma coisa me envaideço, nesses cinco lustros tão escassos em motivos de envaidecimento pessoal, é de nunca me ter deixado enfeudar pelo demônio da literatura. É de nunca me ter deixado profissionalizar. Considero-me tão alheio a qualquer espécie de grupo, de escola, de corrilho, de capela literária, de academismo, ou de antiacademismo como ao iniciar estas atividades. Por mais que a má fé de uns ou a ilusão de outros queiram atribuir-me êste ou aquêle partidarismo, esta ou aquela facção, posso afirmar, perante Deus, que me sinto ainda nisso tão livre como outrora.
Há uma disponibilidade a que não disse adeus—a da minha consciência liberta de compromissos de ordem profana. E o terreno literário é de ordem profana. Nêle me sinto, como em 1919, guiado apenas pela vontade de bem servir honestamente, sem ilusões quanto às possibilidades, mas sem compromissos de espécie alguma, o que me parece digno de ser servido. Há hoje, em campo, o que não havia em 1919—uma crítica literária ativa e bem dotada de algumas personalidades acima do comum. Em 1919 era quase o vácuo, Os grandes críticos do naturalismo haviam passado. Ainda não haviam nascido, ou estavam nos bancos escolares, os futuros grandes críticos do modernismo. Era o terreno livre para uma tarefa fácil. Hoje, é o campo ocupado para uma tarefa difícil. A literatura se tornou muito mais complexa. Houve uma revolução de formas exteriores. Houve também outra revolução de formas profundas. O ambiente de batalha e não mais o ambiente de armistício, como em 1919, é o que domina por tôda parte. O próprio lirismo cheira a fumo. As letras são cada vez menos uma jóia parnasiana, uma alegoria simbolista, ou uma aventura modernista —para serem a expressão mais viva do sangue, do suor, da poeira e das lágrimas em que o maior dos estadistas vivos resumiu suas esperanças, no momento mais trágico desta luta de vida e morte.
Na hora em que o veneno contra o qual se lançaram as fôrças da Liberdade, ameaça atingi-las a elas próprias, pelo nôvo Munique que se prepara no terror das Fôrças desencadeadas se a tempo não reagirem—os horizontes literários se cobrem do clarao dos incêndios e não dos “dedos de rosa” da aurora homérica de 1919.
Os acontecimentos marcaram e continuam a marcar os novos tempos com as garras de sua mão de aço. A literatura está empenhada, hoje em dia, na grande e trágica aventura da própria civilização. E por isso mesmo é muito mais empolgante a volta à liça ensangüentada de hoje, do que o foi, há vinte e cinco anos passados, a entrada na areia branca do terreno baldio de então. A ela não trago, nem mais nem menos, do que trazia naquele tempo. Trago a mesma alma, embora marcada pela Conversão, pelo Tempo e pelos Acontecimentos; o mesmo desejo de fazer, com honestidade, uma tarefa adequada à mediocridade dos meios de que disponho.
“Não discutir, construir”, continua a ser o lema a que há muito tem procurado ser fiel uma natureza que não alimenta ilusões a seu respeito. Volto ainda com menos ilusões. Mas, com o ânimo cada vez mais disposto a dar o pouco que tenha sem reservas e sem secretas intenções.
Quanto tempo durarão êstes últimos estudos?
Só Deus o sabe. Retomo-os com a disposição de sempre, no próximo dia em que tôda a natureza e a humanidade que crê celebra a maior festa da Cristandade. A essência do cristianismo se reduz a duas palavras: —Morte e Ressurreição. Hoje comemoramos a festa suprema da Ressurreição que é para nós a medida da Morte. O que ela nos traz—no meio das trevas mais terríveis que nos cercam e das ameaças, ainda mais trágicas, que o futuro talvez nos reserve, é a certeza da vitória final do Bem e da Verdade.
Neste espírito de ressurreição e de vida é que retomo a tarefa interrompida, com o mesmo ânimo de outrora e uma consciência ainda mais nítida, do nosso dever de presença. O futuro dirá por quanto tempo e de que modo. Loué par les uns, blamé par Les autres... Que importa? Os bons amigos são a alegria de nossa vida. E os bons inimigos tão necessários à nossa obra, como ao Estado uma boa oposição. Cultivo os meus com o carinho com que Candide cultivava o seu jardim no fim da vida...
E agora, a uns e a outros, digo de todo o coração: mãos à obra.
Ao retomar contacto, neste rodapé, com a literatura em sentido mais estrito, isto é com a prosa de ficção e a poesia, como pretendo fazer, não creio seja deslocado lembrar ou relembrar o ponto de vista crítico em que me coloco. Será, porventura, um dever para com os autores e os leitores. Um dos erros do nosso tempo é o que poderíamos chamar—a metafísica implícita. 12 agir, consciente ou inconscientemente, de acôrdo com um ponto de vista, com uma concepção geral da vida e, portanto, de acôrdo com uma metafísica, sem entretanto confessá-la ou mesmo sem procurar conhecê-la. Assim como Monsieur Jourdain fazia prosa sem saber o que fazia, assim também todo mundo faz metafísica sem saber ou sem querer. Mesmo quando afirma que não o faz, já dizia Aristóteles, pois negar um pensamento “para lá da física” já é ter uma metafísica.
É assim que tôda crítica supõe uma filosofia da vida. Quando mais não seja a filosofia de não ter uma filosofia da vida, o que é mesmo o ponto de vista mais corrente.
Em suma, penso que um dos deveres primordiais de quem escreve, como aliás de quem procura viver decentemente, é jogar um jôgo franco. É procurar não se iludir nem iludir os outros. É fugir das metafísicas implícitas ou disfarçadas e pôr as cartas na mesa, como se diz numa linguagem tão em moda nos dias que correm...
Começarei, portanto, dizendo quais as modalidades de crítica que não pretendo fazer, para depois esboçar as linhas gerais, do que desejaria empreender. Ë oportuno, aliás, recordar antes de tudo, a famosa frase do Cardeal Lavigerie a quem perguntavam o que faria se lhe dessem uma bofetada: “O que eu devia fazer eu o sei; o que faria, porém, ignoro”.
Oito são as modalidades de crítica literária, que me esforçarei por não fazer, já que a tôdas considero condenáveis ou parciais. Quatro de plano inferior e quatro de plano superior.
As quatro modalidades de crítica literária inferior, a meu ver, são: a eclética, a pessoal, a partidária e a gramatical.
A crítica eclética é a que não parte de qualquer orientação definida. Ë a que fica na superfície das obras, nos caprichos do momento, na obediência à moda, na facilidade de tudo aceitar ou rejeitar de acôrdo com preferências puramente opinativas e ocasionais. Ë a feição detestável do amadorismo, dêsse amadorismo que possui outros aspectos tão decisivamente recomendáveis. A crítica eclética é a crítica irresponsável, que passa como passam as asas e as quilhas.
A crítica pessoal é a que vê os autores e não as obras. E naqueles o amigo ou o inimigo, segundo a terminologia tão em voga na doutrina política totalitária. O personalismo crítico pode ter uma forma elevada, mas parcial, quando apenas focaliza os autores em detrimento das obras. Sua face corrente, porém, é o favoritismo ou a má fé sistemática, que lhe tiram, de antemão, todo prestígio.
A crítica partidária é a caricatura de certas críticas superiores como a sociológica ou mesmo a metafísica. O conceito de grupo, de partido, está hoje muito em voga. E como vivemos em uma época passional, mítica e particularista—é corrente a tendência a erigir seu grupo, sua capelinha, sua escola em medida suprema de valor literário e tudo julgar de acôrdo com êsse fanatismo inicial. S o individualismo da modalidade anterior, transportado para o campo grupal coletivo. Já não é apenas o meu capricho em face dêste ou daquele autor, com quem simpatizo, ou antipatizo como se vê 110 personalismo crítico vulgar. É o meu grupo, são os meus amigos e eu, unidos em tôrno de certos preconceitos, que nos erigimos em medida de todos os valôres. Esse partidarismo crítico é também, freqüentemente, unia corruptela da critica sociológica quando o veneno político intervém, para pôr a crítica a serviço de uma paixão partidária, seja da oposição, seja do govêrno. Em regra, quando se faz crítica partidária na oposição, vai se fazer crítica oficial no govêrno, quando o nosso Partido triunfa.
Essa crítica partidária se apresenta, também, sob modalidade de crítica negativa e polêmica, que não julga de acôrdo com a justiça mas com o interêsse, ou a vontade de divertir certo público malsão.
A crítica gramatical, enfim, é a que julga de acôrdo com um padrão de pureza filológica mais ou menos largo, segundo a inteligência ou a estupidez do crítico. A estreiteza de espírito, a mesquinharia do estalão, é o pêso dessa crítica, que vai desde o “apito” mais ou menos ridículo dos que se gabam de ser “guardas-civis das letras” e vivem a julgar o valor das obras na base dos solecismos, reais ou imaginários, dos galicismos, dos desrespeitos às regras sacrossantas dos “mestres da linguagem”—até a hostilidade a tôda renovação dos idiomas ou a justa reação contra os que confundem originalidade autêntica com tapeação.
São essas, a meu ver, quatro modalidades inferiores de crítica, que faço o possível de evitar. As quatro modalidades superiores, mas parciais são: a estética, a sociológica, a psicológica e a moralista.
Enquanto as quatro inferiores partem da ausência de qualquer posição geral definida, em face da vida, essas outras representam a conseqüência consciente ou inconsciente, de uma filosofia geral da existência.
A crítica estética parte da supremacia da Arte. Para ela na hierarquia dos valôres, esta é situada acima de todos os demais, de modo a se colocar o artista para lá do bem e do mal. Foi no fim do século passado, com o parnasianismo e o simbolismo, que essa crítica estética teve o seu grande desenvolvimento, embora fôsse no romantismo e no surto da liberdade em arte que realmente tenha tido origem, o estetismo continua a ser, hoje em dia, com o modernismo, uma das modalidades mais importantes da crítica, senão a mais importante. Se houve uma revolução no conceito de beleza, não houve senão uma seqüência no seu primado como valor, em face de tudo o mais.
A crítica sociológica parte, não mais do primado da Arte, mas do primado da Sociedade. Foi com o naturalismo que essa modalidade de crítica nasceu, modernamente. Entre nós, foi a que animou a grande obra de Sílvio Romero ao passo que a crítica estética objetiva explica a posição de José Veríssimo. Quanto a Araripe Júnior, passou da crítica sociológica objetiva, dos seus primeiros ensaios, para a crítica estética subjetiva, de suas últimas produções. Essa crítica sociológica está hoje de nôvo em pleno foco tal a importância que os problemas político-sociais adquiriram em nosso tempo. Estamos assistindo entre nós, por exemplo, ao triunfo do esquerdismo, depois de um efêmero equilíbrio com o direitismo.
Pois bem, tanto num caso como no outro, vemos a crítica oscilar de acôrdo com a posição político-social dos autores. Vemos o repúdio ao puro estetismo, à arte pela arte, à crítica pela crítica e a afirmação de que os valôres da Democracia ou da Revolução, com o esquerdismo triunfante, ou da Autoridade e da Naçao, com o direitismo moribundo (aquém do Prata...(1) que são os valôres supremos. A crítica, segundo essa atitude, deve colocar-se a serviço do Ideal Social. A Política e não a Arte é que passa a ser o supremo estalão de valôres. A travessia do Pruth passa a ter, para muitos da nova geração, uma importância mil vêzes maior que a leitura de Proust, que há vinte anos deslumbrou nossa própria geração, cansada, da outra guerra e por alguns momentos embalada no estetismo Morand-Giraudoux de 1920!
Creio ser, essa crítica sociológica, a que vai contar, em breve, com o maior número de adeptos, ao menos naquele campo da metafísica implícita, que também é, muitas vêzes, uma metafísica efêmera. Pois a primeira conseqüência de não tomarmos conhecimento explícito de nossas atitudes profundas é fazer com que elas oscilem ao sabor dos acontecimentos. E amanhecermos amanhã sustentando pontos de vista totalmente opostos aos de ontem. É o que sucede, muitas vêzes, com a outra posição crítica que passamos a situar—o impressionismo.
É o nome mais corrente da crítica psicológica. Ainda hoje os nomes de Anatole France, de Jules Lemaitre, de Remy de Gourmont—que parecem aliás voltar de tempos imemoriais, de sombras cimerianas, depois de milênios de ausência, tal a profundidade do abismo de dor a que desceram a alma e o corpo da França— ainda hoje êsses velhos fantasmas deixam cair no coração dos críticos as palavras sedutoras com que os faziam transformar-se em outros tantos “Jardins de Epicuro”, em que a cultura das impressões estéticas, como de rosas do espírito, ocupa todo o tempo dos jardineiros hipersensíveis. Há nesse impressionismo crítico uma grande dose de verdade, enquanto crítica é meditação sôbre a beleza e esta um ato de visão em que a experiência profunda do nosso Eu é irredutível a qualquer sistema de Regras e Programas. Há também um culto da irresponsabilidade opinativa que se torna incompatível com uma atitude não meramente egotista perante o universo. A crítica psicológica e impressionista não será a que mais satisfaça as novas gerações, penetradas de preocupações políticas, revolucionárias ou tecnológicas. Mas, ainda é a que prevalece nos meios mais estritamente literários.
Temos finalmente, a critica moralista ou apologética que parte da primazia da moral para julgar as obras de arte em função do erviço que possam prestar ao progresso moral da humanidade ou mesmo ao triunfo da Verdade religiosa.
Por mais elevados que sejam os objetivos dessa crítica, também ela representa apenas uma face das coisas e deturpa mesmo a natureza da atividade estética. O moralismo-estético, aliás, é apenas o contra-êrro do imoralismo estético. Ambos se anulam como falseando as verdadeiras relações entre Arte e Moral, problema dos mais delicados e difíceis de solução prática e por isso mesmo dos que mais se prestam a extremismos contraditórios.
Nenhuma dessas formas de crítica superior, para nem falar das quatro anteriores, me parece corresponder à verdadeira posição de uma crítica que poderíamos chamar de autênticamente construtiva. Antes de indicar os pontos cardeais dessa crítica, desejo desde logo dizer que qualquer dessas formas críticas que não me satisfazem totalmente pode ser tratada de quatro maneiras—Com inteligência ou sem inteligência; com honestidade ou sem honestidade. Uma coisa não implica a outra, como qualquer pessoa de bom senso concordará.
Quando passo, portanto, a dizer qual a concepção crítica que gostaria de praticar ou antes que tentarei aplicar na medida de minhas fraquezas, não desconheço a possibilidade da inteligência ou da honestidade no êrro, bem como da estupidez ou da desonestidade, na verdade. Quando entendo haver uma forma crítica mais completa, e verdadeira—nem por sombra julgo estar em condições intelectuais de a realizar, como deveria ser realizada. É inútil acrescentar que a carência de espaço obriga a uma rigidez de expressão que só o tempo e as oportunidades poderão esclarecer. Limito-me às linhas mais gerais.
Cinco conceitos podem resumir os pontos fundamentais sôbre que deve assentar a meu ver, uma crítica construtiva: totalidade, hierarquia de valôres, originalidade, simultaneidade, autonomia.
A preocupação da Totalidade, de ver o mundo em todos os seus aspectos, deve ser a primeira preocupação do crítico. Nunca se fechar num recanto da verdade, mas encará—la por todos os lados. Creio, aliás, ser esta uma preocupação muito atual. Ires livros mais ou menos medíocres nesses últimos dez anos terão possivelmente representado, por algum tempo, a opinião mediana de uma época: o Livro de San Michele de Axel Munthe; O Homem, esse Desconhecido de Carrel e o Um Mundo Só de Willkie. Há um decênio, antes da guerra, a opinião média do público procurava o divertimento na literatura e o encontrava naquela xaropada divertida do nórdico transportado para o sol mediterrâneo. Há cinco anos, os sofrimentos da crise e da guerra em perspectiva faziam o Homem entrar em si mesmo e a verificação dos mistérios dessa humanidade, que lhe haviam ensinado estar para sempre totalmente desvendados, levaram-no a encontrar na obra do grande cientista francês um eco de sua própria inquietação antropológica.
Hoje, é o destino das nações que preocupa o homem da rua, que lê e não se limita a passar pelas coisas distraidamente. E no livro do político norte-americano vem encontrar alguma coisa dêsses dois sentimentos que se entrechocam no ambiente de hoje—o sentimento da variedade dos problemas universais e o sentimento da unidade do homem nessa multiplicidade. O mundo é “um só”, dentro de sua pluralidade e tôdas as soluções que excluírem essa totalidade serão imperfeitas. O homem de hoje sente que as soluções parciais não podem satisfazer. Sente que anda no ar uma dissociação, um separatismo, um isolamento que não podem perdurar.
Essa sêde de totalidade pode ser falsamente satisfeita pelas soluções puramente políticas.
O maior dos erros modernos é o totalitarismo, por ser justamente a aparência de uma solução total. Esse totalitarismo é substancialmente falso porque arrasta a ruína da Liberdade. Mas não basta a Democracia Política para restaurar a Liberdade perdida. A sede de totalidade do homem “dissociado” de nossos dias só pode ser satisfeita por uma Mística real, isto é, pela integração da ordem natural na ordem sobrenatural. Poucos concordarão comigo. Para a maioria só são possíveis as místicas profanas. Mas a verdade pura é esta: para que os homens tenham mais felicidade, para que a Liberdade não seja uma palavra vã, para que a sociedade seja mais justa, para que os ricos não esmaguem tanto os pobres, para que os fortes não tripudiem sôbre os fracos, não basta voltar ‘‘a um mundo só” E preciso subir a um ‘‘mundo outro”, que explique e seja a razão de ser do nosso. Haverá sempre “pobres” entre nós, O homem sofre sempre, em todos os regimes de vida. E só a ascensão pelas sete Beatitudes pode repousar o seu coração. Essa a “Totalidade” que deve estar na base de tôda atividade intelectual de nossos dias. E, por conseguinte, de “tôda atividade crítica”. A crítica ou o crítico não podem “viver no seu canto”, cuidando de suas atividades analíticas e profissionais relativas, com os olhos fechados para a vida. Precisa ter uma filosofia “total” da vida. E o único meio de não tornar absoluta a sua relatividade. E de a exercer, portanto, dentro de sua verdadeira natureza. A renovação da critica, enfim, está ligada à renovação da Cristandade, o problema maior de nossos dias, como de todos os dias. Pois a decomposição da Cristandade se opera a cada minuto. Como a cada momento podemos, ou não renová-la.
Vejo a crítica, pois, como um recanto particular de uma filosofia total da vida, que inclui o Tempo e a Eternidade, o homem e Deus. A crítica que entendo fazer se baseia, pois, numa Metafísica Cristã. E essa metafísica não repudia valor algum. Procura, ao contrário, colocar cada qual no seu lugar. Daí o segundo fundamento dessa crítica: a hierarquia de valóres.
Essa hierarquia—Arte, Ciência, Filosofia, Religião—por sua vez se estende, nao numa subordinação absoluta de valôres e sim numa disposição orgânica, pois a realidade é sempre um conjunto e tôda dissociação implica uma diminuição da vida, em suas condições profundas.
Essa organicidade supõe, por sua vez, a simultaneidade de todos os elementos em jôgo. Todos convivem e atuam reciprocamente uns sôbre os outros. Não é possível, senão artificialmente, isolar os elementos e desconhecer a sua simultaneidade. Arte, Ciência, Filosofia, Religião são apenas pontos de vista relativos de um Conjunto, cujos elementos dinâmicos se encontram em perene reciprocidade de ação.
Finalmente, o que essa distribuição de valôres nos ensina é a autonomia relativa de cada um dêles. Nenhum anula o outro. Nenhum pode arrancar o outro à sua colocação no conjunto. Os valôres estéticos, que são os que aqui diretamente nos interessam, possuem, portanto, completa autonomia. São valôres que se explicam por si mesmos. Que têm o seu fim em si mesmos. Uma obra de arte existe, pois, como tal, e não como obra religiosa, política, científica ou moralizante. Não pode, por sua vez, dissociar-se da totalidade dos demais sêres. A arte pela arte é um contra-senso. Mas a arte, para êste ou aquêle fim ainda é um contra-senso maior. A crítica é uma meditação desinteressada sôbre as obras de arte, seus autores e seu ambiente. E portanto, uma atividade essencialmente livre. Até certo ponto, uma aventura do espírito, uma interrogação, uma experiência, uma tentativa de recriação da obra criada. O crítico é apenas um autor em segunda potência. E quando, há muitos anos, tanto insisti no expressionismo crítico, era justamente para acentuar essa posição criadora do crítico, limitada pela sua matéria própria: a obra, o autor, o ambiente. Não há, pois, a bem dizer, uma crítica cristã ou uma crítica social, ou uma crítica impressionista. Há críticos cristãos, sociólogos ou impressionistas, que fazem ou não, crítica livre. Essa crítica, livre de todo preconceito, é que entendo fazer. Uma filosofia da vida não é um preconceito: é um pós-conceito, uma afirmação de—ser homem.
Procuro, como cristão, e como trinitário, isto é, católico, fazer crítica desinteressada e livre. Crítica justa. Penso que a crítica não é uma atividade que possa desligar-se de uma filosofia da vida. Mas tampouco é por si, uma filosofia, ou um partido, ou um sistema, O essencial é sabermos preservar a nossa liberdade, a nossa honestidade, a nossa lucidez, na base do cumprimento do dever essencial de tôda a crítica:—a obediência à obra, ao autor e ao ambiente, re-pensados e re-sentidos pelo crítico, O essencial é saber manter a independência da critica, sem dissociá-la dos grandes problemas sociais e metassociais, particularmente da renovação perene da Cristandade, que é a renovação constante, em nós e nos outros, do Caminho, da Verdade, da Vida.
Essa a crítica construtiva e total que tento fazer, nos limites das fracas disponibilidades que Deus me concedeu.
Justiça absoluta para com tôda realidade literária, por mais contrária que seja às minhas próprias convicções.
Franqueza absoluta na expressão dessa recriação literária que éa atitude formal dessa atividade meditativa sôbre a literatura.
Cuidado de nunca me deixar prender por um ponto de vista unilateral, nem mesmo o do plano superior do julgamento.
Eis aí algumas indicações, para que autores e leitores possam, com tôda liberdade e, naturalmente, com tôda lealdade, fazer com o crítico o mesmo que êle pretende fazer com os criticados...
1. Inútil dizer que isso foi escrito em 1944. .—N. do A., 1969.
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