segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ramayana de Chevalier


Ramayana de Chevalier

Saudade da infância



Era no colégio do meu pai, aos primeiros albores de minha vida. Os sonhos, ainda multicores, não tinham forma. O calor, idêntico. Pelas tardes estivais, fagulhantes de luz, o pregão dos doceiros era em gaita de folha. Um assovio musical, longo e agudo, enchendo a rua. E os bondes, pesados e barulhentos, chacoalhavam a poeira e reduziam a pó os cacos das garrafas, da próxima trança de papagaios.

Por essa época, ainda criança, eu escolhia a sombra que descia sobre o quintal e ali ficava, sentado, a observar as árvores militarizadas, ou subia ao muro de trás, divertindo-me com os cães vadios e obscenos, ou com a molecagem da Baixa. De tarde, fatigado e cheio de suor, tomava meu banho quase morno, porque a caixa dágua ficava ao sol. E, à noitinha, lá estava eu na calçada, batendo papo com os outros garotos do colégio, ou contando as aventuras da última fita de cinema para os vizinhos. Vida simples, vida de bairro humilde, de cidade pequena.

Nunca me queixo do calor. Ao contrário, pelas nove horas da noite, muitas vezes o sono me surpreendeu escutando o toque de silêncio do quartel da Polícia Militar, com uma leve sensação de frio noturno. E, pelas madrugadas engalinhadas de cantos alegres, eu acordava, preguiçoso de deixar o leito, sentindo arrepios de umidade gostosa.

Depois, viajei. Esbati-me, como um fardo sequioso, pelas arestas do mundo. Onde havia um sexo, aí estava a minha bandurra. Onde morasse um sofrimento, aí comparecia, piedoso, o meu coração. E conheci outros climas, amenidades estranhas, delícias montanhesas, primaveras veludosas como peles femininas, invernos elegantes e acolhedores.

Conheci o valor de um abraço sob um edredom de penas, a carícia de uma ternura mansa dentro do outuono (sic) triste. Caíram folhas de árvores solenes, uma a uma, diante de mim, como se fugissem do galho materno, a dormir no chão. E as rajadas magníficas do vento sul, esbofetearam-me no rosto, emprestando ao meu olhar o brilho forte dos vencedores.

Nos Andes, nos pampas, nas ribas tristes do Paraguai, no planalto de Piratininga, por onde passei, da orla inenarrável da costa fluminense às coxilhas mansas da terra lageana, amei à Terra com um amor cosmopolita. Desequilibrei o meu sistema termo-regulador.
Hoje, de regresso aos meus pagos, sinto calor. O menino de ontem não revelou o seu segredo ao homem de agora. Os revérberos da estreia causticante, nas vidraças que agonizam em reflexos, me tornam soturno, abichornado, entre parêntesis. Sou, hoje, um aficionado número um da sesta. A rede tem hoje um significado muito mais profundo e mais místico.

Quando a ciência nutricionista atribui à lentidão equatorial o caráter de defesa do homem contra o clima, está perfeitamente certa. Os ingleses, franceses, holandeses, que aqui vieram, também chegaram ligeirinhos e europeus no seu passo, no seu dinamismo. Traziam invernos nos nervos e nos sonhos. Depois, foram amolecendo. Em cinco anos, passaram a falar devagarinho. Em dez, andavam disputando o passo com os tracajás.

Mais tarde, ficaram fregueses do tacacá e começaram a comer o coração das melancias. Terminaram fazendo pipi nas calças sem vinco. Assim, todos os dolicocéfalos loiros que aportam por essas bandas.

Tenho inveja da criança que eu fui. Não sentia calor, brincava de sol a sol, mirava o “bichão”, frente a frente, empinando o meu “banda de asa”. Melhor seria não ter conhecido mais nada, lugar algum, povo nenhum, antes que as minhas calças percam o vinco...

Publicado em O Jornal. Manaus, 23 set. 1958









Espanando a memória



ERA de noite e eu estava com pressa. Mesmo sem causa, Manaus já dá pressa em quem está de carro. O asfalto faz isso. Estamos adquirindo uma fisionomia atual e civilizadíssima. O asfalto é um tobogã do progresso. Mas, como eu ia dizendo, era de noite, quando passei junto ao obelisquinho em frente ao “roadway”. Quatro velas estavam acesas. Quatro. Tremeluzindo, chorando, nas suas lágrimas de cera. Estavam ali, postas pelo povo. O “demos” grego, anônimo, gigantesco, imortal. O povo. Que mãos colocaram ali aquelas velas? Não importa. Elas significavam uma mensagem dos humildes a Getúlio Vargas. Não quero examinar a sua política, não desejo senti-lo como cacique. Aquelas velas despertaram, no meu íntimo, um desfile de recordações.
Era no Rio de Janeiro, e havia pouco terminara o drama revolucionário de 1930. A Junta Militar já havia ido comunicar ao presidente Washington Luís, que ele estava deposto. O cardeal dom Sebastião Leme que já se encontrava no Palácio da Princesa Isabel, onde residia o presidente, para acompanhá-lo, numa pá de cal melancólica, até à sua prisão no Forte do Leme. Tudo como se houvesse uma peça teatral, sem ensaio. Lentamente, de faces encovadas, o Sr. Washigton Luis saiu de sua câmara, acompanhado de S. Eminência. Era um dia claro mas sem sol. Quando surgiu na varanda, ao alto da escadaria que despeja para os jardins dianteiros, o general Mailan D´Angrone, então Chefe Militar do Palácio, adiantou-se majestosamente e deu a ordem para a tropa que esperava, perfilada e firme, diante do edifício:
“Á Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, em continência!”

Ouviu-se um ruído de coices de armas, o ajuste dos fuzis ao tronco, olhares brilhantes de soldados obedientes, e o presidente Washington Luís desceu, solene, devagar, mirando o povo que se aglomerava na rua Pinheiro Machado, para entrar no carro oficial que o conduziria à prisão e ao exílio. O Rio estava esfuziante. Havia terminado a revolução e os panfletos terríveis de Mário Rodrigues estavam sendo fiscalizados pela censura. A derradeira manchete dessa fase, em A Crítica, dizia: “Acaba de chegar ao Rio de Janeiro, o senhor Getúlio Vargas, o anti-Cristo de rabo de porca”.

Era assim a violência das paixões naquele momento. Getulio apareceu ao povo, pouco depois, moço, de ar jovial, e envergando a sua farda de general da Revolução. Dois anos depois, saltava eu de novo no Rio, dessa vez fardado para as trincheiras de 1932. Engajado no III Batalhão do 9º R.I., segui como tenente para o Vale do Paraíba. Era um dos defensores do governo Vargas. Até hoje, tenho honra nisso. Servi às ordens do general P. Góis, no Exército de Leste. Tomei parte no ataque a Queluz, e Areias, a Silveiras, o mais feroz de todos, a Barro Vermelho, a Cunha e fiz ocupação em Tremembé e Taubaté. Demorasse mais um pouquinho revolução e eu teria ficado morto no ataque a Engenheiro Neiva, uma fortificação de cimento armado. Fiz ponta de vanguarda, fui ferido, repousei no Hospital de Lorena, lutei na frente, faminto, barbado, rastejando com os meus soldados. Em Silveiras, entrei com o III do 9º, de parabellum, entre os soldados em baioneta calada. Minha fé de ofício é honrosa e simples. Fui promovido por ato de bravura. Sempre com o pensa-mento voltado para o Chefe da Nação, tolerante, bondoso e trabalhista.


Assisti, anos mais tarde, à humilhação do gigante. Foi no dia da prisão de Gregório Fortunato, nos jardins do Palácio do Catete. Antes de entrar no automóvel que o levaria ao Galeão, Fortunato ainda discutia no jardim. Cercavam-no soldados da Aeronáutica e oficiais. Junto à grade do lado, eu observava a cena. E no segundo andar, dentre as frinchas da venziana, vi um vulto que contemplava, em silêncio, toda a teatral prisão do chefe da guarda pessoal.
Era o presidente Vargas. Nada podia fazer. Nada esperava mais. Tinha prometido ao grupo de emergência, constituído no Galeão, que o levariam até lá, preso, para depor. O homem que viera nas asas da revolução de 30, o chefe político do uma Nação que ele impulsionara para a frente, o Chefe supremo dos exércitos em 1932, o ditador das Américas, o Grande Líder, o presidente Constitucional do Brasil, depois, iria descer do seu pedestal, para comparecer, como um preso comum, diante de oficiais que ele promovera, diante de oficiais que ele havia ajudado a generalar-se.
Era ao crepúsculo e eu não pude ver os seus olhos. Das frinchas, ele se despedia, tristemente, do seu amigo e escudeiro. Durante mais de vinte anos, a sua vida fora guardada por aquele cão de fila negro e fiel. Alguns dias depois, passara eu a noite mal dormida, com os acontecimentos. A cidade do Rio estava com os nervos de poraquê. Pelas oito horas da manhã, abri o rádio, todos acordados em minha casa, esperando a notícia da prisão do Grande Presidente. Foi então que escutamos a mensagem:
“Alô! Alô! Brasil! Atenção! Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Dornelles Vargas”.
Foi o maior choque que já sofri em minha vida. Todos, de mim as minhas filhas, a minha pupila, todos choramos. O Rio, o Brasil inteiro chorou. Só não o fizeram os que continuaram a maquinar traições contra sua memória. Tive vontade de sair de casa, armado, para desafiar todo mundo. Era o desespero, era a ferida popular. Se ele tivesse apelado para o povo, nenhum poder o derrubaria! Agradeço, “àquelas quatro velas, estas lembranças estão sentidas. Só havia quatro velas acesas. Mas elas valeram por um milhão delas. Porque foram colocadas pelos que, ainda hoje, choram pelo maior dos brasileiros de todos os tempos.
 A GAZETA. Manaus, 20 de abril de 1961


Cazaquistão.
Ramayana de Chevalier, 1958

Em Manaus, Ramayana de Chevalier tomou de sua pena brilhante e produziu o texto que reproduzo. Também ele, o texto, cinquentenário, publicado em A Gazeta, em 14 de abril. Ano dessas aventuras - 1961.


Estamos vivendo a hora cósmica. Nossa casa é pequena para a vertigem do nosso sonho. A ciência soviética acaba de penetrar no universo oleoso e silente do firmamento estelar. As cadelas que precederam ao salto humano pelo silêncio sideral merecem nossa mais carinhosa gratidão. Agora sentimos, em toda a sua extensão, de como foram ridículos e imbecis os santinhos da Sociedade Protetora dos Animais, com os seus protestos líricos. Depois dessas cadelas magníficas, o homem foi lançado, pela primeira vez na história da humanidade, a uma velocidade de 600 mil quilômetros/hora, numa altitude de 340 mil metros acima do solo, completando, em uma hora e meia de relógio, a volta em torno do planeta.

Note-se, para efeito de raciocínio, que o nosso planeta Terra é lançado no espaço a uma razão de 104 mil quilômetros por hora, dando-nos a perfeita ilusão de estabilidade e fixidez, de tanta estabilidade que iludiu aos astrônomos antecessores do Copérnico. Numa velocidade, pois, algumas vezes maior do que a massa do planeta, esse bólido russo conseguiu levar um ser humano a uma altura jamais suspeitada, num deslocamento alucinante, que trouxe, como prova, uma série de hipóteses cosmológicas que a Relatividade Restrita de Einstein havia, teoricamente, comprovado.
Uma delas é a absoluta ausência de luz no espaço cósmico. A outra, que representa uma afirmação categórica da teoria corpuscular, é a que declara que, na visão do firmamento, a luz, lançada como um oceano corpuscular através do infinito, só é sentida quando encontra a massa dos planetas ou dos cometas transeuntes. A visão que o astronauta Gagarin teve do espaço cósmico, mergulhado nele a uma profundidade de 340 quilômetros distante da Terra, confere com as anotações de Einstein e com a moderna teoria mecânica celeste e da física corpuscular. O espaço é negro. Ao longe, Gagarin conseguiu entrever o seu planeta, mergulhado num azul claríssimo, resultado do impacto do feixe luminoso nas camadas atmosféricas e na própria massa da Terra. A sua visão deve ter sido angelical. Assim devem os anjos contemplar à Terra e Deus, como Lei, na sua escuridão permanente, assiste à vitória dos seus filhos, sem comoções.
Revista Veja, 20 abr. 2011


A vinda do astronauta, em perfeito estado físico, como de resto já havia chegado os animais enviados ao espaço, assegura também uma razão admirável à teoria einsteiniana do espaço pessoal, arrastando cada um de nós o seu universo de bolso em torno de si. O que acontece com o microclima para os vegetais, existe também para o ser humano, quanto às inerências de sua condição biológica e sensorial.
O homem conduz o seu próprio universo. Os planetas, com a sua atmosfera, as suas nuvens, as suas diferenças climáticas, volitam em torno do Sol, num arranco de 104 mil quilômetros por hora, no que tange ao nosso “habitat”. Os de maior volume, certamente se deslocarão em velocidades superiores, de acordo com o seu empuxo necessário. Dentro dessa concepção, o homem, como indivíduo, também arrasta consigo o seu continente cósmico, capaz de isolá-lo e de mantê-lo, num equilíbrio de compensação, dentro de um esquema de resistência pessoal à velocidade.
Não podem ser selvagens, nem atrasados, nem primitivos, aqueles que possuem cientistas capazes de tais cometimentos. Parece não ter razão o presidente do Banco de Boston, quando nega à Rússia qualquer virtude. A exploração do homem pelo homem está perdendo na competição com a ciência socialista.
Gagarin, hoje, não é astronauta russo. É um cidadão do mundo, que veio concorrer para provar que todos somos irmãos e que a ciência, quanto mas prestigiada pelo Estado, mais frutos dará e mais novidades oferecerá aos sedentos de sabedoria e de liberdade... 













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Recordando o Passado

Ildefonso Pinheiro

Antes de falar em Ramayana de Chevalier, é preciso recordar o antigo Instituto Chevalier onde o seu pai, professor José Chevalier fincou o marco conclamador do dito instituto, cujo nome tornou-se flâmula desta terra. Lembro-me perfeitamente que o instituto foi instalado pela primeira vez na Rua dos Andradas, num amplo sobrado que ainda hoje pode ser visto em seu estilo colonial, de beleza atraente. 

O Instituto Chevalier ali foi instalado em 1911 ou 1912, tendo permanecido por muito tempo. Depois mudou-se para a rua Dr. Moreira, esquina com a Quintino Bocaiuva, onde atualmente se encontra a Hospedaria Garrido. Aí funcionavam diversos cursos tendo como professores — José Chevalier e Paulo Eleuterio que, entusiasmados pelo Escotismo, passaram a lecionar esta disciplina que Olavo Bilac com suas belas canções impulsionara o povo brasileiro de Norte ao Sul. Assim, ao amanhecer de cada dia estavam os dois mestres dedicados a convocar os meninos daquela época para tão sublime conquista espiritual. 
Entre os novos escoteiros encontrava-se Ramayana de Chevalier, moço sagaz, em cujos olhos existia a esperança para o Brasil de mais um filho culto e radiante. Ele foi um soldado impulsionado pelo sentimento poético de Olavo Bilac com suas canções patrióticas, pois tocavam os corações pela chama sagrada do ideal, do amor pela liberdade e pelo progresso do Brasil. 
No desenvolver dos tempos, Ramayana de Chevalier fora tido como um espirito fadado às ciências e às letras. Ao seu lado encontravam-se Leopoldo Peres, André Araújo, Carlos de Araújo Lima, Olavo das Neves e muitos outros que conduziam a bandeira da ordem e do progresso, nos seus corações. Nesse desenvolver de dias, noites e meses, anos se passaram e chegamos ao ano de 1941 quando encontrei Ramayana de Chevalier viajando no navio Santos, do Loide Brasileiro, de Manaus à cidade Maravilhosa. 
Nessa comprida viagem de 22 dias o navio fora transformado numa Academia de Letras, onde os astros fulguravam com seus espíritos de jornalista, poeta, sociólogo, que eu ainda hoje conservo em minha retina, fazendo reviver aqueles dias felizes, nos quais Ramayana de Chevalier, André Araújo, Genesino Braga e Aguinaldo Archer Pinto transformaram aquela cidade flutuante num ambiente de artes e de cultura. 
Em 1950 o vi e senti ao lado de Adalberto Vale com o seu verbo brilhante e sedutor quando saudava a gleba verde com o seu discurso pela passagem da entrega do “Hotel Amazonas” à cidade de Manaus.
Suas frases refeitas de imagens estelares tinham o encanto das flores às margens dos rios, a murmurar por todo este Amazonas que surpreende e catequiza tudo o que tiver a felicidade de o contemplar em sua apoteose maravilhosa.
A inauguração do “Hotel Amazonas” marca o divisor de suas épocas. Esta formidável iniciativa da Prudência Capitalização, através do gênio empreendedor de Adalberto Ferreira Valle, que Assis Chateaubriand classificou no seu brilhante artigo Dos Grisões à Amazônia com o único rival do anexo do Copacabana Palace, representa nas suas linhas arquitetônicas, na excelência do seu material prestante, no arremesso de suas colunatas, no emaranhado modernismo dos seus detalhes técnicos, um monumento ao amazonense singular, cujo espirito, envolto nas tarlatanas da graça e do poder positivo, jamais se esqueceu, como o fez Ruy, do ninho onde nascera... 

Sobre Ramayana de Chevalier o ministro Jorge Mendes, na sessão do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas pedirá um minuto de silêncio para prestarem uma homenagem póstuma ao grande amazonense, dizendo: "Ramayana de Chevalier, como homem teve os erros, mas, nas letras, vejo-o iluminado ao lado de Álvaro Maia como os dois maiores amazonenses". 

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