domingo, 22 de novembro de 2015

O INFERNO DE DANTE



DANTE – O INFERNO




CANTO I


DA nossa vida, em meio da jornada,
Achei-me numa selva tenebrosa,
3 Tendo perdido a verdadeira estrada.

Dizer qual era é cousa tão penosa,
Desta brava espessura a asperidade,
6 Que a memória a relembra inda cuidosa.

Na morte há pouco mais de acerbidade;
Mas para o bem narrar lá deparado
9 De outras cousas que vi, direi verdade.

Contar não posso como tinha entrado;
Tanto o sono os sentidos me tomara,
12 Quando hei o bom caminho abandonado.

Depois que a uma colina me cercara,
Onde ia o vale escuro terminando,
15 Que pavor tão profundo me causara.

Ao alto olhei, e já, de luz banhando,
Vi-lhe estar às espaldas o planeta,
18 Que, certo, em toda parte vai guiando.

Então o assombro um tanto se aquieta,
Que do peito no lago perdurava,
21 Naquela noite atribulada, inquieta.

E como quem o anélito esgotava
Sobre as ondas, já salvo, inda medroso
24 Olha o mar perigoso em que lutava,

O meu ânimo assim, que treme ansioso,
Volveu-se a remirar vencido o espaço
27 Que homem vivo jamais passou ditoso.

Tendo já repousado o corpo lasso,
Segui pela deserta falda avante;
30 Mais baixo sendo o pé firme no passo.

Eis da subida quase ao mesmo instante
Assoma ágil e rápida pantera
33 Tendo a pele por malhas cambiante.

Não se afastava de ante mim a fera;
E em modo tal meu caminhar tolhia,
36 Que atrás por vezes eu tornar quisera.

No céu a aurora já resplandecia,
Subia o sol, dos astros rodeado,
39 Seus sócios, quando o Amor divino um dia

A tais primores movimento há dado.
Me infundiam desta arte alma esperança
42 Da fera o dorso alegre e mosqueado,

A hora amena e a quadra doce e mansa.
De um leão de repente surge o aspecto,
45 Que ao meu peito o pavor de novo lança.

Que me investisse então cuido inquieto;
Com fome e raiva atroz fronte levanta;
48 Tremer parece o ar ao seu conspeto.

Eis surge loba, que de magra espanta;
De ambições todas parecia cheia;
51 Foi causa a muitos de miséria tanta!

Com tanta intensa torvação me enleia
Pelo terror, que o cenho seu movia,
54 Que a mente à altura não subir receia.

Como quem lucro anela noite e dia,
Se acaso o tempo de perder lhe chega,
57 Rebenta em pranto e triste se excrucia,

A fera assim me fez, que não sossega;
Pouco a pouco me investe até lançar-me
60 Lá onde o sol se cala e a luz me nega.

Quando ao vale eu já ia baquear-me
Alguém fraco de voz diviso perto,
63 Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,
— “Tem compaixão de mim” — bradei transido —
66 “Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me — “mas hei sido,
Pais lombardos eu tive; sempre amada
69 Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,
Vivi em Roma sob o bom Augusto,
72 Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo
Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
75 Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?
Por que não vais ao deleitoso monte,
78 Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“— Oh! Virgílio, tu és aquela fonte
Donde em rio caudal brota a eloqüência?”
81 Falei, curvando vergonhoso a fronte. —

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!
Valham-me o longo estudo, o amor profundo
84 Com que em teu livro procurei ciência!

“És meu mestre, o modelo sem segundo;
Unicamente és tu que hás-me ensinado;
87 O belo estilo que honra-me no mundo.

“A fera vês que o passo me há vedado;
Sábio famoso, acude ao perseguido!
90 Tremo no pulso e veias, transtornado!”

Respondeu, do meu pranto condoído;
“Te convém outra rota de ora avante
93 Para o lugar selvagem ser vencido.

“A fera, que te faz bradar tremante,
Aqui passar não deixa impunemente;
96 Tanto se opõe, que mata o caminhante.

“Tem tão má natureza, é tão furente,
Que os apetites seus jamais sacia,
99 E fome, impando, mais que de antes sente.

“Com muitos animais se consorcia,
Há-de a outros se unir té ser chegado
102 Lebréu, que a leve à hórrida agonia.

“Por ouro ou por poder nunca tentado
Saber, virtude, amor terá por norte,
105 Sendo entre Feltro e Feltro potentado.

“Será da humilde Itália amparo forte,
Por quem Camila a virgem dera a vida,
108 Turno Eurialo, Niso acharam morte.

“Por ele, em toda parte, repelida
Irá lançar-se no infernal assento,
111 Donde foi pela Inveja conduzida.

“Agora, por teu prol, eu tenho o intento
De levar-te comigo; ir-te-ei guiando
114 Pela estância do eterno sofrimento,

“Onde, estridentes gritos escutando,
Verás almas antigas em tortura
117 Segunda morte a brados suplicando.

“Outros ledos verás, que, em prova dura
Das chamas, inda esperam ter o gozo
120 De Deus no prêmio da imortal ventura.

“Se lá subir quiseres, um ditoso
Espírito, melhor te será guia,
123 Quando eu deixar-te, ao reino glorioso.

“Do céu o Imperador, a rebeldia
Minha à lei castigando, não consente
126 Que eu da cidade sua haja a alegria.

“Em toda parte impera onipotente,
Mas tem no Empíreo sua augusta sede:
129 Feliz, por ele, o eleito à glória ingente!”

— “Vate, rogo-te” — eu disse — “me concede,
Por esse Deus, que nunca hás conhecido,
132 Porque este e maior mal de mim se arrede.

“Que, até onde disseste conduzido,
À porta de São Pedro eu vá contigo
E veja os maus que houveste referido”.

136 Move-se o Vate então, após o sigo.



1. Em meio etc. Aos 35 anos. Dante tinha 35 anos no dia 25 de março de 1300, ano no qual o papa Bonifácio VIII proclamou o primeiro Jubileu. — 2. Tenebrosa etc., simbólica selva dos vícios humanos. — 32. Pantera, símbolo da luxúria e da fraude; politicamente, de Florença. — 44. Um leão, símbolo da soberba e da violência; politicamente, da França. — 40. Loba, símbolo da avareza e da incontinência; politicamente da Cúria Romana. — 62. Alguém etc., o poeta Virgílio Maro, símbolo da razão humana. — 105. Entre Feltro e Feltro, entre Montefeltro e Feltro. — 122. Espirito melhor, Beatriz, a mulher que Dante amou.


A DIVINA COMÉDIA
— INFERNO —
DANTE ALIGHIERI
http://www.ebooksbrasil.com/eLibris/inferno.html#I1
Tradução
José Pedro Xavier Pinheiro
1822-1882
Ilustrações de Gustave Doré
1832-1883

Versão para eBook
eBooksBrasil.com

Fonte Digital
Digitalização do livro em papel
COMPOSTO E IMPRESSO
NAS OFICINAS DE
D. GIOSA - INDÚSTRIAS GRÁFICAS S/A
SEÇÃO: ATENA EDITORA
RUA JAVAÉS, 465 - SÃO PAULO
MARÇO - 1955

© 2003 — Dante Alighieri

Nota Editorial
     Aqui está uma obra que deveria figurar na “cesta básica” de qualquer estudante. E não apenas por ser a famosa “Comédia” de Dante Alighieri, a que os pósteros houveram por bem acrescentar, por seus méritos tantos, “A Divina”.
     A tradução, feita pelo brasileiro José Pedro Xavier Pinheiro, enobrece a língua portuguesa e, em particular, as letras pátrias. Mas isso o leitor irá constatar por si mesmo.
     Nela, gastou Xavier Pinheiro anos de sua vida. Seu filho, J. A. Xavier Pinheiro, acrescentou-lhe um Rimário, para uma segunda edição editada por Jacintho Ribeiro dos Santos, nos anos 10 do século passado, enriquecida com as gravuras de Gustave Doré, em folhas à parte.
     Por que cito tais fatos? Porque a única finalidade que movia os Xavier Pinheiro, pai e filho, era contribuir para o enriquecimento cultural de nossa gente, sem subsídios como condição prévia e sem láureas ou pecúnia como retribuição.
     A presente edição em eBook, infelizmente, não preserva o Rimário, que não consta da edição digitalizada, editada pela Atena Editora, que, com sua Biblioteca Clássica, ainda encontrada nos bons sebos, familiarizou gerações com o que havia de melhor nas letras e no pensamento universais. E, não é demais salientar, sem os ranços de nacionalismos estreitos, freqüentemente disfarçando interesses outros em nome da “defesa dos autores nacionais”, mas cujo único resultado é distanciar nossa gente do pensamento universal, que nunca teve, nem jamais terá outra barreira que não o da língua.
     É exatamente esta barreira que, no caso, Xavier Pinheiro transpôs, com sua tradução.
     Na presente versão para eBook, tentamos fazer justiça aos esforço do tradutor, cuidando ao máximo da revisão. Infelizmente, como quem quer que já tenha feito uma digitalização sabe, ao digitalizar 516 páginas, aqui e ali sempre passará algum “gato”. Esperamos que os que tenham passado não miem muito...
     Atualizamos a grafia, preservando, contudo, as apócopes e as elisões do tradutor que, com tais recursos, evidentemente visava conservar o sabor e a métrica originais. Para facilitar a leitura, apenas para isso, adicionamos acentos. Por exemplo, quando na fonte digital estava cir’clo, adicionamos o acento círc’lo, como apoio à leitura.
     Como não temos preocupação com economia de papel, separamos os tercetos de forma mais clara, acompanhando a edição digital da LiberLiber (www.liberliber.it). A numeração dos versos foi preservada para facilitar a consulta às notas e para a leitura em determinados formatos em tela pequena. As notas não foram “lincadas” e estão ao fim de cada Canto, como na edição digitalizada. Alguns, como eu, sentirão a falta deste recurso que só é possível nas edições digitais... Mas...
     E apenas ilustramos esta edição com as gravuras de Doré. Na internet, o leitor mais interessado poderá encontrar recursos para aprofundar seu conhecimento da obra em pelo menos quatro excelente websites:

     1. Destaque especial para o esforço individual de Helder da Rocha com seu site “A Divina Comédia”: www.ibpinet.net/helder/dante
     2. O Dante Digital da Columbia University: http://dante.ilt.columbia.edu/
     3. Dante On Line: www.danteonline.it (em italiano) com direito a ver na tela alguns manuscritos... sem ter que fazer download de nenhum recurso extra...
     4. www.divinecomedy.org/ (nem sempre disponível)
     E todos os mais que o google pode lhe indicar.

     Boa leitura!

     Uma nota final (já ia me esquecendo): A presente edição em eBook pode ser distribuída à vontade, sob uma única condição: todo uso comercial é PROIBIDO, além de obviamente INDECENTE. Quem fizer — se alguém fizer, melhor diria, restasse em mim alguma esperança na honestidade pátria, caso em que nem colocaria a nota — é melhor ler este volume para ir se acostumando com o cenário.

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