sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 13



Da vida, isso é tudo? Ora, Val se penteava, diante do espelho, como um fantasma. Cabelos sobre os ombros. ela aparecia, ali.
No dia seguinte Rôni voltou a Búzios, pretendia escrever “A história dos amantes”.
Mas Val era um fantasma, em Búzios. A sua ausência aumentava o delírio, que atacava de diversas formas, e tinha preferência por certos lugares, como a porta da cozinha, que dava para a praia. Ali eles se encontravam, quando Rôni vinha vê-la na praia, ou preparando o almoço. Ele passava a mão por volta de sua cintura, apalpava as ancas e mordiscava seu pescoço. Val cozinhava, quase nua, de calcinha, ou de roupa de banho.

“Depois que me separei dela senti acabada minha capacidade de amar. Até conhecer Luisa Chermont. Não, não devo chamar de amor aquela doença, que foi meu relacionamento com Val. Eu me separei dela, encontrei o medo, o mundo escuro e desconhecido. Tinha amado uma aventura. Custou caro. Passei por tudo, a vida feita de contrastes. Freqüentemente sou demais.”

“Volto aqui só, não sei me referir ao ser desconhecido que é ela”.

Rôni traduzia tudo em si. “Estou cansado, isso dissolve o que sobrou de mim. Quando me relaciono, isso me vem com sentimento de culpa”.
Que será? Eu fiquei. Aqui fico. Nesta casa.

Depois da separação, cada vez maior a sensação de que tinha de mudar-se. Parecia loucura estar ali, onde tudo aconteceu. A relação com Val vivia de uma revolução e de crise permanentes. Ela nunca dava segurança, somente com muito esforço ele conseguiria que Val fosse algo estável. “Em nenhum momento ela me disse que desejava ficar definitivamente comigo”. A vida é sempre provisória. Eu me orgulhava de seu espírito de liberdade, como o de minha avó Madalena. Eu a fiz à imagem e semelhança de minha avó.

Roni sentia-se na época um criador, conhecia a estética de sua época. Poderia passar os dias e as noites escrevendo. Poderia passar os dias e as noites só?
Na solidão, Rôni esperava. Não conseguia ainda escrever “A história dos amantes”. Ia para a praia, andava sozinho nas pedras, riscava as areias, voltava mais só. Esperança. Nenhum recado, carta. Onde Val estaria? Ninguém. Ele não se abandona no desespero. Via a insuficiência de amar. Pois estava ligado por uma secreta corda a Val.
Apesar de tudo, Rôni conhecia a inocuidade, a incapacidade de ser amado. Val dizia que ele era egoísta. Só pensava em si. Ele replicava que não. Pensava nela. “Mas eu não sou personagem de romance”, dizia Val. Rôni considerava que Val era incompreensível, inumerável, como Albertine de Proust. Ela resistia que não. Não faria do casamento a morte, para o bem dele. E, segundo as teses que ele defendia nas páginas de seu novo romance, “A história dos amantes”. Val o acusava de não ser fiel. “Se você pode, eu posso”, dizia ela. “Você não se diz feminista?” Apesar de ter escrito tanto, Rôni não sabia falar de si mesmo. Nem sabia trazer seus próprios sentimentos para o texto. O escritor está preso ao leitor, não a si mesmo, dizia. Era a fórmula que utilizava para a construção dos romances e novelas. Agradava ao grande público. “Só se pode destilar a vida assim. Cumpro o meu destino e escrevo. Vivo disso, dessa profissão”. Mas Rôni nunca pôde viver de literatura.

Nos manuscritos de Búzios, rascunhos de “A história dos amantes”, procurava desenvolver a relação dialética da vida de todos os amantes. Pesquisava, estudava as antigas formas de amor, lia a biografia de amantes históricos, relia os prediletos. Conhecia Ovídio. O mais sentimental dos elegíacos romanos, na “Arte de amar”, criou uma verdadeira estratégia da conquista amorosa, que ele sabia, utilizava.

Rôni sublinhava a importância que teve a Ilha na sua vida, no seu caráter, na sua obra. A Ilha o corrompera, como rosca perfuratriz, como uma broca. A liberdade, e toda liberdade é excessiva, a liberdade, experimentada na Ilha, nos primeiros anos de sua formação, compelia-o a conspurcar cada fração de amor. Se amar é um sentir estável, estar preso a um outro, unindo corpos e personalidades, se amar é mergulhar sempre num lago, cuja podridão era feita de enzimas básicas para o revigorar, não. Não foi a cidade, mas a Ilha. Fonte infectante, procriadora. A cidade violenta, a ilha tinha os dons de prazer, de descobrimento.

Tentava compreender o quase anormal ser em que se transformou, depois que se contagiou de Val daquela maneira, até que ela se transformasse e sumisse. Compreender é tornar-se maior do que o fato compreendido. Produziu livros para compreender-se, na tentativa de traduzir-se em texto. Mas viu depois que não tocava no ponto central de si mesmo. “Escrevo “A história dos amantes” não só para fazer eco a mim mesmo, mas como minha última tentativa. Não quero continuar no recinto obscuro em que se move o inexplicável. À medida que escrevo menos me enlabirinto. Contudo esta poderá ser a minha estória mais veraz. Nela libero os mais grotescos personagens, eu-mesmo e minha relação com Val. A literatura não é confissão pessoal. Dá forma à expressão para a ultrapassar e mexer no fundo dos estados de coisa em busca de armar a tela onde se descreve a realidade. Ali a saga, ou um pedaço dela, vem à tona. A minha vida e a minha narrativa se confundem. Val é minha narrativa. Eu existo aí.

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