sábado, 28 de junho de 2008

A HISTÓRIA DOS AMANTES, 9


As mãos de Roberto são delicadas, pequenas, brancas. Ele tira e recoloca a aliança de ouro que tinha no dedo. O aro percorria os dedos da mão e voltava a introduzir-se no anular. Uma prestidigitação. Revelava nervosismo, diante de Artur, que dava em cima dele.
Desde que Val resolvera passar o Natal no Rio estava eu de mau humor e bêbado. Agora aquelas mãos se cruzavam, em prece, em súplica.
Roberto era um rapaz branco, magro, olhos negros, vivos. Era médico.
Regina, sua mulher, passa, ocupada em arrumar a ceia de natal que ficou por sua conta.
Estávamos em Búzios, na minha casa.
Era a primeira vez que passava ali o natal só. A casa pintada, a ceia tinha sido marcada para a "inauguração".

Mas Val partira.
Meu casamento com ela era de altos e baixos, mas não é disso que eu quero falar agora. Não e não. Eu não estava mesmo pensando em Val, naquela noite, eu não estava mesmo pensando em nada, bêbado.

A aliança de Roberto voltou a entrar e sair do dedo, em cópula. Seria uma provocação? Ele estava sentado bem à minha frente. Artur como sempre quase nu a meu lado, de sunga preta. Assumido e provocante. " Ótimo", disse ele quando o convidei para o natal em minha casa. "Ótimo", disse-me ele: "bicha solitária sofre no natal. Vou sim".

Regina era maternal, cursado o Instituto de Educação. Corpulenta, quase gorda, pouco maior do que o marido. Perfeita boa esposa, do ponto de vista machista, doméstica, arrumada, organizada, prestimosa, trabalhadeira, fina. Ia engordar ao longo dos anos, certamente. Por ora, os seios grandes, maciços, as pernas, as ancas. Não tinha barriga. Fomos à praia e ela estava de biquíni. Um corpo belo, mas já cheio.
Roberto era branco e pálido.

Fomos para a mesa. Eu tinha colocado no toca-disco «The mamas & the papas», que cantava agora "California dreamin".
Creio que nem tínhamos começado a comer quando ouvimos bater à porta.

Roberto se levanta. Vai abrir o portão. Sai. Eu começo a comer. Artur diz que o peru está ótimo. Digo que sim, pergunto se conhece o "Peru de Natal", de Mário de Andrade. O som é "Look through my window".

.............................

Três homens entram pela porta. Um deles é Roberto. Pálido. Os lábios tremem. Atrás dele um homem louro, estatura mediana, cabelo cortado como soldado. Olhos brilhantes, de cão feroz. Empunha uma pistola na mão. O outro era moreno alto, segura Roberto pelo braço e olha em volta.
O louro se aproxima de mim de arma apontada, bem de perto e diz:
— Eu te conheço, cara. E começa a me amarrar na cadeira corda fina, de nylon. Regina vai-se levantando, mas o louro a empurra de volta à cadeira. Ela ficou ali, sentada, apalermada, chora, olhando o marido.
O moreno alto amarra Roberto na cadeira em minha frente.
O louro sai dali e vai revistando a casa. O disco acaba.
Entra novo personagem. É moreno baixo.
O louro se volta para mim e diz novamente que me conhece. Eu não o encaro. Tenho medo dele. Roberto ameaça fugir. Mas leva uma pancada no meio do rosto. Ele começa a gritar, pede socorro, descontrolado. Regina chora. Artur está quieto. Roberto continua gritando. Não deve haver ninguém há quilômetros dali.
O louro amordaça Roberto. Alguns copos caem no chão. Na luta contra a mordaça Roberto morde a mão do louro, que se irrita e bate nele.
Minhas mãos doem. A corda apertou forte. A quina da cadeira me incomoda, comprimindo a pele do braço de maneira terrível. Lentamente, para não provocar suspeitas, vou-me pondo de maneira mais confortável. Começo um movimento limitado com os dedos para afrouxar a corda, que é de nylon e deve ceder. Não vejo o que estão fazendo atrás de mim, tento manter a calma. Minha cadeira contra a parede, por onde passa o louro. Vejo algo do corpo de Roberto pelo reflexo de uma gravura. Ouço o choro abafado de Regina.
Sou tomado por uma estranha sensação de irrealidade. Não compreendo o que acontece. O moreno baixo examina os meus bolsos, passeia pela sala com uma garrafa de cerveja na mão. É homem fortíssimo. O louro acende um cigarro de maconha, passa para o moreno alto. O louro passa por mim, tem um ar de delírio. Pela primeira vez pressinto a morte.

— Bebe, diz o louro.
— Bebe, belezinha, diz para Regina.

O louro pega Regina no sofá.
— Amarra bem o cara, diz o louro, referindo-se a Roberto.
— Cala a boca, merda! ele grita, pavoroso, para Regina, que chora. De repente vi que aquele menino ia matar-nos a todos.
Ela não se cala, chora ainda mais. Eu ouço os gemidos de alguém com Artur. Mantenho a cabeça baixa, procuro nada ver, em silêncio.
— Eu te mato, puta! Não chora, pôrra!
E sem mais nada dizer, o louro fala: "Vamos". E desapareceram na noite escura.

Nenhum comentário: