sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

O ENIGMA DO ENCANTO LITERÁRIO de Rogel Samuel

ROGEL SAMUEL

O enigma do encanto literário

LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS






PORTUGUESES

A DIMENSÃO DO MAR

Escreveu Fernando Pessoa:

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290). Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa:

Levantou-s' a velida,
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto
Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.
Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc.
Não.
Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo.
« Na noite escreve um seu Cantar de Amigo». Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia amanhecer.
Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver».
E ele «ouve um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver.
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo». Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões:

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro;
Vê-o também no meio do Hemisfério,
E quando desce o deixa derradeiro;

D.Dinis canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar». Aponta o futuro.
Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões.
No maior jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença.
«Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros
eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se
sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nos
navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).


DOCES FANTASMAS




Doces fantasmas esvoaçam os ares dentro de meu quarto. Parecem pássaros, invisíveis voam. Eles passeiam, bailam, mas não aparecem, ou não os vejo, somem nas cortinas da noite, mas me despertam, como no super-soneto de Pessoa:

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

E eu acendo luzes, ouço a madrinha da madrugada. Medito. Ligo a TV, mas logo desisto, desligo. No fim perco o sono, e...:

Mas um terror antigo, que insepulto
Trago no coração, como de um trono
Desce e se afirma meu senhor e dono
Sem ordem, sem meneio e sem insulto.

Acordo. Tento entender o terror antigo, insepulto. Resolvo ouvir música, assim baixinho, no headphone. Afinal é tarde, muito tarde. Perco as horas. Ouço o CD, comprado durante aquela tarde, onde Wilhelm Backhaus, em gravações de 1929 e 1932, toca o concerto n01, de Brahms. O disco ainda estava lacrado.

E eu sinto a minha vida de repente
Presa por uma corda de Inconsciente
A qualquer mão nocturna que me guia.

Backhaus, diz um crítico, está para os outros pianistas com o monte Everest sobre as outras montanhas. «Majestade e sutileza, técnica sobre-humana, presença e graça». Tocou por cerca de 70 anos, e foi um dos primeiros a gravar um disco. Dizem que ele teve duas fases, antes e depois da Segunda Guerra Mundial. Antes demonstrava vitalidade, emoção. Depois, entristeceu.

Sinto que sou ninguém salvo uma sombra
De um vulto que não vejo e que me assombra,
E em nada existo como a treva fria.

Escreveu Backhaus, «quanto mais simples, mais belo». Ele não era chegado às aparições espetaculares. Era modesto, ainda que idolatrado, reconhecido, famoso. Suas interpretações equilibradas, a delícia de seus ouvintes, não para a demonstração de sua virtuosidade pianística.

Depois do concerto volto a dormir. Em êxtase. Os doces fantasmas da música me conduzem a um lugar de extraordinária e lúcida beleza, embora onírica, e «sinto que sou ninguém salvo uma sombra», que «em nada existo como a treva fria».



ÁLVARO DE CAMPOS



No “Livro do desassossego” confessa Fernando Pessoa não estar satisfeito com os versos que escreveu (frag. 217) e que sua obra era má, o que se apresentava como “uma das tragédias da alma”, - obra imperfeita e falhada, reitera ele, eis o máximo da tortura e da humilhação do meu espírito, e pergunta: então, por que escrevo? – e tem uma sua resposta extraordinária: “porque, pregador que sou da renúncia, não aprendi ainda a executá-la plenamente. Não aprendi a abdicar da tendência para o verso e a prosa. Tenho de escrever como cumprindo um castigo. E o maior castigo é o de saber que o que escrevo resulta inteiramente fútil, falhado e incerto”. A dúvida sobre si mesmo é a dos rumos de sua própria vida. O cansaço e o tédio se alternam com exaltações de gloriosa liberdade do desenvolvimento industrial, numa fragmentação e multiplicação das linguagens.

Pessoa, o grande poeta, concentrou em si todas as dúvidas e se viu despido das suas mais caras ilusões com Álvaro de Campos. Desde as odes triunfais à Whitman até as expressões depressivas, ambíguas e marginais, a desagregação subjetiva, a inapetência, «apreendidas no entanto com uma tal concentração e apetência de lucidez, que problematiza e dinamiza a unidade do eu, arreda a cômoda metafísica da substancialidade psicológica e nos leva ao limiar do conceito moderno do eu como projeto de vida a refazer-se e no de sociabilidade. A este problema do “eu” trouxe Pessoa muitas fórmulas inquietantes (“de quem é o olhar que espreita por meus olhos?”; “tenho um medo maior do que eu”), ligando aliás o desgarramento da unidade pessoal, a frustração individualista, à falta de simpatia social, à não-compenetração de que “os outros também são eu” (SARAIVA & LOPES. História da Literatura Portuguesa, p. 1048-1050)

Ali, em Álvaro de Campos, rompeu com a evolução de seus espelhos, confessou todas as suas mentiras, exteriorizou todas as vestes de sua alma, livrou-se do que não sentia, do peso de seus segredos, mentiu a si próprio revelando a sua verdade, exprimiu-se para errar, nas suas técnicas de sonhos e de consolações. Sofreu não ter mais tantas esperanças vãs. Releu algumas páginas do que escreveu e se decepcionou. Suas velas vãs lhe fogem, cada uma num sentido. Por isso, Álvaro de Campos experimenta as emoções contraditórias. Agressividade e pessimismo.

A «Ode Marítima» diz Alfredo Margarido, «remete para um universo particular, o da pirataria ou da guerra do corso, e o excesso desta actividade, a carnagem sanguinolenta, parece remeter, para o universo da antropofagia que tão frequentemente marcou a guerra dos mares. Antropofagia tanto mais cruel quanto o mar é o lugar onde o homem sobrevive mal, quando consegue fazê-lo. Daí que a língua crua dos piratas pareça confirmar o carácter profissionalmente antropofágico da primeira parte» - « Podemos já entendê-lo perfeitamente neste poema de Álvaro de Campos, mesmo se Fernando Pessoa nunca cita, na poesia ortónima o texto de Stevenson. O que podia levar a pensar em formas de dissociação psíquica, capazes de permitir, ou de impor a fragmentação da memória. Trata-se quase de um problema clínico, que não pertence ao âmbito deste comentário. Não posso todavia deixar de enunciar esta problemática interna à constituição das personalidades de cada um dos heterónimos, sobretudo face a esta nova possibilidade de leitura de a Ode Marítima. Tratando-se, como se trata, de uma operação sempre perigosa, creio que me limitarei a enunciar esta problemática. Receio, como tantos outros, que em nome de elementos exteriores, se quebre o mecanismo insubstituível do imaginário, em proveito das nosologias psiquiátricas ou psicanalíticas. Sem, todavia, esquecer a importância da contribuição psicanalítica para uma melhor compreensão da função e dos mecanismos desses imaginário». (In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 111. Lisboa, 21 de Agosto de 1984). « Significativamente, nem na obra de Alberto Caeiro nem naquela de Ricardo Reis encontramos a menor alusão ao tema da loucura, enquanto que Álvaro de Campos conserva, como veremos, vestígios do decadentismo e mantém o tema da loucura», diz Georg Rudolf Lind (In JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 95. Lisboa, 01 de Maio de 1984).

Em Campos, a loucura é a utopia.
Mas, que mais queria ele? Depois de ter escrito os mais belos versos da língua portuguesa, a que maior altura desejava ele se alçar?

Álvaro de Campos, mais radical heterônimo foi também o mais próximo do seu próprio nome. A radicalidade do «sensacionismo» provém do futurismo de Marinetti.
Talvez Campos estivesse pensando nos seus amores fracassados, na solidão de sua extraordinária alma; talvez estivesse pensando no seu Marinheiro, “ainda não deu hora nenhuma...” e as três donzelas velam a virgem morta, um resto vago de luar... e as mãos não são verdadeiras nem reais... mas mistérios que habitam na nossa via, a nossa vida... “às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... veio um dia um barco... veio um dia um barco... - sim sim... só podia ter sido assim... veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro, de eterno e de belo apenas o sonho... só viver é que faz mal... não rocemos pela vida nem a orla das nossas vestes... não, não vos levanteis... isso seria um gesto, e cada gesto interrompe um sonho... neste momento... ”

“As horas têm caído e nós temos guardado silêncio.
Por mim, tenho estado a olhar para a chama daquela vela.
Às vezes treme, outras torna-se mais amarela, outras vezes empalidece.
Eu não sei por que é que isso se dá.
Mas sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?...”

No “Livro do desassossego” ele conta que não está satisfeito com os versos que escreveu e que sua obra era má e se apresentava imperfeita e falhada. Talvez estivesse fazendo imaginação e outridade. Uma grande alegria, cheia de repouso e liberdade paira em Álvaro de Campos. Tardei sempre, disse. Desejo apenas conseguir o que os outros conseguiram. “Nunca tive a arte de estar vivo ativamente. Fui o devaneio do que quis ser. O meu propósito foi sempre a ficção do que nunca fui”, conclui ele. “Tive desejos, mas foi-me negada a razão de tê-los”.


RICARDO REIS E JOÃO CABRAL

ABRE A BOCA UM SILÊNCIO ENORME



Pois de Ricardo Reis canta certa ode, digo Pessoa, nos meus ouvidos sempre que penso em morte que me diz:

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

De meu mestre Euryalo Cannabrava certa vez contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, hipotética morte, ele a previa, com data e hora marcada, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e logo seus problemas se diluíam, nada resiste à morte, à Ela, - a suprema! - que «tão cedo passa tudo quanto passa!» e sem a morte a vida seria uma chatice, repetitiva e cruel.

Nesse sortilégio o nada mortal vai da invenção de palavras, criatura de uma rosa eterna, para além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna, neste mundo, - curiosa antítese.

A morte, entretanto, é coisa séria, como o que «contam de Clarice Lispector» de João Cabral:

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?




ANTONIO NOBRE

Ó VIRGENS QUE PASSAI AO SOL POENTE



É assim que diz o famoso soneto de Antonio Nobre:

Ó virgens que passai, ao Sol-poente,
Pelas estradas ermas, a cantar!
Eu quero ouvir uma canção ardente,
Que me transporte ao meu perdido Lar.

Cantai-me, nessa voz onipotente,
O Sol que tomba, aureolando o Mar,
A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

Cantai! cantai as límpidas cantigas!
Das ruína do meu lar desaterrai
Todas aquelas ilusões antigas

Que eu vi morrer num sonho, como um ai...
Ó suaves e frescas raparigas,
Adormecei-me nessa voz... Cantai!


Antônio Nobre é poeta simbolista, portanto no seu famoso soneto, o «sol-poente» nos deve remeter a «algo», deve escamotear o sentido, para alguma outra natureza, esconde o que diz.
Não seria a velhice, pois o poeta morreu jovem, com 33 anos, em 1900.
Talvez as virgens, úberes, fartas de potencialidades, a ser fecundadas na «fartura da seara reluzente», gozosas, obreiras dessa tarde, desejantes, grávidas de prazeres, vitalidades...
Mas, por que «o sol poente»?
Por que não o despertar, o meio-dia, o pleno sol da tarde?
E, sendo «poente», por que «ardente»?
E sendo «ardente», por que tomba, por que cadente, no meio dessa seara reluzente?
E se «virgens», por que «o vinho, a Graça, a formosura, o luar!»
Sim, que de mistérios vive a poesia.
Engana o/a leitora, engana-se o/a leitora, que pensa estar, apenas, o sujeito do poema lastimando o seu «perdido lar», as suas «ilusões antigas», as ruínas do seu lar.
Sim, é certo.
Certo, certo de que tudo isso é assim, também.
E o que o poeta Nobre não se deve confundir com a pessoa Nobre.
O «personagem» do poema pode ser um velho.
Mas velho possante («O Sol que tomba, aureolando o Mar»), rico de vida, de vitalidade («A fartura da seara reluzente»).
A força, a beleza do poema reside no contraste: «suaves e frescas raparigas» X «ruína do meu lar».
E sua canção é o hino que desperta «todas aquelas ilusões antigas».
A oposição e o sentido está nas belas rimas poente-ardente, cantar-lar, onipotente-reluzente, mar-luar, cantigas-raparigas, desaterrai-cantai.
São rimas significativas, verdadeiras pontes de significação, irradiam sentidos.
Sim.
Sim, tudo isso «eu vi morrer», de súbito, sim, o lar despedaçado.
E o poeta precisa morrer, dormir, esquecer, fugir daquelas lembranças do passado familiar, feliz, longe daquelas «estradas ermas», lar que era «sol», «mar»,

A fartura da seara reluzente,
O vinho, a Graça, a formosura, o luar!

O poema se encontra consigo mesmo. No fim.
Toda a fantasia da dança feminina, ao cair da tarde, seus cantos, suas suavidades reluzentes no conjunto desses evocativos versos.
Afinal são fantásticos dias de infância recuperados ao sol poente. Na voz daquelas raparigas virgens, que passam, como passaram as vozes familiares das mulheres da infância, das irmãs, mães tias avós que passaram todas pela estrada.
O lar é isso. Conjunto de pessoas.
Não lar-casa. Mas grupo familiar.
Ó Primas e Irmãs, ó virgens, cantai! Esta é a canção. O poema envolve sonoridade corredia: é poema para ler lido alto, em voz alta.
Poesia alta, graça, frescura, leveza. Aureolando o Mar, límpidas cantigas.
Fartura do canto daquelas ilusões antigas de um passado, das lembranças da infância do seu perdido lar.



FLORBELA ESPANCA



Para Florbela Espanca a dor é, e estranhamente, um convento. No seu famoso soneto «A minha dor», escreveu ela: « A minha Dor é um convento»:

A minha Dor é um convento ideal
Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.
Os sinos têm dobres de agonias
Ao gemer, comovidos, o seu mal...
E todos têm sons de funeral
Ao bater horas, no correr dos dias...
A minha Dor é um convento. Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!
Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...

Florbela era mulher bonita e uma extraordinária poetisa. A maior de seu tempo. Chamava-se Flor Bela de Alma da Conceição. Mas seu sucesso é posterior e recente. Otto Maria Carpeaux não a conhece, na sua gigantesca História da Literatura Ocidental. A arte de Florbela é antiquada, seu «Livro das Mágoas», publicado em 1919, livro não modernista numa época em que apareceu a Bauhaus, em Weimar, fundada por W. Gropius, em que aparece Miró, com seu «Nu com espelho». Ela continua cultuando o velho soneto à moda parnasiana. Hernâni Cidade referirá "a violenta contradição entre o conceito de poesia de duas épocas distantes ou próximas". Mas é, possivelmente, António Ferro que, em artigo do Diário de Noticias, logo em Janeiro de 1931, chama a atenção para a poesia de Florbela.

O primeiro verso canta:« A minha Dor é um convento ideal». Como interpretar esse verso, esse convento? Talvez pela solidão, abandono... mas isso é uma deformação do sentido ideal de convento. As freiras lá não estão senão porque comungam e comungam com Deus, com Cristo. Um convento doloroso é uma contradição de termos, idéia de que alguém lá tivesse sido colocado à força, algo como uma prisão solitária, vazia e sinistra. De forma que esse verso, « A minha Dor é um convento ideal» determina as significações do inteiro soneto. E mais:

« Cheio de claustros, sombras, arcarias,
Aonde a pedra em convulsões sombrias
Tem linhas dum requinte escultural.»

- mantém um segredo, ou melhor, uma «bela» contradição, pois que, se ali há claustros, sombras, a pedra em convulsões sombrias, há também «requinte», ou seja, apuro, refinamento, elegância, esmero, elevação, perfeição, volutas simétricas, arcos belos de pedras convulsionadas, Florbela transpôs, contagiou o seu secreto claustro com toda a sua sensualidade feminina, com o seu erotismo amante, esses arcos nada místicos ou de um misticismo tântrico, amoroso, sexualizado, corporal, poderosamente inscrito nas paredes, reescrito nas curvas, nas ancas, nas pernas daquela construção ideal e reservada à sua agonia amorosa, onde « os sinos têm dobres de agonias Ao gemer, comovidos, o seu mal...», o seu pecado, o seu som de funeral. Há lírios, mas belos, há:

«Há lírios
Dum roxo macerado de martírios,
Tão belos como nunca os viu alguém!»

Florbela contradiz o seu misticismo feminino, a beleza mística, na solidão final de seus versos:

« Nesse triste convento aonde eu moro,
Noites e dias rezo e grito e choro,
E ninguém ouve... ninguém vê... ninguém...»

- onde se ouvem os sinos tocarem, nesses «em» que três vezes se repetem, em ninguém.

Filha ilegítima, nascida em 8 de dezembro de 1894, Florbela se mata em 1930. Chamava-se Flor Bela de Alma da Conceição. Não foi pobre, teve 3 maridos e 2 divórcios, algo incomum, na época. Estudou Direito, em Lisboa. Culta. Editou seus próprios livros: «Livro de mágoas» em 1919, e «Livro de Soror Saudade», em 23. Não era conservadora, como disse. Mas avançada para seu tempo. E feminista. Era. Matou-se. Sua morte ela o anunciou em carta. Não conheceu o seu grande sucesso posterior.


VIEIRA

Vieira é brasileiro. Veio com 6 anos de idade, aqui se fez, aqui aprendeu. Do seu extraordinário saber se conclui que a educação no Brasil em 1600 era melhor do que hoje. Estudou ele no Colégio da Companhia de Jesus da Bahia, só conheceu Portugal com trinta e tantos anos. Vieira brasileiro, sim. Falava com sotaque brasileiro, usava modismos de linguagem do Brasil, visitou o país, foi até ao Amazonas. Com Gregório de Matos, ele é o gênio do nosso
barroco. Não se zanguem os portugueses. Temos vários leitores portugueses que lêem as crônicas de sábado. Estão na lista.
Gentilíssimos. O que os portugueses podem advogar contra o "nosso" Vieira é o nosso descaso. O descaso do Brasil com seus mitos.
Um dia, estava no apartamento do Senhor X, famoso escritor, jornalista e político maranhense. Via-se que era homem rico, de tradicional família de políticos. Estávamos numa daquelas intermináveis reuniões de esquerda. Presentes ali lideranças políticas, representantes da "sociedade civil" (como se dizia na época), músicos, artistas plásticos, escritores. O apartamento do Senhor X, amplo, ricamente decorado, frente para o mar, ocupava vastamente o andar inteiro da Av. Atlântica. Grande salão, onde estávamos, ao fundo majestosa, imensa biblioteca. As discussões entraram pela madrugada. Eu me enfadei, bocejava, palavras, palavras: estávamos ainda no regime militar. Sempre me canso em situações daquelas. As lideranças se entrechocavam. Orgulhosas e brilhantes.
Onde há muitos líderes, o embate é certo. Na época ainda acreditava que somente a "revolução" podia mudar alguma coisa. Era algo mítico, heróico: eu, que não matava um inseto, sonhava com revolução branca, pacífica, democrática. Pelo voto! Então, uma coisa me intrigou: como aquele homem, o Senhor X., que era sólido intelectual respeitável, podia ostentar, em suas paredes, somente reproduções em papel de famosos quadros da pintura nacional, como Volpi, Djanira e Di Cavalcanti? Intrigado, levantei-me e fui por o nariz nos quadros e vi, terrificado, que as telas eram mesmo verdadeiras. Aquelas paredes valiam um museu! Fui examinando um a um os quadros, espantado de emoção. Pinturas famosas, que todo mundo conhece, pois estão nos livros de arte conhecidos. De repente, pressinto que havia alguém atrás de mim. Era o Senhor X.
- Mas o que tenho de mais valioso, disse-me ele, não está aqui. "Venha ver".
E pegando-me autoritariamente pelo braço me conduziu por uma série de salas e corredores do apartamento até um gabinete de trabalho, relativamente pequeno. Na parede havia uma peça de madeira trabalhada em altos-relevos,com motivos religiosos, galhos, folhas e frutos.
- Sabe o que é isto? perguntou ele.
- Não sei, respondi eu.
- Isto é o que sobrou da porta da Igreja da Companhia de Jesus, no Maranhão, onde o Padre Vieira pregou durante vários anos. A Igreja foi demolida!





LAVRADORES BEM-AVENTURADOS!




A famosa Elegia de Camões que começa com 'Poeta Simónides, falando' tem para nós especial importância pois é lá que se vê pela primeira vez a beleza digamos ecológica.

Qual beleza? A beleza desses versos:

Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!

É um trecho da Elegia, um comentário. Depois
de relatar as suas agonias e experiências más como marinheiro, como amante e soldado, o grande poeta suspira pelo bucólico paraíso do campo:

Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!

E começa o encantamento da terra: ' Dá-lhes a justa terra o mantimento ' - das águas: ' dá-lhes a fonte clara a água pura ' - das casas

se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.

É tudo o que o poeta nunca teve: a paz do campo.

Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,

A mansidão de um lar, que parece nunca Camões teve:


Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!

O poeta chega a fazer a apologia da simplicidade:

Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.

Camões sabe ser terno, e fazer no verso simples o imortal cantar de uma felicidade de calma, de paz:

Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:

O que é a sua meditação de um simples repousar, do ' descanso honesto '.

Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o Céu sereno.


Os lavradores ' Não vêm o mar irado, a noite escura, /
por ir buscar a pedra do Oriente; / não temem o furor da guerra dura.'







QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?



A leitura do romance histórico de Aydano Roriz, O DESEJADO, me fez reler a terceira parte da MENSAGEM de Fernando Pessoa.

'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus

O romance me surpreendeu. Em vários pontos.
O autor diz que o jovem rei era hermafrodita, e por isso não se casou.
Seu cadáver foi embalsamado em Marrocos, e anos mais tarde resgatado por Felipe de Espanha.
Oh, tudo é mistério, e não 'haverá rasgões no espaço / que dêem para outro lado'...
Romance intrigante, momentos de rara beleza. Mas volto ao mito. Prefiro o mito.
Sou, a meu modo, um sebastianista: Durante 15 anos minha amiga X. pagou todas as prestações de seu apartamento com a pontualidade que somente mulheres honestas sabem ter, e ao fim e ao cabo o Banco (particular, o maior do Brasil) lhe disse que ainda devia o preço total. Ela não tinha o dinheiro: Não consegui convencê-la do contrário - ela vendeu o imóvel e pagou pela segunda vez a mesma dívida... (mais pagaria se não fosse, para tanto pagar tão curta a vida...). Por isso Camões entregou seu poema a D. Sebastião.
O jovem rei no livro é rapaz extremamente religioso, pudico, puritano, que se delicia em matar porcos na cozinha, em assistir às sessões de tortura, ao suplicio dos condenados. Havia condenados pelos mais extremos e hediondos crimes, como o crime da masturbação etc.
A obsessão do rei de matar-mouros lembra certo presidente de nação distante, hoje. Conflito que vem de longe, entre nossa boníssima civilização cristã e a dos cruéis árabes pagãos. Mas:

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Devemos a D. Sebastião o nome da nossa cidade do Rio de Janeiro.

Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

---------------------------------------------------------------------------------------

Acabo de assistir ao filme de Karim Ainouz, Madame Satã. Quase um grande filme. Fotografia luxuosa. Cenário da Lapa fantástico. O jovem ator Lázaro Ramos convence em tudo. Ainda não vi Cidade de Deus, filme extraído do romance de Paulo Lins, meu ex-aluno na Faculdade de Letras da UFRJ. Conheci João Francisco dos Santos, ou Madame Satã. Na Ilha grande, onde acampei no início dos anos 70. Já bem velho, mais de 70 anos, ainda bem forte.
O filme, porém, não deprime, é positivo, levanta o moral brasileiro. É apologia do espírito nacional. As cenas de sexo nada acrescentaram porém, e umas senhoras da platéia muito se incomodaram com elas. Mas não é nada explícito, somente beijos e navalhadas. Madame Satã, afinal, morreu velho, realizado, em paz, no Abraão, povoado da Ilha Grande, onde o vi. Feliz.
Hoje teria sido logo morto. Não antes sem uma sessão de tortura piedosa.
Satã deve ter sido descendente de rei africano: orgulhoso, imbatível, não se curvava. Nem à polícia. Duplamente discriminado, foi uma espécie de Zumbi na Lapa. Em suas memórias, ditadas a um jornalista do Pasquim, ele não fala de seus amores, de sua privacidade.
Num país onde a discriminação é mais forte hoje do que naquele tempo devido a Aids, ele era fiel a si mesmo, preferia a morte à humilhação.
O filme não conta que pôs a nocaute vários marinheiros, que invadiu uma delegacia para quebrar cara de delegado, etc.
Talvez seja Mito.
Prefiro o Mito.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

















BRASILEIROS ATÉ O SIMBOLISMO

CASIMIRO DE ABREU

A POSSIBILIDADE DO SONHO

Ora, quem sonha são os poetas, principalmente românticos, que sonham «as ilusões perdidas»:

Minh’alma é triste como a rôla aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gôzo
Relê as fôlhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
- Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque mas a minh’alma é triste!

Como toda ilusão, a realidade já nasce «perdida», e os românticos lastimavam que, em verdade, não encontravam a materialidade de seus sonhos. Ou seja, a vida concreta (se se concede falar assim – e só em crônica se pode) não corresponde ao sonho abstrato, e aqui os gozos, os prazeres, os brincos (os brinquedos), os amores, no campo ou na cidade não correspondem ao idealizado pela imaginação. Por isso, «a minha alma é triste».

No poema de Casimiro de Abreu se ouve, até mesmo, um OH! – esta exclamação lamentosa - rola, bosque, acorda, albor, aurora, soluço, morto, esposo, chora etc. – uma série de oooos, todos lamentosos acentos.
Incompatibilizados com o mundo, não é sem razão que os românticos acabem morrendo tão cedo. Morrem de inanição espiritual, depressão. Sucumbem à glória do capitalismo da primeira revolução industrial.
A poesia (mas nem sempre) pertence à categoria dos sonhos:

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!
(Diz Goethe, na belíssima tradução do mestre João Ribeiro.)

Sim, esta é a região dos sonhos. Lá, bem longe, além. Lá é melhor. Para lá é que devemos ir, escapar, fugir. Lá está tudo o que é belo, perfeito. Lá está a felicidade. Não a conheces tu, leitor e leitora? Será que existe mesmo?
Mas... não percamos as esperanças.






ALBERTO DE OLIVEIRA

ELA, LUZ CLARA DO DIA; ELE, ESCURIDÃO DA NOITE


Sim, Alberto de Oliveira exibe poesia visual, apresentadora, cinematográfica, descritiva, clássica, seu soneto «Cheiro de espádua» possui música, perfume, perfume de mulher, festa e orquestra, som, brilho, claridade, paixão, desejo, luz, sabe a Proust, a «belle époque», a luxo, luxo romântico, a Sarah Bernhardt, um luxo adolescente, jovem, sonho, delírio, valsa, rosas, rosas vermelhas.

«Quando a valsa acabou, veio à janela,
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava.
Eu, viração da noite, a essa hora entrava
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela
Carne rosada um mimo! A arder na lava
De improvisa paixão, eu, que a beijava,
Haurí sequiosa toda a essência dela!
Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira
Sigo, até que a perdi, de seu perfume.
E agora, que se foi, lembrando-a ainda,
Sinto que, à luz do luar nas folhas, cheira
Este ar da noite àquela espádua linda!»
O primeiro verso - «Quando a valsa acabou, veio à janela» - enverga, declara a perfeição clássica, a simplicidade do gênio, é um verso aberto com acento na sexta, ---------------- 6 -------- 10 , um decassílabo perfeito, heróico, camoniano, escorregadio como as valsas, volteia com a saída das moças da sala, virgens, perfumadas e com aquela, que veio até a sacada, respirar o ar fresco da noite, o ar fresco das estrelas, o hálito que desce das estrelas, que desce das luzes estelares, que desce com as fadas, as madrinhas, a pulsação, a palpitação do universo, das esferas que movem o céu, o sol e as outras estrelas, a juventude e seu amor, seu nobre amor.
«Quando a valsa acabou... » são sons dos aa do amor, seis aas desse danúbio azul das flores de laranjeiras brasileira, ã – a – a – a – a – a – ou, «Quando a valsa acabou, veio à janela» - aquela valsa do amor do poeta, do amor poético, irisado de brilhos e vidros reluzentes, lustres de vitrine, vista da que veio à janela.
«Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava. » - são três segmentos da respiração arfante, da respiração difícil, ofegante, o sorriso da menina no bater do leque do ritmo dos espasmos de seu coração gozoso, prazeroso, sensual da virgindade em perigo, e o poeta, pronto para o ataque amoroso, para o estupro poético, para o noturno de beijos, sim, que é mais que beijo, porque nas espáduas, nos ombros, do «eu, viração da noite, a essa hora entrava / e estaquei, vendo-a decotada e bela», sim, o poeta entrava, descia, vinha pelo decote pela janela pelas fímbrias do amor – cavaleiro da noite, amante visitante da noite – pois se ela veio da luz e da valsa – ele veio da noite e da viração noturna, agressiva, pecadora, mortal: o seu desejo é cego, arde no fogo na lava da carne rosada rasgada e improvisada da paixão da sala - «eram os ombros, era a espádua, aquela / Carne rosada um mimo! A arder na lava / De improvisa paixão, eu, que a beijava, / Haurí sequiosa toda a essência dela! ».
Então ela foge velada, escondida pela mantilha, e ele a segue pelo o rastro do perfume da carruagem de seu cheiro que, sim, continua na noite no luar no ar da noite aspirando-a numa masturbação poética à luz do luar, sim, cheiro de fêmea, do seu colo onde o olhar se precipita vai para o abismo de seu segredo. Sim, deixei-a porque a vi sair velada pela mantilha, a esteira, a perdi, o seu perfume, oh, agora, que se foi, lembrando-a ainda, sinto-a ainda à luz do luar das folhas, no cheiro desse ar da noite oh, aquela espádua linda.
Todo desejo é visual, é pelos olhos que começamos a atividade desejante. Ombros, espádua, a carne rosada, Alberto de Oliveira abre o leque e revela, ostenta, a sua poesia visual, apresentadora do amor visualizado no colo nos ombros da amada, e tomando a parte pelo todo desce até o último íntimo ventre da noite de seu desejo. Até haurir a essência...





MACHADO DE ASSIS

O METRO ADVERSO


Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:


Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"

O que acontece é que o famoso «Soneto de natal», de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possui algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto «corretamente», e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal.

O tal soneto começa com um indefinido: «um homem»... Um homem não é um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no dia de natal, lembrando-se da infância, e «a viva dança, e a lépida cantiga», esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário o soneto não teria nenhum sentido estruturante.
Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de «noite cristã etc» que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se fie o leitor nessa estória comovente de «verso doce e ameno», isso é pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o «metro adverso», a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia, apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"

Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século, tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente «beleza» perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela «noite amiga», naquela «noite cristã», naquele «berço do Nazareno», quando «sabemos» ou desconfiamos de que Machado não está falando sério, de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional brasileira...

E foi assim que este soneto se tornou um clássico.





FIM DE TARDE


Fim de tarde. Leves passos me levam pelo calçamento da rua Gonçalves Dias. Passos lentos, na imaginação dos versos: «Se se morre de amor! — Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos».

Amor! delírio — engano... Sobre a terra
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d'almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?

Um homem me passa um adesivo eleitoral que o ponho no peito, meu candidato. Deve perder. A militância de braços cruzados. Fico imaginando se, alguma vez, Gonçalves Dias passou por aqui, pela Rua Gonçalves Dias. Gênio, publica «A canção do exílio», com vinte anos – único poema que entrou no Hino Nacional Brasileiro, suprema glória. Foi professor em Niterói. Olho as casas. Que segredos escondem elas? Que histórias nos poderiam revelar?
Gonçalves Dias foi amante fracassado. Viajou pelo Amazonas, pelo Madeira e pelo Negro. Podia ter lá encontrado cabocla risonha, como são, mas fixou-se em Ana Amélia, de 14 anos, recusada por ser ele mestiço. E bastardo.
O mesmo aconteceu com Dona Clarisse Indio do Brasil. Que se apaixonou por um mestiço, o Almirante Indio do Brasil. Ela era uma Condessa Laje, como escreveu sua neta, a escritora Clarisse de Oliveira: «Clarisse Lage nasceu em 4 de abril, talvez no ano de l869. Casou-se contra a vontade da família com Arthur Índio Do Brazil e Silva, em 23 de Janeiro de l893». Arthur foi Chefe de Segurança no Pará, Presidente do Conselho de Intendência de Belém, Deputado Constituinte Federal, Almirante e Senador, e em 23 de dezembro de 1925, feito Marquês pelo Papa.
D. Clarisse teve morte trágica. Quando se rompeu seu colar de pérolas e, recolhidas, nenhuma faltava, ela disse: "Nem mais um dia de vida - a morte está próxima".
Foi morta por um viciado em cocaína e alcoólatra, no dia 6 de outubro, às l8:30 horas, no centro da cidade, esquina da Rua do Ouvidor com a Ourives.
Talvez fosse um crime político, de um louco terrorista da época: Ela era rica e aristocrática, e o assassino tinha passado pela Escola militar, reduto republicano. O Senador tinha um escritório na Rua da Alfandega, 94. Clarisse costumava buscar o marido no trabalho todas as tardes. Quando o "Landaulet" estacionou, ouviu-se um tiro, e apareceu o "toillett" azul da senhora Indio do Brazil. Ela estava com a mão esquerda sobre o peito e a direita agarrada ao trinco da portinhola.
Morreu dias depois. Nas suas últimas palavras, pede perdão ao assassino. Diz ao marido: "Perdoa, Coração!" E morre.
Antes de morrer, Gonçalves Dias encontra Ana Amélia, que passa por uma rua, já casada. Escreve: «Enfim te vejo! — enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri.» Mas ela finge não vê-lo, não o conhece: «Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Olha-me bem, que sou eu! Nenhuma voz me diriges!... Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; És doutro agora, e pr’a sempre! Eu a mísero desterro Volto, Adeus qu’eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus!»


Sou atraído pelos sons de estranha música. Vêm da Confeitaria Colombo. Entro. Olho deslumbrado para dentro dos grandes espelhos, maiores agora na escuridão da noite. Dentro dos espelhos, os mortos aparecem de sobrecasaca.


TENREIRO ARANHA


Poucos poetas foram tão misteriosa, inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico, que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga, primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas). Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a algum ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria Bárbara, mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O interesse pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era tema de literatura.
O famoso soneto do primeiro artista autenticamente amazonense é esse:

Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.


Ora, quem fala é a vítima, já cadáver feita. Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo bem tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém, pardo, na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta, corpo morto.
O cadáver tem um recado a dar. Um recado, uma nova, uma notícia dela para o esposo aflito, que, se aflito não a sabe morta. “Leva piedoso”, significa, “por favor, por piedade, diz para meu marido que morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da “mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz que preferiu a morte à “mancha conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o alívio à dor amara.
Hoje, Tenreiro Aranha é rua de Copacabana, rua sem saída, que começa na Siqueira Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro soneto, canta o poeta:

Passarinho que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija, como aflige ao delinqüente;
Fácil sustento e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz limitando-se ao presente.

Não assim, ai de mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade
Sinto também do crime o peso horrendo...

Dos homens me rodeia a iniqüidade
A calúnia me oprime, e, ao fim tremendo
Me assusta uma espantosa eternidade.

Note-se que há dois Aranhas: Além do poeta, que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, existe seu filho, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a Catedral, que não é bela, mas imponente. Dizem que foi construída com trabalho escravo indígena. Nesta época Manaus se torna centro político. Começa o comércio da borracha e piaçava.
` O poeta cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou na lavoura, junto com os escravos.Com doze anos inicia estudos com um vigário. Interno no Convento de S. Antônio de Belém. Os bens familiares do menino foram “confiscados”, literalmente pelo Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi nomeado para um cargo público, foi demitido por intrigas políticas. Depois, o Conde dos Arcos, Governador do Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era um erudito, tinha sólida cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo soneto louva a “inocência”, logra docemente os prazeres da amável inocência, “livre de que a culpada consciência / Te aflija, como aflige ao delinqüente”. É obra leve, bela, clássica. O tema, bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros prever, tua existência / É feliz limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é arcádico. Não é amazônico. Nada mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com seus espinhos, insetos, aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e pântanos. Não, não se tem ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil sustento e sempre mui decente”. Não, isso não é amazônico.




DO AMOR

O amor depende de condições. Exige duas pessoas. Nem uma, nem três, quatro, cinco. Seu número fixo é dois.
Exige coincidência de duas vontades. Mútuas. Não uma que dá, outra que recebe. Ou o contrário. Tem de haver recíproca vontade. Mão dupla. Nem atração. Mas vontade mútua.
Se há possuidor e possuído, não há amor. Mas sado-masoquismo.
O amor não é infeliz, quando ativo. Amor existente, e infeliz, é contradição de termos. Como um quadrado redondo. Se há amor, há felicidade, instantânea, imediata, mesmo passageira (e qual felicidade não é passageira?). Energia, liberdade.
No amor não pode haver prisão. Há controle? Não há amor. Há fraqueza? Amor não há.
O Padre Vieira define, sabe bem o amor. Ainda que Padre não ame, como nós, leigos, ele conta do amor místico. Mas é amor, e, em certo sentido, êxtase. O amor é êxtase. (Abro um parêntese: Com o levantamento de casos muito antigos colocados nas manchetes, nas capas das revistas, que serve para enfraquecê-la, a Igreja deve atualmente estar sofrendo uma retaliação política. Não é preciso ser cientista político para saber por quê).
Na época de Vieira, o Brasil era "paraíso" do amor. Não havia pecado debaixo da linha do Equador (pecado mata o amor, ao nascer). Todo amor é puro. Principalmente o sexual. Nosso clima brasileiro, praias, frutas, a cândida nudez indígena, o exotismo, o afastado das gentes... O Brasil nasceu sob o signo do erótico. Basta ler "Casa grande & senzala", de Gilberto Freire.
Vieira, grande padre, grande pregador moralista, deve ter mantido a castidade. Mas a castidade do amor também é amor.
O amor não se corrompe, não se compra. Não tem idade, sexo, limites. Nem é cabível em definição. Não é conceitual, teorético. O poetas são os que dele dão conta. Definem os amantes, que "se amam cruelmente, e com se amarem tanto não se vêem", diz Drummond.
Em "Amor e medo", o poeta Casimiro diz do amor:

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amôres:
— Meu Deus! que gêlo, que frieza aquela!”

Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segrêdo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor - eu mêdo!

Tenho mêdo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas sêcas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

Eis Amor. Tememos amor. É a dissolução do "eu". Quando amamos, mergulhamos em abismo. Nos perdemos. A felicidade apavorante do amor. Que quer tanto, é tanto, que eu, um reles cronistazinho de fim de semana, e pretensioso, meti-me a falar do que não sei, do amor, caindo no ridículo de todo amante.
Certo é, e também, que há amores trágicos. Ou tragédias amorosas. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda.
Certa vez tentei assistir a uma impressionante adaptação de Romeu e Julieta. Ele era um jovem palestino muçulmano; ela era uma menina judia israelense. Em plena guerra! Atravessando barreiras e fantasmas!
Num dos mais belos poemas de amor, Tristão e Isolda, Wagner diz mais ou menos assim: "Para matar-me basta que ele me olhe! Se eu vir a tristeza de seus olhos, seu olhar penetrará meu coração como um punhal!" Eis o grande Amor, acima da vida e da morte, sobre as limitações humanas!
O amor, nobre, importante sentimento, que, como toda Arte, só aprendemos na Obra de Arte. A arte nos ensina a amar.
Ou então, como disse certa vez Drummond: "Amar depois de perder". Aprendemos depois da perda.
"Triste sina, estranha condição".
(Diz Camões).



CANÇÃO DO EXÍLIO




Todos conhecem esta canção de Gonçalves Dias. É hino nacional. Mas alguns não percebam ainda quanto de poesia ela tem.

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

O que salienta é o ritmo da redondilha, associado com umas sonoridades vocais nascidas das evocações das palmas, dos pássaros, dos cânticos.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

O excessivo "nosso" - plural socialista - sentimento nacional, visual, ecológico das estrelas no céu brasileiro, das flores nas várzeas, dos bosques, da vida, dos amores tropicais.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Solidão, saudade (exílio). O refrão chama para a praia. Opõe-se um "cá" com um "lá": prazeres e primores se opõem à morte. Se há, é a poética da simplicidade, da humildade. O poeta compôs uma canção a partir dos menores elementos, dos mais simples planos. Compare com, Bilac: "AOS SINOS".

Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais vasta,
Para trasmigrações, para metempsicoses!
Cantai, sinos! Daqui, por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!
Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!
Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

A beleza aqui é a das sonoridades vastas. E assim, também:


"Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht’ich... ziehn."
(Goethe)

"Conheces a terra onde florescem os limoeiros,
Onde laranjas de ouro ardem no verde-escuro da folhagem?
Conheces bem? — Ali, ali!
Eu desejara estar."












MODERNISTAS ETC


MURILO MENDES

PEDRA E ÁGUA


Toda vez que se lê um poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados dos pontos cardeais, e tudo, cada leitor pode ler-se ali, ver-se ali, ir por ali para um ponto desconhecido. É o poema 'Pedra e água', de Murilo Mendes:

Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.

O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra

Ora, o que é esta 'mulher sem fim'?
Será a mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe natureza eternamente produtiva e úbere de vida renovável, abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas se inunda no infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na atemporalidade, no espaço largo e no espaço tão amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas, na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher básica e buscada, retratada na memória, a mulher futura ou possível, a que vive dentro de nós mesmos como o Outro Obscuro e Insaciável, aquela que não existe no mundo externo, porque no externo não está mais do que no aquém do objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é essa que é sem fim, e portanto sem começo, que tudo o que termina começou um dia, e se não tem término não nasceu, é a não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a ser, a aparecer, a crescer.
Oh amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te encontras? Por quem és, responde, acontece, mostra-me o mapa e o rosto da rota a via de acesso para a tua realidade, infinita amada?
Esta mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a todas as noites, nas noites insaciadas sobre outras noites, aquelas que se sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se retira nunca?
Ela é a musa, o motivo do poeta, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção, a criadora e a mãe que socorre.
«Essa mulher sem fim, e a noite sobre a noite» - só, em si, é uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas lástimas e alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas.
Sim, essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas carícias e idas, superfícies e sedas, nas redes, máscaras e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca esquecida, dessa raiz funda no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade, de nome familiar em solidão,
Caminhamos a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas vagas desse trafegar oceânico pelos descaminhos de nossas aspirações e esquecimentos.
Essa mãe é a família e a natural beleza da nossa moldura e mito, pátria e lar.
Espuma do mar eternamente e a pedra.



LEDO IVO

A VÃ FEITIÇARIA


O feiticeiro Lêdo Ivo escreveu:

Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.
Invento o espelho e, mais que o espelho, o amor
onde eu me vejo, vivo, num sarcófago.
E a vida, este galpão de sortilégios,
deixa que eu a invente com palavras
que são dragões vencidos pela mágica.
E não me espanta que eu, sendo mortal,
sujeito à injúria de tornar-me em pó,
crie uma rosa eterna como as rosas
inexistentes nesta flora efêmera.
Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.


Encontro este poema, que li quase menino, encontro ao acaso, folheando a «Poesia completa» de Lêdo Ivo, poema que recito quase de cor, como tudo por que a gente apaixona na adolescência, mas que, hoje vejo, não nunca lhe penetrei os labirintos de sentido contidos escondidos entre aqueles misteriosos versos, meio herméticos, daquela feitiçaria... Mas necessita a poesia ser realmente compreendida? Porque eu continuo lendo, hoje relendo, entoando esses versos e vejo que bailo na musicalidade de suas sílabas, seu invento, seu encanto, e me delicio pelo que nada sei, hipnotizado por suas metáforas feiticeiras.

Os primeiros versos dizem:

Invento a flor e, mais que a flor, o orvalho
que a torna testemunha desta aurora.

Ora, agora, vejo, perturbado, emocionado, que o sujeito poético inventou a flor, o orvalho, o espelho, o amor, a vida, a rosa eterna, a rosa!, a rosa mística!, o sonho, o sonho de um sonho, a vida, o vento, a rosa eterna, o mundo vão...

Sim, eu logo que tomo este gigantesco volume das «Poesias completas» (são 1099 páginas!), logo eu senti que o encontraria, por uma intuição de leitor deste Ivo - mas logo me desviei e comecei lendo o «Estudo introdutório» do poeta Ivan Junqueira, que me convenceu e agradou. Ivo é, segundo Ivan, aquele «lírico elegíaco», cujo enigma é não seguir o breviário estético de sua geração de 45, ainda que, como todos os outros, nunca se libertou da «idéia parnasiana» que em todos nós nasce, morre e renasce... Desde Rimbaud. Aliás, diz Ivan Junqueira, que o verso «desabo em ti como um bando de pássaros» poderia ter sido escrito por Rimbaud, assim como:

Muda-se a noite em dia porque existes
feminina e total entre os meus braços

E, diríamos nós, que os versos:

e o tempo entronizado sai da mó
que transforma as austrálias em diademas

São dos mais belos daquela poética rimbaudiana de que todos os poetas nunca se libertaram de todo, por serem contagiados pelo barco bêbado da invenção da poesia moderna - e Lêdo Ivo também, mas logo se libertou, posteriormente.

Cheio de sortilégios é Lêdo Ivo poeta, feitiçaria nada vã da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna que vai além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página da filósofa Hannah Arendt em que fez a distinção entre eternidade e imortalidade.
A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno.
A nossa feitiçaria é vã.

Sonho de um sonho, a vida, ao vento, escoa-se
em vãs lembranças. Minha rosa morre
por ser eterna, sendo o mundo vão.



SOMOS MEMBROS UNS DOS OUTROS


«Somos membros uns dos outros», dizia São Paulo aos cristãos de Efeso.
Isto é citado por Laín Entralgo, em texto que incluímos recentemente no nosso site.
Entralgo, pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, sempre exerceu sobre mim extraordinário fascínio.
Define ele a capacidade do homem de considerar-se pessoa por dois conceitos: o próprio e o alheio.
Na esfera do próprio, estabelece Laín duas diferentes esferas: a do 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e a do 'em mim' (que posteriormente ele estuda na patologia).
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com a outra? como considerar o outro como outro eu? como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade?
Para ele, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''.
A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe.
Seu principal livro, de Entralgo, raríssimo entre nós, se chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na Biblioteca Nacional.
Nesse, ele percorre com maestria toda a filosofia ocidental desde os pré-socráticos, e vai em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro.
Assim era em Hegel, quando o sujeito suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro.
Lain também era médico. Escreveu tratados de medicina.
Faleceu no ano passado, com mais de 90 anos.
Essas considerações vêm antes de ler o CANTO 1, 26 de Jorge de Lima, em INVENÇÃO DE ORFEU:

Qualquer que seja a chuva desses campos Devemos esperar pelos estios;
E ao chegar os serões e os fiéis enganos Amar os sonhos que restarem frios.

Porém senão surgir o que sonhamos
E os ninhos imortais forem vazios,
Há de haver pelo menos por ali
Os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos,
E ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.

Alguns poetas tiveram, ou revelam, alguma dificuldade de relacionar-se com o outro ('os ninhos imortais forem vazios').

'Imortal' - traduz o 'felizes para sempre'.
A felicidade presente ('a chuva desses campos') atinge a solidão do futuro ('Devemos esperar pelos estios').
Sua poesia reside nisso.
Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma solidão sempre ali, sempre fiel, uma vocação de 'amar o perdido', o passado: 'Amar os sonhos que restarem frios'.
Os ninhos estarão vazios, e neles só os pássaros os idealizados.
A estrofe:

Feliz de quem com cânticos se esconde
E julga tê-los em seus próprios bicos,
E ao bico alheio em cânticos responde.

Marca o centro do reconhecimento de si no outro inexistente, no outro distante, impossível.
Diz esses versos: Eu me escondo nos versos que canto, canto com o fingimento do canto.

É o contentar-se descontente de si consigo mesmo, e em si.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, Possa mirar-se as asas depenadas
E contentar-se com as secretas penas.

As asas depenadas não voam. O coração não ama. As cenas ao redor, terríveis. As dores não se expressam e são secretas. Os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de Invenção de Orfeu mantém a sua imortalidade e beleza.




ADALGISA NERY

OS MUNDOS OSCILANTES


Contam que, depois de cassada pelos militares, em 1969, Adalgisa Nery ficou sem dinheiro. Tinha 64 anos. Ela nasceu no Rio de Janeiro, em 1905. Em 1976 se internou, numa clínica de idosos de Jacarepaguá, no Rio, onde faleceu em 1980, aos 75 anos. Consta que Adalgisa, desamparada e pobre, quando na Itália o grande Murilo Mendes soube e de lá veio para lhe dar os quadros de Ismael Nery, ex-marido de Adalgisa, falecido em 1934. Murilo tinha sido o grande amigo de Ismael Nery. O pintor lhe dera os quadros antes de morrer. Dizem mesmo que todo quadro de Ismael era pintado exclusivamente para Murilo Mendes.

Assim o poeta ofereceu as obras de Nery à grande poetiza. Murilo era amigo de André Breton, René Char, Albert Camus, Magritte, foi traduzido por Ungaretti e, na Espanha, por Dámaso Alonso e Angel Crespo. Em 1972 recebe o prêmio internacional de poesia Etna-Taormina. Foi professor de Cultura Brasileira na Universidade de Roma e depois, na Universidade de Pisa. Murilo Mendes terminou a vida em plena glória. Adalgisa Nery terminou a vida esquecida e pobre. Hoje, nenhum de seus livros é lido, ou melhor, publicado.

Adalgisa Nery casou-se depois da morte de Ismael Nery com Lourival Fontes, chefe do DIP de Vargas. Separou-se em 1953. Em 54, tornou-se colunista diária do jornal «Última Hora». Eleita deputada à Assembléia Nacional Constituinte em 1960, pelo Estado da Guanabara (Partido Socialista Brasileiro). Em 1962 é novamente eleita deputada estadual, pelo PTB. Em 1966, é reeleita, agora no MDB, ano em que se desligaria do jornal Última Hora. Em 1969 teve o seu mandato e direitos políticos cassados pelo AI-5 da ditadura militar. Eu gostaria de ler sua coluna em «Última hora», quem publicará?

Murilo Mendes nasceu em 1901, em Juiz de Fora, Minas Gerais e em 1920 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde seria o maior amigo de Ismael Nery. Ismael era de Belém, e nasceu em 1900, morrendo em 1934, muito jovem. Ismael era um rapagão bonito. Depois da morte de Ismael Nery, em 1934, Murilo se converteu ao catolicismo. Mas são informações que circulam nas conversas literárias e carecem de confirmação.

Em Adalgisa Nery, «a poesia se esfrega nos seres e nas coisas» (“Mundos oscilantes”, José Olympio, 1962, RJ). Ela sente a força misteriosa da modernidade, algo animal, de circo, de locomotiva, carinho e aeroplano, alegre e triste, socialista:

Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo que teus olhos vêem,
Um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma virgem esquecida?
Num circo, nunca se apoderou de ti, um amargor sutil
Vendo animais amestrados
E logo depois te mostrarem
Seres humanos imitando um reptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgastes diante de um avião
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes
E que é tamanha!

Quando estava no poder, Adalgisa Nery tinha a casa freqüentada pelos grandes intelectuais da época, como Aníbal Machado, Álvaro Moreira, Jorge de Lima, Mário Pedrosa, Manuel Bandeira e o próprio Murilo Mendes. Ela, famosa, talentosa, grande escritora, escrevia em «O jornal» e em «O cruzeiro», antes da sua coluna diária. Era bonita, socialista, sensual, polêmica, avançada e amante, No «poema da amante», exemplo de sua poética amorosa, diz ela:

Eu te amo
Antes e depois de todos os acontecimentos,
Na profunda imensidade do vazio
E a cada lágrima dos meus pensamentos.
Eu te amo
Em todos os ventos que cantam,
Em todas as sombras que choram,
Na extensão infinita dos tempos
Até a região onde os silêncios moram.
Eu te amo
Em todas as transformações da vida,
Em todos os caminhos do medo,
Na angústia da vontade perdida
E na dor que se veste em segredo.
Eu te amo
Em tudo que está presente,
No olhar dos astros que te alcançam
E em tudo que ainda está ausente.
Eu te amo
Desde a criação das águas,
Desde a idéia do fogo
E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.
Eu te amo perdidamente
Desde a grande nebulosa
Até depois que o universo cair sobre mim
Suavemente.
(Mundos oscilantes. José Olympio, 1962, RJ )

Os títulos eram femininos e ousados, como «Eu em ti» (1937, poesia), «A mulher ausente» (1940, poesia), «A imaginária» (1959, romance). Escreveu poemas eróticos extraordinários. A temática passional, quente, neo-romântica. Ela ainda seria lida com prazer, hoje, e espero que não esteja esquecida simplesmente porque era socialista.








CASSIANO RICARDO

JEREMIAS E OS MORTOS DA BAIXADA



«Na sexta-feira, 1 de abril de 2005, chacinas no Rio podem ter matado 41 pessoas. Foi uma das madrugadas mais sangrentas no Estado.» Noticiários transformados em plantões policiais.

«A esperança mói.
A esperança dói.»

Escreveu Cassiano, em «Jeremias sem chorar».

Antes da queda do muro de Berlin, estava eu em casa do Lothar, na Mendelsonstrasse, em Frankfurt. Via tv todos os dias, fora estava frio. Comentei, para ele: «Não vejo notícias de crimes, por aqui». Ele retrucou: «Não há, não. Uma associação de consumidores impôs, em ação na Justiça, que não se divulgasse isso».
- Por quê? Perguntou o senso comum brasileiro. Não fere a liberdade de imprensa?
- Não, disse ele. A media tem de estar a serviço da população...
- Mas a população não deve ser informada sobre o perigo?
- Não é o caso, argumentou ele. Se há um assassino, ou uma quadrilha solta na cidade, não é meu problema, mas da polícia, cabe à polícia prendê-lo. A polícia tem o dever constitucional de proteger-me, e para tal é paga. Quanto à imprensa, não tem o direito de aterrorizar-me.

Calei-me.


Pareceu-me ter um ar
de abismo, não obstante alva
e limpa como uma estrela-


Cassiano Ricardo, dos maiores poetas do Brasil. Sob certos aspectos, o maior de sua geração, na técnica, na variação de sua poética, «renovando a poesia», disse Cabral. Sobre ele, Oswaldino Marques escreveu o clássico da crítica literária brasileira: «O laboratório poético de Cassiano Ricardo».


Lembra Oswaldo Mariano a observação de Mestre Alceu de que Archibald MacLeish escreveu que o poema deveria ser um «globe fruit», integrado no «pensamento planetário», na era cósmica. Por isso, diz o autor do prefácio, no livro predomina «a esfericidade semântica», e a rima «esfera» e «espera». Ou em «Os sobreviventes»:

Milhões de crianças chorando
na noite esférica.
Por que choram?
Não são
elas que choram.

É o futuro.


Escreveu Archibald MacLeish:


Haverá pouca coisa a esquecer:
o vôo dos corvos,
uma rua molhada,
o modo do vento soprar,
o nascer da lua, o por-do-sol,
três palavras que o mundo sabe,
pouca coisa a esquecer.

Em «Os que virão depois», diz Cassiano:

não os sobreviventes
que hoje usam máscaras
pra fingir de vivos
não os que poderiam
ter morrido esta noite
sob a chuva de sol
nuclear
mas os que acordarão
como pássaros
que anunciam o amanhe-
cer
sem nenhuma surprêsa
de ainda estarem
vivos
É assim na tradução de Bandeira.
É assim nos mortos da Baixada.

Sim, acordar. Como os pássaros. Mas sem nenhuma surpresa acordaremos vivos, sem a esperança que dói. O mundo que mais parece abismo, uma estrela branca, pairando no ar. Quando morrer esquecerei de tudo, e todos me esquecerão. Haverá, de pouca coisa a esquecer, quase nada: o fracos poucos versos que fiz, os romance que construí, essas minhas crônicas. Pouca coisa. Três palavras que o mundo sabe. Para mim, será bem mais difícil esquecer: meu amor fracassado, minhas impossibilidades, meu caso perdido. Acordar, renascer? Não creio. Meus olhos fechados sob a campa. Não verei nem o nascer da lua, nem o por-do-sol.

A chuva pinga, na argila rasa.



O TEU SILÊNCIO É SUBSTÂNCIA ACESA,
OU VENI CREATOR SPIRITUS




Brindou-me um bom amigo com o livro de Edison Moreira, «Tempo de poesia» (Garnier, 1999), cujo primeiro soneto assim se fez:

Estás presente. Vieste com certeza
das origens do tempo ou da paisagem.
Tens nos cabelos roxos a beleza
de teu país de reis sem vassalagem.
o teu silêncio é a substância acesa
das coisas indizíveis, a mensagem
de um território oculto na tristeza,
ânsia de morte que se fez linguagem.
Mensageira de símbolos perdidos,
acendes o mistério. Outros sentidos
descobres sob o véu do esquecimento.
Deusa fecunda de estrelado manto
Aurora, céu noturno, fundo espanto
nesse infinito redescobrimento.

É um soneto sobre aquela Arte Poética, digo, sobre a Aurora, publicado em seu primeiro livro, «Cais da eternidade» (aparecido em 51, poemas de 1945-51). Não se pode dizer que os poemas se inscrevam no rigoroso estilo da geração de 45: Abgard Renault, Emilio Moura, Afonso Ávila, Darci Damasceno, Cabral, Bueno de Rivera, Ledo Ivo etc, cuja estética, clássica, camoniana, exigia nitidez, construtivismo, equilíbrio, forma, disciplina, rigor, universalismo neoparnasiano, artesanal, regras e disciplinas pautadas na ordem e no equilíbrio. Edison Moreira, porém, apresenta um caminho próprio, ainda que, no soneto acima, lembre aquela geração.

O primeiro verso soa: «Estás presente».
O que significa focar em algo que ali está, na presença do tempo? «Estás presente» significa «estar» e «ser», ser no tempo, e no lugar estar e em determinado tempo: o tempo presente. «Estás presente» profere do ser-aí, nos limites do espaço atual da física presença, tempo que é o presente tempo. «Estás presente» presentifica o ser, lança-o no jogo do real da realidade, faz no meio do que se disse quando «Faça-se a luz, e a luz foi feita», lá não se tem o tempo presente, mas só anterior «faça-se» e o posterior «foi feita».
Em «Estás presente» não é assim, coloca-se a Aurora pois na minha frente espelhar, e lá se sente, e ali se vê, por pouco se toca e cheira na materialidade do «Estás presente», no espaço de uma cronometria daquilo que se joga adiante. O poema mede a concentração do tempo presente, da hora, ou daquele instante do que lá está, fotografado, capturado, na passagem rápida. Pois, quando se diz «Estás presente», algo se sente por todos os lados. O olho está lá dentro dela, da Aurora. Ou seja, da Arte Poética, conforme vai-se ver.

Assim o poema começa pelo princípio, ou seja, pela Aurora. Não só o poema, mas as páginas do livro, a sua leitura, a obra poética.
No princípio, afirma para sua arte: «Estás presente», não como quem convoca o «apareça», e «venha», não em invocação, convite, chamado da luz do espírito criador, como num:

Veni creator spiritus
mentes tuorum visita
imple superna gratia
quae Tu creasti pectora

Não. Mas com um «já estás aqui presente», o que abre a cena da escrita. Em suma, a poesia já está pronta, não necessita ser convocada.

O seguinte: « Vieste com certeza / das origens do tempo ou da paisagem», coloca novo problema, e extremo, de significação poética. Primeiro, porque há aquela ambigüidade, própria do jogo da língua portuguesa, da expressão «com certeza», que significa «provavelmente», «talvez» - uma certeza cheia de dúvida.
Segundo porque, filosófica, esteticamente o tempo e o espaço (a paisagem) não tem princípio, nem origem: Se a Aurora veio do tempo sem princípio e do espaço sem limites, veio ela do Infinito, ou seja, não se trata da mera aurora, alvorada, madrugada, mas do Princípio Ideal de todas as coisas, do aurorar da vida da sempiterna existência (se se pudesse assim dizer), em aurifulgência daquele:

Veni creator spiritus
mentes tuorum visita
imple superna gratia
quae Tu creasti pectora

da liturgia do espírito santo, onde o supremo rumor da criação de tudo.

Depois diz:

Tens nos cabelos roxos a beleza
de teu país de reis sem vassalagem.
o teu silêncio é a substância acesa
das coisas indizíveis, a mensagem
de um território oculto na tristeza,
ânsia de morte que se fez linguagem.

O roxo, cor da magia ritualística, o púrpura significa poder, ambição, tensão, negócios, mas também era a simbologia do infante D. Henrique, e aí representava mortificação e tristeza, para aquele que preferiu seguir os mais fortes em Alfarrobeira contra o seu irmão mais velho, depois de contribuir igualmente para a morte do seu irmão mais novo.
Um cavaleiro roxo significava fornecer-nos uma triste medida da inércia de todas as idéias estabelecidas: parece mais fácil fazer e aceitar a existência da intenção de coincidências que apontam para o milagre, do que em desígnios que apontam para o sentido da solução lógica que o contraria. O roxo significa mortificação, o simbolismo das cores litúrgicas se concilia muito bem na sua distribuição no texto como o roxo do provisório, do perdido, dos símbolos perdidos, do mistério da morte, ou mistério mortal, do véu do esquecimento, do vazio do redescobrimento, do noturno, do manto dessa deusa de fecundante estrelado manto que é a manhã, do espanto da manhã.
Essa Aurora é a Inspiração, ela é o espírito criador de tudo, a capacidade, a fecundidade que faz falar a poesia, que faz redescobrir a poesia debaixo do que está esquecido, a saber, a nossa própria linguagem, fundo espanto de misteriosos símbolos cheios de «outros sentidos». Este soneto é a completa Arte Poética de Edison Moreira, o grande poeta mineiro. Assim:

Mensageira de símbolos perdidos,
acendes o mistério. Outros sentidos
descobres sob o véu do esquecimento.
Deusa fecunda de estrelado manto
Aurora, céu noturno, fundo espanto
nesse infinito redescobrimento.

Edison Moreira nasceu em Minas, em 1919, e faleceu em 1989. Sua obra ainda está para ser estudada. Poeta erudito, sofisticado, famoso por sua estética medievalista.






NATUREZA MORTA



De Walmir Ayala um poema, intitulado ESTAÇÃO, que sempre releio. Ayala, poeta excelente, não sei por que esquecido.


Na geladeira as frutas
escurecem de mortas

O quadro ele começa. A geladeira das frutas. Mortas. Geladas. Frutas. Personalizadas. Com o matiz erótico que caracteriza a poesia dele. Frutas mortas, natureza morta, alma morta, amor morto. Na mesa da geleira, deste Himalaya morto, neste Instituto Médico Legal da autópsia do pomar.

as pêras são secretas
usinas de água doce,

— no ventre das pêras o que está é sua secreção, a suculenta feminilidade, sua pose de ovário e úvula, a complexidade singela, aquela sua capacidade de oferta, de entrega, de lamúria das águas paradas mortas internas secretas dos entraves dos pântanos doces das almas das mais líquidas partes da natureza do amor, as estivais qualidades da natureza das carícias do corpo úmido e cúmplice, dos corpos entregues a si mesmos, que é quando são partes do mais tátil amor que se dá às mãos que deles fazem seus no prazer e no mergulho, nos gozos internos e usos, no segredo do maior e cavernoso introduzir hipodérmico da sua capacidade de sentir e de pulsar. Que é? A água doce do amor, usina do suco impulso do amor. São os líquidos amorosos, langorosos, das umidades humanas.

um mamão decepado
mostra a íntima carne

O mamão macho, o masculino mamão, castrado porém, digo, amputado, calado, prostrado, exibindo entranhas estranhas, na carne devastada, intimidade devassada.

O mamão porte de guilhotina — mamão revolução do estraçalhado. Mamão carne vegetal gengiva mole e aberta.

e as goiabas oloram
seu verão serenado.

O cheiro das goiabas, o perfume do verão no inverno do refrigerador, em antífrase feliz as perfumadas açucaradas e brandas goiabas. O verão olorizado de sereníssimo repouso. Oferecidas ao seu saboroso cheiro do pomar tropical.

Mas são mortas e lentas
neste ofertório as frutas.

Oh, tudo está morto, tudo está congeladamente morto, com frieza da morte, a morte 'lenta', a morte eterna, mumificada, gelada, branca, na porta aberta desta geladeira tumular, deste ofertório poético.

Um vapor congelado
contorna seu mistério.

Envoltas no nevoeiro, envoltas no seu mistério frio, branco, hospitalizado, as obscurecidas frutas medicalizadas, no branco arrepio da poesia misteriosa, do mistério da poesia...

E elas posam no ardor
do branco cemitério
de seu grave pomar.

Fotógrafo, o poeta abre, no seu cemitério doméstico e culinário, na escrita de seu receituário de forno e fogão, na gravitação polar de sua tematização estival (e não outonal). No seu bosque enclausurado.

E a geladeira inventa
surdo primaverar.


Em outro poema, no AQUÁRIO ACESO, os peixes dormem, no suspensório de seus sonhos:

Os peixes submersos dormem
Nadando um sonho enorme
- o aquário é breve e claro,
com selvas silenciosas
que o todo-poderoso
nutre de grão e larva.

É a poesia-aquário cujo conteúdo tem peixes que nadam sem acordar, sem perturbar, entre árvores silenciosas águas e selvas, eternizados pela luminosidade da escrita do todo-poderoso deus que o escreve e nutre de grão e larva, Ayala pesca na profundidade de si mesmo um labirinto de submersão de tentáculos poéticos onde se move como um polvo.

No entanto os peixes dormem.
Qualquer tremor das águas
e nadam aclarados
sonhando-se acordados
sonhando-se acordados.

E o leitor se enreda, se embriaga e sonha. Sonha dentro deste aquário verbal. Treme nessas águas de cristal líquido, o leitor sonha que lê, o poeta sonha-se lido, aclarado, viagem e volta ao íntimo gozo de seu interminável passeio, na lente suspensa das (m)águas.

No seu POMAR ABERTO, erótico, encontra entre as árvores do bosque o objeto de seu amor, esta vegetação da linguagem impossível de sua gestualidade desejante, o desconhecido toque de musa submersa, o paraíso pomar de pomos de luar e perfume do ar, as suculentas frutas, a poesia de Ayala reflete para sempre o domínio do delírio paradisíaco perdido, coro de laranjais em adágio e flores de laranjeiras.

Teu doloroso cheiro de laranjas
inventa este pomar que me embriaga

O prazer doloroso pomar em que se perde e inventa um labirinto embriagante cheio de sucos de invenção poética. As vespas de fogo rasgam de luz a venenosa atmosfera de seu ferrão, o luar do amor abre no peito a rosa amarga do ferrão do gemido gozo e do desenho do rosto grego, estátua em pedra que não está mais que estátua eterna e solitária, igual às frutas no verão da geladeira, mortas. Um paraíso em pomos de ouro a transportar e a ler.

há vespas inflamadas e um luar
enclausura em teu peito a rosa amarga
deste gemido em que és como o desenho
de um rosto antigo, de um sorriso em pedra
(eterno e solitário).

Estranho gemido de chumbo do amoroso langor do gozo que enfim o sorriso corta como a lâmina da faca, com a lâmina dos fios da noite.

Este sorriso que de repente no silêncio medra
e corta os fios da noite em que viajo
para os sempres de mim, tão decididos:
então nos laranjais escuto o adágio,
e o coração que ocultas é sonoro
como a ilha do amor em que me perco
e onde me salvo, e para sempre choro.

Sim, Amor é Ilha, lá onde se salva o que se perde, e lá onde se perde o que se salva, e onde pela contínua solidão como sempre chora.

Porque o amor é natureza morta.





A COPA DE JOÃO CABRAL




Em três poemas podemos dizer que João Cabral está presente nesta Copa. O Primeiro é:



ADEMIR DA GUIA

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso),
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.


O Segundo poema fala do:


O TORCEDOR DO AMÉRICA F.C.

O desábito de vencer
não cria o calo da vitória;
não dá à vitória o fio cego
nem lhe cansa as molas nervosas.
Guarda-a sem mofo: coisa fresca,
pele sensível, núbil, nova,
ácida à língua qual cajá,
salto do sol no Cais da Aurora.


O terceiro poema lembra os Ronaldos europeus:


O FUTEBOL BRASILEIRO EVOCADO DA EUROPA

A bola não é a inimiga
como o touro, numa corrida;
e embora seja um utensílio
caseiro e que se usa sem risco,
não é o utensílio impessoal,
sempre manso, de gesto usual:
é um utensílio semivivo,
de reações próprias como bicho,
e que, como bicho, é mister
(mais que bicho, como mulher)
usar com malícia e atenção
dando aos pés astúcias de mão.

A bola não é impessoal, tem vida e alma. Não é inimiga, mas amante. A bola de futebol tem malícia e manha, tem reações perigosas, e não se usa sem risco. Não. Como a mulher, ou um touro. Não reclame: Cabral era nordestino. Não: o Jogador é um toureiro, que amansa a bola. O time perdedor não se corta com o afiado.

O primeiro poema é o Jogador; o segundo o Clube, o time; o terceiro a bola.






PELO TELEFONE



A leitura do poema "Imitação da água" imortalizou o crítico José Guilherme Merquior, e está publicada hoje num livro intitulado "A razão do poema" (que tenho, mas não encontro: meus livros, em fila dupla, tripla, às vezes deitados, inacessíveis, desorganizados...). Eu conheci Merquior: tinha cara de menino quando proferiu palestra sobre estética na nossa Faculdade. Jogaram uma bomba. Anos depois, estive com ele, num Congresso, no Fundão. Morreu prematuramente, Merquior. Culto, mas, como escreveu sobre tudo e todos, ficou meio desacreditado no meio acadêmico. Não se pode ao mesmo tempo escrever livros sobre Marx, Hegel, Freud, a escola de Frankfurt e a literatura brasileira. Seja como for, Merquior era um gênio, mal aproveitado, mas era. Poderia ter deixado obra imorredoura, isso poderia. Tinha talento para isso. "Imitação da água" é um poema-irmão de "Paisagem pelo telefone":

PAISAGEM PELO TELEFONE


Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,
sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

Longe de mim imitar Merquior. Sou apenas um cronista domingueiro. E nasci no Amazonas, mas meu sangue é nordestino. Sangue de minha mãe, Pernambuco, Sobral. Minha avó conheceu cangaceiros. Mas, qual é o sentido de "paisagem"? Que voyeurismo se faz pelo telefone? E que lugar mais apropriado para amar, do que uma praia nordestina no "prumo" do meio-dia? O amor é noturno? Não aqui: no poema tudo é branco, branca luz, praia velas salinas - mas não é o branco hospitalar, mas do sol sobre a cal, sobre a água cristalina, da sala de luz invadida pelo sol de duzentas janelas, do mar, das velas estendidas, "seis estrofes mais acima" - a amada brilha como deusa, como Beatriz na "Comédia" de Dante ela brilha, ela se veste de luz. E é lá (no Nordeste) que o Amor move o sol e as outras estrelas. Sexo pelo telefone.
Aqui o que vem é a voz. Da voz vem a paisagem, a sala, a praia, os muros caiados. É voz mineral, na essência do calor. A luz não do sol, mas das vogais abertas, dos cristais da voz, da voz cristalina, da fala nordestina, salina, fala ao sol estendida, voz nua, fescenina. Cabral, aparentemente sempre ácido, árido, cheio de pontas, agulhas e cabras, também sabe, também abre o leque de um erotismo visual, paisagístico, masculino. A água é feminina, e brilha sob a luz. O telefone não. É masculino. Pois há um personagem da Glória Peres, tio da Jade, que disse que o homem se apaixona através dos olhos, e a mulher através dos ouvidos. Sabedoria árabe. Eu diria aqui: Pelo telefone, que ouvindo vê a amada toda nua, ou só de sua nudez e brilho vestida. O erotismo visual nascendo da audição. É tudo João Cabral.






ESSES PRAZERES:

Deixe contar. Ou cantar. Um dia eu vinha por aquela rua quando o encontrei. No chão. Era um raro exemplar do livro de Cabral. Arrependo-me de ter dado aquele volume. ("Terceira feira", 1961). Os antigos alfarrábios de poesia são como vinho velho.

Só o álcool dessa garrafa
pode o vinagre e o ferrão
para a alma toda murcha
na pose fetal do não

(Diz Cabral). Lembro-me de Ademir da Guia, com seu jogo. Lento. O lento jogo do tempo. O chumbo, o peso, a câmara lenta. (Diz Cabral). Outro dia, na Net: Ademir da Guia, jogando - Sim, porque:

Ademir impõe com seu jogo
o ritmo do chumbo (e o peso)
da lesma, da câmara lenta,
do homem dentro do pesadelo.

(Diz Cabral). Cada palavra tem um peso e densidade do chumbo, do dentro:

Ritmo líquido se infiltrando
no adversário, grosso, de dentro,
impondo-lhe o que ele deseja,
mandando nele, apodrecendo-o.

João Cabral só diz aquelas "mesmas palavras", a saber, a poesia e suas guias. Ademir joga como se um escafandro vestisse. A lerdeza do homem submarino, a água da ambiência daquela gente “de uma Caatinga entre secas, entre datas de seca e seca entre datas”. O simbolismo da água descreve o mundo, em que o poeta se revê, graus de materialidade, de revelação.

Ritmo morno, de andar na areia,
de água doente de alagados,
entorpecendo e então atando
o mais irrequieto adversário.

Ademir da Guia, para ele, ser feito de água dos alagados, feito nas águas dos alagados, gente "de uma Caatinga", que executa seu jogo "com água". Langorosa:

A gente de uma Caatinga entre secas,
entre datas de seca e seca entre datas,
se acolhe sob uma música tão líquida
que bem poderia executar-se com água.
Talvez as gotas úmidas dessa música
que a gente dali faz chover de violas,
umedeçam, e senão com a água da água,
com a convivência da água, langorosa.
("Fazer o seco, fazer o úmido").

O jogo de Ademir da Guia, "bem poderia executar-se com água". Mas a bola chumbo. Orbe. Maciço. A idéia da água vai na alma encharcada da gente. Qualquer que seja o jogo, Cabral só fala do que fala:

E as vinte palavras recolhidas
nas águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.
("A lição de poesia")

Ou seja: "Vivo com certas palavras / abelhas domésticas.":

Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
..................................................
Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens.
("Graciliano Ramos")

Impossível separar: o futebol, a poesia, o chumbo, que "ulcera a boca". Na verticalidade, na substância da água:

Só uma água vertical,
água parada em si mesma,
água vertical de poço,
água toda em profundeza,

água em si mesma, parada
e que ao parar mais se adensa,
água densa de água, como
de alma tua alma está densa.

Cabral, em realidade, só fala da morte:

Talvez porque qualquer água
fique mais densa se morta
................................................
Não há dúvida, a água morta
se torna muito mais densa.

Como se vê, o indivíduo é a soma das impressões singulares do mundo. É perto da água e de suas antigas imagens que o sujeito compreende que o sonho é um universo em emanação, um sopro que sai das coisas (Bachelard).











CANTIGA SIMPLES

Primeiramente ele canta os rios...

Rio, que cantas as mágoas,
Que queres com o teu cantar?
Quero levar minhas águas
Até às águas do mar.

A cantiga canta as águas, mágoas, o ar de cantar, de mar, levar. Olegário está em plenitude lírica, neste poema, na perfeição de sua poética de "cantiga simples", num neo-romantismo embalador e apoteótico, delirante, de seus mágicos ritmos. Depois abre seus braços feitos de natureza, nada no espaço imóvel de suas raízes...

Árvore, que ergues os braços,
Que queres a bracejar?
Quero galgar os espaços
Para o sol me acariciar.

Agora há uns ee e uns erres, de árvores, de ergues, de braços, de queres, de bracejar, de quero galgar, de espaços, de acariciar - são os erres que amarram os braços das árvores no chão, contrapondo com os "espaços", o "sol" - para a carícia da imensidão do universo. O poeta sobe, galga, tenta o sublime, o todo. Ele se chama Olegário Marianno.

Nuvem, de côres estranhas,
Que queres a galopar?
Quero descer às montanhas,
Vestir montanhas de luar.

Agora ele galopa animais de nuvens, desce montanhas, veste-as do branco das imaginações, ó lua feita de dúvidas de amor! os olhos da amada:

Lua feita de incerteza,
Que queres com o teu palor?
Quero boiar na tristeza
Dos olhos do teu amor.

O amor sobre as montanhas do horizonte, amor distante:

Pastor, que sobes o monte,
Que queres galgando-o assim?
Quero ver do alto o horizonte,
Que foge sempre de mim.


As estrelas distantes, pequenas estrelas da viagem continua:

Estrela, pequena e clara,
Que queres? Dize, eu te dou.
- Quero ser a jóia rara
Da mulher que nunca amou.

Onda crêspa, onda serena,
Que queres no teu vaivém?
Beijar a pele morena
Da praia que me quer bem.

Andorinha peregrina,
Que queres de asas ao léu?
- Quero morar na colina
Mais alta, perto do céu.

Coração, que em comovida
Marcha, bates, sofredor,
Que queres? Prazer ou dor?
- “Eu nada quero da vida,
Além da vida do Amor”.


A cantiga lírica canta as águas, as mágoas, o ar de cantar, do mar, de levar, a onda, a praia, a andorinha a colina a vida a vida. É uma simples cantiga. Só se basta o cantar. A lírica sobreviveu no nosso século como força de resistência, manifestação, humana, com a qual nossa época reage contra a violência, a dominação, a instrumentalização, a funcionalidade. No nosso mundo eletrônico, ela aparece reduto, gueto da emoção humana, contra o horizonte armado, metalizado, onde a lírica acontece como subjetividade rebelde, enternece os corações. Como nos versos de Cecília Meireles:

Eu tinha um cavalo de asas,
que morreu sem ter pascigo.
E em labirintos se movem
os fantasmas que persigo.

Falando de si, o poeta fala de nós mesmos, nos seus ritmos e mitos. Não conta nossa história, mas recorda nossas emoções, nossa dificuldade emocional, solitária, vazia, presente. O lírico sempre é um solitário, como somos todos no mundo individualista. Ele faz a subjetividade rebelde amante, contra a insipidez do cotidiano sem grito. Sua disposição resta no não perturbar o silêncio, de onde sai sua melodiosa voz. O lírico não revoluciona nada. A lógica e a coerência não são líricas. A lírica reage à racionalidade controladora, à certeza imparcial, impessoal. Reage à Verdade. À brutalidade econômico-militar, a lírica opõe a emanação de melodioso aceno de ternura e afetividade. Emoção solitária, isolada, clima de intimidade, confissão de frases soltas, de palavras e sugestões imprecisas, mais música do que idéias. A poesia se comunica na pura musicalidade, mais sentida do que compreendida. Na música está seu elemento significativo essencial.
Nos primórdios do Brasil, cantava o padre José de Anchieta:

Cordeirinha linda
como folga o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Musicalidade e subjetividade caracterizam a essência do gênero lírico.



A FOME É UM NÃO



A Governadora Benedita da Silva, ex-moradora do Morro do Chapéu Mangueira, declarou:
- Já passei muita fome.
- Tanta, conta, que até perdi filho por causa disso, porque não tinha com o que me alimentar durante a gravidez.

A fome ri.
A fome é a morte
ainda viva.

Ambulante.

(diz Cassiano Ricardo).

A Governadora continua:
- Muitas das vezes em que eu saía atrás de um trabalho, sem comida no estômago, no meio do dia eu já estava abatida e não conseguia fazer mais nada.
O Presidente FH disse que não fome no Brasil. Teoricamente correto, não há a grande fome africana, asiática. Os rostos cadavéricos da fome africana e asiática.

A máscara
da fome. No coro
das máscaras.

A face
ossuda, angulauda.
Não é preciso perguntar
se 'você me conhece'.

Bené diz:
- Quando chovia, eu chorava, porque não tinha condições de pegar a xepa na feira para comer.
- ...que quem tem fome não pode beber um copo d’água, porque quando a água chega ao estômago vazio, dá uma grande dor...

A face do sub-vivo é
dialética.
Gera pontas de faca
sob a pele.

(diz Cassiano Ricardo).

- ... eu muitas vezes peguei farinha e misturei com açúcar pra comer antes de beber água. Também comia fubá puro. Outras vezes, catava taioba no mato. Além de fraca, a fome faz a gente se sentir estranha. Eu, às vezes, ficava falando sozinha. Quando alguém me perguntava: ‘Bené, tá falando sozinha?’, eu respondia: ‘Não, tô pensando alto’.

A máscara
da fome
é um feroz não.

- ... a fome dá muita raiva (diz Bené), ainda mais quando os filhos também estão famintos. Você fica pensando: ‘Quero comer, não estou conseguindo, que raiva’. Isso, quando você consegue pensar, porque, quando você fica muito tempo sem comer, não pensa.

A fome ri.
A fome esculpe, cinzela
as suas criaturas
(ou caricaturas?)
- Com o tempo, comecei a vender pastéis, salgadinhos, melhorando de vida. Mas a fome te marca. Hoje, tenho 60 anos e tudo isso aconteceu há 40 anos. E olha que não foi lá no Nordeste não, foi aqui no Chapéu Mangueira, na Zona Sul do Rio.
Ela diz: - 'A fome é indigna'. A fome é um Não.

Um não que não
aceita explicação.





NA MORTE DOS RIOS





"Desde que no Alto Sertão um rio seca, / a vegetação em volta, embora de unhas, / embora sabres, intratável e agressiva / faz alto à beira daquele leito tumba. / Faz alto à agressão nata: jamais ocupa / o rio de ossos areia, de areia múmia." - escreveu João Cabral de Melo Neto. É verdade que ele nunca acusou recebimento de um livro que lhe mandei pelo correio. Talvez não tenha gostado, nem tenha lido. Era minha dissertação de mestrado, versava sobre as águas. Na sua obra. Cabral para mim é sempre uma fixação. Eu não me canso de lê-lo. Nunca o vi, pessoalmente. Assisti à uma entrevista na televisão. Mas como os maiores poetas têm dificuldade de falar! Cabral era claudicante. Cheio de "não é verdade?". Lembro-me de Drummond. Um dia, quando éramos aluno da FNFi, e como estudássemos sua obra, conseguimos que Drummond aceitasse a vir, na nossa sala, para conversar. Ele exigiu que ninguém soubesse, e que pudesse entrar pela porta dos fundos! Incrível: um dos maiores poetas entrou pela porta dos fundos da nossa faculdade de letras. Mas Drummond parecia um funcionário público (que era), conversando. Trazia um guarda-chuva preto e vestia um terno cinzento. Sério, magro, seco, quase mal humorado. Disse, por exemplo, que perdia belas imagens e versos que lhe ocorriam no caminho de casa para o trabalho. Parece que ele andava de ônibus, de Copacabana para o Centro, no Rio. Quando eu lhe perguntei por que ele não tinha consigo um caderninho de notas, ele respondeu que "não ficava bem alguém ficar escrevendo". Lembro-me de que nossa professora, D. Cleonice Berardinelli, que ia passando no corredor, o viu e, espantada, logo entrou na sala. Drummond, o gênio da nossa poesia, discorria singelamente, prosaicamente sobre sua obra. Nenhum brilho, nada de demonstrações de grandeza. Disse: "não sei por que fazem tanto barulho pela minha poesia, eu não vejo nada de especial nela" (as palavras eram mais ou menos assim). Disse horrores sobre o verso "no meio do caminho tinha uma pedra". E no fim, quando se despediu, eu lhe pedi um autógrafo. Ele logo se irritou comigo ao ver, na folha de rosto do seu livro, após o seu nome, que eu tinha escrito, a mão: (1920 - ..... ). "Esse aqui já está esperando a minha morte!", disse. A última vez que o vi, foi em Copacabana. Eu bebia um cafezinho num botequim do Posto Seis que existe até hoje, quando ele passou. A cabeça pensativa, meio cabisbaixo. Eu fiquei extático, boquiaberto, imóvel, reverente, e mentalmente me curvava à Grande Poesia que passava.

João Cabral nunca o vi. Tenho lido sua obra, nesses áridos dias.
Empaquei na "Conversa em Londres, 1952", da qual transcrevo alguns dos versos:

Durante que vivia em Londres,
amigo inglês me perguntou:
concretamente o que é o Brasil
que até se deu um Imperador?

Disse-lhe que há uma Amazônia
e outra sobrando no planalto;
...............................................
Porém como a nenhum britânico
convence conversa impressionista
[ele disse]...
"Posso dizer minha opinião?
O Brasil é o Império britânico
de si mesmo, ...
é fácil ler nesse mapa,
Colônias...
e a Londres, certo mais monstruosa,
que no Brasil não é cidade,
é região, é esponja...
a de Minas, Rio, São Paulo
que vos arrebata até a chuva."


Talvez ele não tenha gostado das minha leitura da sua obra, que não é lá grande coisa. Talvez nem a tenha lido. Mas nenhum amazonense, lá onde há água tanta, soube dizer das águas quanto o árido João Cabral nordestino. Nordeste da seca, Nordeste dos "territórios mais mendigos". A Amazônia é (pasme) nordestina. A família da minha mãe, por exemplo, é nordestina. Até 1919, no Amazonas, 150 mil emigrantes nordestinos já tinham chegado, fugidos da seca. A Amazônia do Planalto, não. É paulista, mineira, carioca. "Você não se separa do que é Nordeste", diz o poema. Toda favela, toda periferia urbana é Nordeste. "Desde que no Alto Sertão um rio seca, o homem ocupa logo..." Não. Nunca. Cabral nunca agradeceria um elogio. "Porque o sertanejo fala pouco: as palavras de pedra ulceram a boca".

ATUAIS



SÍNTESE & REFLEXÃO



Apressadamente logo constatamos duas características na sua poesia: a síntese é uma delas, umas de duas, economia de palavras, rapidez, veloz, o dito em poucos versos, nada que esteja sobrando, ela mesmo tem o livro «Em poucas palavras», tudo posto na visão do total, da totalidade, desse «Holismo»:

A vida é um constante exercício
De mãos, criando asas,
De pés, pisando em brasas.

Pois a arte de Leila Míccolis, sua vida, sua poesia coloca em constante exercício do ofício esse estilo sintético, aforisma dêitico, onde se criam asas mas se pisa em brasas, ou melhor, as mãos que costuram sonhos se opõem aos pés que circulam vivos, andam sobre este mundo concreto, cotidiano, nos seus tropeços, que há a realidade e os sonhos, tema bem brasileiro, feijão-e-sonho, dois-lados, dois brasis.

Pois, o que é a vida, senão esse balé, na contradição exercida, obra produto de nossas mãos estendidas, no espaço criamos a ponte o ponto onde nos soltamos; e a vida, esse caminhar sobre espinhos, brasas - os pés não se opõem às mãos, nem as mãos se alçam para cima no fugir do inexistir de asas, não, ao contrário, se completam, se entrelaçam, se pedem, se complementam, e se negam, seja porque se exercitam num ing-iangue positivo-negativo em que se suplantam sobrepõem superam constantemente no caminhar, seja porque, sem a loucura das invisíveis asas «que é o homem, mais que a besta sadia», e este chão «bem conhecido», que te bebe vivo, que te espera morto, há de te dar de comer, há de te comer.

A poesia de Leila Míccolis vem nesse constante exercício holístico da visão sumária, da reflexão curta, da sabedoria de vida (e feminina), (e brasileira), (e pós-moderna) - com sua capacidade de tudo dizer encapsulado em poucos indícios, três quatro versos lhe bastam, poucas palavras, ricas de significações, que vão da filosofia de vida, bem-humorada, a um erotismo muito bem dosado, a uma crítica muito bem dosada, com uma poesia-minuto, antológica, poderosa, onde a intuição do instante se confunde com sua capacidade iluminadora de artista Zen. Ela é a melhor poesia de sua geração.
QUE nos lembra quão fugaz é a vida.

É claro que há poemas maiores no «Sangue cenográfico», sua obra, o exemplário de sua «Cena», de seu «Sangue».
É claro que, além da síntese-reflexão, há muito mais.

Mas, que mulher, que dona de casa não gostaria de dizer, para os filhos, para os netos, para as vizinhas e os parentes, e para o maridão: «PACIÊNCIA!»:

Hoje não passei tua roupa
não encerei o chão
não lavei a louça
não sacudi o capacho.
Olho pro teto
e espero
que a casa venha abaixo.

É o «conceito» um elemento último do pensamento. É compreensão de algo, um fenômeno, um objeto real ou ideal. Além de sintética, a poesia de Leila é conceituosa. Ela trabalha com conceitos e aforismos. São aforismos da vida cotidiana, familiar, amorosa, sexual. Da política do corpo, ecologia, sociedade. Da vida das mulheres. Não têm a pretensão de sabedoria, de verdade. Tudo é pura poesia, no verso, no ritmo, na rima.

Leila tem um «estilo», algo próprio, logo reconhecível, pessoal, sua marca pessoal. Só grandes poetas como ela têm algo assim, pessoal e inconfundível, um som próprio, música própria, marca registrada. Eu não saberia dizer o que faz da sua obra algo diferente, peculiar. Para tal teria de preparar minuciosa pesquisa, estilística, estatística, temática. Necessitaria de um ano de indagação, de comparação, análise e interpretação. E teria de ler todos os outros textos da mesma época para dali extrair a diferença, o que é diferente e o que é influência. Sua poética.

Mas apressadamente logo constatamos duas características na sua poesia: a síntese e o aforismo.



MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho recebo um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse / para sempre me tragar”.
Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta, “que banha as margens dêste ... silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua





A ESCRITA OUTONAL

Luiz Bacellar. Ele é o poeta maior da Amazônia. Escreveu pouco. Retrata tardes manauaras, quentes, ensolaradas, vazias, quase inúteis. Fala de quintais, saputilheira, dos sanhaçus, da prata das aranhas. Da infância, da "Porta para o quintal":
Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...
Ele já viveu numa casa brasileira, bem grande. Bem interiorana. Conhece a porta, sua paisagem - o quintal, árvores, varais, infâncias, o passado. A porta para o quintal dá para vida voltada sobre si mesma, para dentro, o recolhido, uterino. Não a porta do espaço público. Mas do interno. A rua difere, como no "rondel da cana":
caba - colete
rolete - cana
danças na rua
tua pavana,
dança que a tua
dança é geral
dançada ao vento
do canavial
Há uma hierarquia metafísica na poesia, na poética do seu encontro com sua cidade. A poesia de unidade, de tempo, aquela cidade ficava uma pacata província pós-moderna (moderno foi o extrativismo da borracha),
pós-modernismo decadentista, o da econômica crise dos 50 anos - de 1912 a 1962.
No texto fragmentos do passado recente, destruído pela civilização de shopping da "zona franca". Manaus devagar, tudo se centralizava na Avenida Eduardo Ribeiro e poucas mais. Manaus de chafarizes, estatuária
afrancesados. Manaus das tacacazeiras. Da lembrança.
Ponha, numa cuia açu
ou numa cuia mirim
burnida de cumatê:
camarões secos, com casca,
folhas de jambu cozido
e goma de tapioca.
Sirva fervendo, pelando,
o caldo de tucupi,
depois tempere a seu gosto:
um pouco de sal, pimenta
malagueta ou murupi.
Quem beber mais de 3 cuias
bebe fogo de velório.
Se você gostar me espere
na esquina do purgatório.
(Receita de tacacá)
Às vezes o poema se inventa clássico, como no "rondel do sapoti":
pardo mamilo
de cunhatã
que aromatizas
o ar da manhã
tua rosa polpa
destila mel
poma leitosa
doce farnel
tuas duras folhas
verdes espelhos
bisando o sol
a passarada
te faz varanda
para o arrebol
Quando vou a Manaus, das primeiras pessoas que encontro é Bacellar. Ele aparece, fidalgo (que é), sai da moldura de um quadro de símbolos antigos: pontes, feiras, S. Jorge, Cachoeirinha, São Sebastião. Sai com seus "Sonetos provincianos", "Três noturnos municipais", "Romanceiro suburbano", "Sol de feira". Existe um caso de amor com aquela cidade em cada poema. Ele a ama, e nela se reconhece:
Como um prisioneiro
a lua me espia pelas
grades do banheiro.




FRAGMENTO DE FRAUTA

Rogel Samuel

Há três sucessivas etapas na Frauta de barro de Bacellar. A primeira do minimalismo pós-moderno objetos de bolso mini-sonetos lenço canivete. A segunda do espaço devaneio ruas de uma certa época da cidade de Manaus, rua da Conceição, bairro do Céu. E a terceira do espaço endócrino da poética que se cria e sai das entranhas anteriores, poética barro, matéria da imaginação "imaginada", função do real: viagem.
O primeiro momento faz sentir o que é antecipado, apresentado, nas "variações sobre um prólogo", onde se abrem a proposição, a arqueologia e a caixa-preta dessa frauta, dessa poética da frauta, do barro dessa arte memorial, do jogo, da "inscrição no muro", do cavalo capenga a cabra o velho soldado a casa solarenga o monturo em rebuliço que são denúncias inscritas escritas a carvão nos muros, dos temas ali recomeçados, da canção saída da crise da redondilha: "É o tema recomeçado / na minha vária canção". Verídico é o fato de Luiz Bacellar ter encontrado um pedaço de flauta de barro num saco de viagem, antes da viagem em que mergulhou.
O livro se constrói desde seu começo na geografia do corpo - "sempre com ar de magia / sai o canto do cantor"; o poeta, que estava no prólogo nu, veste-se de natureza, na materialidade dos sonhos, e se vê num "plátano, sobre a prata / da água tranqüila do lago, / se debruça só por vê-lo". Real, excessivamente material (de pedra são as vestes), materialidade sóbria, perfeita, substancial, modos de sua moda, modelos. Bacellar impõe modelo à poética, à literatura, com o livro, a elegância completa do grande "cumulus"escuro: O corpo, o prefácio > a roupa os bolsos o preparo o vestir-se os objetos > as ruas as casas as lendas as falas os relatos os mitos os personagens os fatos os números > a viagem os mestres -: tudo atravessado por mistérios numéricos de que se vale o poeta para transformar a simples cidade de Manaus em burgo medieval com cavalaria, heráldica. Laus Deo.
Dos Dez sonetos de bolso sai a imagem imaginada pós-moderna minimal do que é o metro do método e a mágica reinvenção da poesia, a magia que tira o mundo-espetáculo de suas prestidigitações imagísticas, visão suspeita e suspensa de grandes provocações ("pequena múmia de fumo / na sua branca mortalha"), limites da vida e da morte, o concreto, o artesão, ativo, duradouro, modificador, inventor assombroso ("torpedo de tinta"). Incerteza ("cápsula de incêndios").
E, quando, ao sair da raiz da rua, canta a Balada da rua da Conceição (hoje rua Isabel) o faz no devaneio do percorrer das instabilidades pós-industriais na sua facilidade de reinventar tudo e toda a cidade dos seus temas ("Eu vi um dia um cavalo", "habita nossos sobrados") da grande Dúvida,

(Mas será mesmo que existe
essa rua na cidade?
ou é rua da Conceição
no velho Cais da Saudade?)

O fato das coisas mais simples se desandarem dramáticas, espetaculares, mágicas, do mais sutil ao mais rural estilo fenomenológico, oscila entre o conceito e a imagem surpresa, imprevista, entre os dois planos do chão e da solidão, num estranhamento criador de mundo da mão da palavra feliz. Fotopoemas são de uma metafísica urbana do instante transfigurante, reflexos das garrafas estilhaçadas e das letras enferrujadas, que etiquetam o nome, o sobrenome dos becos, dialeticamente traçados no alargamento de uma cidade em interna ruína (mas inteiro espetáculo), nos axiomas da decadência da economia da borracha no Amazonas, cidade que guarda o externo esplendor dos velhos e áureos momentos que Bacellar nunca cantou ("nunca escrevi um poema sobre o Teatro Amazonas", "nunca escrevi um poema de amor" - disse-me ele, em entrevista). Mas, nas árvores, cansadas, as epifanias, as trilhas, as colhidas, os duendes, os enforcados, os relatos, os obstáculos, o saber, as caras, o antes, as obsessões citadinas, a onisciência, os pássaros e papagaios de papel, a Neca, a verdade certeira, a prudência, a vigilâncias, o risco, o dragão, a vida cartesiana: fatos acumulados em "lírios" e "peitinhos", "rosa menina", que levam a marca de saias levantadas da imensa tradição de uma sociedade fossilizada no Século Dezenove. A razão humana abandona para sempre esses versos de finados, de fraque, de orações pressurosas, de sepulturas e beatas cobertas, "de cera e de fogo", em que se constitui o livro de Luiz Bacellar. Podemos dizer que, fora de suas páginas, a cidade de Manaus nem mesmo existe.
Por isso a pedagogia do livro se tece na cooperação de seus "sonhos provincianos", de seus "arcanos" esotéricos, obras primas da arte, da poética, elevando a vida cotidiana a uma representação nunca vista.
O livro, que parece terminar na rampa da praia do mercado, aí não termina. A partir de então os textos tecem um saber poético aprofundado, numa "viagem", transgredindo Manaus para todas as partes do mundo.
Aí aparece o arcano 7, que é o triunfo. O número 7 representa o poder mágico, em toda a sua força. Segundo Samael Aun Weor , o Santo Sete é o Sanctum Regnum da magia sexual, o Íntimo Serviço de todas as forças elementais da natureza, onde recebe no Arcano VII a espada flamejante. Em nome da verdade, a espada flamígera dos grandes hierofantes é puro sêmen transmutado. Este é o resultado em que nos transformamos em Deuses terrivelmente divinos.
Toda a obra de Bacellar se realiza no Grande Arcano. A estrela de sete pontas faz parte inseparável do seu verso. As sete serpentes da alquimia se relacionam com os sete planetas e as sete grandes realizações cósmicas. O acróstico das sete letras e das sete palavras simboliza toda a Grande Obra. Pois os mistérios do Arcano VII são terrivelmente divinos.


PÁSSARO EM VÔO

Leitura de Aparição do clown de L. Ruas

Rogel Samuel


A primeira parte de Aparição do clown se chama descoberta:

foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque - tempo não maduro
que encontrei o sempiterno clown,
queria ver-lhe a face. e sua face
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.

Foi o seu primeiro e mais importante livro, publicado em Manaus por Sérgio Cardoso Editores em 1958. Quarenta anos depois sai uma segunda edição (Manaus, Editora Valer, 1998, infelizmente sem a "Interpretação do clown"de André Araujo, mas acrescida de prefácio de Carlos Eduardo Gonçalves e estudo de Tenório Telles). Ruas nasceu em Manaus em 1931, com 11 anos entra no seminário (em Fortaleza e Rio de Janeiro), depois volta para Manaus onde era "pároclo, professor, jornalista, crítico de cinema e poeta" (Gonçalves). Principalmente foi ele um dos maiores poetas deste Brasil e um dos mais desconhecidos. (Utilizamos aqui a 1a edição).
O mito que nasce da descoberta é o de Narciso. A descoberta do clown é a descoberta de si. O ver-se no espelho da face do outro levanta desde logo a questão reflexa do igual, que se recolhe no lago. O corpo do outro recolhe o meu mesmo transformar-se, o seu corpo de barro, seu corpo de estrelas, entre o céu e o chão se fundem o alegre riso e o triste pranto. O tempo é de metamorfose no lago da lua, tempo mítico do luar. E a referência é da Metamorfose de Ovídio, mas com a lua cheia e o lago espelho da face onde o palhaço aparece: um anti-Narciso. Seu corpo é de um demônio, um sedutor demônio, corpo de chafariz (de esperma) e de terra (de barro). A feminidade pansexual do velho clown se contagia da "boneca" que ele beija:


apenas vi o velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.



E não há sol, mas penumbra e máscara ao luar onde pouco se pode ver e saber:

e vendo ser inútil o meu esforço
de descobrir integralmente o clown
eu suplicante lhe falei assim

É a segunda parte do poema aquilo que ele fala e que se chama discurso. E o discurso se resume numa pergunta: "Quem és?", ou "O que és?" Nesse discurso também se encontram todas as principais pistas do poema, suas proposições. Canta, ó musa, o clown esbandalhado, cansado e velho, mas poderoso e eterno. Ou mesmo, em lugar de "canta", temos por antítese "faz mistério", o que é o seu propósito, esconder, esconder-se aos quatro ventos. Mas o texto diz: "canta a tua ideologia".
Mas o que isto significa? O que significa dizer "que és?"
Diz Foucault, n'A vontade de saber, que desde a Idade Média as sociedades ocidentais colocaram a confissão entre seus mais importantes rituais para a produção da verdade. Há o desenvolvimento das técnicas da confissão, o métodos interrogatórios e de inquérito, a instauração dos tribunais tudo contribui para dar à confissão um papel central, a confissão da verdade na medicina, na justiça, na pedagogia, nas relações familiares, nas relações amorosas, - confessam-se crimes, pecados, desejos, pensamentos, sonhos, doenças, em público, em particular, aos pais, aos educadores, ao médico, a si próprio, confessa-se ou se é forçado a confessar sob tortura, e tudo isso produz relatos, livros, a literatura, sob a égide do: "diga a verdade" um Presidente norte-americano se viu arguído - pois a confissão se desenrola numa relação de poder, poder que intervém, impõe, avalia, julga, pune, perdoa, consola, um ritual em que a verdade é extorquida em espetáculo.
Mas como neste clown tudo é falso, a verdade se mascara de mentira, assim como o amor, que se dá num teatro:


a bailarina lhe disse chorando - eu te amo.
ele riu. palmas. a cortina cerrou-se


E todos comem o espetáculo. Consomem-no, "carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho".
Não são espectadores, são cientistas: como "cientista da vida" é este clown. Como "anormal", o velho palhaço é inocência e maldade:


de onde vens palhaço? quê nos queres dizer?
fala que te espiamos cientista da vida
tu gargalhas no palco o que choramos na vida
......................................................................
sou criança que não aprendi ainda
o que é o belo e o feio
o pranto e a galhofa.
o que é ser e o que é não ser.
pois tu és homem palhaço tu és homem.




O centro temático do poema é este: "tu és verdadeiramente homem", e "honra e vergonha":


auréola de arcanjo
tu és verdadeiramente homem
pois tu somente revelas o segredo
honra e vergonha
que todos ocultamos



E assim se constituía, como viu Foucault, a ciência que se apoiava nos rituais da confissão e em seus conteúdos confessos, desavergonhados ou sob tortura, ciência que era uma extorsão múltipla e cujo objeto era o inconfessável, o escândalo, e é a partir daí que se constituem as ciências do sujeito, através da codificação do "fazer falar" (depois fotografar), através do interrogatório cerrado, onde havia o dever de dizer tudo e para todos (a confissão do Presidente na Internet), qualquer acidente, qualquer desvio, qualquer excesso - isto é: qualquer prazer, cujas consequências são as mais variadas, é preciso arrancar a verdade em nome da decência - e é justamente naquilo que o sujeito gostaria de esconder que se encontra o seu núcleo que tem de ser extraído à força, porque ele se esconde:


quem já viu a tua face
tua única face?
................................
todos riem somente da face mentirosa



E súbito uma heresia! O clown é a personificação do Cristo:


todos riem somente da face mentirosa
da escandalosa face que nos ofereces
dizendo que é vinho
todos beberiam porém teu sangue
seiva das árvores água dos rios lama das sargetas
e comeriam tua carne que não ofereces.
carne de elefante néctar de bonina alma de passarinho.



Mas a face engana, a máscara é vazia: atrás da face nada se esconde, a máscara oca, entre o sentido e o subjacente a máscara ri, ou melhor, faz rir: "onde está tua face palhaço onde? / além do além do horizonte / nas nuvens ou atrás da máscara?" A máscara, já se sabe, não é inútil para quem a usa. Nem inócua. A máscara é a face que a usa. E o discurso continua, "sombra de sonho".
E a máscara o convida para dançar. Ela é o inferno de si em ser o menino, "mito de farsa e de verdade".
A outra é a resposta, a Terceira Parte do poema. Que diz: "não sei", "nada sei". Apenas podemos ver as sombras sem ver a luz, como na Caverna. E aqui se encontra o magnífico verso maldito: "ser livre em essência é ser cativo".
A Quarta Parte, um aviso diz para "deixar o pássaro voar", pois a "a ilusão é mais mortífera que a desesperança". Conta que não adianta amar - o pássaro sempre voará, nunca será possível aprisionar o seu amor, e o que é aprisionado não é amor. A Quinta Parte se chama romance e aqui temos três elementos conjugados: o ar, o fogo e a água: o pássaro, a estrela e o peixe. A feminidade da água, e a masculinidade do peixe: o pássaro que devora a estrela que estava sendo devorada por um peixe. Pois o clown é dito que nasce aqui, o clown nasce da estrela, e ele, em vez de gênio, de arte, de poesia e de flor ele nasce como palhaço, palhaço dos homens. Na Sexta Parte começa o seu martírio: Prometeu que não morre, apesar de continuamente devorado vivo ("o amor nos prende e nos tortura, mas não mata"). Mas, nesse momento, seu ouve uma canção, a Sétima Parte de Aparição do clown. É uma canção de amor sem amado:


eu cantei uma canção
baixinho ao meu amado
- "não chores pequenino
não chores que eu te amo"-


eu andei por longas ruas
e por cidades perdidas
em busca do meu amor


Por isso o poeta empreende a viagem, a Oitava Parte. Viagem que não sai da praia. Em busca de si mesmo, ou seja, de seu amor perdido e mesmo desconhecido em si mesmo. Não sei, ele como que diz, não sei quem sou como objeto nem onde está o meu objeto. Ou melhor: não sei quem é o ser objetivo, a objetivação do sujeito que me constitue como sujeito e que me deu o meu signo de ser. O ser que me constitue desapareceu, e eu sujeito começo a me perder, começo a perder o sentido, deletando-me aos poucos. Não é Deus que me dá o signo, mas meu amor, meu objeto de amor que é igual a mim na face de espelho do lago da lua, a crueldade do espelho de Narciso não é se amar a si, mas sim só encontrar o objeto amado sob a pele das águas no reflexo espelho de seu lago, ou seja, tomar-se a si como outro, como se amo no outro que não tem, nem o outro, na alteridade de si mesmo, nem a si mesmo, na duplicação do que é, perde-se no mesmo. O texto, não só revela perdição, perversão, mas heresia. Dizer que há seres individuais significa dizer que são para-si - que se amam e se desejam na reciprocidade do lago. Para-si significa o retorno à unidade, a negação do outro como outro para a fusão do igual.


o mar é muito vasto e fera enraivecida
já engoliu noivos e pescadores
(...)
não procures no mar no bulício das vagas
a sombra do teu amor


A criança da praia lhe pede: "canta uma canção ao teu amor", ao que ele responde: "como cantarei cantos de amor nesta solidão? / os cantos nascem apenas da união / do brilho da estrela com o ritmo do vôo". E a criança canta uma apóstrofe, a Nona Parte, um soneto:


em vão hás de buscar pássaro triste
buscando o fruto verde não sepulto
nas praias naufragadas onde existe
a concha nacarada - peixe inculto

além de tuas patas espalmadas
o mar é brisa calma e mata bruta
as asas que se abrem limitadas
mergulham sem tocar na doce fruta

em curvas linhas retas canto e arte
te vejo entre o céu e o barro forte
comendo espaço e tempo sul e norte

buscando em vão o fruto que te farte.
quem sabe? pode ser que noutros mares
sacies teu desejo. é bom tentares



Então, na Décima Parte, o mar se abre e um dragão surge daquelas águas, o dragão e a flor. Durante a leitura de todo o poema se lê um pássaro que persegue uma estrela, como o diálogo entre a terra e o céu (como o inacessível amor, a grandeza e sublimidade do amado inatingível, como um deus). Agora, de um terceiro elemento sai o monstro que é ao mesmo tempo personificação das águas e dos seus semas femininos, como também do fogo. Terra, ar, água, céu, fogo. Se, como já se disse, houve até quem se afogasse num espelho, agora, do mar sai o dragão de si mesmo, pois o olho, que tudo vê, não se vê como dragão, o dragão do visto no visível se precipita num paradoxo da imaginação - eu não sou o outro porque nada sou no espelho das águas. O outro, que me vê, meu reflexo, surge como um dragão porque não posso sê-lo, ou melhor, não posso amá-lo - o outro é entretanto meu objeto (e sujeito de mim), o objeto é o que me impede de perder-me na vastidão do mar do sem sentido, nos sem limites do espaço do não/nada ser. Somos, eu e eu-mesmo no outro, limitados pelas dimensões significativas do espelho das águas, das águas e do nosso desejo, pelas fímbrias dos nossos seres ali confrontados. Como ser algo além da máscara? Como deixar de me confrontar com meu próprio ser se me olho no espelho das águas mascarado de palhaço de mim mesmo? No poema de L. Ruas, a aparição do clow significa aparição do monstro mascarado, da máscara monstruosa, da face da máscara do ser atrás da qual nada há: somos a máscara que nos veste, a aparência é, em si mesma, a essência, aparência que vem e ameaça quando o lago se torna o mar e o espelho do outro se personifica. É de lá, de dentro deste mar/espelho onde eu posso me ver e me afogar que nasce o dragão que me ameaça, ou seja, eu me ameaço com um dragão, eu somatizo um dragão interno que me ameaça, dragão que sai do meu peito ou das dobras de minha noite, do meu inconsciente despertar. E eu, "self made" dragão da minha interna maldade, das ruínas de mim, da arqueologia de mim ameaçando a mim mesmo... com seu amor!

uivava o mar qual leão acorrentado
sob o peso imponderável do amor
do dragão que perseguia a flor.


Ora, o amor escapa pelo pássaro para a estrela. O amor de granito, de chumbo, decola. Mas tudo se dá neste teatro assumido e de papel crepom, onde tudo é falso, o amor, a boneca, a máscara, tudo é uma farsa desempenhada no picadeiro pelo clown. O que se diz no poema é: toda grandeza cai em pedaços, tudo o que é sublime é torpe nesse picadeiro-vida - estamos todos nos vendo nas redolências de mulher da flor das flores - "oh, as flores perdidas para sempre / nos longínquos perfumes ressequidos" - e subsistimos em desgraça, na sordidez da nossa solidão.
O dragão vem anunciar que "Vênus está extinta", que o amor deixou de ser possível. Mas na praia havia uma criança que fabricava uma espada que lhe cortava a mão, espada essa para matar o cordeiro que seria servido no banquete do encontro da estrela com o pássaro - tudo muito teatral: "então a criança correu para meus braços / gritando - "não deixes o dragão me seduzir".


- que posso fazer criança que não sou
poderei salvar por acaso o eterno jogo
se habitas a praia sem dimensões
sem sol e sem luar?
por que me buscas se possues a espada
e mãos de sonho e olhos de rubi?
sou apenas sopro vento vaidade nada
pó perfume cor sonoridade luz.
que mistério é este que sugeres
tentando penetrar nestas entranhas
fecundadas pelo canto do pássaro ferido?
então o mar partiu-se lado a lado
como um véu por invisíveis mãos rasgado
e engoliu o dragão.



Segue-se um prelúdio, o prelúdio da Décima-primeira Parte, que poderia iniciar o poema todo


quatro cavalos passaram galopando
em asas de águias sustentados
relinchando como se fosse trombetas sua voz
ou ribombar de trovões enlouquecidos
olhei. estava só na praia. o mar quieto.
uma brisa dançava sobre as ondas
o prelúdio que chopin tocava soluçando.
depois vieram ninfas volitando
ao som de músicas ligeiras.
sumiram-se depois nas gotas do orvalho.
oh. a crosta espessa das palavras
que mal revelam o fulcro luminoso
da consciência do mistério vislumbrado.
quem está cantando perguntei?
rosas?
quem está cantando é o coro dos palhaços.


De que é o coral da Décima Segunda parte senão dos palhaços que dizem: "aguardai no amor / que o pássaro virá". Ao que a nênia da parte seguinte contradiz: se o pássaro não vier será a noite silenciosa, a morta noite e deserta onde "inutilmente serás". A ressurreição do baile é Décima Quarta Parte, quando o pássaro está chegando e tudo renasce, recomeça, ressuscita. Mas no retorno da Décima Quinta Parte se diz que quem retorna não é o pássaro, mas um fantasma, um anjo indiferente. Quem é esse anjo, pergunta:

quem sou? rosa anjo fagulha do inferno
semi-deus apenas gesto luz ou noite

mas nada diz do que é - ele é o amor morto do universo, o homem-mulher do positivo-negativo que move o universo mas morto, o amor está morto, é um fantasma, já se viu, ele era o fantasma dos amantes, tresloucado, que só vive nas sombras e nos sonhos: "é sombra seu império. / não trevas. mas a luz azul / que não é dia não é noite. / é luar". Aos palhaços não é dado amar, e o amor para eles são asas, somente isso: angústia "de fugir ao destino das raízes", asas de desespero, de nijinski, de ícaro, de barro, de seta, de voejos e de volutas, de anjos querubins de touros assírios de custódia de calcanhares de mercúrio de papel crepom de anjinhos meninas de procissões de avião de queda.
O fantasma é a Musa.
Mas os guizos pendentes de seus dedos dizem que ele é o clown. Ele é o Mito, o Enigma, a Linguagem. Seu corpo de feno e de melodia é o corpo amado dos quatro elementos, o motor e a paz - o sonho, a poesia a beleza o despertar a sede o que palpitante existe em nós a vida.
E ele se foi.
Deixou o seu legado, a Décima-sexta Parte. Estranho, triste e simbólico legado: deixou-nos as asas (de belzebu, de pés de bailarina, panos leves, gazes, gestos dos braços, fadas bruxas borboletas garças abelhas plumas arcanjos pássaros selvagens em bando asas de águia e asas quietas pousadas em silêncio).
O poema termina, a penúltima parte chama-se doutrina, a doutrina de ser caminhante, marinheiro, errante, sem cessar, sem ver o sol (apenas o luar / e a luz indecisa das estrelas), peregrino sempre, ave sem poder voar, clown de ser/não ser shakespeariano.
O poema termina, sim, é a despedida, a última parte:

e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória





A CONFIDÊNCIA

A voz do narrador é uma confidência, um testamento, um testemunho.
Uma prática (honesta, mas mentirosa), de fazer-se, e fazer-nos enganar por uma estória, ficção. “Fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar” (Lacan. Escritos, p. 28). “Ce serait bien là le cornble où pût atteindre 1’i1lusionniste que nous faire par un être de sa fiction véritablement tromper” (Lacan. Écrits 1, p. 31 A tradução portuguesa assim foi feita: “Seria isso o máximo que poderia atingir o ilusionista: fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar”, p. 28, grifado nos dois textos).
Engano, de modo verdadeiro (verdadeiramente enganar), finge que nos ensina, o segredo (do narrador), ou "um segredo" (do personagem). Na galáxia das falas. Mas há casos limites, quase reais: «Colibri entra na sala às 02:32:41 horas. Minutos mais tarde, entra Eros, às 02:34: 01». Assim começa um relacionamento «virtual» que conduz o leitor até o fim no livro «Colibri deflora os chats», de Urhacy Faustino (Rio de Janeiro, Blocosonline editora, 222 páginas).
Logo na primeira página Colibri grita:
«(02:37:29) colibri grita com Bob: garoto como tu es besta apenas acho incrível esse papo de qual eh o seu sexo antes de perguntar se eu quero falar contigo. eh por isso que fica ai na mão! Mas respondendo a tua pergunta: depende da tua fantasia. A principio colibri é colibri.»
Ao longo do livro, Colibri muda de nome, isto é, de nick, mas é reconhecível, encontrável. Colibri, um personagem, o personagem centralizador da narrativa, um «ente narrativo», tem um «caráter», revela-se por seus gostos culturais etc.
Mas, o que acontece quando deixamos de ser interativos, quer dizer, quando passamos a ser consumidores, leitores de um chat?
Aí é que vira literatura, leitura, escrita.
Principalmente se o «narrador», invisível, desenvolve uma narrativa só de diálogos, onde tece a mudança de condição comportamental, mental, uma espécie de personagem que se revela enquanto fala, digo, tecla.
É muito comum a pergunta, num chat: «De onde tc?», o que quer dizer: de onde tecla, onde você está, em que cidade, em que país, em que mundo?
Ali se pergunta, ali o «querer saber», de que fala Foulcault, é elevado ao mais alto grau: o grau zero.
Porque a maioria dos falantes muda de nome, de corpo, de sexo, de gosto, de idade, de experiência, de alegria e de tristeza. Em suma todos «mentem», ou seja, fazem as suas ficções pessoais. A sala de chat vira uma estranha sala de psicoterapia grupal às avessas, de dança de falas rituais, tribais, gueto de revelações e enganos, enganos verdadeiros, velados.
Ninguém ordena ali: «Diga a sua verdade!» Mas pergunta: «A que veio?» Ou seja, qual a sua fantasia, o seu fantasma? Há uma universal cumplicidade de simulacro.
Ainda está para aparecer quem teorize tudo isso e o transforme em ciência. Do comportamento. Da sexualidade. Da micropolítica. Da política do cotidiano.
Aí é que reside o valor do pós-novo-milênio texto onde a "interatividade" da forma digital pode ser compreendida como espaço estético do projeto artístico de representação através da virtualização, para além da «realidade», através da «simulação».
Em vez de a obra de arte celebrar a imitação da natureza, ela reproduz a pós-natureza da cultura dos relacionamentos virtuais, sua apresentação em um estilo de «vida computacional», retrato e parâmetro das emoções virtuais da vida sentimental pós-industrial e cibernética.
A vida depois do pós-modernismo. O «hacking» do futuro que só apareceu recentemente na literatura - naquela estética da contingência, interculturalista do pós-humanismo, os «City-Texts», as representações, a semiologia das falas, os entrecruzamentos de segmentos das falas (dos «falos»), dos desejos (as falas desejantes), no digital anonimato das madrugadas solitárias.
Pois o «Colibri deflora os chats», de Urhacy Faustino, é um romance, texto em ressonância com o que deverá ser a literatura do futuro, a literatura pós-morte da literatura.
Já em 1968, em Difference and Repetition, Gilles Deleuze vinha suspeitando de uma estética que se articulava com os "elementos, variedades de relacionamentos e singulares pontos que coexistem na parte virtual da obra ou do objeto sem ser possível designar se o real ou o virtual tem prevalência um sobre o outro" (Deleuze, Difference and Repetition, p. 208). O que Deleuze via como possível era o embrião possível da estética do momento, ou seja, de 1968, que poderia ser entendida como o início de um novo milênio, tendo como material de fruição a estética interativa do CD-Rom e da instalação virtual (ver: Digital Incompossibility: Cruising The Aesthetic Haze Of The New Media, de Timothy Murray).
Se, como viu Aristóteles, arte é mimesis tés práxeos, imitação da ação, porque as ações fazem parte da vida, e porque a vida dá significado e valor às ações, o livro digital é perfeito. Na realidade, o personagem «Colibri» se apaixona... Isso é uma desusada reação emotiva pré-virtual, comportamento arcaico, pré-histórico.
Pois «a paixão já não se usa», dizia Cocteau.
É grave. É mortal. Com a paixão não se brinca.
Eros quer «uma real», que «Colibri» não lhe pode conceder. Se saírem do ambiente virtual, o mundo acaba, e ele morre.
E «Colibri» apresenta o seu discurso, no texto final: « (04:49:00) colibri conversa reservadamente com Eros: Pois bem, se eh assim, enquanto voce estiver nesta sala, fico tambem em silencio, nao por fuga como voce (fuga sim, porque voce optou pelo impossivel: a realidade), mas fico por protesto. Veras meu nome no cursor e saberas que estou olhando para voce, esperando que me ames totalmente, aqui e agora. e se isto nao acontecer, entao te acusarei sem palavras por cumplicidade com este mundo de florestas em chamas, estilingues e asas quebradas...»
(Cai o pano, digo, a linha).





A HORA MARCADA



Sim, ela escreveu um conto onde, com hora marcada, a narradora precisa matar o personagem. Na realidade, aquela é a hora marcada de sua análise, a hora do analista. A narradora está no meio da condução do enredo de sua tele-novela, e o personagem... bem, um transtorno. “Antes ele do que eu”, dizem as vozes do texto. Quem choraria a sua morte?
Assim Leila Miccolis inicia o seu conto, e o seu livro de contos, “Achadas e perdidas”, esta obra-prima da narrativa curta, enxuta, surpresa, numa série de miniséries.
Justificativa para matar o personagem havia várias, como na novela das oito da Globo, “Mulheres apaixonadas”: a novela andava “em fase minguante”, “vítima da calmaria”, - a inesperada morte poderia despertar o torpor do “respeitável público” – mas nada de sangue escorrendo, de perseguição e morte, qual filmes americanos, ou na novela supra, mas apenas uma mancha colorida (ou preta), como a marca de baton da amante na gravata do cianoreto do coração – este conto é um verdadeiro tratado de escrever um enredo, telenovela conto ou romance, e de como agradar em duas páginas... Leila prestidigita a narrativa com seus rápidos, irônicos comentários bem-humorados... morrer, matar de morte indolor, mas a quem? Ao Pai? Ao Macho-Poder? Ao Falo (o que decide a fala)? Ao poder do analista de decidir quanto a Cura (se é que se dá?). Matar no divã “dia da alta” do analista que a largava, mesmo ela, “não sendo anti-Salomé”, a sua cabeça estava ali, a prêmio, sim, da narradora, no sofá do analista matava a todos, e a todas, não os seus queridos personagens, mas as ”super star” vaidosas, os galãs esnobes, legiões de atores, autores, bibliotecas inteiras caíam cruelmente assassinadas pela narradora, ou melhor, por mim mesmo, o seu cúmplice Leitor que, “por razões inconfessáveis”, demitia, um a um, os seus ídolos literários no divã da leitura das duas páginas de “Hora marcada” de Leila Miccolis, cuja narradora, agora curada, pelo analista, torna-se impotente pela ética, esse poder avassalador de edítica manobra, o impasse editorial, profissional, da Ética cura, da razão, que, ou pior, aguardava sua “ordem de comando”, perguntando: “E então?”
“Não, decididamente não posso, não matarei...”, responde o super-ego da Curada, da Justiça, a claridade da luz do dia em que o seu analista lhe deu alta, mas no meio da estrutura da novela que ainda estava no ar, e que precisava urgentemente acordar.
O conto funciona como prefácio dos outros do livro que vem com mini-séries transformadas em deliciosos contos, e vem com filmes, os “curtas” transliterados em meta-linguagem – Leila diverte na diversidade de sua visão da realidade e do seu ofício de escritora, também, de roteiros de tv. Que nunca tinha lido com tanto gozo a vida interna, intestina, das novelas que Leila transforma com muita arte em meta-ficção.
Todos que estudam a técnica de criação de roteiros não devem deixar de ler este extraordinário meta-texto, povoado de narrativas e personagens femininas “ achadas e perdidas”, tais como o feminismo as vê.
Mas a visão feminista de Leila Miccolis, entretanto, não é anti-machista, raivosa, irada, rancorosa, mas muito bem humorada e divertida de pós-modernidade (no que este termo tem de abrir caminhos próprios pela experimentação da literatura “descartável”, tal como na Internet, da escrita que não se leva a sério, mas que faz pequenas obras-primas da vacuidade, da inocuidade do cotidiano, etc).
O livro é, neste sentido, único. Surpreendente.







O VERÃO


O vento. Chega o verão. Com sua preguiça. Com seu mormaço. Seu cansaço. Também chega o erotismo. As chuvas. Com o sol. O sol na alma. O verão ventos
velozes. Verão de mar. E amar. O verão amazônico. Diz o grande Bacellar:

No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldará nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.

Verão de livre azul. De nuvens e de tardes. Verão inania verba de Bilac:

Ah! quem há de exprimir, alma impotente e escrava,
O que a boca não diz, o que a mão não escreve?
..................................................................
E as palavras de fé que nunca foram ditas?
E as confissões de amor que morrem na garganta?

Hoje passei pelo verão. Pelo mar, distante. Um fio de preguiça perfumada me fez ficar, perder-me. Naquele limite da linha do horizonte me firmei. Que sonhos trará este verão, com os seus mornos dedos azuis? Passa uma brisa...

Num arrepio de pressentimento
o ruflo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.
Todo verão proclama: a tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai...
A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti roçar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?
(Bacellar disse).

Sim, o verão. Sua luz. Sua amplidão. De muros claros. Seu cimento caiado, de Cabral. Reflete o branco o sol, o lento sol. E à noite suas inquietas estrelas.

As ilhas de Fernando Pessoa, quando...

Evoca estrelas sobre a noite estar
Em afastados céus o pórtico ido...
E em palmares de Antilhas entrevistas
Através de, com mãos eis apartados
Os sonhos, cortinados de ametistas,

Sim, o Verão. Na transparente solidão do ar, em ruído e em bando, o triunfo dos pássaros. E, no horizonte, cortinados de ametistas praias espalmadas palmares. Vistas entrevistas. Distantes diamantes no espaço, no imperfeito sabor. O ver verão. Nas asas sobre a praia, "Para onde vai a minha vida, e quem a leva?" (tece Pessoa:)

Não tenho sentido,
Alma ou intenção...
Estou no meu olvido...
Dorme, coração...).

Mas é mais verão no Rio. Só aqui o verão ganha significado: vida, pulsa, sua, lateja. Anuncia carnaval. O Rio mostra que está vivo. Como nunca. Esquecemos a idade. Tudo passa na Avenida, flores alvas das saias das baianas. O Carnaval, sonhado. Brilham fantasias. Internas. Em grandes blocos desfilam meus mortos, meus sonhos mortos. Meus personagens. Por isso:

nesse carnaval entôo em surdina
breve texto esta canção
desenvolvendo a paisagem cristalina
tinta azul, papel na mão
espuma do ar mantida em vestes finas
toldo de amor que aparelha e envolve
e te molesta a alegria matutina
passando o pente no tema a minha senha
e ergues a tricotar a estrela fescenina
brincando de tua passarela
e sonhada é férrea a tua serpentina
borboleta de papel de seda
que me despeço de tua face de menina
teu aço besuntado de abelha

Só o Vento... O verão.



RECEITAS DE AZUL



O famoso verso: 'Tome um pouco de azul, se a tarde é clara', de Carlos Pena Filho, lembra que foi Rimbaud quem inventou a cor das sonoridades vogais. A cor azul fala do som 'O'. Veja a tradução de Onestaldo de Pennafort:

O, fanfarras, clarins, trons de vitória, brados,
O, silêncios azuis de anjos e sóis povoados,
O, clarão vesperal, violáceo, dos seus olhos!

São esses silêncios azuis que só os anjos sabem, os sóis povoados de luz dos seus olhos, clarão vesperal, brados.

Para ele, e não pergunte por quê, o 'O' é azul. Leia a tradução de Augusto de Campos:

O, supremo Clamor cheio de estranhos versos,
Silêncios assombrados de anjos e universos:
-Ó ! Ômega, o sol violeta dos Seus Olhos!

Com a tradução muda o poema todo. Para fazer-se um soneto azul, se deve, pois, proceder da seguinte forma, diz o poeta Pena Filho:

Tome um pouco de azul, se a tarde é clara
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Esse deus - esta musa, a inspiração, desce da 'súbita mão', de que fala Pessoa. Em 1917:

Súbita mão de algum fantasma oculto
Entre as dobras da noite e do meu sono
Sacode-me e eu acordo, e no abandono
Da noite não enxergo gesto ou vulto.

No 'Soneto do Desmantelo Azul', diz Carlos Pena Filho: ' Então, pintei de azul os meus sapatos '. Por onde ele andou?
Brinca de azul Carlos Pena Filho, no 'Soneto do Desmantelo Azul':

Então, pintei de azul os meus sapatos
por não poder de azul pintar as ruas,
depois, vesti meus gestos insensatos
e colori, as minhas mãos e as tuas.
Para extinguir em nós o azul ausente
e aprisionar no azul as coisas gratas,
enfim, nós derramamos simplesmente
azul sobre os vestidos e as gravatas.
E afogados em nós, nem nos lembramos
que no excesso que havia em nosso espaço
pudesse haver de azul também cansaço.
E perdidos de azul nos contemplamos
e vimos que entre nós nascia um sul
vertiginosamente azul. Azul.

O poeta amazonense Sebastião Norões é autor de um famoso soneto - 'Mar da memória' - Lá o azul vem do mar:

Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
em ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.

Lá o azul do mar está pintado de 'ânsias de infinito', de vôo, de pensamento cujas distâncias fomentavam longes sonhos, o meu mar, o meu mar interior, o tamanho mar de quando ele era meu mar.

Para fazer-se um soneto azul deve-se esperar, fiando-se no azul do ar, da palavra inicial: 'que moldará nas nuvens no momento / de apascentá-las pela tarde pura' (Bacellar), e começar por lembrar 'que o mar era meu, o mar azul' (Norões). A cor local deve ser a do 'sol de sua cara / e um pedaço de fundo de quintal ' (Bacellar).

Mas nunca o mar foi tão vasto quanto nesses versos azuis de Le bateau ivre (Trad. Augusto de Campos):

E das manchas azulejantes dos venenos
/ ...... /
Onde, tingindo azulidades com quebrantos
/ ......./
E o acordar louro e azul dos fósforos canoros!
/.........../
Áureos peixes do mar azul, peixes cantantes...
/ .................../
Líquens de sol e vômitos de azul escuro;

É de Bacellar o soneto do verão:

No livre azul o sossegado vento
lívido sonha linhas de escultura
que moldará nas nuvens no momento
de apascentá-las pela tarde pura.
Num arrepio de pressentimento
o rufo de asa risca na brancura,
o sol arranca brilhos do cimento
do muro novo, a folha cai. Madura.
Tudo o verão proclama: a tarde limpa,
esmaltada de claro; pela grimpa
do morro verde a cabra lenta vai...
A luz resvala na amplidão sonora.
Por que senti roçar-me a face agora
um beijo, um frêmito, um suspiro, um ai?

Azul é o céu, é o espaço. Azul é profundidade, a transparência, o vazio, a liberdade. No livre azul, no mar azul, um pouco de azul da tarde, perdidos de azul, vertiginosamente azul. O azul onde passa o vento.

Termino com Rimbaud:

No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.






FAZ FRIO


Faz frio, no Rio. É muito estranho, quando faz frio no Rio de Janeiro. Quando me perguntam qual o pior problema desta cidade, eu digo: O calor. Não é a violência. Você acaba se acostumando, com a violência. Você aprende a andar na corda bamba, a desconfiar, sabe por onde pode não pode andar. Eu fico imaginando se houver falta de luz, durante o verão. No meu mini-escritório, desde cedo ligo o ar-condicionado. O computador passa o dia todo ligado. Sem energia, fecho tudo, vou-me embora. Mudo-me para Poços de Caldas. Manaus é uma das cidades mais quentes do mundo. Mas sinto-me bem, ali. Minha saúde melhora. Manaus me lembra Luiz Ruas, seu grande poeta. Autor de Aparição do clown. L. Ruas faleceu há poucos anos. Ninguém falou dele. Nem em Manaus, creio. Quase ninguém o conhece, quase ninguém o lê. Seu livro ficou décadas esgotado e incógnito.

O poema começa com uma "descoberta":

foi no tempo do luar pois não existe sol
no velho parque — tempo não maduro —
que encontrei o sempiterno clown.
queria ver-lhe a face. e sua face
era imenso lago azul parado
onde a lua se repetia. lua.
queria ver seu corpo — um chafariz
era seu corpo de barro modelado
aljofrando de estrelas e de pérolas
o céu e o chão banhados em azul.
apenas vi e velho clown beijando
uma boneca. e beijando-a chorava.
e ria ao mesmo tempo que
o destino dos palhaços é fundir
à luz da lua o alegre riso e o triste pranto.

E termina com uma "despedida":

e o velho clown partiu beijando ainda
o brinquedo que a criança abandonara
no velho palco parque ou tempo sem memória.

Começa e termina num "velho parque", onde se encontra um "velho clown". Era no tempo do luar, quando ainda existia luar. A face do clown era uma máscara, ou melhor, era imenso lago azul parado. A lua refletida no lago era o próprio lago. Onde a lua se refletia, "se repetia". Desde o início do livro há um palhaço, uma boneca, e uma tragédia que não se revela facilmente. O livro é enigmático, povoado de labirintos de sentidos. O tema se dispersa em várias armadilhas. Dir-se-ia que o autor, Luiz Ruas, que na vida real era padre, tenta esconder suas emoções amorosas a cada passo, a cada frase. Olha-me, sou enigma, diz, a cada verso, aquele "palhaço", que ama uma boneca sem vida. Há mesmo uma presença sexualizada em cada metáfora, como se a máscara escondesse o desejo e seu objeto. É um dos livros mais profundos que já se escreveu, em língua portuguesa.
Faz frio, no Rio. O céu está escuro e triste. E eu me lembro do calor de Manaus, do seu sol aberto, das suas noite de luar e do poeta Luiz Ruas, que arrastou seu sofrimento para o túmulo,

sem ver o sol, apenas o luar
e a luz indecisa das estrelas
recriam esta mascara e fonte
do riso e da tristeza que oculta
o meu rosto e corpo verdadeiros.
e assim caminharei eternamente
peregrino sempre sempre marinheiro
carregando meu fado torturante
- semente feto messe em promissão —
de ser ave sem poder voar
de ser clown isto é ser e não ser.



NA TEIA DOS LABIRINTOS SEMÂNTICOS



Livros raros os como esta «Teia dos labirintos» de Mirian de Carvalho (São Paulo, Escrituras, 2004), volume, obra escrita em versos, sim, sim, que não se trata de um grupo de poemas, seja, conjunto de poemas reunidos em livro, com um título para os agrupar; mas é um só poema quase, um poema só, um trabalho de articulações poemáticas e temáticas estrutura os vários poemas, costurados, entretecidos, de forma que o que lhe dá a característica de livro não é só o título, mas o conjunto conexo, a urdidura unitária do construído bloco, um elemento só, livro que é labirinto significativo mas e onde se entrança o leitor e ali penetra, como numa livre pesquisa e sonhada, fechada no seu tema polissêmico, com começo, meio e fim.

* * *

A «Teia dos labirintos» é construída em blocos: fio de Eros, nas malhas da lenda, urdidura simbólica, liame de ascensão, laços notívagos, e tecedura das coisas.
Cerzido em ciclos o vocabulário do primeiro bloco aparece, costurado, talhado, nervorisado, no visgo da aranha textual, em tecido, o tear, rendas e novelos. Pelos e gozo. Laços e afetos na fímbria da bainha do tecido de um «laborioso tear, mostra-se à flor da pele / em urdidura de flores de fios». De sombra e luzes são tranças, desejos, cabelos, visceral trabalho de uma fiandeira-mãe, faminta de espera, de esperma, no tremular de fieiras de grinaldas em gemidos da sua trama, em seda do «amoroso lavor / de pontos de trespasse», como poesia costureira.

* * *

Do segundo bloco o vocabulário vem do «Livro de Jó», do passado, da origem e de outras tradições, como a do islamismo, do hinduismo, budismo, bramanismo, helenismo, e mais, e os deuses olímpicos, de África, da Micronésia, configurando uma polimorfologia, uma múltipla cosmologia temática.

* * *

Depois vem aquela urdidura simbólica, e armadilha, onde orifícios e linhas, num jogo de fiandeira e numa galáxia de tramas, ungindo luas, luzes e amores, se enfiam nos fios de ouro dessa visão de sublime e no final de fugas de um aranhal de luares, e redes de encontros (e desencontros), impulsos, raízes, insetos e vazios, «destilando a seda», «em imaginária agulha».

* * *

Há agora algo que sobe, o vazado, a costura, o tecido, o telhado, as vidraças, os pássaros, asas, calhas, naquelas arquiteturas «às barbas do sol», onde o tempo se derrama, se proclama, em laçadas e filigranas. Toda a poesia é e está no vocabulário (afinal, a poesia está no dicionário), que traça desenhos e galhardetes entrecruzados rendilhados bordados laços de vida e de morte rios de linha floresta de telas cavernas de luz e lua.

* * *

«Laços notívagos» desce aos pântanos, às redes de ferro do fundo da noite do mar, da memória subterrânea, dos presságios dos becos da terra prenha das sombras incertas dos buracos negros onde estão os fantasmas e aquelas águas verdes das algas das vozes antigas e mortas.

* * *

E assim se fez «a tessitura das coisas» adormecidas, vindouras, fiapos do vazio de oriente na trilhas de desertos exilados arcaicos onde as escamas prove a fome dos desígnios dos homens, e os morcegos expandem suas cavernas de nanquim, lá recolhendo o fôlego e a força dos homens...

* * *

Mas o belo livro termina com uma prece de São Francisco que diz:

Ao cair da tarde, na voz das aves
minha Oração de São Francisco.




PÁSSARO DE CINZAS



É um livro enorme, 1.099 páginas. Gosto desse tipo de livro. «Obra completa». É bom ver a obra inteira, integral, completa. Não acho este vasto volume vai ser completo, final. Mesmo com mais de 80 anos, Lêdo Ivo continua com fôlego. Basta ler o seu último livro, o «Plenilúnio», com poemas de 2001-2004. Um dos seus melhores.
Gosto sim dessas obras completas, mas raramente leio as introduções críticas. Como sou um crítico literário medíocre mas de carteirinha, profissional, raramente leio os confrades. Com exceção, claro, dos gênios, como Roberto Schwarz , Haroldo de Campos.
Pois me enganei: li, e com admiração, o texto introdutório de Ivan Junqueira. Apesar da ironia no título («Quem tem medo de Lêdo Ivo?»), traça excelente visão da poesia do poeta e da poesia brasileira como um todo.

* * *

O primeiro poema de «Plenilúnio» dá nome ao livro e surpreende. Na força, quase brutal, de seus versos, que dizem:

Uma lua enorme
paira no céu pálido
..................
lua dissoluta
dos filhos da puta

Depois o poeta, em «Soneto da neve», conta da neve «branca como o esperma», e inveja a noite, «cobra escondida / entre as bananeiras», e «os anjos ocultos no bosque», e «as almas, como o gelo, se evaporam / no dia findo», onde «galinhas brancas / ciscam o universo». O poeta se encapsula «na rua General Polidoro»: «minha vida eterna / é problema meu» ou no «Soneto injurioso», onde «o silêncio sucede ao barulho infernal / Assim será a morte, assim será o dia / em que a morte virá, fria como uma jia».

Assim será a morte, a velha puta escrota
que avança para nós escondida na bruma.

Isso me ocorre, porque eu o lia na praia.
Interrompo a leitura. Olho o mar. Quatro engraxates descem a praia. São quatro meninos parecidos, morenos. Dois devem ser irmãos, mesmo gêmeos. Um alcoólatra entra na água. O avô e sua netinha chegam na areia. Uma «balzaquiana» rebolando se aproxima. A mãe se preocupa com o casal de filhos que correm. O rapaz põe seu cão para nadar. O velho sem barriga ainda se pensa jovem atleta e passeia de peito estufado, jogando os braços. O casal de amigos passa e me vê. Acena, e passa. O sol.

* * *

Então o celular me chama. É um amigo, me avisa que Graça de Carvalho morreu. Ela era minha amiga. Grande poetisa. Filha de Farias de Carvalho, autor de minha preferência. Graça andava deprimida, tinha 57 anos. Se tanto. Eu adiava visitá-la, em Niterói. Devo a ela um livro raro, de Farias, «Canção de bem amar...». Farias, meu ex-professor, em Manaus.
O primeiro poema de «Pássaro de cinzas», de Farias de Carvalho, que deu nome ao livro, e é assim seu «Prólogo»:
Desses mortos ocasos esquecidos
chega-me agora o pássaro de cinza;
de ontem são suas asas, de silêncio
o seu bico pousado sobre a ponte
entre o vencido vale e o bosque a entrar,
bica-me o peito onde marés antigas
jogam restos de mastros e fantasmas
desses velhos piratas que ficaram
tatuados na penumbra de olhos idos.
E sem saber talvez do inútil intento
ninha o vazio do momento, à espera
da comida do sonho que ontem davam
essas mãos que se foram, consumidas
nesses mortos ocasos esquecidos...
Encontrei a nova edição de «Pássaro de cinza» na livraria do Aeroporto, de volta ao Rio. Eu antes dispunha de um xeróx feito na Biblioteca Pública do Amazonas, há décadas. Era 28 de dezembro de 2.000, o avião lotado dos que vinham para o Reveillon, um clima de «fim de siècle » pairava no ar. A meu lado um cavalheiro estrangeiro lia um livro, com gravuras. Sério, aborrecia-se cada vez que eu saía de meu lugar para andar, estirar as pernas, no corredor do aeroplano. Irritava-se com minha incontinência. Em pouco o calor da manhã clara de Manaus foi substituído por um tempo chuvoso, feio, frio, escuro, de Brasília. E eu voltava, voltava, continuava, continuava lendo, relendo, o poeta, o professor Carlos Farias Ouro de Carvalho. E vi os 35 anos se passando, desde que o vi pela última vez, no Colégio Estadual do Amazonas. Farias parecia com Orson Welles, era gordo, moreno, os olhos esbugalhados e poderosos, carregados de genialidade, sorriso delirante, dramático, gestos largos, voz tonitruante, grave, minha leitura prosseguia, eu revia todos aqueles poemas de meu Professor de Literatura, de vida, moreno, gordo, talentoso, imponente, belo, que faleceu em Niterói, fazia “cartomancia clínica” em Niterói, dizem, inventava sonhos, futuros, inventariava profissões, ressuscitava esperanças mortas, profetizava, arregimentava os signos do zodíaco e orquestrava novas configurações prestidigitadas. Farias, figura extraordinária, agora reeditado pela Valer. Quanto vale a sua poesia? Quem sabe. Ele faz parte do quarteto de ouro: Norões, Bacellar, Tufic e Farias, os quatro grandes da poesia do Amazonas, que fazem parte de meu arcabouço intelectual, tão improvisado. Sou um provinciano. Manaus é para mim minha pátria espiritual, mas não parece. Quando vou a Manaus só permaneço 3, 5 dias. Carrego Manaus dentro de mim. Não preciso estar lá. Farias faz parte de minhas mais antigas leituras. Me deu aula de vida, de alegria, de charme, de dignidade, nobreza. Ninguém tão elegante quanto ele, no gesto largo da mão gorda, na inclinação da face, na inflexão da voz, nas metáforas exatas, Farias cantava as aulas, declamava, não reclamava (nunca nos repreendeu), me ensinou a Poesia, a Ousadia, a Superação, ele foi um pai, um amigo, um exemplo, um grande exemplo de educador, no mais elevado sentido desse incômodo e errático termo, e hoje escrevo estas notas, vindas de longe, do tempo em que Farias exercia sobre a minha consciência de adolescente um papel mítico, imortalizado na arquitetura de seu «Pássaro de cinza», dedicado ao Dr. João Veiga, meu médico de infância e adolescência triste e doentia, solitária e incompreendida, Veiga na sua bela casa da Getúlio Vargas, casa que não mais deve existir, aliás nada mais existe, nem Farias, nem Graça, tudo desapareceu no fundo da noite, dos anos, e se, na hora de minha morte, as imagens de minha vida se projetarem na minha consciência que se extingue, virão como um pássaro. De cinzas.




PAULO JACOB




Sob vários aspectos, ele é o maior romancista da Amazônia.
Não é muito lido, conhecido, porque autor difícil, sofisticado.
Sua morte, no dia 7 de abril do ano passado, abre questão grave quanto à divulgação da cultura nacional brasileira.
Sua morte não chamou atenção.
Não se soube.
Eu mesmo, amazonense de Manaus, onde morava o escritor, não tive conhecimento.


* * *

Vim a ouvir da boca de um chofer de táxi, em Manaus, no dia 18 de junho.
Dizia-me ele:
- ...Por ali , na rua onde morava aquele desembargador, que morreu no ano passado...
A rua, cujo nome não me ocorre, fica ao lado do Igarapé.
A casa, em frente ao igarapé, exibe a vocação de Paulo Jacob. Em Manaus, mas sempre voltado para a Floresta. Que ele conheceu bem, pois foi juiz em Canutama, no rio Purus, em 1952, e durante 10 anos viajou pelo Amazonas.
Até que, nos anos 60, foi promovido a desembargador do Tribunal de Justiça.


* * *

Paulo Jacob escreveu muito. Muito. Cerca de 10 romances bem trabalhados.
Quase ganhou o maior prêmio nacional de literatura da sua época, o Walmap, em 1969, com «Dos ditos passados nos acercador do Cassianã», 2º lugar. Excelente livro, imenso, denso, 359 páginas de um tipo pequeno, corpo 10 (Rio de Janeiro, Bloch, 1969).
O Walmap tinha juízes como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Antônio Olinto.
Os três deram o 4º lugar para «Chuva branca», em 1967, um dos seus mais belos livros. Outro livro, «Vila rica das queimadas», título bem atual, ecológico, também ficou entre os finalistas do Walmap. O título denuncia, como o livro: «O coração da mata, dos rios, dos igarapés e dos igapós morrendo», sobre o desmatamento. «Chãos de Maíconã» também «menção honrosa» do Concurso Walmap.


* * *

Festejado foi pela crítica, Paulo Jacob.
Leila Miccolis o considera «o Guimarães Rosa da Amazônia».
Guimarães Rosa ficou entusiasmado com «Chuva branca».
Aguinaldo Silva diz que ele fez «o primeiro grande romance da Amazônia».
Assis Brasil compara «Chuva branca» a «Sagarana» de Rosa e a «The wild palms» de Willian Faulkner.

* * *

Ler Paulo Jacob é dificuldade. Chega que ele, em «Chãos de Maíconã», anexou um vocabulário da língua ianoname, no fim do livro.
De um «Dicionário da língua popular da Amazônia» também ele é autor

* * *


Paulo Jacob nasceu em 24 de fevereiro de 1921 e faleceu no dia 7 de abril de 2004. Escreveu ainda: Muralha verde (1964), Andirá (1965), Estirão de mundo (1979), A noite cobria o rio caminhando (1983), O gaiola tirante rumo do rio da borracha (1987), além dos citados acima.


* * *

Em «Chuva branca», o personagem vai-se adentrando, vai-se assimilando na floresta, vai-se afastando da civilização, até que no fim parece que nem existiu - vira mito. No fim, na morte, ele tira a roupa, fica nu, perdido na mata, integrado nela, sabendo que vai morrer, perdido e integrado, no mitificado.


* * *


« O gaiola tirante rumo do rio da borracha» narra a viagem de um navio, um gaiola, um barco a vapor, saindo de Belém até o outro lado da Amazônia, no rio Purus até subir o rio Iaco, onde o navio naufragou e ali se soube que o preço da borracha despencara, de quinze mil réis caiu para oito, pondo na falência todos os coronéis. O personagem é o Comandante Antonio Damasceno.

* * *


Paulo Jacob foi professor universitário e Presidente do Tribunal de Justiça. Como Presidente de tribunal chegou a assumir o Governo do estado, em 1982. Sua morte deixa aberta a vaga de melhor romancista da região Norte.




A POESIA DO QUE QUIS


Renato de Carvalho escreveu a elegias do nosso tempo. Ele escreveu: «Volta / Vem depressa / E me renova / o abraço.» Mas não se referia (somente) à amada, mas à juventude - é o livro do poeta amazonense Renato Augusto Farias de Carvalho «Poesia do que eu quis» (Niterói, Clube de literatura Cromos, 2001) - ele canta o tempo, e no tempo o amor, e no amor a perda, e na perda o vazio, as vastas «asas de porcelana»:

As caras das visitas
E os retratos nas paredes
Tudo mais são segundas
E marcas de bundas
Na vazia cadeira
De cana.

Ele fez da poesia o que quis, como um «sentinela sonolento antes do término»:

Combinei contigo o afeto trágico
E já mesmo desatei o desejo mágico,
Quando pára no meu ermo
Mundo
O tablado vasto e vazio
Do quase último delírio.

Seus poemas cantam as «ex-esperanças», o «sem companheiro para repartir», o desalinho a cama o cabelo branco a velhice o querer - o não do «não há mais clima» - o sapato sem guia, o macho espiritual que tinha pernas, a prata antiga do anel, o travesseiro das idéias, «o meu soneto, absorto e louco», o cigarro emprestado, o meu cenário sem texto, a ingênua lágrima, a noite estúpida e longa dos homens sós, o gozo do coletivo adeus...

Mandei construir amarelas
Todas as minhas janelas
Me pus ao reflexo da luz
............
a minha pálida vida
mesmo assim
... uma vida tingida ...

É um grande poeta do cotidiano de nossas grandes cidades solitárias, individualistas e perigosas, em que ficamos em casa para não morrer, em que ficamos em casa para não amar, no sem amor das noites e tardes ocas, como fantoches das incertezas e das verdades, nas nossas casas inexistentes, insones, isolados, exilados.

Não vejo mais
Mangueiras das manhãs verdes

O poeta - sentindo-se esquecido - pressente a chegada de sua irmã, a morte:

Há que seres recebida
Não assim, como estou.

Pois o poeta pretende vestir-se, apropriadamente, para recolher as suas estrelas e, depois, fechando os olhos, «reinaugurar a vida!»

Renato escreveu a elegias do nosso tempo.








ESTRANGEIROS



VALERY

OS LIMITES DA LUZ DE MAIO


Mas você conhece a luz dos dias de maio? Já viu o céu e aquela luz filtrada em transparência luminosa, aquela luz azul, radiantemente azul, de um azul tão alto, tão nobre, tão vasto? Sabe de que é feito aquela imensa luz do universo em festa? Sabe de como tudo se transmuda em cristais de límpido brilho dos pequenos córregos que caem das altas montanhas como crianças bailarinas e jóias lantejoulas? E sobre as cidades como sobre os campos a luz de maio deita seu limo de íris e de poesia irisada. Já ouviu a música da luz de maio? A "rosa de maio", os lúcidos arpejos dessa temporada em que amamos e em que nosso espírito dança? Pois merecemos viver o mês de maio e suas fragrâncias, nos sagrados bosques de nossas florestas interiores e nos recolhimentos de nossos sonhos renovados...
A visão do mar me lembra uns versos de Valery:

"Que lavor puro de brilhos consome
"Tanto diamante de indistinta espuma
"E quanta paz parece conceber-se!
"Quando repousa sobre o abismo um sol,
"Límpidas obras de uma eterna causa
"Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria.

Valery escreveu esses versos no longo poema "Cemitério marinho", tão difícil de compreender, mas tão fácil de amar, de sentir. Mas creio que a "função" do poema é esta: a de ser sentido.
Terá a poesia alguma "função"? Precisa o poema ter certa compreensão intelectual?

"Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
"Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
"O meio-dia justo nele incende
"O mar, o mar recomeçando sempre.
"Oh, recompensa, após um pensamento,
"um longo olhar sobre a calma dos deuses!"

A tradução é de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia, que conheci na FNFi nos dias de estudante.
Olhar o mar é isso: ver a calma dos deuses, nas faiscações de pasta de prata. O mar acende seus pandeiros de prata, sua luz miraculosa azul.

"Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
"O sopro imenso abre e fecha meu livro,
"A vaga em pó saltar ousa das rochas!
"Voai páginas claras, deslumbradas!
"Rompei vagas, rompei contentes o
"Teto tranqüilo, onde bicavam velas!"
...............

'Tesouro estável, templo de Minerva,
"Massa de calma e nítida reserva,
"Água franzida, Olho que em ti escondes
"Tanto de sono sob um véu de chama,
"- Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
"Cume dourado de mil, telhas, Teto!"



Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido assim, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trabalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.






RIMBAUD



Louco, louco de sua poesia delirante, é o Bateau ivre, de Rimbaud, na tradução de Augusto de Campos:

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.
.......................................................
No meu torpor, não posso, ó vagas, as esteiras
Ultrapassar das naves cheias de algodões,
Nem vencer a altivez das velas e bandeiras,
Nem navegar sob o olho torvo dos pontões.

A primeira estrofe de 'Le bateau ivre' de Rimbaud (Trad. Augusto de Campos) assim canta:

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.
Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

Que significam esses 'Rios impassíveis'? Que 'eu' é um rebocador?
Ora, numa interpretação bastante ousada, poder-se-ia dizer:
O poeta genial arrasta consigo o cursor da poesia moderna, que ele inaugura. Tinha ele - e o verso confirma - a completa consciência de que estava criando a Poesia, como criou, a poesia moderna, a poesia visionária, a poesia decodificada com o que em poética se fez, a super-poesia que aquele 'rebocador' arrasta para o Grande Oceano da Linguagem, o mar aberto de nossa imaginação incontrolável, do que se fez depois dele, do que se ousou escrever depois dele, do que depois dele se alargou, se experimentou, no horizonte das possibilidades daqueles 'cortinados de ametistas' de que falava Pessoa.

Quando eu atravessava os Rios impassíveis,
Senti-me libertar dos meus rebocadores.

Aqueles rios da força da Linguagem sempre estariam 'impassíveis' no barco da arte até ele, bêbado da liberdade de sua escrita, liberar, sair dos diques clássicos, românticos, parnasianos, por onde atravessou, e dessas amarras de ferro se abrir, partir, voar ( 'Então eu mergulhei nas águas do poema').
Todo o poema é, para nós, a 'arte poética' de Rimbaud, o pioneiro.
Talvez nunca mais apareça um poeta como ele.
Por quê?
Quem, das amarras dos cais dos rios por onde conseguia passar o ritmo de seu verso, a travessia do seu navegar e discorrer - quem se soltaria das amarras linguísticas imagísticas formais - quem mais se libertou que não fosse no caminho que ele abriu e desvendou, ele?
Por quê?
Porque foi a partir dele que a poesia se desatou, para um panteísmo diversificado, para adquirir a forma lógica interna, a forma lógica própria, a forma lógica por onde cada grande passo estabelece suas próprias caminhadas no desconhecido, na invenção, depois cada poeta teve de reinventar a própria poesia, suas novas leis, expor suas novas normas, suas não-leis e não-normas.
Rimbaud canta a liberdade!
Confesso que leio e releio este poema, sempre, obsessivamente, e que ao longo dos anos não me canso de ler, nem esgoto a leitura, e a cada leitura me conduzo a um paraíso diferente universo.

Cruéis peles-vermelhas com uivos terríveis
Os espetaram nus em postes multicores.

De onde Rimbaud vai tirar aqueles ' Cruéis peles-vermelhas '?
A aparente confusão do primeiro ponto se deve a que Augusto de Campos traduziu [e muito bem] 'haleurs ' por 'rebocadores' e não ' sirgadores ' (ou puxadores com sirga, com corda). O que, na realidade, fica mais verdadeiro, mas menos apropriado ao poema.
A tradução de Augusto de Campos é, em cada caso, ótima, perfeita, excelente. Mas criadora. Ou seja: inventa. E faz bem.
Os 'sirgadores' - nautas que o levavam - mortos por índios, sacrificados a flechadas, como disse Augusto Meyer.
A idéia de novidade, na época, estava associada, talvez, à América, com seus peles-vermelhas.
Significa que o poeta, o tema, quer pular o Oceano, mergulhar no Futuro, a saber, na América, no Novo mundo da Nova Poesia a inaugurar, na poesia selvagem e indígena a falar?
De onde o Rimbaud vai tirar os índios senão do Porvir?
Rimbaud não deixa escapar o fato, a imagem, para dar ao quadro uma enorme sensação de escândalo, o escândalo do futuro, toda novidade é escandalosa: o sirgadores estão nus, os postes são coloridos, ali especados, alvejados.
A confusão, ou melhor, a transferência entre 'rebocadores' e 'sirgadores ' é a mesma que faz do sujeito do poema a própria barca bêbada, o navio fantasma.
Sim, Rimbaud pintou o quadro do futurista futuro, a partir do tema do navio fantasma (que na época era comum, e ainda hoje o é).
Com ele morre o certo e se inaugura a aventura.



MALLARMÉ

A APARIÇÃO NA ALAMEDA



Canta o poema «Aparição» de Stéphane Mallarmé (1842-1898), na deliciosa tradução de Onestaldo de Pennafort:

A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
- Era o dia feliz do teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando, trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde apareceste rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.

Se nós «traduzíssemos» - a lua se entristecia - poderíamos melhor sonhar com a atmosfera do poema. Sim, a lua se entristecia, como os arcanjos que voavam ao redor. A lua se entristecia e fazia os arcanjos chorar. Ou fazia chorar as suas violas lamurientas. O branco vem da lua para os «ais» das violas... Mas por que se entristeceria a lua? Aquele era o feliz dia do seu primeiro beijo, feliz e não triste. O poeta ia colher um sonho, o beijo do verso musical. O arco nas mãos dos anjos soa um pouco fálico, mas em Mallarmé tudo é obscuro. Ele ia, caminhava à toa, olhando o chão velho quando ela aparece com seu sol nos cabelos. Com seu punhado de estrelas nas mãos, para a criança, estrelas perfumadas. O poema parece simples, claro. Mas não, nunca se sabe. Em Mallarmé não.
A lua estava triste, mas o sol aparece. A tristeza ia ali, até que aparece o sol nos cabelos da amada. O poema opõe «sol» e «lua». Geralmente o sol é masculino; como a lua, feminina. Geralmente. A lua pacifica e entristece. O sol aumenta e anima. É assim naquela mitologia tântrica. Aqui o poeta é lua, a amada sol. Não excepcional o fato de Mallarmé ser um poeta «maldito».
Os malditos são os que invertem as coisas, revolucionam e põem tudo de cabeça para o ar. A vida da poesia assim o faz. A poesia é a fada da criança mimada e voluntariosa em seus cuidados. Sem remorso, sem queixa. Não, não há romantismo, mas decadentismo. E simbolismo. Mallarmé faz dançar os seus símbolos, seus arcanjos e convivas do salão da Rue de Rome, no «verbo mágico» das suas «extravagâncias verbais», na volúpia do seu famoso hermetismo, aqui não tão impenetrável. Evasão, magia, mas algo tênue: o poema é quase ainda parnasiano.
Mallarmé ilumina as vitrines de palavras e imagens que dançam em festa galante na alameda da tarde. Por isso o poema musical, deliciosamente valsa.

Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.

- a música que a embaladora tradução de Pennafort mantém acesa, digo, audível, como em certas assonâncias:

me - meu - meu
vam-se - bem - perfume - quei
mes - sem - mor - sem
coração - colhe - colheita

- tão boa quanto o ritmo do original francês:

Ma songerie aimant à me martyriser
s'enivrait savamment du parfun de tristesse
que même sans regret et sans déboire laisse
la cueillaison d'un rêve au coeur qui l'a cueilli.

Sim, sim, as soluções de Pennarfort são sempre ótimas. Mas ele acaba escrevendo um novo texto. Outro poema. Paródia.






HOMENAGEM À HELENA



No início dos "Cantos", Ezra Pound diz:

E pois com a nau no mar,
Assestamos a quilha contra as vagas
E frente ao mar divino içamos vela
No mastro sobre aquela nave escura,
Levamos as ovelhas a bordo e
Nossos corpos também no pranto aflito,
E ventos vindos pela popa nos
Impeliam adiante, velas cheias,
Por artifício de Circe,
A deusa benecomata.

Tradução de José Lino Grünewald. Foi-me dada por Helena. O texto se move para frente, nau no mar quilha contra vagas impelindo adiante. O adjetivo "divino" cobre tudo, ambiente de mito. A "nave escura" veste o leitor de sugestão de destino. Trágico. Ovelhas a bordo ("e os nossos corpos") se abre ao sacrifício. Vem "o pranto aflito". Velas cheias. Deusa benecomata (tradução de "the trim-coifed", vestida de sua própria cabeleira(?)). Atmosfera homérica. O original reza:

And then went down to the ship,
Set keel to breakers, forth on the godly sea, and
We set up mast and sail on that swart ship,
Bore sheep aboard her, and our bodies also
Heavy with weeping, and winds from sternward
Bore us onward with bellying canvas,
Circe's this craft, the trim-coifed goddess.

Prossegue a tradução:

Assim no barco assentados
Cana do leme sacudida em vento
Então com vela tensa, pelo mar
Fomos até o término do dia.

É o sol. É o Barco no mar. É o horizonte até o Término do dia. Bela imagem:

Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano
Chegamos aos confins das águas mais profundas.

O tradutor abusou da maestria, compôs tudo em "O", do Sol, do sol-maior: "Sol indo ao sono, sombras sobre o oceano" - (Sun to his slumber, shadows o'er all the ocean)

E cidades povoadas envolvidas
Por um denso nevoeiro, inacessível
Ao cintilar dos raios do sol, nem a
O luzir das estrelas estendido,
Nem quando torna o olhar do firmamento
Noite, a mais negra sobre os homens fúnebres.

Esse texto me foi trazido pela morte de minha querida Helena. Como ela desaparecia, não me preocupei. Ontem fui a seu apartamento: o porteiro me disse que foi encontrada morta na sala muito tempo depois por indagação dos vizinhos. Quero invocá-la: A minha Helena: Bela, grande dama, educada nos Estados Unidos, conheci-a numa biblioteca. Onde poderia deixar de ser? Helena tornou-se companheira inseparável durante décadas. Dias houve em que a vi todos os dias. Ambiente da Paidéia. Nevoeiro denso.

Sangue escuro escoou dentro do fosso,
Almas vindas do Erebus, mortos cadavéricos,
De noivas, jovens, velhos, que muito penaram;
Úmidas almas de recentes lágrimas,
Meigas moças, muitos homens
Esfolados por lanças cor de bronze,
Desperdício de guerra, e com armas em sangue
Eles em turba em torno de mim, a gritar,
Pálido, reclamei-lhes por mais bestas;

Não consigo chorar a morte de Helena. Não consigo crer. Sua família tinha sido muito rica, ascendência nobre. "Tenho dois arcebispos na família", me disse, certa vez. Seu bisavô sócio do Barão de Nova Friburgo, que tinha doze fazendas de café e construiu o Palácio do Catete, sede do governo brasileiro até Juscelino. Pois Helena pobre, vivia de aposentadoria do INPS. Sentia dificuldade de pagar seu condomínio. Nunca perdeu a pose de grande dama (como diz D. Nancy), porte altivo, como se estivesse em Palácio. Usava uns brincos de plásticos coloridos e umas bijuterias baratas de aço que no seu corpo pareciam reluzentes jóias preciosas. Meu Deus!, perto dela a conversa alongava a noite, a prodigiosa memória dos fatos, a cultura enciclopédica.

Meus Deus, como eu a amava! Narrava viagens. Paris. Gesticulava. Como se estivesse no salão da marquesa sua tia. Vendera seus bens para viajar, jóias, apartamentos. Vendia imóvel (que não eram grandes coisas, quartos e sala). Gastava todo o dinheiro em Paris. "A única coisa que não se perde são as viagens", dizia. Certa vez arriscou seu salário comprando uma cadeira antiga. "Preciso dela, para compor um canto da sala", comentou. Eu estava junto. Morava num belo apartamento no Flamengo, único bem que restou. Tinha boa biblioteca, num dos cômodos, - mas pasme! -, nunca possuiu um aparelho de TV. Não via nunca tevê. Quando sozinha, restava na sala, livro nas mãos, ou se perdia em suas divagações. Lembro de seus belos quadros, do carrilhão. Helena servia o chá que bebíamos em Sèvres que pertenceram a sua tia, namorada do Conde Carneiro Ribeiro, quando este ainda solteiro. A tia recusara-se a casar com o Conde, dono do Jornal do Brasil. O chá, servido com uns biscoitinhos que lembravam as madeleines de Proust... Ah, Helena! Meus Deus, por quê?










O INFERNO DE DANTE, CANTO UM




Leiamos o início da «Comédia»:

A meio do caminho desta vida
achei-me a errar por uma selva escura,
longe da boa via, então perdida.
Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura,
essa selva selvagem, densa e forte,
que ao relembrá-la a mente se tortura!
Ela era amarga, quase como a morte!
Para falar do bem que ali achei,
de outras coisas direi, de vária sorte,
que se passaram. Como entrei, não sei;
era cheio de sono àquele instante
em que da estrada real me desviei.

Assim começa o Poema. A tradução é a mais bela tradução, a de Cristiano Martins (Belo Horizonte, Villa Rica, 1991).
O meio da vida, 35 anos, dizem (valho-me das notas do tradutor). A selva seriam os vícios, os erros. O «bem», achado ali, seria Virgílio e o Paraíso. A Floresta apavora, era a Morte. Mas o poema promete contar a viagem, a grande viagem, na selva da vida, do Inferno.
Que significa o sono?
Talvez a desatenção, o descuido, o entregar-se aos prazeres dos sentidos, desatento, esquecido.
Mas tem um componente político importante: a desatenção política, o erro político, que a vida de Dante sempre nos revela. A política é a selva selvagem. E escura.

Chegando ao pé de uma colina, adiante,
lá onde a triste landa era acabada,
que me enchera de horror o peito arfante,
olhei para o alto e vi iluminada
a sua encosta aos raios do planeta
que a todos mostra o rumo em cada estrada.

Mas o Poeta prossegue. Consegue ver alguma coisa aos primeiros raios do sol. A landa é um descampado. Palavra rara. Ele vê a encosta iluminada pelos raios do sol. E seu medo, pela luz, diminui. Mas pouco. E ele olha para trás, como um náufrago olha, vê a escuridão. E repousa. Volta a andar. Tateando. Passo a passo:

Um pouco a onda do medo foi quieta
que de meu peito no imo se agitara
durante a noite de aflição secreta.
E como aquele a quem já o sopro para,
saindo da água à praia apetecida,
volta-se, fita o pélago, e repara
- assim, a alma em torpor, naquela lida,
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.
Depois de repousar por breve espaço,
fui trilhando a ladeira, ampla e deserta,
bem devagar, tateando a cada passo.

Mas o que era, até ali, bom e calmo, se dissolve: na visão do animal selvagem, terrível - a pantera, que significa a luxúria, ou a cidade de Florença.

Quase ao começo da subida aberta,
eis vi uma pantera, ágil, fremente,
de pele marchetada recoberta.
Do rosto sempre se me punha à frente,
a tal ponto o caminho me impedindo,
que eu tinha que recuar constantemente.

Era no amanhecer.
E depois também aparece um leão, simbolizando a soberba, a violência:

Era o instante em que a aurora ia surgindo,
e o sol subia, ao lado das estrelas
que o seguem desde que o poder infindo
tirou do nada tantas coisas belas;
do animal a vivaz coloração
fez-me pensar, ansioso por revê-las,
na alta manhã, na plácida estação;
mas não sem que eu tornasse ao desalento
ante a súbita vista de um leão.
Parecia, raivoso, a juba ao vento,
vir contra mim, de jeito tão nefando,
que até o ar se crispava, num lamento.

E mais. Mais. Aparece a loba, que representa a Avareza. Ou a Inveja. Principalmente a Inveja Avarenta.

Seguiu-se magra loba, demonstrando
à pele os ossos, e que à ira incontida
a muita gente andou exterminando.
Veio-me um senso tal de despedida
ante a aparência rábida da fera,
que perdi a esperança da subida.
Como quem a acrescer seus bens se esmera,
mas se lhe chega o tempo da ruína
só pensa nisso, e chora, e desespera
- assim eu me sentia ante a assassina,
que, vindo contra mim, me foi forçando
de volta aonde ó sol nunca ilumina.

«Rábido», raivoso, irado, o animal o obriga a recuar para as regiões sombrias, talvez da noite, talvez a Morte. O impedimento.

Enquanto eu tropeçava, e ia tombando,
algo enxerguei que se movia perto,
a um tufo silencioso semelhando.
Ao ver aquele vulto no deserto,
"Piedade!", eu lhe gritei, "ouve os meus ais,
sejas tu uma sombra ou homem certo!"

Só então aparece Virgílio. «Na verdade, és meu mestre e meu autor», diz o Poeta, diz para o seu Modelo Poético, seu Mestre Virgílio. Dante é salvo pelos seus pecados, pela poesia, pela literatura, pois Virgílio lhe diz: «"Convém fazeres uma nova viagem», uma nova Poesia. Pois a Inveja é sua Ruína, que diz Virgílio:

A fera hedionda, que te pôs clamando,
não franqueia a ninguém a sua estrada,
e a quem encontra nela vai matando.
De natureza crua e depravada,
alimento nenhum pode saciá-la;
quanto mais come é mais esfomeada.

E o Poeta Virgílio se oferece como Guia Literário, pois Dante, para sair daquela posição, vai atravessar o Inferno. Para sair de um infortúnio, temos de mergulhar fundo na dor, no seu agravamento.

...................te guiarei quanto antes
pelos fundos desvãos do sítio eterno,
onde ouvirás os gritos lancinantes,
e verás os espíritos dolentes
que nova morte choram, pior que a dantes.

Depois o Purgatório:

Verás também aqueles que contentes
no fogo estão, porque inda esperam ir
juntar-se um dia às venturosas gentes.

E outro Guia, a amada Beatriz, conduzirá Dante pelo Paraíso. Virgílio, romano e pagão, não poderia entrar ali. Beatriz é a Musa perfeita, o tema modelar da poesia lírica. O amor é o Paraíso. Beatriz é «alma melhor que a minha». Eu disse: "Poeta, rogo-te, afinal, ... me conduzas...»

Moveu-se, então, e o acompanhei de perto.





GABRIELA MISTRAL


O PENSADOR



Pois ali, enquanto repete ela, e quatro vezes repete, a voz da «carne», - «carne sem defesa», carne da cova», «carne que odeia a morte e tremeu de beleza», «carne sulcada», aquela substância se opõe ao noturno bronze, à morta matéria, que por duas vezes no poema tremeu de prazer, de orgasmo, beleza, amor, vida, daquele homem nu, implantado sobre seu soneto, traduzido por Manuel Bandeira, sentado no alto daquele pedestal de pedra sulcada, repassada de seus horrores, seus terrores, seus músculos sofredores, seus humanos sentimentos - culminando com aquela figura de bronze de Rodin dos versos de Gabriela Mistral - feita da ferro e angústia das eróticas fesceninas massas de músculos contorcidos, o torso se contorce, o nervo falo coberto, a fala cala, o pensamento pende, e indefeso se exibe, se internaliza, se outoniza, no bronze se consome, se mata, se traspassa, de verdade, de rudeza, de certeza e tristeza:

Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne da cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.

E tremeu de amor toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O "havemos de morrer" passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.

E na angústia seus músculos se fendem sofredores.
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte

Que o reclama nos bronzes. Não há árvore torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte.

É estátua mas, Gabriela Mistral insiste, de homem, de gente, de «carne», que o reclama no vivo bronze.
É imagem triste, ou antes, entristecida, entretecida, mergulhada na sua tristeza intestina.
É escultura masculina, ou seja, de homem escultural, mas já envelhecido por vistos femininos olhos de mulher, que o «vêem» como o que se passa em sua mente que mente, ou melhor, se exteriora, só para ela, se encarna: másculos músculos se fendem em folhas de outono, mãos crispadas rugosas de árvore torcida «em face do destino», anca de leão eriçado e ferido.
Gabriela Mistral o transforma no Amado sem defesa, submetido ao Amor da Primavera ardente, ao Senhor forte, - ela o ama porque o vê tão triste, e o sabe indefeso e afogado na verdade de sua lembrança dele da Amada vaga, quem sabe tristeza apensada destino imóvel fixidez vocabular forma fixa do soneto, na casa do soneto onde vive, na casaca da forma e fôrma em que criado foi, cristalizado, anelizado.
Ele o Amado que encontra em transe e em museu, já morto sarcófago, múmia, mas vivíssimo, que não é um poema, mas interpretação fenomenológica a dela, encontro estético, e todo encontro de amar deve ser, e preso ao orgasmo torneado noturno e escuro daquele ser fixo e submisso à forja morta em fogo formado na tensão explosiva de estertor e prestes a se levantar em fúria e ira, a se erguer da sua meditação mortal em revolta, revolução do condenado à materialidade que ejacula na conquistar, abraçar o ente, o vivente, petrificado, congelado, existente, apossado porém ainda logo a se contorcer na libertação do seu invólucro de ser de imóvel estatuária fixa fria frígida tumular e plana.
Pois tudo aquilo está aberto ali, em perigoso mistério que treme, freme, geme, o másculo músculo se fixando e torce, o pênis que vibra, a pele se dilata e estica, e a respiração embora contida se pode pressentir naquele varão muito vivo e muito tido, muito mais intensamente vivo e ativo do que se pode esperar de um ser feito de bronze, na intensa materialidade de arame árvore retorcida e barroca, massa que guarda da carne a articulação e o sentir, pulsação em puro sangue humano e no tormentoso esplendor do amor, da dor, do prazer, do desejo do seu prazer ali contido, comprimido, explosivo.
O Pensador reclama ter de morrer em metal, reclama do seu, da nudez de seu destino de congelado gozo, de se expor assim nu para todos e não só para ela, e Gabriela Mistral o captou em sua completa e elétrica e interna e febril concretude de cimento armado pelo pulsar do músculo macho que quente sêmen freme escondido, enquanto medita no pleno acontecimento da sua obscura e incompleta morte.



HEIDEGGER



Um dia me perguntou a amiga se eu gostava de Heidegger. Imediatamente não pude responder. Mas muito refleti. Porque Heidegger fez parte dos pilares da formação de minha geração: aquela que se formou no torvelinho do governo militar, na época de João Goulart e no movimento estudantil de 68, etc.

Um pouco antes, todos liam Sartre, talvez sem a intensidade necessária para a compreensão e visão intelectual. Sartre representava o pensamento de vanguarda, a mescla de marxismo e fenomenologia, ou existencialismo.

Depois, veio aquela época de Marcuse, Althusser, Lukacs, Foucault, Deleuse, Habermas. No Brasil autores de moda. Formadores de cabeça.

Quando estávamos fazendo pós-graduação, passamos a buscar os autores radicais: Hegel, Marx, Freud, Nietsche, Wittgenstein. Posso dizer que passamos uma década lendo esses pilares em que se sustentam, e durante muito tempo, os elos do nosso edifício intelectual.

E Heidegger.

Posso dizer que começamos com Heidegger e Wittgenstein.

Naquela época, em que Marx era um paradoxo pouco conhecido (afinal poucos tinham dominado os grossos volumes de «O capital»), era muito chic citar Heidegger, mesmo porque ele era aceito pelo pensamento dominante da Direita, e tinha umas perfumarias de jogos de palavra incompreensíveis que aformoseavam qualquer texto.

Mas Heidegger não é bem assim só isso.

Ele é um grande filósofo e poeta.

Heidegger repensou a Metafísica Ocidental como somente muito poucos puderam fazer (ou talvez só ele o fez). Seu pensamento era nitidamente alemão, é claro. Radicalmente alemão. Passava muito pouco longe do nazismo, todos sabem disso (principalmente certas referências ao termo «destino», ao uso do termo «jogar» etc). Mas não se pode negar-lhe a profundeza poética dos limites do seu pensar.

Se era nazista ou não pouco importa para nós hoje. Naquele tempo ali quase todos o eram.

Martin Heidegger nasceu em 1889 e morreu em 1976. Um dos maiores pensadores de sua época. Foi também vítima do nazismo. Sua obra cobre a vastidão da história da filosofia Ocidental e Oriental, desde os gregos até Nietzsche. E envereda pelos caminhos perdidos do Zen-budismo. Mergulha nas origens obscuras da poesia e da arte, tendo escrito sobre isso textos fundamentais.

«O pensamento de Heidegger é o esforço de nos reconduzir ao País das Maravilhas, onde o movimento de pensar é tão concentrado na identidade de si mesmo que colhe os limites de nossos hábitos de pensar e possibilidades de dizer nas próprias raízes de sua limitação. É, então, que se faz silêncio no país do Pensamento. Pois o silêncio é a Linguagem no movimento consumado do repouso, que já ultrapassou toda discursividade da língua.» escreveu E. Carneiro Leão (Aprendendo a Pensar, 1977. pg 149).

Fui aluno de Carneiro Leão.

Pouco antes de morrer, Heidegger deu uma entrevista radiofônica em que disse que somente dois filósofos atingiram o significado do seu pensamento: um foi Carneiro Leão.

Como poeta, seu pensamento não rejeitava o «nada». O «nada» é o seu silêncio. Uma verdadeira contradição que ele supera, «pois o pensamento, que essencialmente sempre é pensamento de alguma coisa, deveria, enquanto pensamento de nada, agir contra sua própria essência (Que é metafísica? São Paulo, Duas Cidades, 1969. Trad. Ernildo Stein, p. 26).

Mas... «cada pergunta objetiva é já uma ponte para a resposta» (idem, p.4).



QUE É SATORI?

As aves aquáticas
vagam aqui e acolá
sem deixar pegadas mas suas veredas nunca as esquecem.

DOGEN (1200-1253)


Há uma expressão de Zen que diz: “um espelho de boas qualidades é tão puro como a água que deixou de correr”. Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente em que se encontra o espírito do Zen, quando toca as coisas se refletem na “sabedoria que é como o espelho”, tão simples e tão claras, que é quando aparecem na água pura de um céu sem nuvens, O céu não está na água, nem a água está coberta de céu. A água pode estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”. Pode-se dizer que o Haicai é espelho da mente do poeta.
A iluminação de Buddha se fez em três etapas. Na primeira parte da noite ele tomou conheci¬mento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades. Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo. No Dhammapada, v. 153-154, Ele declara solene-mente: “Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
Satori é a experiência do Nirvana, a percepção de um instante. Nirvana significa a cessação do processo de vir-a-ser. É a paz, a tranqüilidade do céu sem nuvens e da água sossegada, mesmo em movimento. A absoluta realização na realidade do instante, na eternidade que o instante porta. Mesmo em um segundo de percepção podemos ver o Eterno. O Nirvana, o estado da mente de um Buddha, não é nem de aniquilação, nem de não-aniquilação, nem outra coisa: só inteligência viva e suprema da Atenção, porque o Buddha disse só haver um caminho para o Nirvana, que é o da Atenção (Sattipatana Suttra), e esta é a Quarta Nobre Verdade, ou Óctuplo Caminho.

A libertação repousa na existência da água em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou seja, na Segunda Nobre Verdade, a verdade da Causa do Sofrimeiro, que é explicada por este vira-ser, por esta lei de causa e efeito chamada carma.
O Buddha definiu o carma: “Isto tendo sido, aquilo vem a ser”. Ou seja, não existe um eu substancial, nem alma, pois o processo de vir-a-ser está em completa mutação, e um sujeito não pode ser e estar mudando sempre em cada ponto. O “Eu” éum vir-a-ser, que é carma. O Carma é o que aparece, mesmo o Universo. Sem Carma, não é, portanto nada sofre mudança (ou lei do Sofrimento). O carma cria a roda do Sansara. “Nem Deus ou Brahma podem ser criadores da roda do Sansara; um fenômeno vazio segue seu curso sujeito a causas e condições”, disse o Buddha. Por isto se diz que o Budismo é ateu.

Se saber é sabor, a questão “o que é satori” fica sem resposta. Primeiramente, porque poucos o experimentam. É falar do que não se sabe. No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão de uma experiência através da poesia, do Haicai. Sendo uma experiência, o satori é a apreensão, a percepção do lago velho num céu sem nuvens de Bashô, onde uma rã salta. O satori é a espada do silêncio que tudo penetra. Por isso tudo, mesmo os deuses não têm existência inerente, o Budismo é cheio de deuses, mas todos são vazios, criados por minha própria mente na hora de praticá-los. Vazios de existência inerente, mas cremos que verdadeiros. Pois o Despertar é uma coisa Súbita, Abrupta. Ser, sem objetivo nem proveito, é Despertar.

Quando o Buddha vinha de sua Iluminação encontrou um homem que lhe perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre. O Buddha não teve mestres. “Sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Eu sou o Buddha, o Desperto”. Satori significa “despertar para a verdade côsmíca”. Significa “a mente concentrada além do pensamento”, como diria Kapleau. E experimentar a dignidade da realidade e tornar cada atividade um fim em si mesmo.
Budismo é religião? Zen é religião? Podemos dizer que sim e que não. Não como compreendemos as outras religiões, baseadas na fé. Se você tem de ter fé, no Budismo, será fé em si mesmo, e fé no Guru, um homem de carne e osso. E assim mesmo, é dito que você tem de observar o Guru vários anos até se decidir em considerá-lo mestre, Guru é o Buddha. Budismo é ciência, embora mista. Um interessante ensaio de Hannah Arendt, “Religião e política” nos parece muito esclarecedor a respeito. Não a respeito da crítica que ela faz do comunismo, chamando-o de “religião”. Mas do que ela diz acerca da ciência, a “crença no saber”.

Este pequeno ensaio se propõe, tardiamente digamos, a ler os haicais de Luiz Bacellar. Creio que estamos nos enredando num caminho longo, o da fundamentação teórica.

O haicai significa a visão pura do horizonte do mundo. Aquela que há, quando o “eu” desaparece. Quando o “eu” se liberta.
Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno. Na visão pura, não há nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor há sofrimento, mas não há sofredor. Na visão pura não há nada que seja certo ou errado. Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar Não há dualidade.

Mas satori é libertação. Libertação de quê? Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja. Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão. Portanto, da dúvida e da certeza. Só há dúvida quando pensamos que as coisas podem ser de outro modo. Quando elas não são o que são. Quando as deixamos em paz, sem perguntas, elas não são certas ou erradas, culpadas ou inocentes de serem como tais. Aliás nada há o que perguntar, tudo é prazer e paz absoluta no satori, tudo é ação sem resultado no satori, tudo é. O horizonte da sabedoria e do concreto.
Nada mais concreto do que o satori.
Hegel, que na Fenomenologia do Espírito falou da “ascensão ao concreto”, sabia. O espírito absoluto é concreto, as pedras são abstratas, na sua indefinição, ignorância e surdez. O concreto é o que se encontra em consonância com o saber.

Satori é liberdade. Nega Foucault que haja algo que seja por natureza libertador, já que a liberdade é uma prática. Não existe, diz ele, um espaço apropriado para a prática da liberdade, tal que esta prática possa ser exercida neste ou naquele lugar Mesmo quando um certo espaço é arquitetonicamente projetado para o agir libertário, como o Familistêre (1859) a que ele se refere, o fato de ninguém poder entrar ou sair sem ser visto por todos significava que ninguém era livre, pois todos fiscalizavam a todos, e a investigação representava um fenômeno policialesco (“a vontade de saber”) no campo complexo das relações de poder da distribuição espacial (The Foucault reader).
A liberdade pressupõe a felicidade, e é precisa¬mente isto que a sociedade não pode tolerar. Ela até aceita a ilegalidade (a fim de que o poder policial seja possível e justificável). A liberdade é a espera de nada, é um conceito muito próximo do de “libertino”. Dizem que só o imperador era livre. As mais íntimas forças humanas são nega-das pela realidade e tudo contribui para o cerceamento. A liberdade: uma revolução, a irrupção violenta da subjetividade rebelde. Nada a impede. Ninguém pode prender um homem livre, dizia Krishnamurti; podem acorrentá-lo na fossa de uma masmorra, podem arrancar-lhes os olhos, mas interiormente ele permanecerá livre.

Liberdade de quê? A liberdade não é um absoluto. A liberdade aqui significa espaço. Pequenas se fazem ás coisas, e amplos, incomensuráveis se dão os espaços da liberdade. Não se pode aprisionar a liberdade de pensamento, além do pequeno ego, aberto a um desconhecido devir, novo, significa ultrapassar esse limite. Não significa fazer o que bem se entende, mas assinar em baixo de suas próprias responsabilidades. Por isso, não existe liberdade sem amor, sem a prática dos símbolos de humanidade, dos vazios sem obstáculos da imaginação concreta de um mundo humano.

Mestre Dogen escreveu uma frase enigmática que diz: “o tempo precisa estar comigo”. Se o tempo têm a característica de passar de hoje para amanhã, de ontem para hoje, ser é tempo. O haicai significa isso: “o tempo está comigo”. É uma apreensão do tempo. “Tarde de sol / o armador da rede / range devagar”. O que há de comum entre a tarde de sol, o armador de rede, o som de ranger e os três incluídos e o tempo presente, o tempo devagar; o amazônico é a rede, a tarde. O universo amazônico, a vida amazônica inteira pode estar contida nestes três pequenos versos de Luiz Bacellar. Do sol à terra, da tarde à rede, num golpe, devagar. Toda preguiça do tempo range nos seus gonzos, numa oposição lúcida entre o todo (a tarde) e o uno (rede), numa relação do homem com seu universo. A rede range, sob o sol que está fora. Significa isso, range sob o forte calor, não há corpo sobre a rede que não seja o do poeta que talvez durma, sonhe. O “ar” de “tarde” ressoa no “ar” de “armador” e de “devagar”. Mas é sempre “ar”. O universo encapsulado num grupo de nove palavras se liberta para sempre. Por isso o leitor de um haicai não deve esperar ler muito, o haicai melhor se dá num quadro na parede do que no feixe de páginas de um livro, O haicai é uma janela aberta para o caminho, para a música do Universo.

O satori é, pois, aquilo de que não podemos falar, “aquilo de que se deve calar”, aquilo, aquele conceito para o qual só nos podemos aproximar cautelosamente. O satori é negativo, ou seja, sei o que ele não é. O satori é a verdade da poesia.

A poesia não fala de algo, ela é. Só a poesia faz falar o que é, a saber, a linguagem desperta. Por isso, sua luz é a linguagem, que é aquilo que sempre pode mais: revela a profunda agudez das coisas, ilumina o profundo mundo da realidade, a nudez das coisas, acionando o seu vigor, sua liberdade é da ordem da linguagem, que é anterior ao pensar. Só há pensamento quando há um pensador, portanto o aprisionamento do sujeito se dá quando o sujeito se recria ao pensar, ele não pode sair de sua prisão porque ele é a própria prisão, e com o “eu” não há espaço, não há nada além do centro, do núcleo do “eu”. Quando o “eu” some, há o satori. Ou seja, não havendo dualidade sujeito-objeto, há dissolução do sujeito na imensidão onde tudo é alegria, totalidade, tudo é poder da atenção, júbilo.
O «eu» e sempre triste, o “não-eu” e sempre glória.



A ÚLTIMA DOR QUE ELA ME CAUSE



Ele se predispõe: «Posso escrever os versos mais tristes esta noite», diz, e pode, que produziria versos tristes como a noite, mas a noite não está triste, a noite está estrelada, sim, «e tiritam, azuis, os astros, à distância».

Há algo muito distante, lá longe, nos astros, na distância das estrelas. Na realidade, distante está o Amado de amar: «Eu a quis e por vêzes ela também me quis.»

Exercendo o que mais o lirismo sabe fazer, ele se lembra: «Eu a tive em meus braços em noites como esta. / Beijei-a tantas vêzes sob o céu infinito.»

Sim, perdida está, seu lirismo, sua lembrança, «Ela me quis e às vêzes eu também a queria.»

Mas esta estranha palavra, essa estranha temporalidade, o que se interpõe: «às vezes». E o poema continua, sempre nas suas mudanças de humor, na bela tradução de Domingos Carvalho da Silva:


«Como não ter amado seus grandes olhos fixos?

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E desce o verso à alma como ao campo o rocio.

Que importa se não pôde o meu amor guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. À distância alguém canta. À distância.
Minha alma se exaspera por havê-la perdido.»


Pablo Neruda nunca foi tão simples, nunca tão perfeito, tão clássico como neste poema, o «20» dos «Vinte poemas de amor», de 1968.

Lá, parece que o Amado só se apercebe de que ela se foi quando a perdeu. Não a vê de perto, em si, há referência a uma mulher-lua, a um luar:

«A mesma noite faz branquear as mesmas árvores.
Já não somos os mesmos, nós os de outros dias.»

Esta obra da juventude de Neruda, que tinha 20 anos. Ele teve diversos amores em vida, as mais conhecidas foram Maria Antonieta Hagenaar, que ele conheceu na ilha de Java, Maria Del Carril e Maria Matilde Urrutia. O poema se encontra no seu livro «Veinte Poemas», seu mais popular e famoso livro, de 1924, que vendeu mais de um milhão de exemplares. Afinal, em 1971, Neruda ganha um Prêmio Nobel.
Mas o livro é a leitura preferencial, ideal de todos os jovens (e velhos) amantes do mundo inteiro em todas as línguas, pois para quase todas foi traduzido.
Em 1950, Neruda produziu seu CANTO GENERAL, monumental obra com 340 poemas, quando tematiza a América Latina, sua luta, sua pobreza, sua libertação. Lá se encontra o famoso poema «Alturas de Macchu Picchu», escrito depois de sua visita às ruínas de Macchu Picchu, em 1943. Ali ele se torna a voz dos povos Incas que ali viveram, que ali foram dizimados.

No poema 20, dos « Veinte Poemas», o amado está confuso, ela já não o ama, é isto o que verdadeiramente dói, apenas ele está triste porque ela não está ali: porque ela existia ali ele será capaz de entristecer-se, porém já não a ama, «talvez a queira», não sabe, porque o amor é breve, longo é o esquecimento do amor.
Afinal ele se desespera por havê-la perdido, mas sente e sabe o caso perdido, terminado, e que aqueles versos serão os últimos e que aquela dor será a última dor que ela lhe cause.
O mais é o espaço amplo da noite, as estrelas ao largo, o vento da grandeza escura, a solidão estelar onde será possível escrever os versos mais tristes, pensar que ela será de outro, para justificar o perdê-la, para justificar o não saber amá-la, porque o amor só ama o amor, e a voz que soa nos seus ouvidos dela são para o eco de si mesmo, aos seus olhos infinito

«Já não a quero, é certo, quanto a quis, no entanto.
Minha voz ia no vento para alcançar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro, seus olhos infinitos.

Já não a quero, é certo, porém talvez a queira.
Ai, é tão breve o amor e é tão extenso o olvido.

Porque em noites como esta eu a tive em meus braços,
minha alma se exaspera por havê-la perdido.

Mesmo sendo esta a última dor que ela me cause
e êstes versos os últimos que eu lhe tenha escrito. »



ONDE ESTÁS, POESIA?




Todos conhecemos «A CANÇÃO DE AMOR DE J. ALFRED PRUFROCK» de T. S. Eliot. E conhecemos seus labirintos, seus desvios, suas alusões. Sua dificuldades de leitura, a começar pelos primeiros versos:

Sigamos então, tu e eu,
Enquanto o poente no céu se estende
Como um paciente anestesiado sobre a mesa;
Sigamos por certas ruas quase ermas,
Através dos sussurrantes refúgios
De noites indormidas em hotéis baratos,
Ao lado de botequins onde a serragem
Às conchas das ostras se entrelaça:
Ruas que se alongam como um tedioso argumento
Cujo insidioso intento
É atrair-te a uma angustiante questão.
Oh, não perguntes: “Qual?”
Sigamos a cumprir nossa visita.

Os poetas mais difíceis são os que mais me impressionam. Não a dificuldade aleatória, gratuita. Mas a profundidade dos semas mais alucinantes, como no «Por de sol» de Holderlin, na tradução de Manuel Bandeira:


Onde estás? A alma anoitece-me bêbeda
De tôdas as tuas delícias; um momento
Escutei o sol, amorável adolescente,
Tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite.


Ecoavam ao redor os bosques e as colinas;
Êle no entanto já ia longe, levando a luz
A gentes mais devotas.
Que o honram ainda.

Nos versos de Elliot, o anoitecer é um «um paciente anestesiado sobre a mesa». Esta metáfora hospitalar retorna no que pergunta:

E valeria a pena, afinal,
Teria valido a pena,
Após os poentes, as ruas e os quintais polvilhados de rocio,
Após as novelas, as chávenas de chá, após
O arrastar das saias no assoalho
- Tudo isso, e tanto mais ainda? -
Impossível exprimir exatamente o que penso!
Mas se uma lanterna mágica projetasse
Na tela os nervos em retalhos...

Sim, «impossível exprimir exatamente o que penso! », diz, ele, Eliot, como se «uma lanterna mágica projetasse / Na tela os nervos em retalhos...»
A beleza está no que não diz, mas retém. Silencia.
Nos versos de Holderlin a alma anoitece bêbada de prazeres, dos prazeres da poesia. O sol joga uma malha de ouro sobre tudo e começa a cantar. O som do canto ecoa nas colinas. Nos bosques. Há uma pátina de sexualidade nesse cantar, bêbado de prazeres. O adolescente-poeta escuta o ouro do cantar do sol, que leva as luzes. A noite caminha próxima, há delícias no ar desse poetar. Nesse pomar, como a «Quietude», de Ungaretti, que diz, na tradução de Menotti del Picchia:

A uva está madura e campo arado,
o monte se destaca das nuvens.

Nos poentos espelhos do verão
caiu a sombra

Entre os dedos incertos
sua luz é clara
e longínqua

Foge com as andorinhas
o último desespero

Ou «Já se desprende a magra flor», de Salvatore Quasimodo, na tradução de Geraldo Holanda Cavalcanti:

Nada saberei de minha vida
escuro monótono sangue.

Não saberei quem amei, quem amo
agora que aqui contido, reduzido a meus membros,
no gasto vento de março
enumero os males dos dias desvendados.

Já se desprende a magra flor
dos galhos. E eu contemplo
a paciência de seu vôo irrevogável.

Ou, na «Imitação da alegria», diz Quasimodo:

Ali onde as árvores fazem
a tarde ainda mais abandonada
indolente
sumiu teu último passo,
como a flor que mal se mostra
sobre a tília e insiste em viver.

Buscas sentido para teus afetos,
encontras o silêncio em tua vida.
Outro destino me revela
o tempo refletido. Pesa-me
como a morte, a beleza que agora
noutras faces brilha.
Perdida está toda coisa inocente
mesma nesta voz, sobrevivente
a imitar a alegria.

O que o poeta diz é «vamos, tu e eu», «sigamos por certas ruas quase ermas, através dos sussurrantes refúgios», « Ali onde as árvores fazem / a tarde ainda mais abandonada», «nos poentos espelhos do verão / Entre os dedos incertos», vamos « tirar da lira celeste as notas de ouro do seu canto da noite». Enfim, vamos buscar da poesia o poema e mergulhar no «sentido para teus afetos», pois a beleza pesa como a morte.



WOODSTOK


À noite, no meu quarto, leio poema de James Hopkins. Ele é poeta premiado americano, autor do livro “ eight pale women”, ganhou o prêmio “ Word works”, da cidade de Washington, conferido por este organização literária. Hopkins é um rapaz jovem, bonito, com longos cabelos. Conheci-o em Walden, New York. Ele me pede que escreva sobre seu livro, que é muito bom.
Naquele dia fui a Woodstook.
Estive lá recentemente duas vezes.
Na primeira vez chegamos ao anoitecer. Fomos diretos para o alto da montanha, onde nos esperava uma reunião. Quase não sentimos o lugar. Só sua atmosfera. Não da nostalgia, ou da memória do festival de música de 1969 – que não foi mesmo realizado lá – mas no ar havia algo daquele bom tempo dos hippies que fomos, dos cabelos compridos, das nossas sandálias, das nossas artes, das nossas almas puras.
Sim, porque éramos uma geração de jovens de almas puras, amávamos a música, as fotos, as histórias, a natureza. Não vivíamos, acampávamos neste mundo. Fomos ali, em Woodstock, para reencontrar-nos. Woodstock não era uma cidadezinha nas montanhas, mas um lugar no nosso coração. Vi, logo que cheguei, que não tínhamos ficado velhos, que ainda estávamos no jogo da vida, que ainda amávamos nossa jornada.
Na segunda vez fui mais cedo, na hora do almoço, a Woodstook.
Almoçamos em pequeno restaurante onde, à noite, havia música. Os dois garçons, jovens e andróginos, já eram de outra era. A cozinha excelente. Depois, com minhas duas amigas americanas, “fomos às compras”. Woodstok agora é um grande shopping. Particularmente, nada vi interessante. Mas gosto de shopping. O melhor foram as lojas de artigos orientais. Principalmente uma, chamada “Dharmaware”. Mas tudo muito caro, para nós, brasileiros. Entro num sebo. Nada vi, que me entusiasmasse. Um rapaz, na rua, tenta-me desesperadamente vender duas fitas cassetes usadas por dois dólares. Ele tem ansiedade nos olhos, tem pressa. Arrependo-me de não ter comprado, ainda que desconfie por que ou de que ele precisa, ou por isso mesmo.
Num supermercado comprei uma caneta, que tenho usado até hoje. É um modelo antigo, de aço inoxidável. Gosto de canetas, já tive uma boa coleção. A maioria de pena. Mas hoje só consigo escrever no computador.
Faz calor, em Woodstock. Sinto-me cansado, desanimado. Estou perdendo o interesse, o gosto pelas coisas. Woodstock sem o clima místico de paz, de amor dos anos sessenta. Estamos na era Bush. “Os nossos ídolos morreram de overdose”. Já não somos os mesmos.
À noite, no meu quarto, leio um poema de James Hopkins. O poema diz, mais ou menos assim, que traduzo: “ trate \ os fantasmas \ do quase-passado \ com um pouco mais de respeito — \ aquelas vaporosas pistas que derivam dos parques \ aproveitam as ruas \ em segredo. \ o tremor \ apenas \ no vértice \ da escuridão \ quando o vermelho \ escorreu do céu. \ a sombra que pisca \ no canto de seu olho \ antes da noite \ engolir \ a lua”.
Fecho o livro, a luz da cabeceira. Fecho os olhos. Adormeço. Rondam os fantasmas da noite.



CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?




No início da "Canção de Mignon" de GOETHE misterioso verso: "Conheces a região do laranjal florido?" No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refere a certo lugar na Itália, diz Eça de Queiroz, n'O mandarim. Um lieder de Schubert, de 1816. A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo...

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!

[Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.]

A estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Não sei alemão. João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta. Hoje esquecido. Não mais editado. Em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi jornalista, catedrático do Pedro II. Soube dar e transpor o clima da "A canção de mignon".

A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó mísera criança!
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem!

Súbito, Goethe introduz, nessa região maravilhosa, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que fomos reduzidos ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou. Meus familiares estátuas tumulares...

Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!

Goethe introduz palavra-chave, palavra grave, palavra-montanha, ponto de fuga, de onde a dor se despedaça: meu "pai". Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, dispõe, na mesa da leitura, do poder, da Lei. Do nome, do não. Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (faleceu cedo), foi criado pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho). Goethe cultuou o pai, herói. Entre eles se estabelece laço cúmplice da volta ao Pai. Meu pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória. Mas a montanha está enevoada, envolvem-se os mistérios de grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável,, uterina, se verte a água, da vida, que a prumo se precipita, nas veias do destino... Não a conheces tu? É lá, lá...






A ESTÉTICA DA CONTINGÊNCIA
uma estética dos outros sentidos


" O Perfume - História de Um Assassino", de Patrick Suskind, fez que, através da vida de Grenouille, personagem dotado de extraordinário olfato, se tenha a reconstituição da França do século XVIII, por meio do sentido olfativo. Suskind cheirou inteiramente a França antiga. Pois há um projeto do Departamentos de Sociologia e Antropologia e História da Arte da Universidade de Concordia, Montreal, dedicado a explorar o papel da proximidade dos sentidos - o cheiro, o gosto, o toque - na arte e estéticas do Ocidente e Oriente. O projeto é desenvolvido por uma equipe de pesquisadores conhecidos como o " Concordia Sentidoria Research Team", ou CONSERT.

Devido à ênfase visual na história da arte Ocidental, os outros sentidos - como os de "proximidade" - foram marginalizados do discurso estético. Apesar de tal "marginalização oficial", porém, esses sentidos têm tido importante papel nas estéticas da cultura popular, como na prática das "artes manuais", no tecer, no esculpir, e nas estéticas multi-sensoriais do carnaval.

A aparência da arte formal, quase sempre visual, foi posta em crise por vários artistas do Século Dezenove, quando tentaram trazer os sentidos não-visuais para a arte, tal como nas estéticas de culturas não-ocidentais, onde cheiro, gosto e toque são mídia da expressão artística.

O CONSERT pretendeu aumentar os modelos convencionais do estético e trazer à luz aspectos suprimidos da experiência estética investigando a elaboração do valor da proximidade, sentida nas diversas culturas e classes sociais. Esta investigação constituirá o primeiro estudo que verifica o desempenho do cheiro, gosto e toque na arte.

Nos anos recentes, houve muito interesse na verificação social dos sentidos em períodos e culturas diferentes. A literatura deste assunto usou a multiplicidade dos modos nos quais a percepção não só serve para juntar dados de sentido, como também um veículo para a apreensão de valores culturais. Porém a maioria dessa literatura, particularmente dentro do campo de história de arte, se concentrou na elaboração cultural do sentido da visão, excluindo os outros sentidos (Hal Foster, ed., "Vision and Visuality"; Jonathan Crary, "Techniques of the Observer: On Vision and Modernity in the Nineteenth Century", apud CONSERT).

O papel potencial da proximidade na produção e avaliação de arte foi em grande parte negligenciado devido ao preconceito, existente há muito na cultura e filosofia Ocidentais, de que os sentidos "mais baixos" não podem ser mídia de experiência estética (Kant).
Mas, excluídos da estética da "alta cultura", cheiro, gosto e toque permaneceram vitalmente importantes na cultura popular. Vários estudos exploraram a vida da proximidade no imaginário popular, desde o Renascimento até o Século Dezenove (Mikhail Bakhtin, "Rabelais and his World"; Stallybrass and White, "The Politics and Poetics of Transgression"; A. Corbin, "The Foul and the Fragrant", apud CONSERT). Tais estudos indicaram que a experiência da plenitude multisensorial da feira e do carnaval - junto com o trabalho manual da vida cotidiana - formou um elemento crucial nas estéticas da classe trabalhadora.

No Século Vinte a distinção entre estéticas da alta cultura e do gosto popular continua manifestando-se em muitos casos, como uma distinção entre os "sentidos mais altos" e os "mais baixos": a racionalidade visual e a sensação visceral (Pierre Bourdieu, "Distinction"; Anthony Synnott, "The Body Social", apud CONSERT).

Desafiando preconceitos da história da arte, vários artistas e escritores, desde o Século Dezenove, se interessaram na possibilidade de utilizar os sentidos de proximidade. Por exemplo em 1836, Theophile Thoré escreveu, em "L'Art des parfums", em que é possível expressar-se tudo através dos perfumes, tanto quanto com linhas e cores. Isso pode ser verificado na obra de um artista superdotado como Yves Saint Laurent que, além de ser bom desenhista, expressou-se em perfumes. Theophile Thoré tentou, depois, verificar essa teoria na prática dos simbolistas, interessados que foram nas sinestesias e correspondências sensoriais.

No Século Vinte, os Futuristas utilizaram símbolos multisensoriais e inventaram tipos de arte para os sentidos de proximidade, como Marinetti, em "O Livro de receitas futurista", ou o best-seller "O Perfume - História de Um Assassino", de Patrick Suskind que, da vida do olfato de Grenouille faz a reconstituição da França olfativa, a França dos bons perfumes.


FOUCAULT, HOJE


O livrinho delicioso de Blandine Kriegel, "Michel Foucault aujourd´hui", publicado em Paris, em agosto deste ano, delineia um panorama do pensamento francês dos últimos anos, principalmente da filosofia dos anos 60, já que, para ela, Foucault representava a "encarnação de toda a filosofia dos anos 60".


Somente dois colaboradores ele teve: ela mesma e François Ewald. Ela foi a única pesquisadora, no laboratório de Foucault, no Colège de France. Mas nega ela ter sido sua "discípula". E também nega que haja ou tenha havido uma herança de Foucault. O "príncipe dos filósofos franceses" teve colaboradores, alunos e amigos, mas se recusava a ter "discípulos". Escreve Blandine: "Ele não considerava sua obra um patrimônio mas um objeto único ligado a condições particulares de temperatura e pressão... Foucault era e sabia ser insubstituível". Não teve continuadores.

Vinte anos depois de sua morte, o livro apresenta três aspectos: o filósofo, o artista e o político.

Do filósofo Foucault se define por uma citação da autora: "Há muito tempo que se sabe que o papel da filosofia não é descobrir o que está escondido, mas de tornar legível o que precisamente é visível, isto é, o de fazer aparecer o que está próximo, o que é imediato, o que é tão eminentemente ligado a nós mesmos que não o percebemos" (1978). Aqui não podemos senão dizer que seu método fenomenológico estava impregnado da filosofia de Nietzsche e de uma espécie de arqueologia, da filosofia das práticas discursivas.

Foucault não se considerava um artista. Escreveu: "Um artista? Quando eu era adolescente nunca pensei em tornar-me um escritor. Quando um livro é uma obra de arte, é alguma coisa importante... Eu não sou um artista, e não sou um cientista... Pratico uma espécie de ficção histórica. De uma certa maneira, sei muito bem que o que digo não é verdadeiro... Minha esperança é que meus livros ganhem sua verdade depois de escritos" (1979). Escrever para ele era a "a restituição do discurso". Um dos maiores escritores de seu tempo, a sua estética era a da abstração, ele mergulhava numa série de abstrações, de subjetividades fenomenológicas - seu objeto eram as "práticas discursivas" que afiguram o mundo "sob o aspecto da transformação que operam" - o discurso é o mundo, o discurso-mundo que deve ser compreendido através de certos momentos, seqüências, rupturas, descontinuidades, que contêm a marca da sedimentação do tempo. Por isso, ele era um grande erudito, seu método exigia ler TUDO a respeito do que pesquisava: para escrever "O nascimento da clínica", por exemplo, ele leu todas as obras de medicina importantes publicadas no período de 1780-1810. Era o primeiro que chegava na Biblioteca Nacional e o último que dali saía. E dotado de uma surpreendente memória, conforme se lê em Didier Eribon, "Michel Foucault".

A política de Foucault se voltava contra o poder da sociedade, o poder de dominar, disciplinar os indivíduos pelo sistema de palavras e normas, o poder do Estado que se esconde num micro-poder ramificado no tecido social, que encontra suas tramas do tecido das relações inter-pessoais. Em 1953 foi quase expulso do PCF por causa de sua homossexualidade - foi Althusser quem o disse -. Escreveu a favor dos presos, dos loucos, dos homossexuais através de descrições, teorizações incessantes - "eu trabalho feito um louco", disse - combatendo a medicina, a psiquiatria, a arquitetura que organizavam aqueles sistemas de poder, combatendo também Freud e Marx - considerados como expressões das grandes instituições da sociedade industrial produtoras de saber. Foucault era assim uma espécie de romântico muito próximo de Victor Hugo - manifestava-se sempre a favor da dignidade do homem, do homem individual, onde quer que estivesse em suas longas viagens. Ele chegou a ficar uma semana no Irã, conforme revelou seu biógrafo Didier Eribon. E no Brasil, quase teve de lutar fisicamente contra a polícia da ditadura militar.

De certa forma era ele, segundo Blandine Kriegel, um asceta que não queria impor nada a ninguém, e veio daquela escola em que se encontram Artaud e Rimbaud.

Dele o que hoje fica é sua presença no prestígio de uma linguagem, de uma forte linguagem, diz a autora.


O FUTURO DA LITERATURA COMPARADA

Bastante contraditórias têm sido as conclusões de alguns congressos internacionais de Literatura Compara. Alguns pesquisadores proclamam ali a sua vitalidade e expansão, enquanto outros apontam para seu desaparecimento, através de uma certa crise de identidade.

Isso ficou patente no XV Congresso da Associação de Literatura Comparativa Internacional, realizado na Universidade de Leiden, em Leiden, Holanda, de 16 a 22 de agosto de 1997, que teve a participação de pesquisadores do mundo inteiro, com seiscentas participações.

O Presidente da Associação, Gerald Gillespie (de Stanford) dedicou a sua Mesa Redonda a este tema.

O pesquisador de Bloomington, Henry H.H. Remak, expressou a opinião de que a influência dos modernos estudos literários, desde que os anos sessenta, estão dissolvendo gradualmente a Literatura Comparada no domínio de outras ciências sociais, e ameaçando seus padrões, que são difíceis de dominar, com a maestria necessária, como por exemplo o suficiente conhecimento de vários idiomas estrangeiros e da inteira complexidade, forma e conteúdo das literaturas nacional e mundial.

De acordo com Remak, a Literatura Comparada deveria ser reduzida «a novamente ser o que tradicionalmente foi», ou seja, uma proposta conservadora para as suas áreas de estudo e para aquelas tarefas conhecidas da Literatura Comparada, mas de acordo com a complexidade interdisciplinar contemporânea.

Douwe W. Fokkema (de Utrecht), sugeriu que a Literatura Comparada deveria ser o estudo da disseminação social e geográfica dos textos literários, suas convenções e leitura, que ele relaciona com a sociologia, além dos procedimentos de compreensão dos textos (aqui relacionados com a ciência cognitiva), e da posição e do papel da comunicação literária em seus vários ambientes sociais e culturais (aqui conectado com estudos culturais).

Em oposição a Remak, David Damrosch, da Universidade de Columbia, falou a favor de soluções práticas do problema, o que não é tão simples.

Ele acredita que mais pessoas deveriam assistir aos congressos, com «espírito interdisciplinar», e que se deveriam formar grupos de funcionamento menores, internacionais, que dedicassem seu tempo a projetos de curto prazo, nos períodos históricos pequenos, entre projetos de alcances maiores.

O principal tema do Congresso de Leiden foi «Literatura como Memória Cultural». Sobre isso falou o conhecido crítico Jonathan Culler.

A cerca deste tema, disseram também alguns que o estudo da memória cultural revela movimentos importantes no desenvolvimento da Literatura Comparada, devido à influência do novo historicismo, do feminismo, da teoria de discurso, da psicanálise, das teorias pós-coloniais e do pós-estruturalista.

A Literatura Comparada não vê a literatura como área autônoma da cultura - continuam eles - penetrada quase exclusivamente por valores estético-artísticos e espirituais, mas enxerga a literatura como expressão humana que, além do reconhecimento de sua natureza específica (fictícia, poética) é entrelaçada com redes de várias culturas, sociedades, instituições, idiomas, ideologias e lutas. A literatura é penetrada por tensões entre passado e presente, o central e o marginal, o estabelecido e o proibido, o documentário e o fictício, o público e o suprimido. O tema do Congresso indicou que essas características da literatura se parecem com outros meios de expressão, como por exemplo o ritual, o mito, a arte, o filme e a história, que estabelecem e preservam uma identidade, uma tradição dominante de uma certa cultura ou sociedade, influências de suas mudanças, das características monolíticas ou pluralistas, e das relações das políticas externas com outras comunidades e culturas.




SEXUALIDADE, REPRESENTAÇÃO E TRANSGRESSÃO




Recentes estudos investigam e exploram as relações complexas entre sexualidade transgressiva, desejo, violência e modos da arte da representação, verificando os conflitantes limites entre realidade e ficção. Tanya Horeck e Patricia MacCormack, de Cambridge, pesquisam essas questões.

Trata-se da representação da sexualidade, não da crítica da sexualidade. Ou seja, não se trata de questionar a sexualidade, mas de sua representação. Por isso, tais pesquisadoras analisam a representação de sexo, violência e identidade transgressora em Boys Don’t Cry (Kimberley Peirce, 1999) — «Meninos não Choram»; e na ficção popular do filme sobre a sexualidade feminina em The Weight of Water - « O Peso de Água» (Kathryn Bigelow, 2000).

Serviria a representação do sexo e da violência na TV a alguma função social, ou é mera exploração? Qual a relação entre a nossa era de espetáculo e a representação da violência? entre o crime e o trauma sexual? Através de análise de filmes, media ou textos escritos, este tema focaliza a noção de aproximação da «vida real» com a ficção. Exploram os novos estudos a tendência crescente do documentário e do «drama», apontando relações entre sexualidade e representação, e violenta, como o estupro durante as guerras e a cultura popular. Entre corpo e texto.

A leitura da media, da ficção popular e de filmes é fundamental para essa discussão teórica relativa às ligações entre realidade e representação, entre fantasia e realidade (seja o que for que isso signifique). É básica mesmo para a compreensão do comportamento atual. Trata do estudo do corpo «pós-humano» na cultura contemporânea, e da divisão convencional entre a realidade dos corpos e o discurso da ficção, crescentemente conflitantes em muitas áreas.

O desempenho tecnológico e experimental dos chamados filmes de tese, ou teóricos, efetivam a cultura visual nas relações sociais. A sexualidade se torna assim um termo que se pode inscrever num estado a priori existente e numa forma de auto-expressão da media. Os estudos investigam as influências do filme, da teoria e da tecnologia na vida cotidiana e as dificuldade quanto ao gênero, à raça e à história, colocando a ambigüidade atual do gênero (suas indefinições, misturas, transgressões), a materialidade corpórea, a sexualidade e a política como termos voláteis, usados para definir e quebrar as noções tradicionais de agir, de volição e de auto-representação. Em que sentido esses termos ainda são importantes quando se pensa o futuro do corpo, do gênero misto e da sexualidade?

A tensão entre a memória ética da repressão sexual passada e o modo de pensar futuro e criativo é responsável por um novo corpo, em que várias estéticas de representações epistemológicas se informam em nossas novas possibilidades de compreensão de si, da media e do mundo que estarão no centro dos debates relativos à violência da representação e da questão do Outro (que ameaça ou integra) na cultura pós-moderna, e assim sobre o corpo perverso, sobre o corpo livre, e sobre o poder da diferença, da compreensão crítica da sexualidade, da violência, da representação na cultura em geral, pop ou não, nas implicações políticas e éticas do futuro pós-humano para a história do desenvolvimento da felicidade do corpo e da sua opressão.

Esses novos estudos críticos juntam o estético, o social e o político, contextos de representações visuais e textuais que pertencem à sexualidade na cultura contemporânea. Trata-se do contexto de debates das relações entre subjetividade e desejo, corpo e texto, e trata do obscurecimento dos limites entre o fato e a ficção. Entre os fatos de nossas vidas particulares, e as nossas ficções e desejos pessoais.


MESTRE ALCEU


Alceu Amoroso Lima tinha 68 anos quando o conheci. Ainda era um homem forte. Foi meu professor de "Cultura Brasileira", na FNFi, ou Faculdade Nacional de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil. Era 1961. Nasceu no Rio, dia 11 de dezembro de 1893; e faleceu em Petrópolis, em 14 de agosto de 1983. Quando jovem, nadava do Flamengo à Urca. Forte, alto, sólido. Como sua cultura. Na audiência, onde ele proferia a aula, que sempre parecia "magna", se reuniam alunos, professores, intelectuais. Lembro-me de Clementino Fraga e Walmir Ayala, assistindo. A esquerda, não. Na época desprezava Alceu. Classificava-o de "pensador católico". Ayala vinha sempre, creio que fez o curso todo, tomava notas, gordinho.

Alceu falava andando, de um lado para outro, no tablado. Ameaçava cair, porque ia de cabeça erguida até o limite. Sempre foi. Certa vez tropeçou em sua própria pasta, que deixava no chão, de couro marron, grande e pesada. "Desculpe", pediu. Trazia muitos livros, para citação e leitura. Eu conhecia aquela pasta porque depois da aula (a que eu assistia na primeira fila) eu colava no Mestre, e oferecia-me para carregar aquela pasta, o que ele gostava muito, e ia com ele para a administração da Faculdade, que ficava na Rua 1o de Março, onde ele tinha de assinar o ponto, entregar a lista de chamada (que nunca fez). Ele odiava aquilo, fazia-o perder tempo, e era até mesmo perigoso, pois tinha de atravessar pistas de alta velocidade. Outras vezes, eu o acompanhava até a porta do edifício onde funcionava o "Centro Dom Vital", de que era presidente. Foi seu fundador, e do "Instituto Católico de Estudos Superiores", em 1932, que foi o germe de fundação da Pontifícia Universidade Católica.
Ele gostava muito de mim, digo isso com orgulho, conversávamos bastante durante o trajeto.
Depois que foi meu professor, só o vi uma vez. Arrependo-me de não o ter procurado, por timidez manter-me afastado.
A última vez que o vi foi em 1982 ou 83, na porta da Academia. Ele ia saindo do carro. Estava pesado, velho. Eu parei para vê-lo, ele me cumprimentou com a cabeça. Não sei se me reconheceu.
A importância de Alceu na cultura brasileira é muito grande.
Naquela época, nós tínhamos uma colega de Faculdade, negra, que, para ingressar em Universidade Soviética, precisava de carta de apresentação. Aquela Universidade, em pleno regime comunista soviético, indicou um de três nomes considerados mais respeitáveis para assinar a apresentação: Caio Prado Jr., Celso Furtado e Alceu. Nossa amiga era aluna dele. Foi. Nunca mais voltou. Mas Alceu, no Brasil, era "apenas" católico.
Dizem que ele assistia às missas todos os dias. Que fez voto de castidade. Dizem que acordava muito cedo para ler Croce, depois ia tomar café nas ruas, nas padarias. Era o de que ele gostava: Em Petrópolis todos os dias almoçava fora, e dirigia seu próprio automóvel, até o acidente que provocou. Eu estive em seu apartamento, no Flamengo, muito rapidamente.
Alceu escrevia artigos a mão. Letra quase ilegível. Ortografia ainda antiga. Sem muita preocupação com a gramática. Os manuscritos eram mandados para São Paulo, onde sua filha, freira, "traduzia", corrigia, datilografava, devolvendo-os a ele. Ele então fazia modificações, e o funcionário do JB vinha buscá-lo em sua casa. Por isso, quando publicado, o assunto já era velho. E ele sempre escrevia sobre os acontecimentos.
Parece que só escreveu um livro ("Afonso Arinos, 1922). Os demais foram constituídos de artigos de jornais, reunidos por temas: "Estudos", "O espírito e o mundo", "Meditações sobre o mundo interior", "Política", "Revolução, reação ou reforma" etc.
Quando publiquei "Crítica da escrita", ele me mandou a seguinte carta:

"Petrópolis, 1-4-81
Meu caro colega Rogel
Muito obrigado pelo livro em caminho. Já o folheei. Comecei pelo fim como recomendou. Como você começou na nossa velha Faculdade, hoje é o velho professor que está no fim orgulhoso do antigo aluno e não arrependido do que lhe tenha dado. Hoje trocamos de lugar, você na cátedra, eu na assistência.
Do velho
Alceu"

A "tradução" da letra foi feita por Antonio Carlos Villaça.

Na época da ditadura militar Alceu foi o implacável, crítico, única voz da oposição (talvez porque as outras estavam mortas, ou presas). Ele enfrentou os militares e, muito antes da teologia da libertação, foi o primeiro a despertar a idéia de que o cristianismo é a religião dos excluídos, dos mendigos, dos banidos, dos pobres, dos marginalizados pelas engrenagens de poder do capitalismo. Seu pensamento estava além de seu tempo.


A PAIXÃO



Eu sei: sei que o leitor e a leitora já ouviu "A paixão segundo São Mateus" de Bach. Não sei se na mesma gravação que ouço agora, Deutsche Grammophon 419789-2, conduzida por Karajan, com a Filarmônica de Berlin e Gundula Janowitz etc., coro da Ópera de Berlin, em 1972. Não sei. Que dizer? A massa sonora desaba a dramaticidade de uma catástrofe. Que mais? Karajan explorou os "Ah!" - alongando "aa", estupefatos, de puro horror, perdurando-os até o limite do insuportável da dor. O ouvinte pode gritar: "Pare!" E o duplo coro: "Venham, irmãs, compartilhem com as minhas lágrimas" - na expressão funda em que o coração se despedaça. "Veja-O". "Veja-O" - se ouve a Mãe dizer, a apontar o filho, petrificada, horrorizada, vendo o amado filho, ali, no alto da sua compaixão, a caminho do sacrifício, a caminho do Gólgota, a caminho do Lugar da Caveira. E as flautas choram, os fagotes e violinos gemem, o órgão acorda, o coro, gigantesco, se engasga porque o mundo inteiro está em ruínas, o Universo estremece estarrecido - o que foi aquilo? Que é aquilo qque vemos? Oh, que horror! São ondas largas, são ondas largas. "Veja-O, o torturado". (Mas riam dele, e despojavam-no de suas vestes, cuspiam nele e, tomando o caniço com que se apoiava, davam com ele na cabeça, obrigando-o a beber vinho com fel). Mas Ela, a Nossa Própria Mãe!, nos exclama: "Veja a sua doçura!" Veja com que doçura ele vai a caminho da dor. Não há, neste tema, talvez o maior de todos os temas - do sacrifício, da tortura, da loucura, da violência, da nossa crueldade - maior realismo do que esse: "Estais vendo? Estais todos vendo o que vejo? [pergunta a Mãe]. É ele! Veja a sua doçura a caminho do calvário!"

E a massa do diáfano coro infantil, saído não se sabe de onde, talvez das profundezas das nossas próprias mentes, as crianças celestes, as mais puras crianças celestes, uma surpresa de Bach, que entra com vozes vinda de um céu distante onde pequeninos anjos horrorizados e não acreditando naquilo a que estavam assistindo, com o que estávamos todos assistindo, o mais santo dos homens levado ao sacrifício brutal... Bach usou e abusou de sua engenhoca, da sua capacidade de, num malabarismo barroco, nos enredar, nos torcer como serpente estranguladora de suas malucas idéias musicais, hipnotizando, sufocando até às lágrimas. Na realidade, esta é música perigosa, faz muito mal, depois de ouvi-la nos sentimos mal, pode até matar-nos. São certas voltas e fugas das vozes mais puramente estarrecidas daquelas crianças celestes do coro infantil que gritam nos nossos ouvidos, que gritam para nós, dentro de nós, para que ouçamos nós, para que nunca nos esqueçamos nós: "Ó Deus, como ele está sereno a caminho da cruz" - "Como está paciente!" "Ainda que cruelmente torturado..." ... de seus olhos saem a sua grande e máxima compaixão...".

A música passa por sobre nossa sensibilidade como um tanque de guerra. E Bach trabalha com a gigantesca massa de sonoridades impressionantes, quando o texto da antiga liturgia luterana nos diz (não sem ironia): Tende piedade de nós, ó Jesus! Nós vos imploramos, ó Jesus, tende piedade de nós! - Isso dito na hora mesma em que ele está a caminho da morte! E todo coberto de sangue! Tende piedade de nós, vós que caminhais para a morte, enquanto carregais sobre os ombros o instrumento da tortura! Vós que estais sendo levado à mais terrível dor, ao supremo de todos os nossos erros, tende piedade de nós! De nós que vos condenamos à Morte! Tende piedade de nós!


DO AMOR


O amor depende de condições. Exige duas pessoas. Nem uma, nem três, quatro, cinco. Seu número fixo é dois.
Exige coincidência de duas vontades. Mútuas. Não uma que dá, outra que recebe. Ou o contrário. Tem de haver recíproca vontade. Mão dupla. Nem atração. Mas vontade mútua.
Se há possuidor e possuído, não há amor. Mas sado-masoquismo.
O amor não é infeliz, quando ativo. Amor existente, e infeliz, é contradição de termos. Como um quadrado redondo. Se há amor, há felicidade, instantânea, imediata, mesmo passageira (e qual felicidade não é passageira?). Energia, liberdade.
No amor não pode haver prisão. Há controle? Não há amor. Há fraqueza? Amor não há.
O Padre Vieira define, sabe bem o amor. Ainda que Padre não ame, como nós, leigos, ele conta do amor místico. Mas é amor, e, em certo sentido, êxtase. O amor é êxtase. (Abro um parêntese: Com o levantamento de casos muito antigos colocados nas manchetes, nas capas das revistas, que serve para enfraquecê-la, a Igreja deve atualmente estar sofrendo uma retaliação política. Não é preciso ser cientista político para saber por quê).
Na época de Vieira, o Brasil era "paraíso" do amor. Não havia pecado debaixo da linha do Equador (pecado mata o amor, ao nascer). Todo amor é puro. Principalmente o sexual. Nosso clima brasileiro, praias, frutas, a cândida nudez indígena, o exotismo, o afastado das gentes... O Brasil nasceu sob o signo do erótico. Basta ler "Casa grande & senzala", de Gilberto Freire.
Vieira, grande padre, grande pregador moralista, deve ter mantido a castidade. Mas a castidade do amor também é amor.
O amor não se corrompe, não se compra. Não tem idade, sexo, limites. Nem é cabível em definição. Não é conceitual, teorético. O poetas são os que dele dão conta. Definem os amantes, que "se amam cruelmente, e com se amarem tanto não se vêem", diz Drummond.
Em "Amor e medo", o poeta Casimiro diz do amor:


Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amôres:
- Meu Deus! que gêlo, que frieza aquela!”

Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segrêdo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela - eu moço; tens amor - eu mêdo!

Tenho mêdo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas sêcas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumece os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

Eis Amor. Tememos amor. É a dissolução do "eu". Quando amamos, mergulhamos em abismo. Nos perdemos. A felicidade apavorante do amor. Que quer tanto, é tanto, que eu, um reles cronistazinho de fim de semana, e pretensioso, meti-me a falar do que não sei, do amor, caindo no ridículo de todo amante.
Certo é, e também, que há amores trágicos. Ou tragédias amorosas. Romeu e Julieta, Tristão e Isolda.
Certa vez tentei assistir a uma impressionante adaptação de Romeu e Julieta. Ele era um jovem palestino muçulmano; ela era uma menina judia israelense. Em plena guerra! Atravessando barreiras e fantasmas!
Num dos mais belos poemas de amor, Tristão e Isolda, Wagner diz mais ou menos assim: "Para matar-me basta que ele me olhe! Se eu vir a tristeza de seus olhos, seu olhar penetrará meu coração como um punhal!" Eis o grande Amor, acima da vida e da morte, sobre as limitações humanas!
O amor, nobre, importante sentimento, que, como toda Arte, só aprendemos na Obra de Arte. A arte nos ensina a amar.
Ou então, como disse certa vez Drummond: "Amar depois de perder". Aprendemos depois da perda.
"Triste sina, estranha condição".
(Diz Camões).


PEDRO CALMON


Um dia, estava eu em leitura no salão da Biblioteca da Faculdade de Letras. Havia mesas espalhadas, algumas poltronas. Eu gostava das mesas. Não era ambiente completamente silencioso, aquele. De um lado, havia o escritório da Polícia Federal, com quem partilhávamos o prédio (!). Do outro, algumas salas de aulas, no primeiro andar. Os "tiras" não olhavam para nós (era antes da ditadura militar), mas nossos colegas conversavam alto. Até mesmo a Ivete, diretora da Biblioteca, tagarelava. Mas sentíamo-nos em casa. Ali se passaram alguns fatos dignos de nota, ah sim, e um dia conto.
Estava tentando concentrar-me na leitura quando pressenti que alguém me observava, por trás. Estava de pé:
- Menino - disse-me a voz aguda daquele senhor bem vestido, empinado, na sua aflautada voz afrancesada. "Menino, o que você está lendo?"
Era o Reitor. Pedro Calmon. Eu era menino (tinha uns 19 anos, cara de criança, franzino, magro e assustado). Me levantei. "Venha comigo", disse-me ele, depois de alguma conversa. Lembro-me de que perguntou de onde eu era, se eu vivia sozinho no Rio de Janeiro, que viesse almoçar em sua casa, onde participaria de melhor alimentação. Deu-me seu cartão de visitas (que nunca usei). Indagou se eu sentia falta de meus pais, que recorresse a ele no caso de alguma necessidade ou doença. "Tome-me como seu pai", me disse.
Levou-me até a Academia de Letras, onde ia reunir-se. Lá, mostrou-me a Biblioteca, apresentou-me. "É uma Biblioteca de alta indagação", disse-me ele.
Durante a greve dos estudantes, Pedro Calmon nos recebeu no seu gabinete. Pequeno demais para cabermos todos lá. A sala estava cheia de obras de arte, caríssimas, coisas pessoais, dele mesmo. Na parede, um gigantesco painel de espelhos. Dizem que quando saiu da Reitoria, deixou ali várias obras. Valiosíssimas. Ele era assim, homem generoso e rico. Rico sob todos os aspectos, não apenas material. Grande advogado, grande escritor, grande historiador, grande orador. Tudo nele era magnífico. Como o título. Tomava o automóvel da reitoria apenas para atravessar a rua. Ia almoçar no Iate Clube todos os dias, em frente. Nunca entrava numa loja, para fazer compras: o alfaiate, ou o vendedor, vinham a sua casa. Dizem que toda força vinha de sua esposa, D. Hermínia, que também conheci, pois era seu vizinho na Rua Santa Clara, em Copacabana. "Pedro, você tem escrito? Pedro, você deve ir. Pedro, para quem você está telefonando? Pedro, e seu novo livro, como está?" Ela cobrava, puxava o marido. Conseguiu que ele fosse Ministro, Catedrático de Direito, Reitor. Conseguiu que representasse o Brasil na coroação da Rainha Elizabeth. Já muito idoso, obrigou-o a participar de congresso na Europa. Ele era membro da maioria das grandes academias européias, e tinha recebido a maioria das comendas e condecorações. Sua "História do Brasil", em 7 volumes, continua monumental. Respeitava-o a esquerda, que o citava. Mas ele era assim: aparecia, a pé, sem segurança, sozinho, no meio de uma passeata, no centro de uma assembléia de alunos. Circulava entre nós. E, apesar de tudo, sentíamos que era um dos nossos, que estava do nosso lado. Admitia críticas até grosseiras de frente, a que reagia com firmeza, mas nunca revelava ódio. Resistiu, o quanto pôde, ao cerco. Proibiu o Exército de entrar na Universidade, no portão, com a famosa frase: "Aqui só se entra com vestibular!"
Seu vocabulário, mesmo no cotidiano, era requintado, especial, encantador, sublime. Ele encarnava a figura perfeita do "homem de letras". Na elegância do andar, na dignidade gestual, no sorriso, no simpático porém aristocrático olhar. Parecia impulsivo, arrebatado, emocional. Um dia, vinha no seu automóvel (sempre com chofer) pela Cinelândia, a caminho do Instituto Histórico, quando viu um policial surrando um pivete.
"Pare o carro!" - gritou para o chofer - e precipitou-se para o guarda aos berros: "Não faça isso! Não faça isso! Ele é apenas uma criança!"
Eu vi (claramente visto, e não creio que a vista me enganasse, ali estava Tônia Carreiro e outros) durante uma das passeatas estudantis, na Avenida Rio Branco, sob estrondosas vaias, Pedro Calmon tentando fazer parar a passeata, em prantos, chorando mesmo, enquanto gritava: "Parem! Não provoquem! Não vamos radicalizar a crise". Tinha ele razão?
Quando morreu, nenhum jornal noticiou. Ou melhor, só o obituário. Eu senti a dor. Senti que morria algo ali, algo meu. Era um reacionário? Talvez sim. Até mais que isso: ele era um aristocrata. Mas ninguém foi mais cortês, mais afável, mais bondoso, mais interessado nos outros. No bem-estar dos outros. Os presidentes militares jantavam em sua casa, ele era a própria elite em pessoa. Mas era uma pessoa boa. Que importa mais?





NA TERCEIRA MARGEM DE GUIMARÃES ROSA




O que a leitura vê, ao aproximar-se do texto: O pai, com seu viver misterioso, derrama em torno uma espécie avessa de domínio. Esse pai é árbitro incondicional de todas as divergências de sentidos. Quem é? Que é? Ao esforço das interrogações angustiosas, o pai responde com uma idealização, infinita, a quem lhe rompe a trilha verbal. No lugar do pai (no Ali, no Meio), não chegará a correção dos poderes constituídos: O pai é o próprio poder da ausência. Ali não o atormenta nenhuma consciência de impunidade, de violação de todos os direitos: a Lei do Pai. Ali fica, no anonimato da sua culpa máxima. Aquela margem é um vácuo, um hiato, um parêntese: O não-código. Era um vazio prodigioso: Naquela imprecisão, em que se entredisseminara, o pai acelera o tumultuar, desencontrado, dos signos familiares. Todos se calam, porque os deprime o assunto. O pai prolonga, no ritmo maldito do seu viver, o exílio insuportável do filho: O exílio de Pai. Quando o pai retorna, como notas de estranho clarim, os semas se precipitam, coordenados, saltando de todos os lugares do seu discurso, para esmagar o filho, sufocá-lo, cortar o seu discurso narrativo, a sua fala (com a sua falta). O pai, no seu esconderijo, no seu homízio, provoca a ruína social, o rumor, com indiferença e com culpa, seu errar, sem temer um juízo, sem dar explicação, na cumplicidade muda da face das águas. Sua liberdade é, portanto, um crime contra sua própria lei:

«e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas
ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e
desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito
um jacaré, comprida longa.»

O que se espera do Pai de «A terceira margem do rio» é a sua “cura”, sua desistência, o organizar-se dos blocos da sua lei, construtora do curso do viver. Atirando-se ao espaço das estações, insiste o pai num desembainhar do tempo, no corte que vê avançar, no desmanchar das coroas da idade perplexa, na indisciplina de seu próprio ofício órfico, na dança, na evolução de planos sucessivos da coreografia do seu ir-e-vir, sempre, sem esperar um fim, ou esperando o filho, até nos momentos de suas apresentações, de suas aparições momentâneas, mas com brilho e poder, afastado-e-perto dos que ainda (?) ama (?).
Com seu engenho aquático, ele perfura o tempo (“o que é, é saudade”, Grande Sertão: Veredas), miserável, mas glorioso, na sua recusa, no seu universo flutuante, com/sem distúrbios: Só assim parece explicável que ele não suma, nunca, de todo, e nas vezes em que aparece continuar a ser no longe-e-perto do amor.
Sua “viagem" deixa o trilho virgem de um sem número de estragos.
As vozes enlouquecem (o que é que vão pensar? diz o discurso do Outro), desciam em desconversas, explicações, hipóteses e lendas: Mitos? O pai é um Mito. Fundamental. As vozes abrem, repetidamente, o avesso da antífrase, secam infelizes, caem melancolicamente, em depressão, querendo - ainda - conservar o rosto da figura (ousaram o Ousado? o Supremo Sonho?).
Qualquer índice que por ventura apareça é analisado, interpretado, o enfoque muda de mão, se prolonga, intrinca o seu percurso, no aveludado das conversas sigilosas, silenciosas, da imaginação secreta enredada no solo do tempo, no desconhecer da conjunção das estações da vida, de onde vem o vento do esquecimento, que atrofia o invólucro do presente nunca ofertado, e vem a chuva e o arrasta para o chão sem fundo dos baixios e vazios.
Que aconteceu? Desconversam vozes. E silenciam, desaparecem. Confusas e tristes. A tristeza das vozes do discurso, exiladas da albergaria da tradição: O ar cheio de signos, de cantos, de cantores, de lamentos, de fagulhas e respingos, de ninhos fugidos, não se encontrando mais, no ar do abandono da inexplicação, o condicionado nas calhas da velhice, na história, na humana, na amortecida Ida, pelo fluxo do não-permanente, do vir-a-ser. Vozes perplexas do não-lugar. O código das vozes da perplexidade:

«Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram
de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se
desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes
das noticias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras,
até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a
tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava
no rio, solto solitariamente.»




O SIGNIFICANTE

O significante é o pai-canoa, que se desloca, com seu desígnio funesto, violando, entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam a união dos membros sociais.
A complementaridade de substituir o pai, por parte do filho, tem o patronato de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas, sociológicas, históricas.
O rio dá, à paternidade, um novo sentido para sempre: O pai mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as vozes?).
Os sujeitos (pai-filho) devem revezar-se, um sendo substituído pelo outro.
Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta roubada”).
Ir para o rio social: Ir é dolo.
A matéria social não quer que ninguém vá, pune a ousadia de sair para nova dimensão.
Os problemas se complicam, na procura dos fins de restituição do pai à condição paterna. O pai deve ser reconduzido ao seu lugar na canoa com a mãe (canoa fálica).
E o filho, este se sente culpado por desejar a morte do pai, seu afastamento da mãe, o deslocamento com sua fálica canoa.
O pai se afasta com sua fala, isto é, com sua canoa.
A canoa é a transposição da fala paterna, do falo.
Quando o pai manda fazer a canoa, está erigindo um monumento (que é transposição de sua fala, de seu silêncio, de sua falta), emblema daquilo que retira da mãe, para sempre, para o sêmen das águas femininas.
A fala nadará, daquele momento em diante, no grau de feminidade pura.
Neutralizada pela horizontalidade em que se deita, a fala desaparece na semiose pura da liquidez da mulher aquosa da mãe d'água. Ela retorna àquele estado pré-uterino, o do espelho do rio humoral, placentário. A canoa, objeto perdido, ao qual se pede, e perde, aquele dolo (fálico).
Não se pode restringir a fábula ao uso da tridimensionalidade interdita do rio, apenas.
O uso é o uso da fala familiar, que se aparta, que se afasta, que se cassa.
Ausentando-se, com sua canoa, o pai resolve, retira do núcleo familiar o dom da fala, em que se sustenta a ordem simbólica da civilização e da escrita.
Mas sua retirada se dá tardia, a ordem simbólica já está instaurada no narrador filial. E assim o que se lastima é a perda de origem da fala, tardia e castrada. A fala sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida.
Na brecha do rio se inscreve a escrita da Fenda, lá há a escrita clandestina, a esquecida de seu miolo, de sua semente.
Esta complexidade das vertentes do texto não se simplifica, mesmo amputando suas partes, os membros da estrutura.
Nem promana dos resultados a complexidade verbal da interpretação, que só faz levantar o pano, e não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, mas confusos.
Durante todo o texto (“nosso pai“), o pai se repete, ele é a poesia do seu imagismo familiar e ecolalia, na tendência do filho de repetir automaticamente as palavras ouvidas.
Esse pai que repete é a pulsão, o ritmo. Seu brilhantismo temático. Repete-se para que não desapareça de todo.
Acresce que o texto interpretativo tem de vir em estado de liberdade, de descompromisso, o que não deixa de ser: Livre com respeito às leituras consideradas corretas.
Só há um endereço: O leitor, na estima e no reconhecimento.
Vamos escrevendo o que nos acorre.
Assim o rio.
Ele tem a dimensão da linguagem que vai aparecendo, sua leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos simbólicos vão ocorrendo, a saber, a linha discreta e segmentada do fluxo inconsciente, que é o discurso das vozes fluviais, das vozes que vêm do rio.
Ali o pai habilita o filho, empresta a sua voz, seu discurso, na cadeia significante do jogo do ir-e-vir da sua casa, da sua causa, da sua canoa.
No seu lugar se levantam incidências imaginárias, aquilo que a leitura vai tecendo, registrando, produzindo:

«A gente teve de se acostumar com aquilo. As penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que
queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava
para trás meus pensamentos, O severo que era, de não se entender, de maneira
nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu
velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do
se-ir do viver.»










OS SIGNOS DA TERCEIRA MARGEM

De longe no rio surgem palavras, signos inusitados, estranhos à generalização do desconforto náutico da canoa fantasma, para desequilíbrio da verdade dos fatos, esquema psicanalítico de que o anacoreta é o desvario, a sombra e a marca de um limite. Sua insânia é uma instuspecção coletiva, contagia e envolve a absorção da própria prática da vida. Quando surdir, duende, refluído, recaído sobre si mesmo, predileto de si, portador do atemporal de seu passado, peregrino do rio e agora estrangeiro, preso, preso da mitologia, preso de si mesmo e a si mesmo pelo obscuro de sua própria soltura em tão poucas páginas, dentro do seu hábito de narrativas e clausuras, absorto, no germinar e no disseminar do contágio de seu desvario, ele será o verdadeiro contra-herói de uma
genealogia moral, patriarcal, peregrino e único que, na estória, é passageiro da vida, embora circular, embora cíclica.
Aceita, melancolicamente, o filho, a sombra dos gestos-índices, o exaspero das lágrimas, a fascinação das promessas da infância (de ir, também) , num transbordamento de queridas crenças, a unidade da predestinação. Na planura das almas que ficam, riscam-se as aventuras externas do pai, seus movimentos espontâneos. O poder multiplicador dos seus fragmentos errantes de nós mesmos, paisagem imaginária, ostentações insatisfeitas e inatingíveis: A alma do rio é extensa e tênue, comunica a mobilidade de auras, a delgadez temporal, a inconsistência interior, as camadas estratificadas do solo tradicional que se quebram pelo recurso do silêncio, o não ao verbo, pondo em crise de superestesia o narrador (afluentezinho do rio). O silêncio do pai (só raros gestos) , um cachoeirar sem barulho, manifestação plena, um esquema seco, restrito, despojado, mas não estéril, sobre os fios de prata das águas luminosas, ou sobre a tonalidade veludamente negra da noite, o silêncio do pai é um simbolismo, símbolos marchando, constelações de espíritos das gentes, retirando-se o pai não se isola em si, somente, mas nos isola, a todos, com a dificuldade de conciliação e de articulação de seu anti-discurso, expungido, eliminado, reduzido a uma solidão que se desenha, sem mais nada, nas regiões mortas das águas, em que todas as coisas parecem recordadas, vivem civilizações paradas, geleira social: Uma ilusão feraz, fecunda — o pai não formula a questão: Quem me ama? é amuado pelo filho, pelos familiares, ama, há amor, a outrance.


Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar (este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livrom, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma critica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura).
Assim revela-se uma decisão, uma escolha, um risco (este é um texto crítico?): Uma atitude e uma concentração, para que não se perca o leitor, os textos, numa pluralidade disseminada — a concentração, no conto roseano — para que não nos esqueçamos de nossos olhos, no panorama amplo das variedades, das vias de uma ciência que, imersa no mundo do pensamento ocidental, abrange-o e — de través, da escrita — é capaz de um questionamento quase infinito.
A proposição se dá em razão do limite (ilimitável) do alcance da teoria literária do texto roseano, sem pecar pela omissão de escrever tudo o que nos vier, nos chegar, sendo sugerido, pelas lembranças do texto (e pelos seus-meus esquecimentos), irrestrito a todos os textos lidos, imaginados. Através do conto de Rosa se poderá lastrear todo o percurso teórico e técnico,
porque o sentido do conto, seus sentidos, é amplo, radical.
Consideremos que há três tipos de discurso:
1 . Discurso representativo-científico.
2. Discurso que se vê a si mesmo como produção de sentido.
3. Discurso onde se inscreve uma reserva (do ser do ente).
O discurso que se vê como produtor de sentido (geno-texto, diria Kristeva) é concorrente ao próprio texto poético de que é meta-discurso, meta-texto.
O discurso da reserva (no sentido heideggeriano de “retraimento”) é um belo discurso hermenêutico, que faz a escavação do sentido.
Eis aí: A proliferação dos discursos das diversas ciências do discurso. Procura arqueológica, nos fundamentos, em que tudo se funda.
E se aprofunda. A área de questionamento ontológico (refere-se ao ser; e não ôntico: Que se refere ao ente) , fundamenta todos os outros, pretende criar as bases de edificação da própria condição de pensar, das
condições em que se formulam indagações sobre a natureza dos fatos do inundo. O discurso ontológico procura o “porquê” inicial, inaugural, de onde salta a luz que ilumina os discursos das ciências (discurso representativo-científico), e irradia um texto que, na produção da força do que diz, deixa entrever (como na Caverna), entre as sombras, a subsistência da poesia que diz, e interpreta.
A canoa é um significante, isto é, um ente. Esta canoa é o significante do pai, do Pai. Tomemos o caminho da canoa: O ente e ‘o” nada.
Este nada não é; o nada que se erige a partir da partida da canoa do pai. Não é, somente. É algo mais
anterior, mais nadificante, mais para trás da possibilidade de pensar. A canoa inaugura, com sua reserva, um estatuto nadificante. Ela se retrai. Ela se retira, do nível da margem primitiva (da existência), mas não recai na margem segunda (da não-existência), perde-se num vazio semântico (a margem-terceira não existe). A canoa, ali, passeia na semi-existência de seu não significado, na não-significação. A canoa é um Não. O poderoso Não. O interdito.
Ressaltemos um fato: A introdução, da canoa, no terreiro nadificante. Não que a canoa não seja matéria, mas sim que não-seja o que é: Significante do Pai. O significante em reserva.
Tema de uma correspondência escrita com a canoa: Ente/nada.
Do nada, nada se pode dizer, o nada não é. Que fazer ante este vazio do significado? (nada de significante). Pois o Nada é a Omissão, não só de significado, mas também é um não-significante (a não ser margem direita ou esquerda, nada). Pois se o “conceito” nadificante em nada repousa, no significante terceira margem nada é, e, por isso, não-instituído (como, aliás, não é a Terceira feira, de João Cabral) como algo que se tem em mente impossível, algo sobre o qual não se pode ter uma idéia. Nada, em última análise, e no fim das contas, não é nada, não-nada, nonada, omite-se do pensar. É a iliminação.
De que, então, fala o conto? Diz o mundo, isto é, o mundo do homem. Em outra palavra: O texto dá conta da existência de um modo "particular" de existência, a existência-enquanto canoa.
Existência é o modo particular de ser do homem. O modo que traz consigo um sentido — o sentido do seu mundo — e um aliado — a co-existência. Tanto o sentido, quanto o aliado, valem zero no que se refere à existência-canoa.
Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.
Ora, o narrador diz o mundo, inscrito na curvatura do caminho que leva ao rio (“Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar”). Diz o mundo histórico (no sentido em que Dilthey a vê, a história hermenêutica, como compreensão).
Pois, se o narrador diz um mundo que inexiste, está quase a ver o mundo retraído do pai (“Nosso pai não voltou”). O contexto conhecido pode vincar a possibilidade de uma libertação da grelha conhecida, rígida. Aponta para o além dos esquemas. Virado para o lado vestibular, translato, banda inconteste e abrigo enriquecedor do estranho lugar de labor do pai: O empenho de viver do pai (“Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos”), a narratologia louca de um objeto lúdico, instrumentado (“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”).




A TÉCNICA, OU A MORTE DA LITERATURA

Esta tipologia cita o leitor (chama-o) para a prática da escrita, e sua leitura, no centro da decisão.
A terceira margem do rio é um texto clássico (a narração é tradicional, por ela se conta uma estória num metarmorfismo de ações). Os textos clássicos bailam na irresistibilidade da grande massa da Literatura, sua grande quantidade, a totalidade de sua constituição, a multidão de sua maioria. É necessário, diz Barthes, avaliar essa grande massa. Avaliar é apreciar o plural, estimar a propensão para a proliferação de sentidos; reconhecer a grandeza de um texto é calcular quantos corpus dele serão levantados, com quantos códigos ele é tecido, quantos discursos sobrevivem nele, reconhecer sua grandeza, sua intensidade, seu merecimento e sua perenidade. A leitura é um aval, e um esquecimento (a leitura não dá conta de todo o plural do texto, de todos os sentidos em avalanche, o texto não abona uma leitura como sua primeira e unica).
O critério de avaliação, de avalização, é o da interpretaçao, isto é, do exame de apreciação e verificação de quanto cada texto legível (clássico) pode pôr em circulacão.
A escrita do texto clássico é um pronto mobilismo, isto é, sua essência é, ao mesmo tempo, individual e múltipla, se transforma incessantemente, há ineficácia na apreensão e gramaticalidade.
O valor do texto está em que não se lhe pode dar um sentido pleno, conclusivo, mas sim deixar falar suas diversas falas e vozes numa pluralidade de discursos.
O texto clássico tem, entretanto, um aparente plural parcimonioso (o máximo de pluralidade do texto é o máximo de ambigüidade, nublaria sua obrigatoriedade de representar o inundo, o texto mantém-se coerente graças à forma lógica que o sustenta).
Um texto de grande multiplicidade, como A terceira margem do rio, provém o intérprete de várias entradas de validade, vários acessos, vários ingressos críticos, algumas passagens culturais, entradas de acessibilidade além (ou aquém) da leitura primeira, lisa, uma chegada interpretante para cada caso crítico. O texto é, pois, acessual, se manifesta por acessos de uma variegação sortida, alternada, a arte de sua variedade.
O texto libera vários códigos, num entrelaçado de textos (o leitor também tem seu(s) texto(s)) . O texto clássico é leitura infinita. Lê-lo é deixá-lo ser plural, não dar-lhe um sentido, não formalizá-lo, nem dele erigir um modelo que o explicasse de uma vez por todas.
Mas, como o texto clássico é medianamente ambíguo, inter-textual, podemos enfrentá-lo, confrontarmo-nos com ele num exercício libidinoso de prazer, encará-lo, atacando de frente, e... enfrestá-lo: Separá-lo por frestas, penetrá-lo no seu encantamento, enfiarmo-nos por suas células. Isto é: Interpretá-lo.
Essa atividade (a interpretação) é, e não é, alienante. De um lado, está a guerra-sempre-iminente, a fome, a miséria. De outro está o texto, sua lisura é percorrida com a vista, que colhe, que recolhe uma forma igual. O texto é o mundo: Suas guerras, suas terras, as dificuldades, as lutas de classe, lê-lo é ler o mundo.
Podemos ler o texto com a conotação, que é um sentido segundo, cujo significante é um outro signo.
O próprio significante da conotação é um outro signo. O sistema de significação da denotação é chamado primeiro. O sistema de significação da conotacão é um segundo.
A conotação pode ser uma senda para as portas da escrita clássica.
Mas A terceira margem do rio não é um texto tão clássico assim.
Por essa razão, a conotação não é freqüentemente usada ali, mas as leituras super-postas de uma crítica mista:
Crítica estruturalista, semiológica, psicanalítica etc. A leitura, qualquer leitura, sempre quer uma decifração conotativa: Visa sempre ao sentido segundo, aos sentidos segundos, porque o leitor, que se aproxima, já é urna pluralidade de textos.
O leitor traz seu texto à baila, na dança significante deste construtivismo crítico. O texto do leitor é produto do que leu, do que viveu, do seu corpo.
Não há, na leitura, uma objetividade crítico-científica. Não há, também, uma extasiada e impressionista subjetividade. Há tudo, e outra coisa: A leitura, diz Barthes, não é nem objetiva (representando um objeto sem sentir-lhe as carícias), nem subjetiva (reduzindo toda existência à existência do sujeito leitor, sua impressão estética, sua sensibilidade). A leitura é um ato topológico.
A topologia, de um ponto de vista intuitivo critico, é o estudo das propriedades de uma figura (a do texto), propriedades que não variam sob o efeito de uma variação contínua. Por exemplo: De um ponto de vista topológico, uma circunferência, uma elipse e um polígono (isto é, linhas fechadas não entrelaçadas) são equivalentes, precisamente porque deformáveis de uma a outra. Não se distinguem, por exemplo, do ponto de vista topológico, uma superfície esférica da superfície de um cilindro.
Nessa analysis situs, a tarefa é de movimentar sistemas que não se limitam ao texto (não param ali) nem estão no leitor (não são criados por ele). Os sistemas explodem do texto para a disseminação cultural, são sistemas semióticos, psicanalíticos, históricos, sociológicos, são movidos, movimentados pelo ato crítico, transladados, não são meramente encontráveis ali, mas são sistemáticos, isto é, funcionam no agir crítico da leitura. O leitor não os encontra prontos, quer dizer, não os pesca. Nem os cria, numa invenção modificadora do lastro textual.
Ler é nomear sentidos, fazê-los funcionar, dar-lhes corda, os sentidos estão e/ou partem dali. Ler é um ato de mobilidade, de por em movirncntação os sentidos. Mas não todos. Não há um todo, um limite, o texto clássico é infinitude de todos os sentidos. Por isso, diz Barthes, o esquecimento crítico é um valor do texto, haverá sempre sentidos esquecidos, nunca se poderá reunir todos os sentidos na arena da rigidez de uma grelha analítica.
Essa técnica vinca a marca da liberdade, não aponta para esquemas rígidos, vira para um carteamento cultural. O vestibular do texto faz uma reconstituição translata, um enriquecimento que paralelamente atinge o texto, um labor orquestrado por uma narratologia alegorizante, quase um objeto lúdico desse leitor instrumentado, armado, que é o crítico. O texto, um objeto lúdico, lúbrico, torneado habilmente pela critériologia que se resolve em espetáculo, de cariz erótico, diante da escrita eleita. Não uma clarificação, mas um funcionamento; a prossecução de um trabalho amoroso, não aplicável de modo indiferenciado a qualquer texto, nem arreigado a um propósito ou uma concepção substancialista. A interpretação é uma pesquisa de sentidos, em relação à produção do texto, uma hermenêutica de penetração, ultrapassagem, descoberta de sentidos coerentes, sob o domínio, apesar de tudo, da vigência da subjetividade do crítico, um momento, um quase-pastiche, do texto e da pluralidade cultural que ele move, do travejamento técnico-artístico dos seus rumos semânticos, de sua produtividade, de sua prática, se o leitor disser que o crítico usa o texto como pretexto para escrever não estará errado; já não se pode, nesta nossa época, fazer literatura; a literatura passa a porejar os textos teóricos, isto é a morte da literatura, e o nascimento do texto.
Não haverá um conjunto final (da porta de saida do vestíbulo), a construção armadural de um modelo do texto. O texto é uma rede de mil entradas. O texto único, o único texto único: A Literatura (corno um só texto, i. e, o que vale por todos os textos, a Lite¬ratura como único texto; a Literatura, comum a todos eles).
Essa entrada do texto (tecida de mil portas) éuma perspectiva de vozes vindas de outros lugares de texto, de outros códigos, numa fuga, cuja teoria e a leitura, a Diíerença da Literatura.
O texto deve ser lido passo a passo, diz Barthes. Desse modo, o passeio é mais completo, pode-se obser¬var a reversibilidade das estruturas de que o texto e tecido, na talagarça textual: “Estelar o texto em lugar de condensá-lo” (S/Z, p. 20).
Para znter~retar (levantar sua fala natural) o texto, devemos segmentá-lo (cortar sua fala natural) em lexias — que são unidades de leitura, o melhor espaço (e o menor), onde se possam observar os sen¬tidos, a densidade dos códigos. a manifestação das co-notações, a voz das vozes. Cada lexia, diz, não deve ter mais de três ou quatro sentidos a enumerar, a perseguir, a funcionar. () levantamento sistemático de cada lexia não visa à descoberta da verdade do texto, não planeia sua estrita estrutura (profunda embora),
mas é a faculdade da fala dos clamores do texto, de viva voz, numa vozearia de semiose intensa, num vzs¬ti-vis hierográfico (a dessacralização da Literatura) Ou seja: Vira para suas unidades de sentido (Ingarden).



AS INTERPRETAÇÕES

Convivem, na interpretação, matérias semânticas de várias críticas:
1 Centradas no sujeito: Valorizando a presença do autor positivamente, considerando a literatura corno ~‘expressão” do sujeito.
2. Centradas no texto (no objeto)
2. 1 Crítica estilística. Definindo-se como ciência da expressão (Croce) , e corno crítica dos estilos indi¬viduais. Considerando que a linguagem (o discurso) não é exterior ao sujeito falante: Vida e linguagem se, identificam. Considerando que a experiência em-pirica, melhor dizendo: A vida, e a forma, usada para exnressar esta experiência, se fundem. Considerando que não bá a adequação da idéia à forma, mas que acontece urna forma espontânea da idéia. Analisando o estilo (esse fenômeno dc origem individual e de natureza psíquica, essa germinação necessária, de que o autor não pode fugir). Percorre-se o caminho da Escola Idealista, quem vem de Humboldt para Karl
Vossler: E que vê na linguagem, nao sé objeto que pode ser analisado, mas a expressão de uma vontade. Usa-se a divisão em duas estilísticas (da lhtng2ee e da paíúle). A estilística da Iangue, da expressão, sendo (iescritiva: Estudando as relações entre palavra/pen¬
sarnento (o pensamento se atualiza nas palavras, nao se “separa ‘ das palavras) A estilística da parole (ge¬nética, do indivíduo), buscando a chave da originali¬dade de unia obra (Spitzer) , quando uni detalhe pode explicar o estilo (Darnaso Alonso) Até mesmo a estu Estica estatística, de Pierre Guiraud, compete entrai em cena.
2.2 O new crttzczsm, considerando que não há conteúdo poético independente da linguagem: A liii¬guagem é a idéia. Vendo nas palavras significados den¬samente múltiplos. Sentindo que o significado da parte se explica pelo todo. Sabendo que a ‘obra” é uma es¬trutura verbal autônoma, um modelo auto-suficwnte, e ao mesmo tempo uma estrutura estratificada de va.¬rios níveis polifônicos (Roman Ingarden) . Vendo-lhe a verossimilhança, o gênero literário.
2.3 O formalismo russo, ostentando-se o esta¬tuto de Ciência da Literatura, vendo-lhe a iiterar2e-dade, isto e, as propriedades literárias do texto, que o caracterizam como literário: As metáforas, as meto¬nímias, as imagens, os simbolos, os mitos, a narraçao. o enredo, o ambiente, as alegorias. - Vendo a singu¬laridade do seu discurso (produção de sentido e do próprio texto). Descobrindo-lhe a notidade, o estranha¬iuzento. Sabendo que as palavras, ali, são consideradas como coisas, não apenas como veículos de comunIca¬ção. Vendo (lendo) os sistemas de funções de que o texto é travado.
2.4 A critica estrutural. Erigindo um modelo (móvel, dinâmico) que é homólogo à sua estndnra: A possibilidade do seu conjunto de elementos (solidá¬rios) de interdepender-se de modo totalizante. Sabendo que a estrutura e aquele “vazio habitável”, que esque¬matiza as relações instituidas no texto (relações srntag¬
ndticas e paradigrn.áticas) . Procurando sua gramati¬calidade.
2.5 A crítica hermenéutica-ontológica. Conside¬rando que a linguagem (o logos) produz o texto.
2.6 A crítica psicanalítica. Descobrindo os mitos pessoais, as forças impulsoras da arte, sua obsessão oní¬rica, seu feixe de relações inconscientes com o incons¬ciente coletivo (espaço onde moram as configurações míticas dos arquétipos). Sentindo que o texto dá forma a impulsos que o ultrapassam e que mergulham no obscuro do seu condicionamento biológico. Descre¬vendo as imagens, as metáforas, as metonímias, os sim¬bolos do inconsciente (do imaginário), que partem de uma infância do texto, e se manifestam inconsciente-mente no szrnbdlico (a linguagem), numa analogia, por urna substituição sêmica que desvela aspectos in¬suspeitados: Os fantasmas dominantes, obsediantes, vi¬rados para a coletividade (Freud, Jung, Mauron, La¬can) . E mais: A psicologia bachelariana, com seus mmagismos. E urna crítica psico-estrutural que se ins-pira nos seminários lacanianos.
2.7 Crítica poético-linguística. Herança de ja¬cobson, partindo da Estrutura da linguagem poética de Jean Cohen, e da Retdrica geral de Dubois e outros autores. Analisando a impertinência do discurso lite¬rário, a relação dos signos entre si; o saber por que um texto é eficaz; verificando o uso singular da lin¬guagem que a literatura faz; dizendo que arte é fonna (desvios que enriquecem); construindo uma teoria da impertinência (Coben) e do desvio (Dubois)
2.8 A crítica criadora. Concorrendo ao texto li¬terário, incorporando o literário no seu texto crítico. Seu texto (crítico) sendo uma escritura (uma escrita, ou uma Escrita). Fading. Sendo que fading (Lacan) se define como a fadiga do sujeito, a eclipse do sujeito, produzida pela fenda, que e a divis~io entre o discurso consciente e o discurso inconsciente. É o tipo de crítica feita pelo último Bar¬thes, por Poulet, por Butor, por Lotman.
2 9 A crítica semtológica, analisando os códigos, as mensagens, considerando que o texto é uma semiose,um processo de significação, vendo os relata, as repre-sentações, os níveis de substância, os planos de expres¬são e de conteúdo. É a crítica da conotação por exce¬lência. Fazendo a leitura do “universo” narrativo etc.

3. Concentradas no contexto.
3 - 1 As críticas sociológicas (Goldmann, Lukács, Escarpit), partindo dos processos de análise das condições de existência coletiva; fazendo uma sociologia da leitura, onde ler é solicitar a outrem a produção de um discurso, a solicitação que, as vezes, se confunde com uma verdadeira imposição; assentando-se no princípio de que a super-estrutura ideológica do texto veicula uma ideologia (uma visão do inundo) que não é exclusividade do escritor, produtor do texto, de que não e responsável o autor na sua individualidade, mas que provém de urna certa classe social, cuja voz o texto traduz: Todo texto revela uma luta de classes, reflexo especular de infra-estruturas (Lukács) homologia de relações sociais (Goldmann), em que, o que se passa no texto, e o que se passa na coletividade.


NA TERCEIRA MARGEM DE GUIMARÃES ROSA




O que a leitura vê, ao aproximar-se do texto: O pai, com seu viver misterioso, derrama em torno uma espécie avessa de domínio. Esse pai é árbitro incondicional de todas as divergências de sentidos. Quem é? Que é? Ao esforço das interrogações angustiosas, o pai responde com uma idealização, infinita, a quem lhe rompe a trilha verbal. No lugar do pai (no Ali, no Meio), não chegará a correção dos poderes constituídos: O pai é o próprio poder da ausência. Ali não o atormenta nenhuma consciência de impunidade, de violação de todos os direitos: a Lei do Pai. Ali fica, no anonimato da sua culpa máxima. Aquela margem é um vácuo, um hiato, um parêntese: O não-código. Era um vazio prodigioso: Naquela imprecisão, em que se entredisseminara, o pai acelera o tumultuar, desencontrado, dos signos familiares. Todos se calam, porque os deprime o assunto. O pai prolonga, no ritmo maldito do seu viver, o exílio insuportável do filho: O exílio de Pai. Quando o pai retorna, como notas de estranho clarim, os semas se precipitam, coordenados, saltando de todos os lugares do seu discurso, para esmagar o filho, sufocá-lo, cortar o seu discurso narrativo, a sua fala (com a sua falta). O pai, no seu esconderijo, no seu homízio, provoca a ruína social, o rumor, com indiferença e com culpa, seu errar, sem temer um juízo, sem dar explicação, na cumplicidade muda da face das águas. Sua liberdade é, portanto, um crime contra sua própria lei:

«e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas
ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e
desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito
um jacaré, comprida longa.»

O que se espera do Pai de «A terceira margem do rio» é a sua “cura”, sua desistência, o organizar-se dos blocos da sua lei, construtora do curso do viver. Atirando-se ao espaço das estações, insiste o pai num desembainhar do tempo, no corte que vê avançar, no desmanchar das coroas da idade perplexa, na indisciplina de seu próprio ofício órfico, na dança, na evolução de planos sucessivos da coreografia do seu ir-e-vir, sempre, sem esperar um fim, ou esperando o filho, até nos momentos de suas apresentações, de suas aparições momentâneas, mas com brilho e poder, afastado-e-perto dos que ainda (?) ama (?).
Com seu engenho aquático, ele perfura o tempo (“o que é, é saudade”, Grande Sertão: Veredas), miserável, mas glorioso, na sua recusa, no seu universo flutuante, com/sem distúrbios: Só assim parece explicável que ele não suma, nunca, de todo, e nas vezes em que aparece continuar a ser no longe-e-perto do amor.
Sua “viagem" deixa o trilho virgem de um sem número de estragos.
As vozes enlouquecem (o que é que vão pensar? diz o discurso do Outro), desciam em desconversas, explicações, hipóteses e lendas: Mitos? O pai é um Mito. Fundamental. As vozes abrem, repetidamente, o avesso da antífrase, secam infelizes, caem melancolicamente, em depressão, querendo - ainda - conservar o rosto da figura (ousaram o Ousado? o Supremo Sonho?).
Qualquer índice que por ventura apareça é analisado, interpretado, o enfoque muda de mão, se prolonga, intrinca o seu percurso, no aveludado das conversas sigilosas, silenciosas, da imaginação secreta enredada no solo do tempo, no desconhecer da conjunção das estações da vida, de onde vem o vento do esquecimento, que atrofia o invólucro do presente nunca ofertado, e vem a chuva e o arrasta para o chão sem fundo dos baixios e vazios.
Que aconteceu? Desconversam vozes. E silenciam, desaparecem. Confusas e tristes. A tristeza das vozes do discurso, exiladas da albergaria da tradição: O ar cheio de signos, de cantos, de cantores, de lamentos, de fagulhas e respingos, de ninhos fugidos, não se encontrando mais, no ar do abandono da inexplicação, o condicionado nas calhas da velhice, na história, na humana, na amortecida Ida, pelo fluxo do não-permanente, do vir-a-ser. Vozes perplexas do não-lugar. O código das vozes da perplexidade:

«Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram
de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se
desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes
das noticias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras,
até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a
tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava
no rio, solto solitariamente.»




O SIGNIFICANTE

O significante é o pai-canoa, que se desloca, com seu desígnio funesto, violando, entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam a união dos membros sociais.
A complementaridade de substituir o pai, por parte do filho, tem o patronato de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas, sociológicas, históricas.
O rio dá, à paternidade, um novo sentido para sempre: O pai mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as vozes?).
Os sujeitos (pai-filho) devem revezar-se, um sendo substituído pelo outro.
Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta roubada”).
Ir para o rio social: Ir é dolo.
A matéria social não quer que ninguém vá, pune a ousadia de sair para nova dimensão.
Os problemas se complicam, na procura dos fins de restituição do pai à condição paterna. O pai deve ser reconduzido ao seu lugar na canoa com a mãe (canoa fálica).
E o filho, este se sente culpado por desejar a morte do pai, seu afastamento da mãe, o deslocamento com sua fálica canoa.
O pai se afasta com sua fala, isto é, com sua canoa.
A canoa é a transposição da fala paterna, do falo.
Quando o pai manda fazer a canoa, está erigindo um monumento (que é transposição de sua fala, de seu silêncio, de sua falta), emblema daquilo que retira da mãe, para sempre, para o sêmen das águas femininas.
A fala nadará, daquele momento em diante, no grau de feminidade pura.
Neutralizada pela horizontalidade em que se deita, a fala desaparece na semiose pura da liquidez da mulher aquosa da mãe d'água. Ela retorna àquele estado pré-uterino, o do espelho do rio humoral, placentário. A canoa, objeto perdido, ao qual se pede, e perde, aquele dolo (fálico).
Não se pode restringir a fábula ao uso da tridimensionalidade interdita do rio, apenas.
O uso é o uso da fala familiar, que se aparta, que se afasta, que se cassa.
Ausentando-se, com sua canoa, o pai resolve, retira do núcleo familiar o dom da fala, em que se sustenta a ordem simbólica da civilização e da escrita.
Mas sua retirada se dá tardia, a ordem simbólica já está instaurada no narrador filial. E assim o que se lastima é a perda de origem da fala, tardia e castrada. A fala sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida.
Na brecha do rio se inscreve a escrita da Fenda, lá há a escrita clandestina, a esquecida de seu miolo, de sua semente.
Esta complexidade das vertentes do texto não se simplifica, mesmo amputando suas partes, os membros da estrutura.
Nem promana dos resultados a complexidade verbal da interpretação, que só faz levantar o pano, e não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, mas confusos.
Durante todo o texto (“nosso pai“), o pai se repete, ele é a poesia do seu imagismo familiar e ecolalia, na tendência do filho de repetir automaticamente as palavras ouvidas.
Esse pai que repete é a pulsão, o ritmo. Seu brilhantismo temático. Repete-se para que não desapareça de todo.
Acresce que o texto interpretativo tem de vir em estado de liberdade, de não compromisso, o que não deixa de ser: Livre com respeito às leituras consideradas corretas.
Só há um endereço: O leitor, na estima e no reconhecimento.
Vamos escrevendo o que nos acorre.
Assim o rio.
Ele tem a dimensão da linguagem que vai aparecendo, sua leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos simbólicos vão ocorrendo, a saber, a linha discreta e segmentada do fluxo inconsciente, que é o discurso das vozes fluviais, das vozes que vêm do rio.
Ali o pai habilita o filho, empresta a sua voz, seu discurso, na cadeia significante do jogo do ir-e-vir da sua casa, da sua causa, da sua canoa.
No seu lugar se levantam incidências imaginárias, aquilo que a leitura vai tecendo, registrando, produzindo:

«A gente teve de se acostumar com aquilo. As penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que
queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava
para trás meus pensamentos, O severo que era, de não se entender, de maneira
nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu
velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do
se-ir do viver.»










OS SIGNOS DA TERCEIRA MARGEM

De longe no rio surgem palavras, signos inusitados, estranhos à generalização do desconforto náutico da canoa fantasma, para desequilíbrio da verdade dos fatos, esquema psicanalítico de que o anacoreta é o desvario, a sombra e a marca de um limite. Sua insânia é uma instuspecção coletiva, contagia e envolve a absorção da própria prática da vida. Quando surdir, duende, refluído, recaído sobre si mesmo, predileto de si, portador do atemporal de seu passado, peregrino do rio e agora estrangeiro, preso, preso da mitologia, preso de si mesmo e a si mesmo pelo obscuro de sua própria soltura em tão poucas páginas, dentro do seu hábito de narrativas e clausuras, absorto, no germinar e no disseminar do contágio de seu desvario, ele será o verdadeiro contra-herói de uma genealogia moral, patriarcal, peregrino e único que, na estória, é passageiro da vida, embora circular, embora cíclica.
Aceita, melancolicamente, o filho, a sombra dos gestos, índices, o exaspero das lágrimas, a fascinação das promessas da infância (de ir, também) , num transbordamento de queridas crenças, a unidade da predestinação. Na planura das almas que ficam, riscam-se as aventuras externas do pai, seus movimentos espontâneos. O poder multiplicador dos seus fragmentos errantes de nós mesmos, paisagem imaginária, ostentações insatisfeitas e inatingíveis: A alma do rio é extensa e tênue, comunica a mobilidade de auras, delgadas, temporais, a inconsistência interior, as camadas estratificadas do solo tradicional que se quebram pelo recurso do silêncio, o não ao verbo, pondo em crise o narrador (afluentezinho do rio). O silêncio do pai (só raros gestos) , um cachoeirar sem barulho, manifestação plena, um esquema seco, restrito, despojado, mas não estéril, sobre os fios de prata das águas luminosas, ou sobre a tonalidade veludamente negra da noite, o silêncio do pai é um simbolismo, símbolos marchando, constelações de espíritos das gentes, retirando-se o pai não se isola em si, somente, mas nos isola, a todos, com a dificuldade de conciliação e de articulação de seu anti-discurso, eliminado, reduzido a uma solidão que se desenha, sem mais nada, nas regiões mortas das águas, em que todas as coisas parecem recordadas, vivem civilizações paradas, geleira social: Uma ilusão feraz, fecunda — o pai não formula a questão: Quem me ama? é amuado pelo filho, pelos familiares, ama, há amor, a outrance.


Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar (este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livro, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma critica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura).
Assim revela-se uma decisão, uma escolha, um risco (este é um texto crítico?): Uma atitude e uma concentração, para que não se perca o leitor, os textos, numa pluralidade disseminada — a concentração, no conto roseano — para que não nos esqueçamos de nossos olhos, no panorama amplo das variedades, das vias de uma ciência que, imersa no mundo do pensamento ocidental, abrange-o e — de través, da escrita — é capaz de um questionamento quase infinito.
A proposição se dá em razão do limite (ilimitável) do alcance da teoria literária do texto roseano, sem pecar pela omissão de escrever tudo o que nos vier, nos chegar, sendo sugerido, pelas lembranças do texto (e pelos seus-meus esquecimentos), irrestrito a todos os textos lidos, imaginados. Através do conto de Rosa se poderá lastrear todo o percurso teórico e técnico, porque o sentido do conto, seus sentidos, é amplo, radical.
Consideremos que há três tipos de discurso:
1 . Discurso representativo-científico.
2. Discurso que se vê a si mesmo como produção de sentido.
3. Discurso onde se inscreve uma reserva (do ser do ente).
O discurso que se vê como produtor de sentido (geno-texto, diria Kristeva) é concorrente ao próprio texto poético de que é meta-discurso, meta-texto.
O discurso da reserva (no sentido heideggeriano de “retraimento”) é um belo discurso hermenêutico, que faz a escavação do sentido.
Eis aí: A proliferação dos discursos das diversas ciências do discurso. Procura arqueológica, nos fundamentos, em que tudo se funda.
E se aprofunda. A área de questionamento ontológico (refere-se ao ser; e não ôntico: Que se refere ao ente) , fundamenta todos os outros, pretende criar as bases de edificação da própria condição de pensar, das condições em que se formulam indagações sobre a natureza dos fatos do inundo. O discurso ontológico procura o “porquê” inicial, inaugural, de onde salta a luz que ilumina os discursos das ciências (discurso representativo-científico), e irradia um texto que, na produção da força do que diz, deixa entrever (como na Caverna), entre as sombras, a subsistência da poesia que diz, e interpreta.
A canoa é um significante, isto é, um ente. Esta canoa é o significante do pai, do Pai. Tomemos o caminho da canoa: O ente e ‘o” nada.
Este nada não é; o nada que se erige a partir da partida da canoa do pai. Não é, somente. É algo mais anterior, mais nadificante, mais para trás da possibilidade de pensar. A canoa inaugura, com sua reserva, um estatuto nadificante. Ela se retrai. Ela se retira, do nível da margem primitiva (da existência), mas não recai na margem segunda (da não-existência), perde-se num vazio semântico (a margem-terceira não existe). A canoa, ali, passeia na semi-existência de seu não significado, na não-significação. A canoa é um Não. O poderoso Não. O interdito.
Ressaltemos um fato: A introdução, da canoa, no terreiro nadificante. Não que a canoa não seja matéria, mas sim que não-seja o que é: Significante do Pai. O significante em reserva.
Tema de uma correspondência escrita com a canoa: Ente/nada.
Do nada, nada se pode dizer, o nada não é. Que fazer ante este vazio do significado? (nada de significante). Pois o Nada é a Omissão, não só de significado, mas também é um não-significante (a não ser margem direita ou esquerda, nada). Pois se o “conceito” nadificante em nada repousa, no significante terceira margem nada é, e, por isso, não-instituído (como, aliás, não é a Terceira feira, de João Cabral) como algo que se tem em mente impossível, algo sobre o qual não se pode ter uma idéia. Nada, em última análise, e no fim das contas, não é nada, não-nada, nonada, omite-se do pensar. É a iliminação.
De que, então, fala o conto? Diz o mundo, isto é, o mundo do homem. Em outra palavra: O texto dá conta da existência de um modo "particular" de existência, a existência enquanto canoa.
Existência é o modo particular de ser do homem. O modo que traz consigo um sentido — o sentido do seu mundo — e um aliado — a co-existência. Tanto o sentido, quanto o aliado, valem zero no que se refere à existência-canoa.
Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.
Ora, o narrador diz o mundo, inscrito na curvatura do caminho que leva ao rio (“Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar”). Diz o mundo histórico (no sentido em que Dilthey a vê, a história hermenêutica, como compreensão).
Pois, se o narrador diz um mundo que inexiste, está quase a ver o mundo retraído do pai (“Nosso pai não voltou”). O contexto conhecido pode vincar a possibilidade de uma libertação da grelha conhecida, rígida. Aponta para o além dos esquemas. Virado para o lado vestibular, translato, banda inconteste e abrigo enriquecedor do estranho lugar de labor do pai: O empenho de viver do pai (“Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos”), a narratologia louca de um objeto lúdico, instrumentado (“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”).




A TÉCNICA, OU A MORTE DA LITERATURA

Esta tipologia cita o leitor (chama-o) para a prática da escrita, e sua leitura, no centro da decisão.
A terceira margem do rio é um texto clássico (a narração é tradicional, por ela se conta uma estória, ações). Os textos clássicos bailam na grande massa da Literatura, sua grande quantidade, a totalidade de sua constituição, a multidão de sua maioria. É necessário, diz Barthes, avaliar essa grande massa. Avaliar é apreciar o plural, estimar a propensão para a proliferação de sentidos; reconhecer a grandeza de um texto é calcular quantos corpus dele serão levantados, com quantos códigos ele é tecido, quantos discursos sobrevivem nele, reconhecer sua grandeza, sua intensidade, seu merecimento e sua perenidade. A leitura é um aval, e um esquecimento (a leitura não dá conta de todo o plural do texto, de todos os sentidos em avalanche, o texto não abona uma leitura como sua primeira e única).
O critério de avaliação, de avaliação, é o da interpretação, isto é, do exame de apreciação e verificação de quanto cada texto legível (clássico) pode pôr em circulação.
A escrita do texto clássico mobiliza, isto é, sua essência é, ao mesmo tempo, individual e múltipla, se transforma incessantemente, há ineficácia na apreensão e gramaticalidade.
O valor do texto está em que não se lhe pode dar um sentido pleno, conclusivo, mas sim deixar falar suas diversas falas e vozes numa pluralidade de discursos.
O texto clássico tem, entretanto, um aparente plural parcimonioso (o máximo de pluralidade do texto é o máximo de ambigüidade, nublaria sua obrigatoriedade de representar o inundo, o texto mantém-se coerente graças à forma lógica que o sustenta).
Um texto de grande multiplicidade, como A terceira margem do rio, provém o intérprete de várias entradas de validade, vários acessos, vários ingressos críticos, algumas passagens culturais, entradas de acessibilidade além (ou aquém) da leitura primeira, lisa, uma chegada interpretante para cada caso crítico. O texto se manifesta por acessos de uma variegação sortida, alternada, a arte de sua variedade.
O texto libera vários códigos, num entrelaçado de textos (o leitor também tem seu(s) texto(s)) . O texto clássico é leitura infinita. Lê-lo é deixá-lo ser plural, não dar-lhe um sentido, não formalizá-lo, nem dele erigir um modelo que o explicasse de uma vez por todas.
Mas, como o texto clássico é medianamente ambíguo, inter-textual, podemos enfrentá-lo, confrontarmo-nos com ele num exercício libidinoso de prazer, encará-lo, atacando de frente: Separá-lo por frestas, penetrá-lo no seu encantamento, enfiarmo-nos por suas células. Isto é: Interpretá-lo.
Essa atividade (a interpretação) é, e não é, alienante. De um lado, está a guerra-sempre-iminente, a fome, a miséria. De outro está o texto, sua lisura é percorrida com a vista, que colhe, que recolhe uma forma igual. O texto é o mundo: Suas guerras, suas terras, as dificuldades, as lutas de classe, lê-lo é ler o mundo.
Podemos ler o texto com a conotação, que é um sentido segundo, cujo significante é um outro signo.
O próprio significante da conotação é um outro signo. O sistema de significação da denotação é chamado primeiro. O sistema de significação da conotação é um segundo.
A conotação pode ser uma senda para as portas da escrita clássica.
Mas A terceira margem do rio não é um texto tão clássico assim.
Por essa razão, a conotação não é freqüentemente usada ali, mas as leituras super-postas de uma crítica mista:
Crítica estruturalista, semiológica, psicanalítica etc. A leitura, qualquer leitura, sempre quer uma decifração conotativa: Visa sempre ao sentido segundo, aos sentidos segundos, porque o leitor, que se aproxima, já é urna pluralidade de textos.
O leitor traz seu texto à baila, na dança significante deste construtivismo crítico. O texto do leitor é produto do que leu, do que viveu, do seu corpo.
Não há, na leitura, uma objetividade crítico-científica. Não há, também, uma extasiada e impressionista subjetividade. Há tudo, e outra coisa: A leitura, diz Barthes, não é nem objetiva (representando um objeto sem sentir-lhe as carícias), nem subjetiva (reduzindo toda existência à existência do sujeito leitor, sua impressão estética, sua sensibilidade). A leitura é um ato topológico.
A topologia, de um ponto de vista intuitivo critico, é o estudo das propriedades de uma figura (a do texto), propriedades que não variam sob o efeito de uma variação contínua. Por exemplo: De um ponto de vista topológico, uma circunferência, uma elipse e um polígono (isto é, linhas fechadas não entrelaçadas) são equivalentes, precisamente porque deformáveis de uma a outra. Não se distinguem, por exemplo, do ponto de vista topológico, uma superfície esférica da superfície de um cilindro.
Nessa analysis situs, a tarefa é de movimentar sistemas que não se limitam ao texto (não param ali) nem estão no leitor (não são criados por ele). Os sistemas explodem do texto para a disseminação cultural, são sistemas semióticos, psicanalíticos, históricos, sociológicos, são movidos, movimentados pelo ato crítico, transladados, não são meramente encontráveis ali, mas são sistemáticos, isto é, funcionam no agir crítico da leitura. O leitor não os encontra prontos, quer dizer, não os pesca. Nem os cria, numa invenção modificadora do lastro textual.
Ler é nomear sentidos, fazê-los funcionar, dar-lhes corda, os sentidos estão e/ou partem dali. Ler é um ato de mobilidade, de por em movimentação os sentidos. Mas não todos. Não há um todo, um limite. Por isso, diz Barthes, o esquecimento crítico é um valor do texto, haverá sempre sentidos esquecidos, nunca se poderá reunir todos os sentidos na arena da rigidez de uma grelha analítica.
Essa técnica vinca a marca da liberdade, não aponta para esquemas rígidos, vira para um carteamento cultural. O vestibular do texto faz uma reconstituição translata, um enriquecimento que paralelamente atinge o texto, um labor orquestrado por uma narratologia alegorizante, quase um objeto lúdico desse leitor instrumentado, armado, que é o crítico. O texto, um objeto lúdico, lúbrico, torneado habilmente pela criteriologia que se resolve em espetáculo, de modo erótico, diante da escrita eleita. Não uma clarificação, mas um funcionamento; a persecução de um trabalho amoroso, não aplicável de modo indiferenciado a qualquer texto, nem arraigado a um propósito ou uma concepção que substancializa. A interpretação é uma pesquisa de sentidos, em relação à produção do texto, uma hermenêutica de penetração, ultrapassagem, descoberta de sentidos coerentes, sob o domínio, apesar de tudo, da vigência da subjetividade do crítico, um momento, um quase-pastiche, do texto e da pluralidade cultural que ele move, do travejamento técnico-artístico dos seus rumos semânticos, de sua produtividade, de sua prática, se o leitor disser que o crítico usa o texto como pretexto para escrever não estará errado; já não se pode, nesta nossa época, fazer literatura; a literatura passa a porejar os textos teóricos, isto é a morte da literatura, e o nascimento do texto.
Não haverá um conjunto final (da porta de saida do vestíbulo), a construção armadural de um modelo do texto. O texto é uma rede de mil entradas. O texto único, o único texto único: A Literatura (corno um só texto, i. e, o que vale por todos os textos, a Literatura como único texto; a Literatura, comum a todos eles).
Essa entrada do texto (tecida de mil portas) é uma perspectiva de vozes vindas de outros lugares de texto, de outros códigos, numa fuga, cuja teoria e a leitura, a Diferença da Literatura.
O texto deve ser lido passo a passo, diz Barthes. Desse modo, o passeio é mais completo, pode-se observar a reversibilidade das estruturas de que o texto e tecido, na talagarça textual: “Estelar o texto em lugar de condensá-lo” (S/Z, p. 20).
Para interpretar (levantar sua fala natural) o texto, devemos segmentá-lo (cortar sua fala natural) em lexias — que são unidades de leitura, o melhor espaço (e o menor), onde se possam observar os sentidos, a densidade dos códigos. a manifestação das conotações, a voz das vozes. Cada lexia, diz, não deve ter mais de três ou quatro sentidos a enumerar, a perseguir, a funcionar. O levantamento sistemático de cada lexia não visa à descoberta da verdade do texto, não planeia sua estrita estrutura (profunda embora), mas é a faculdade da fala dos clamores do texto, de viva voz, numa vozearia de semiose intensa, numa dessacralização da Literatura. Ou seja: Vira para suas unidades de sentido (Ingarden).



AS INTERPRETAÇÕES

Convivem, na interpretação, matérias semânticas de várias críticas:
1 Centradas no sujeito: Valorizando a presença do autor positivamente, considerando a literatura corno ~‘expressão” do sujeito.
2. Centradas no texto (no objeto)
2. 1 Crítica estilística. Definindo-se como ciência da expressão (Croce) , e corno crítica dos estilos individuais. Considerando que a linguagem (o discurso) não é exterior ao sujeito falante: Vida e linguagem se, identificam. Considerando que a experiência empírica, melhor dizendo: A vida, e a forma, usada para expressar esta experiência, se fundem. Considerando que não há a adequação da idéia à forma, mas que acontece urna forma espontânea da idéia. Analisando o estilo (esse fenômeno de origem individual e de natureza psíquica, essa germinação necessária, de que o autor não pode fugir). Percorre-se o caminho da Escola Idealista, quem vem de Humboldt para Karl Vossler: E que vê na linguagem, não objeto que pode ser analisado, mas a expressão de uma vontade. Usa-se a divisão em duas estilísticas (da langue e da parole). A estilística da língua, da expressão, sendo descritiva: Estudando as relações entre palavra/pensamento (o pensamento se atualiza nas palavras, não se “separa ‘ das palavras) A estilística da parole (genética, do indivíduo), buscando a chave da originalidade de unia obra (Spitzer) , quando uni detalhe pode explicar o estilo (Damaso Alonso). Até mesmo a estilística estatística, de Pierre Guiraud, compete entrar em cena.
2.2 O new criticism, considerando que não há conteúdo poético independente da linguagem: A linguagem é a idéia. Vendo nas palavras significados densamente múltiplos. Sentindo que o significado da parte se explica pelo todo. Sabendo que a «obra» é uma estrutura verbal autônoma, um modelo auto-suficiente, e ao mesmo tempo uma estrutura estratificada de vários níveis polifônicos (Roman Ingarden). Vendo-lhe a verossimilhança, o gênero literário.
2.3 O formalismo russo, ostentando-se o estatuto de Ciência da Literatura, vendo-lhe a literariedade, isto e, as propriedades literárias do texto, que o caracterizam como literário: As metáforas, as metonímias, as imagens, os símbolos, os mitos, a narração. o enredo, o ambiente, as alegorias. - Vendo a singularidade do seu discurso (produção de seu sentido e do próprio texto). Descobrindo-lhe a novidade, o estranhamento. Sabendo que as palavras, ali, são consideradas como coisas, não apenas como veículos de comunicação. Vendo (lendo) os sistemas de funções de que o texto é travado.
2.4. A critica estrutural. Erigindo um modelo (móvel, dinâmico) que é homólogo à sua estrutura: A possibilidade do seu conjunto de elementos (solidários) de interdepender-se de modo totalizante. Sabendo que a estrutura e aquele “vazio habitável”, que esquematiza as relações instituídas no texto (relações sintagmáticas e paradigmáticas) . Procurando sua gramaticalidade.
2.5 A crítica hermenêutica-ontológica. Considerando que a linguagem (o logos) produz o texto.
2.6 A crítica psicanalítica. Descobrindo os mitos pessoais, as forças impulsoras da arte, sua obsessão onírica, seu feixe de relações inconscientes com o inconsciente coletivo (espaço onde moram as configurações míticas dos arquétipos). Sentindo que o texto dá forma a impulsos que o ultrapassam e que mergulham no obscuro do seu condicionamento biológico. Descrevendo as imagens, as metáforas, as metonímias, os símbolos do inconsciente (do imaginário), que partem de uma infância do texto, e se manifestam inconsciente-mente no simbólico (a linguagem), numa analogia, por urna substituição sêmica que desvela aspectos insuspeitados: Os fantasmas dominantes, obsedantes, virados para a coletividade (Freud, Jung, Mauron, Lacan) . E mais: A psicologia bachelariana, com seus imagismos. E uma crítica psíco-estrutural que se inspira nos seminários lacanianos.
2.7 Crítica poético-linguística. Herança de Jacobson, partindo da Estrutura da linguagem poética de Jean Cohen, e da Retórica geral de Dubois e outros autores. Analisando a impertinência do discurso literário, a relação dos signos entre si; o saber por que um texto é eficaz; verificando o uso singular da linguagem que a literatura faz; dizendo que arte é forma (desvios que enriquecem); construindo uma teoria da impertinência (Cohen) e do desvio (Dubois)
2.8 A crítica criadora. Concorrendo ao texto literário, incorporando o literário no seu texto crítico. Seu texto (crítico) sendo uma escritura (uma escrita, ou uma Escrita). É o tipo de crítica feita pelo último Barthes, por Poulet, por Butor, por Lotman.
2 9 A crítica semiológica, analisando os códigos, as mensagens, considerando que o texto é uma semiose,um processo de significação, vendo os relata, as representações, os níveis de substância, os planos de expressão e de conteúdo. É a crítica da conotação por excelência. Fazendo a leitura do “universo” narrativo etc.

3. Concentradas no contexto.
3.1 As críticas sociológicas (Goldmann, Lukács, Escarpit), partindo dos processos de análise das condições de existência coletiva; fazendo uma sociologia da leitura, onde ler é solicitar a outrem a produção de um discurso, a solicitação que, as vezes, se confunde com uma verdadeira imposição; assentando-se no princípio de que a super-estrutura ideológica do texto veicula uma ideologia (uma visão do inundo) que não é exclusividade do escritor, produtor do texto, de que não e responsável o autor na sua individualidade, mas que provém de urna certa classe social, cuja voz o texto traduz: Todo texto revela uma luta de classes, reflexo especular de infra-estruturas (Lukács) homologia de relações sociais (Goldmann), em que, o que se passa no texto, e o que se passa na coletividade.





O QUE SE ESPERA

O que se espera é a “cura” do pai, sua desistência, o organizar-se dos blocos da sua lei, construtora do curso do viver. Atirando-se ao espaço das estações, insiste o pai num desembainhar do tempo, no corte que vê avançar, no desmanchar das coroas da idade perplexa, na indisciplina de seu próprio ofício órfico, na dança, sua evolução em planos sucessivos da coreografia do ir-e-vir-se, sempre, sem esperar um fim, ou esperando o filho, até nos momentos de suas apresentações, aparições momentâneas, mas com brilho e poder, afastado-e-perto dos que ainda (?) ama (?).
Com seu engenho aquático, ele perfura o tempo (“o que é, é saudade” Grande Sertão: Veredas), miserável mas glorioso, na sua recusa, no seu universo flutuante, com/sem distúrbios: Só assim parece explicável que ele não suma, nunca, de todo, e nas vezes em que aparece continuar a ser no longe-e-perto do amor.
Sua “viagem" deixa o trilho virgem de um sem número de estragos. As vozes enlouquecem (o que é que vão pensar? diz o discurso do Outro), desciam em desconversas, explicações, hipóteses e lendas: Mitos? O pai é um Mito. Fundamental. As vozes abrem, repetidamente, o avesso da antífrase, secam infelizes, caem melancolicamente, em depressão, querendo - ainda - conservar o rosto da figura (ousaram o Ousado? o Supremo Sonho?). Qualquer índice que por ventura apareça é analisado, interpretado, o enfoque muda de mão, se prolonga, intrinca o seu percurso, no aveludado de conversas sigilosas, silenciosas, da imaginação secreta enredada no solo do tempo, no desconhecer da conjunção das estações da vida, de onde vem o vento do esquecimento, que atrofia o invólucro do presente nunca ofertado, e vem a chuva e a arrasta para o chão sem fundo dos baixios e vazios. Que aconteceu? Desconversam vozes. E se silenciam, desaparecem. Confusas e tristes. A tristeza das vozes do discurso, exiladas da albergaria da tradição: O ar cheio de signos, de cantos, de cantores, de lamentos, de fagulhas e respingos, de ninhos fugidos, não se encontrando mais, no ar do abandono da inexplicação, o condicionado nas calhas da velhice, na história, na humana, na amortecida Ida, pelo fluxo do não-permanente, do vir-a-ser. Vozes perplexas do não-lugar. O código das vozes da perplexidade.



O SIGNIFICANTE

O significante é o pai-canoa, que se desloca, com seu desígnio funesto, violando, entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam a união dos membros sociais. A complementaridade de substituir o pai, por parte do filho, tem o patronato de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas, sociológicas, históricas. O rio dá, à paternidade, um novo sentido para sempre: O pai mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as vozes?). Os sujeitos (pai-filho) devem revezar-se, um sendo substituído pelo outro. Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta roubada”). Ir para o rio: Ir é dolo. A matéria social não quer que ninguém vá, pune a ousadia de sair para nova dimensão. Os problemas se imbricam, na procura dos fins de restituição do pai à condição paterna. O pai deve ser reconduzido, ao seu lugar na canoa com a mãe (canoa fálica). O filho se sente culpado por desejar a morte do pai, seu afastamento da mãe, o deslocamento com sua fálica (Lacan) canoa. O pai se afasta com sua fala, isto é, com sua canoa. A canoa é a transposição da fala paterna. Quando o pai manda fazer a canoa, está erigindo um monumento ao Falo (que é transposição de sua fala, de seu silêncio e de sua falta), emblema daquilo que se retira da mãe (para sempre no sêmen das águas femininas). A fala nadará, daquele momento em diante, no grau de feminidade pura. Neutralizada pela horizontalidade em que se deita, a fala desaparece na semiose pura da liquidez da mulher aquosa da mãe d'água. A fala retorna àquele estado pré-uterino, o do espelho do rio humoral, placentário. A canoa, o objeto perdido, ao qual se pede, e perde, aquele dolo (fálico).
Um excesso seria restringir a fábula ao uso da tridimensionalidade interdita do rio, apenas.
O uso é o da fala familiar, que se aparta da casa, que se afasta, que se cassa. Ausentando-se, com sua canoa, o pai resolve retirar do núcleo familiar o dom da fala, em que se sustenta na ordem simbólica da civilização.escrita. Mas a retirada se dá tardia (a ordem simbólica já instaurada no narrador filial) e assim, o que se lastima é a perda de origem da fala, tardia, castrante (a fala sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida). Na brecha do rio se inscreve a escrita da Fenda, a escrita clandestina, esquecida de seu miolo, de sua semente. Esta complexidade de verdade do texto não se simplifica, mesmo amputando partes, membros da estrutura (crescem outros). A complexidade da verdade não promana dos resultados da interpretação (que só faz levantar o pano), e não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, ou confusos. O pai se repete durante o texto (“nosso pai.“), poesia é imagismo e ecolalia (ou tendência a repetir automaticamente sons, palavras ouvidas). Esse pai que repete é a pulsão, seu ritmo. Seu brilhantismo temático.
Acresce que se escreve este texto interpretativo num estado de total liberdade, de descompromisso, o que não deixa de ser: Liberdade com respeito às leituras consideradas corretas. Só há um endereço: O leitor, na estima e reconhecimento. Vamos escrevendo o que nos acorre.
Assim o rio tem a dimensão da linguagem que vai aparecendo (essa leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos teóricos vão ocorrendo), a saber, a linha discreta e segmentada do fluxo do inconsciente, que é o discurso das vozes, que vêm do rio.
O pai habilita o filho, empresta a sua voz e o seu discurso, na cadeia significante do jogo do ir-e-virda canoa paterna... Seu lugar levanta incidências imaginárias, que a leitura vai registrando, à medida que lê.


A CONFIDÊNCIA

A voz do narrador é uma confidência, um testamento, e um testemunho. Uma prática (honesta, mas mentirosa), de fazer-se, e fazer-nos enganar por uma estória, ficção. “Fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar” (Lacan. Escritos, p. 28). “Ce serait bien là le cornble où pût atteindre 1’i1lusionniste que nous faire par un être de sa fiction véritablement tromper” (Lacan. Écrits 1, p. 31 A tradução portuguesa assim foi feita: “Seria isso o máximo que poderia atingir o ilusionista: fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar”, p. 28, grifado nos dois textos).
Engano, de modo verdadeiro (verdadeiramente enganar), finge que nos ensina, o segredo (do narrador), ou "um segredo" (do personagem).



A DIMENSÃO

A Terceira Margem do rio é a dimensão insuspeitada da liberação dos traços dos limites, onde se marcam os passos finais de tudo aquilo que é como deve ser. São os valores e imagens do que sobrevive, em todo espírito que se sente vizinho daquela marca, daquele paraíso perdido, daquela figura insistente de que há um círculo, um circuito sagrado além das nossas próprias possibilidades, onde a salvação é uma estrada. O fenômeno do rito, do excluído, do sagrado.
Mas é, também, a Terceira Margem, o lugar da Nau dos Loucos, da louca nau da loucura, estranho barco que desliza na História da loucura de Michel Foucault, STULTIFERA NAVIS. Ao mesmo tempo nau dos loucos, nau dos príncipes, nau das batalhas, nau da virtude, pois, a História da loucura na idade clássica, ou História da loucura, não e, simplesmente e apenas, uma história da loucura, mas uma louca história, ou uma história louca, história da loucura histórica, história da loucura da História.
Loucura, História, assim se dissemina a loucura do rio, onde escorrega. Brandamente.



A LOUCURA

Desde 1300 os loucos eram freqüentemente confiados a barqueiros para se “livrar a cidade”. Confiar o louco a um barqueiro, que segue para longe, é ter a certeza de que o louco será encaminhado a si próprio, entregue à sua própria loucura, prisioneiro da própria partida. Mas “a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: Ela leva, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: Nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último... A água e a navegação têm realmente esse papel. a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu... Esses temas são estranhamente próximos do tema da criança proibida, maldita, encerrada numa barquinha, entregue às ondas que a levam pai-a um outro mundo...” (História da loucura).
O louco é a alma da barca, o navio fantasma de Poe, que se lê no “Manuscrito encontrado numa garrafa”: “O navio e tudo o que ele encerra estão imbuídos do espírito do Passado... Tudo, na vizinhança imediata do navio, é a treva da eterna noite e o caos da água sem espuma... prodigiosos montes de gelo, alçando-se para o céu desolado e assemelhando-se às muralhas do universo” (Poe. Poesia e prosa, p. 11).

Louco que "mergulha nas águas do poema". Diz Augusto Meyer, em "Le bateau ivre: análise e interpretação" ("Textos críticos", São Paulo, Perspectiva, 1986) que o "batel desgarrado, já sabemos que é tema de Edgar Poe em A Descent into the Maelstrom e em Gordon Pym; [....] Pois no Magasin de 1870 há uma narrativa de viagem nas costas da África, em que os marinheiros referem o aparecimento de uma ilha flutuante, aventando um deles, menos supersticioso, que talvez fosse algum promontório separado do continente por ação de um terremoto [ ....] A tradição das ilhas flutuantes vai entroncar em Homero; Ulisses, na décima rapsódia, trava relações com o governador dos ventos, Éolo, que morava numa ilha flutuante, chamada Eólia. Victor Bérard explica a gênese do mito com as ilhas vulcânicas, cercadas geralmente de pedras porosas e leves, que formavam uma verdadeira cintura flutuante. [...] Quanto à singularidade do título: Bateau ivre, Jules Mouquet, em nota publicada no Mercure de France de outubro de 1935, chama a atenção para um artigo do mesmo Magasin Pittoresque (setembro de 1869), sobre um estranho fenômeno observado nas costas da Sicília, a “Marubia”, ou “mare briaco”, isto é, “mar embriagado”: em plena calma do mar, agitam-se as águas, numa brusca elevação de nível, presságio certo de tempestade."(pp. 34-40)



OS LIMITES

Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar (este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livro, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma critica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura).
Assim revela-se uma decisão, uma escolha, um risco (este é um texto crítico?): Uma atitude e uma concentração, para que não se perca o leitor, os textos, numa pluralidade disseminada — a concentração, no conto roseano — para que não nos esqueçamos de nossos olhos, no panorama amplo das variedades, das vias de uma ciência que, imersa no mundo do pensamento ocidental, abrange-o e — de través, da escrita — é capaz de um questionamento quase infinito.
A proposição se dá em razão do limite (ilimitável) do alcance da teoria literária do texto roseano, sem pecar pela omissão de escrever tudo o que nos vier, nos chegar, sendo sugerido, pelas lembranças do texto (e pelos seus-meus esquecimentos), irrestrito a todos os textos lidos, imaginados. Através do conto de Rosa se poderá lastrear todo o percurso teórico e técnico,
porque o sentido do conto, seus sentidos, é amplo, radical.
Consideremos que há três tipos de discurso:
1 . Discurso representativo-científico.
2. Discurso que se vê a si mesmo como produção de sentido.
3. Discurso onde se inscreve uma reserva (do ser do ente).
O discurso que se vê como produtor de sentido (geno-texto, diria Kristeva) é concorrente ao próprio texto poético de que é meta-discurso, meta-texto.
O discurso da reserva (no sentido heideggeriano de “retraimento”) é um belo discurso hermenêutico, que faz a escavação do sentido.
Eis aí: A proliferação dos discursos das diversas ciências do discurso. Procura arqueológica, nos fundamentos, em que tudo se funda.
E se aprofunda. A área de questionamento ontológico (refere-se ao ser; e não ôntico: Que se refere ao ente) , fundamenta todos os outros, pretende criar as bases de edificação da própria condição de pensar, das
condições em que se formulam indagações sobre a natureza dos fatos do inundo. O discurso ontológico procura o “porquê” inicial, inaugural, de onde salta a luz que ilumina os discursos das ciências (discurso representativo-científico), e irradia um texto que, na produção da força do que diz, deixa entrever (como na Caverna), entre as sombras, a subsistência da poesia que diz, e interpreta.
A canoa é um significante, isto é, um ente. Esta canoa é o significante do pai, do Pai. Tomemos o caminho da canoa: O ente e ‘o” nada.
Este nada não é; o nada que se erige a partir da partida da canoa do pai. Não é, somente. É algo mais
anterior, mais nadificante, mais para trás da possibilidade de pensar. A canoa inaugura, com sua reserva, um estatuto nadificante. Ela se retrai. Ela se retira, do nível da margem primitiva (da existência), mas não recai na margem segunda (da não-existência), perde-se num vazio semântico (a margem-terceira não existe). A canoa, ali, passeia na semi-existência de seu não significado, na não-significação. A canoa é um Não. O poderoso Não. O interdito.
Ressaltemos um fato: A introdução, da canoa, no terreiro nadificante. Não que a canoa não seja matéria, mas sim que não-seja o que é: Significante do Pai. O significante em reserva.
Tema de uma correspondência escrita com a canoa: Ente/nada.
Do nada, nada se pode dizer, o nada não é. Que fazer ante este vazio do significado? (nada de significante). Pois o Nada é a Omissão, não só de significado, mas também é um não-significante (a não ser margem direita ou esquerda, nada). Pois se o “conceito” nadificante em nada repousa, no significante terceira margem nada é, e, por isso, não-instituído (como, aliás, não é a Terceira feira, de João Cabral) como algo que se tem em mente impossível, algo sobre o qual não se pode ter uma idéia. Nada, em última análise, e no fim das contas, não é nada, não-nada, nonada, omite-se do pensar. É a iliminação.
De que, então, fala o conto? Diz o mundo, isto é, o mundo do homem. Em outra palavra: O texto dá conta da existência de um modo "particular" de existência, a existência-enquanto canoa.
Existência é o modo particular de ser do homem. O modo que traz consigo um sentido — o sentido do seu mundo — e um aliado — a co-existência. Tanto o sentido, quanto o aliado, valem zero no que se refere à existência-canoa.
Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.
Ora, o narrador diz o mundo, inscrito na curvatura do caminho que leva ao rio (“Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar”). Diz o mundo histórico (no sentido em que Dilthey a vê, a história hermenêutica, como compreensão).
Pois, se o narrador diz um mundo que inexiste, está quase a ver o mundo retraído do pai (“Nosso pai não voltou”). O contexto conhecido pode vincar a possibilidade de uma libertação da grelha conhecida, rígida. Aponta para o além dos esquemas. Virado para o lado vestibular, translato, banda inconteste e abrigo enriquecedor do estranho lugar de labor do pai: O empenho de viver do pai (“Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos”), a narratologia louca de um objeto lúdico, instrumentado (“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”).


O PAI POSITIVO

Pois se o narrador diz o mundo que existia (‘Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo’’), o que ele diz, no texto, existe em correlação com o real, com o sertão, ali é o real mesmo que se está dizendo, o próprio, de viva voz, com a existência (“nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio”) à beira do nada.
‘‘Nosso , nossa , nossa (mãe), nosso (pai) , nossa (casa) , na margem primeira restam os nossos que restaram. A esta possessividade se opõe (a tudo ele se opõe) o pai. O primeiro parágrafo é uma apresentação do pai nosso (“‘Cumpridor, ordeiro, positivo”). Rasga o véu do texto com este “positivo", em se tratando do pai. Da negatividade (não absoluta, mas relativa), ele nos chega como positivo: O pai é a posição positiva do real, do que não é vão e inútil, contraste entre o útil e o supérfluo (Comte). Positivo significa o real, que opõe ao quimérico (Comte). Homem positivo é, pois, utilitário. “Para ser, cumpre, ter algo positivo” (Condillac). Positivo é o que organiza, não o que destrói. E dado à experiência, baseado nos fatos (positivos) , nas verdades positivas. É um “estado de positividade”, aquele que busca unicamente as leis dos fenômenos, renuncia ao descobrimento da origem, do destino, da natureza dos seres. O positivo é certo, bem estabelecido para nós mesmos, positivo ideologicamente, estabelecido, instituído, como valor de moeda corrente, fixado por lei. Coisa que existe de fato. A negatividade, ao contrária, é a recusa da existência (“uma invenção livre, e nos liberte dessa muralha de positividade que nos encerra”, diz Sartre) . É a negatividade (a ausência). É o obstáculo, o sacrifício.
Esse Pai Positivo é um significante, um ente no mundo fenomenológico. Procura ser, na reserva, no interior do inter-dito, porta-voz do Ser que tudo dispõe para que tudo seja, e para que edifique sua existência.
Na experiência da leitura do texto se proclama a existência mesma, é o ente mesmo quem grita na escrita, e que oscila, deixando-se perceber, no movimento de oscilação de sua presença indefectível, as suas extraordinárias relações com o nada de onde ressalta, como que pula na metonímia, que ostenta atrás de si — O vácuo. O ente, ao qual para o nada é a sua luz, tem uma sombra invisível atrás de si, como as trevas dão à luminosidade da luz sua presença intransponível. A ausência pela presença.






A ESCRITA ENGRINALDADA


A marca do destino deste texto roseano lido de raspão, não estimula uma escrita engrinaldada, coroa de triunfo. É uma escrita outonal, discernível na outra margem de uma demanda triste, demitente, delonga, e um adiamento, deixa, resta na outra delação do aniquilamento, expatriado, de expectação, de contravir, de ex-paternado, é a confissão de um cogito isoladíssimo, um dique, uma castração, uma retroação no tempo (infantil: “Nosso pai”), sem diretriz, indolente, finalista, longe da longínqua porta de luz paterna, sem a harmonia dos movimentos do pai, sua liberdade, que levita, sua ligeireza liberta, sua desobstrução e emancipação, pelas estradas interiores do rio.
O discurso do filho é um vôo cativo, uma funda e inexplicável atração por aquele sombrio e tenebroso símbolo, vendo-se tolhido em pleno deserto de licença, demandando pelos meandros do rio, pelo brejo vaporoso, tem necessidade dos abismos de horizonte, onde se entabula o pai da narrativa, os rumos aflitivos do rio, — o narrador tem a imaginação perturbada por aquela poda taumatúrgica que o impele para o rio de seu pai, para o discurso dele, e seu percurso.


AINDA A TÉCNICA

Barthes (S/Z) propõe a matéria semântica, pois, de várias escritas, de várias críticas: Psicológica, psicanalítica, temática, histórica, estrutural — convivendo, ao mesmo tempo, na interpretação. Cada crítica compete entrar no jogo, dar o seu lance, não se respeitando, pois, o texto. Corta-se o testemunho do texto, corta-se a fala natural do texto.
Divide, como já se disse, o texto em lexias, divisões naturais ou arbitrárias: Divisões sintáticas, retóricas, anedóticas, frases, segmentos, fragmentos sintáticos, sintagmas completos ou não, palavras. Esta divisão faz o picadinho do texto, vai e volta, interrompe o seu fluxo, o seu suspense, para o levantamento do inventário, da explicação, para a realização analítica, e posterior interpretação (que pode estar paralela) para as digressões, para os furos dos códigos. Interrompido, assim, o fluxo do texto, este é inapelavelmente interpretado, provocado, deslocado.
Barthes realiza um levantamento de vários códigos.
O código hermenêutico é o conjunto de unidades que articulam, de maneiras diversas, um enigma, uma pergunta, os acidentes variados que podem preparar a pergunta, atrasar a resposta. Ou: Formular urna pergunta e levar à sua decifração. A terceira margem do rio, o título, é o primeiro ponto deste código hermenéutico: Que lugar é este? O que vai acontecer ali? O código hermenêutico é a voz da verdade. Exige do leitor um esforço de deciframento, desperta unir interesse. O próprio código consiste no seu deciframento, em seguir, no fio d’água da narrativa, os termos formais que constroem o enigma: Seu centro, sua formulação, o retardamento de sua resposta, enfim sua revelação, ou não. Para que a narrativa se prolongue, entre a pergunta e a resposta, há um espaço reticente, feito de logro, de equivoco, falsas pistas, semi-desvelamentos. Retardar a verdade é constitui-la, pois esta não é aquilo que é, mas aquilo que se espera, aquilo que é a recompensa, o que se obtém ao final do texto, sua gratificação.
O título (A terceira. . .) propõe, deste modo, o primeiro termo que só se explicará depois: Que é isso? É isso possível? As perguntas serão, pelo critério crítico, respondidas adiante, quando se contarão os fios de que é feita essa renda, o rendilhado narratológico. O título é, assim, um enigma, elemento de um código hermenêutico (enigma e decifração) o primeiro. O texto roseano é um supra-enigma.
A palavra terceira (diante da qual um rio não tem mais dois lados, duas margens que se possam atravessar de canoa) , implica uma outra coloração, uma conotação: A da imprevisibilidade (a tridimensionalidade do rio), portanto um sema (unidade do significado). sema da imprevisibilidade. O código sêmico (ou significados de conotação) marca a voz da caracterização dos personagens, dos objetos, dos lugares. O leitor reconhece os semas com que o discurso constrói personagens, lugares e objetos. («Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo») . A ilusão de individualidade é dada pelo nome próprio, que recolhe todos os semas constitutivos do personagem (do pai) do lugar (do rio) , do objeto (da canoa) . O nome funciona (o pai, o rio, a canoa), como pólo de atração dos semas constitutivos do personagem, do lugar e do objeto. Por isso, o que parece como motivação psicológica (caracterização, veracidade) é, na verdade, uma decorrência, uma imposição estrutural: É o “texto’’ que decide.
As lexias levantam, no texto, unidades do campo sêmico e do campo simbólico. Os semas erigem um código sêmico. Os símbolos se articulam num código simbólico. O conto esquipa um ajuste um ludismo simbólico; o conto e, como tal, um símbolo, aquele que fere o meio de uma antítese: A antítese A/B se transforma em A/?/B. Perturba a compreensão das coisas. O escritório da escrita está no meridiano medial, no entre-margens, na transmarginalidade. É a «meia-verdade» da literatura. O Meio e um símbolo (de quê?) e inaugura um código simbólico.


EXEMPLO CRITICO

“Do que eu mesmo me alembro...” — esse pai e uma lembrança desdobrada, mítica, bordada de esquecimento. Figura esgotada, obsedante, esse pai herança, movida, que se perde, um perdido, um privar-se de. Ser construído (pelo código dos semas descritivos). Não se diz: É a ausência.
“Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava. . “ — o pai é uma figura, não existe, vive atraves de um laborioso construir-se de carência.
«...mais estúrdio nem mais triste...». (A tristeza metonímica do filho) , “. . . do que os outros” (é o Outro, não “os outros”), «... conhecidos nossos »(o pai é o desconhecido, perda de programa, de origens). “Só quieto”. (Sua quietude é o “quid”, sua qüididade: De poucas conversas, conseqüente, mas sem costuras, fascínio fantasma, movimento para dentro (de si, do rio), numa idiolatria que se escreve no que ele não explica).
“Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente. . .“ Mãe metonímica, jogo em que se disfarça a angústia, a ânsia do “regia”: A mãe rege! O rei. O narrador não narra: Lamenta. Sua fortuna (sua desgraça) é ter esta mãe que regia”, num deslocamento do filho para a mãe da herança fortalecida, inconquistável, a mãe consagra deslocamento, giro, revolução significante: Desagravo surpreendente, a mãe toma o lugar do pai, sempre antes, preme a gente , pauta as regras do jogo familiar: «minha irmã, meu irmão e eu»: Tríade formada de subjugados esmagados (é amostra), a saída do pai e uma cirurgia, codificada em mandamento lesivo: A mãe regia”, estruturava e dispunha de um sistema, a saída do pai é à custa de uma incisão incicatrizável: Toda a questão do conto é a questão familiar brasileira. O escândalo familiar., a mãe regedora e o pai esporádico, acidental, quieto, que se retrai. A estrutura já está formada antes da saída do pai. num murmúrio do filho pelo regimento da mãe, discurso mal nascido, mal sofrido. O que salva o primeiro parágrafo (apresentativo) é o dito final: «Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa» . É a ponte significante da libertação do pai do discurso do filho, discurso da espera.



TERCEIRO GOLPE DA TÉCNICA

Nos capítulos anteriores, referimo-nos aos códigos hermenêutico, sêmico e simbólico. O quarto código que atravessa S/Z (Barthes), código cultural, ou de referência — é a fala proveniente da voz coletiva da sabedoria humana (podemos chamar de código proverbial, código do senso comum) — voz da “pequena ciência”, referência ao Livro, saber estereotipado, convencional, “do tipo literário, histórico, fisiológico — formas de ideologia” (Cf. a frase: “Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?”).
O quinto código habitável no livro de Barthes, chama-o de código das ações, é o código dos comportamentos, a voz do fazer, organização de tudo aquilo que age como narrativo, é o código proiarético (faculdade de deliberar sobre a procedência de uma conduta), apresentado numa ordem lógico-temporal — o que está antes é a causa do que vem depois, consecutivo e conseqüente — a ação é deliberada pelo discurso (não pelos personagens) e pode ser de qualquer natureza, e a armadura do legível”, material de uma análise estrutural: ‘Uma lógica cultural preside a organização da narrativa: A lógica do provável, do empírico, do já-feito ou já-escrito, em resumo, do estereótipo. Esse código congrega as ‘‘funções (sentido proppiano), que podem ser de dois tipos: Nucleares e catálises” (Maria do Carmo Fandolfo, Análise da narrativa. In: Teoria literária, Rio, TB, 1975), “se référant à la terminologie aristotélicienne qui lie la praxis à la proairésis” (Bartlies. S/Z, p. 25).
O código das ações ou dos comportamentos encadeiam a narrativa. Assim, se o personagem encomendou a canoa especial, a ação é “encomendar”. As ações nucleares são conseqüentes, fortes, alternativas, articulatórias: ‘‘Encomendar’. As catálises, expansões do significado, comentários, variações e minudências, é a modificação. aumento de uma reação, de uma atuação, de uma substância que não se alterava no processo. A catálise, a variação do tema: Sua liberdade sintagmática, a união de palavra nuclear com suas probabilidades: «Encomendar—esquecer não posso». «Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, ... grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder -ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.»

O código hermenêutico consiste na formulação de um enigma, uma fórmula que se retarda e por fim pode-se esclarecer (ou não), pode-se revelar. O código dos semas se distribui no fluxo do discurso caracterizando os personagens, os lugares e as coisas. O código simbólico também se dispersa no discurso remetendo o texto a um outro lugar de texto, desloca o discurso. Pois a um texto narrativo, é impossível atribuir uma origem, um ponto de vista, a origem da enunciação, indeterminável, o texto e um entrelaçado de origens: Adstrita à narrativa do rio, com uma volubilidade algo escandalosa, a fala do pai se espacializa, de maneira vaga, geral, complexa, no discurso do interdito, do entre-dito (discurso do rio): Sob a pressão da lei de dados substitutivos, onde as sedes das indagações se deslocam para a infância, a fala do filho (a falha do filho) só pode emergir de um entrelaçamento consideravelmente complexo, determinando a irrupção de sua culpa, num conceito auto-crítico, brilhante, altamente esclarecedor; o filho, e sua falta, marginaliza o rio (resta na marginalidade do simbólico), é a tentativa de ingresso, numa ordem pré-simbólica, de significante a significado; o filho anseia o barqueiro, no limiar. O pai realiza um semi-discurso: O que se retrai da fala, a anti-fala. O filho não mergulha neste simbólico pós-narrativo (o filho é o narrador, mas não ousa assumir a narrativa trans-real, inter-dita do pai). Na dialética de substituição, nome que não exprime uma redução, mas um desdobramento, o filho não depõe o pai (de sua Loucura? do poder de seu Reino? do reinado do Imaginário? O simbólico não acede a Ali, não puxa a toalha da fala) para substitui-lo — código hereditário — nesta genética de liberdade e de loucura. O filho permanece filho (estado pré-simbólico) , não ascende a pai (estado de ser investido das ordens) , não revoluciona o dizer, nem se resolve na assunção do poder de pai. O pai, na sua recusa, desloca o poder para o Meio, para o Quase, o Semi, o Impossível, onde forças emergentes oscilam a normalidade do código. O código paterno se faz paralelo ao estado codificável, o secreto, o irrevelado, o recusado, no calar-se.
Esse pai transforma-se numa margem, é o Outro retraído, negação de identidade progressiva, numa desidentificação primária. É imagem em que o filho não se reconhece, é vazio sempre vazio, a brecha e uma “hiância”, a falha entre aquilo que falta a ser, aquilo que é um buraco, um vazio, — e o complemento materno. O pai é um duplo do filho, mas o filho desse espelho. E assim se fez.



LIBERTAÇÃO E ALIENAÇÃO


Embora nascido na década anterior, Diadorim representa a individuação violenta e o movimento de revolta da década posterior de 1960 que vai dos Beatles à revolução dos estudantes parisienses, passando pela contracultura e pelo movimento hippye. Diadorim sai do sertão para um pórtico de universalidade que só a “grande” literatura (e não a “trivial”) possui. As qualificações do texto, seu valor formal na acusação e negação da realidade se baseia na transmanência artística, no fato de que a arte se emancipa do social. A arte cria o mundo que vai negar ou acusar o outro, o mundo da realidade: o compromisso político da arte parte de uma prévia alienação, a realidade é sublimada como veículo de função crítica. «A transcendência da realidade imediata destrói a objetividade reificada das relações sociais estabelecidas e abre uma nova dimensão da experiência: o renascimento da subjetividade rebelde (MARCUSE, Herbert. A dimensão estética. Lisboa, Edições70, 1981. 93p.).

Essa “subjetividade rebelde” é a individuação máxima de Diadorim, a negar a realidade na travessia da Terceira Margem. A “forma estética” é, portanto, resultado da transformação de um dado conteúdo social “num todo independente”. A obra é assim extraída do processo constante da realidade e assume um significado e uma verdade autônoma”. Representando a realidade de onde é extraída para tornar-se autônoma, a arte denuncia a realidade de fora, através mais da forma do que do conteúdo: É a forma que subverte “a sua contribuição para a luta de libertação que reside na forma”(idem).

O problema estético é que o real é definido a partir da desrealização da obra de arte. O monopólio da realidade é quebrado para se questionar e se definir o que é real. “O mundo fictício da arte aparece como a verdadeira realidade”, já que nesta os indivíduos se acham alienados.

A posição de Diadorim definida para a vingança da morte de seu pai, a ambigüidade de sua condição, seu direcionamento para a morte, tudo o leva a uma condição alienante. O exercício de liberdade é, nele, uma condição de alienação: “só como alienação a arte cumpre sua função cognitiva”. Diadorim é, portanto, mais vítima (portanto mais alienação) do que herói (do que progresso). Sua condição romântica e travestida atesta um alto grau de negação do real (embora Diadorim esteja verossímil no romance), mas é o romance como um todo que é transreal, que se aliena do monopólio da realidade. Na contextualidade do mundo ficcional do romance, a libertação tem como preço a morte final (que a culpa é sempre certa, disse Kafka), como morte-suicídio, como procurada e sabida (tal como a de seu irmão Aquiles). Nossa morte não é trágica, pois inconsciente algo vago e adiado. A catástrofe inconciliável é a morte com data marcada, a morte querida, conhecida. E Diadorim já se sabia morto, privado de ser: não-ser: nem podia assumir sua verdadeira natureza, nem negá-la. Diadorim superou sua morte, sua negação. Na superação de si próprio reside seu maior protesto, como superação da realidade, como alienação revolucionaria libertária. “Carece não ter medo” significa, aí “carece morrer” (que a culpa é sempre certa). A superação da norte revoluciona a realidade porque se choca com nossa natural sede de viver. Fomos programados para viver, assim como fomos programados para ser controlados (não para o controle). A individuação violenta de Diadorim parte da subversão desta ação volitiva em prol do superar da consciência política. A violência se organiza para que a racionalização, o controle e a repressão engendre uma violenta auto-repressão, como a de Diadorim. A superação desta auto-repressão só se dá na morte certa. Antes a ruptura da destinação dos deuses no Olimpo, agora a ruptura dos dígitos dos computadores. A morte é subversiva, embora alienante. E a arte subverte com esta alienação. A morte é a negação da vontade de segurança individual, a quebra dos eixos do condicionamento. A morte é a superação por antítese da consciência comunicativa e da consciência política. A morte mata a ironia, mata a tragédia (antes da solução cômica). A morte antecipa o irresoluto. Somos prisioneiros (diz a morte) do sistema de vida que nos foi dado pronto. Nada somos (embora é o todo que desejamos): “Não somos nada, tudo é que procuramos” diz Hoelderlin. Temos de tentar ouvir nossa determinação e nossa esperança. Já dizia Croce: «...a arte é visão ou intuição. O artista produz uma imagem ou fantasma, e o que gosta da arte dirige a vista ao sitio que o artista 1he assinalou com os dedos, e vê pelas janelas que este lhe abriu, e reproduz a imagem dentro de si mesmo (CROCE, B. Breviário da estética. Madrid, Mundo Latino, s/d. 209p.).

E as janelas que Diadorim abre dão para o vazio inevitável, subversivo porque descondicionante, o “vazio habitável”de que falou Barthes. A morte de Joca Ramiro aparece como necessária, esperada, graças ao fatalismo nihilista do jovem Diadorim, posto em situação de superação do código. Sua emancipação não poderia deixar de ser trágica. Diadorim sabe de sua condição anormal de mulher travestida de jagunço, situada fora daquela linha que caracteriza a transgressão da condição humana. Sua paixão é a sua alienação guerreira, sua paixão é sua queda. Sua paixão põe em risco o código, programado por seu pai (Diadorim é mais filho do Pai de “A terceira margem do rio” do que filho de Joca Ramiro): o risco da transmarginalidade da Terceira Margem do Rio que põe em risco o totalitarismo do todo controlado. A paixão é incodificável. Não é previsto o recurso à paixão: Por isso Diadorim faz com sua morte a superação da reivindicação dos direitos da paixão. Diadorim é força bruta, a força instintual, da animalidade revoltada, a força bruta da natureza indomável.

Não é bem a morte que é posta em questão, mas a forma como a morte é posta em arte. A da morte (“Não há morte, só há Fedra moribunda” diz Goldmann), a morte artística é a morte posta autônoma, a morte alienada na dimensão estética da obra, a morte objetivada no personagem. É a morte artisticamente estilizada. Não é apenas a morte, mas a Morte na Arte! Essa sim que tem força de propor mudar a realidade. A libertação só é possível se a destruição e a violência puderem ser rompidas. A liberdade é o tema básico de toda grande arte. Toda grande arte opera a partir de uma determinação libertária. Não há arte sem liberdade. A libertação é um pressuposto apriorístico da arte.
Entretanto, a arte é pessimista. Toda grande arte é pessimista. Assim como a arte trivial é agradável e otimista. Como a propaganda é otimista. O pessimismo da arte reside no fato de que a libertação não tem exemplo atestado na História, nenhum fato verídico. Nenhuma sociedade se libertou outrora. Será a liberdade um projeto condenado sempre ao túmulo do futuro? Existirá a liberdade sempre teologicamente apontada a um eterno porvir? A arte é pessimista, não raro entremeada do risco da comédia. Toda arte tem uma ponta trágica. Mas o pessimismo radical da arte não é “contra-revolucionário”: serve para advertir contra a consciência feliz e alienação. Esse pessimismo impregna até a arte que tem a revolução como tema (como é o exemplo da peça de Büchner e o filme Waydja, A morte de Danton). A arte por isso não pode representar apenas os interesses da classe trabalhadora, pois supera a consciência de classe. O subjetivismo da arte não pode ser acusado de burguês. A arte, desde Aristóteles é considerada no seu pendor para o universal. Sempre alienada, mas nunca reacionária. Não há grande arte reacionária, porque toda arte é por força de sua própria definição uma revolução superadora. Fora das determinações de classe ela visa uma sociedade sem classe porque não tem consciência de classe. Ter consciência de classe (mesmo operária) sempre é ajustar-se numa sociedade dividida em classes. A arte vê a humanidade como um todo orgânico universal, visiona a humanidade concreta (mesmo se si considera classe operária como a “classe universal”). A arte radica numa natureza anterior a consciência de classe. Por isso, a arte de Grande Sertão: Veredas radica seus impulsos primários Eros e Thanatos, na sedução do seduzido, na sexualidade e assexualidade, no desejo, no Pacto, no ódio e na paixão. Os instintos básicos têm base subversiva, uma energia destrutiva e agressiva altamente redentora da narcotizada sociedade controlada. Principalmente dentro do ideário revolucionário da década de 60. (Grande Sertão: Veredas pode ser visto por esta ótica), dentro dos programas libertários da década de 60. O homem não está só condenado a liberdade, como disse Sartre, como também a liberdade lhe é roubada no mesmo ato de liberação. Sejamos realistas, diziam os estudantes de Paris, queiramos o impossível. Esta frase poderia ser dita por Guimarães Rosa. Pois a liberação instintiva está na base de uma mudança do sistema de necessidade. Rosa não está afastado de Marcuse, por sua época. Por isso o termos de tomar a estética de Marcuse para a hermenêutica de Diadorim. Diadorim é a Droga.
A arte é autônoma, “e independente” da realidade: mas a realidade continua presente no mundo autônomo da arte como “matéria-prima” para a representação. E a arte se transforma nesta representação. A sociedade na obra, transforma-se num campo de possibilidades disponíveis, possibilidades da libertação. Para um dos maiores romances do limiar da década de 60, só pode haver uma estética revolucionária. Não há classe oprimida na década de 60, época do capitalismo avançado: só há opressão. De todos. E como arte é forma, o caráter revolucionário da arte não está no que diz, mas no como diz aquilo que é dito.

Por isso Diadorim aparece na nossa leitura tão destruidor. Diadorim, de múltiplas mortes. Mata quem matou seu pai: quem matou seu criador; e como era criatura criada para um determinado fim destrutivo (para por exemplo matar Hermógenes), Diadorim é um robô rebelado; o monstro matou o medico que o criara: o programa matou o programador; vazio negativo, o nada habitável revolta-se contra o pai do sistema controlador e manipulador, Diadorim também, e por isso mesmo mata quem matara antes; mata seu pai que o mata antes, destituindo-lhe da vida biológica dos instintos; Diadorim mata quem matara a mulher Diadorina; Diadorim se vinga; matando o Hermógenes, Diadorim mata seu próprio pai por uma estranha metonímia; não podendo exercer a agressividade de sua violência contra o objeto declarado, exerce-a sobre um objeto escamoteado e transferido: Hermógenes; sua vingança é tríplice: vinga o pai, vinga a si mesmo e se vinga na sua própria morte (pois Diadorim se mata matando); a tragédia de Diadorim assiste a uma sucessão de mortes. A morte ai desvenda certas «zonas interditas da natureza e da sociedade em que mesmo a morte e o diabo se incluem como aliados na recusa de se submeterem a lei e a ordem de repressão (idem, p.32)

A arte desmistifica a realidade separando-se da racionalidade visando a um fim que caracteriza o modo de produção material. Desafia a realidade. Desafia o monopólio da realidade em definir o que é “real”, e esse desafio é feito criando-se um mundo fictício, portanto alienado e que, no entanto, acaba por ser mais real do que a própria realidade. A arte tem o seu próprio mundo e ilumina este mundo a partir desta ficção. Além disso, a arte mergulha numa dialética de afirmação e negação da realidade. Diz Marcuse que os personagens de Shakespeare e de Racine transcendem o absolutismo, os burgueses de Balzac e Stendhal transcendem a burguesia, os pobres de Brecht transcendem o mundo do proletariado. A injustiça não se dá como injustiça de urna determinada classe mas da humanidade como tal. Diadorim é o representante moderno do Édipo Rei, pois Édipo foi o primeiro representante desta culpa inocente que se encontra na grande literatura. A culpa de Édipo é a culpa de Diadorim, mesmo escamoteado nas veredas do sertão para alienar-se de um sistema tecnicamente totalitário, em que as máquinas operam como maquinismo de controle e como maquinismo de destino. A culpa revela os resíduos de uma natureza por conquistar. A natureza totalmente controlada privaria o controle de sua função controladora, de seu termo, pois o controle só se da em termos de resistência.
A qualidade e o valor estético-literário de Diadorim reside, pois, na individuação social que realiza. Diadorim transforma os conflitos de massa em seu destino pessoal. O mundo ficcional e o mundo da realidade colidem, “possuindo cada qual sua própria verdade. A ficção cria a sua própria realidade que permanece valida mesmo quando negada pela realidade estabelecida” .
Diadorim luta contra essa privatização da programação tecnológica da alma, contra essa introjeção da dominação totalitária, contra o condicionamento sistemático da sociedade de Estado Cientifico, contra a definição da vida como programa e como trabalho. Pois «O capitalismo avançado constitui uma sociedade de classes como um universo administrado por uma classe monopolista corrupta e poderosamente armada» (idem, p.42).

Somente quando a arte obedece à sua própria lei de autonomia contra a realidade é que ela não só preserva a sua verdade como também torna consciente a necessidade de mudança, pois ela não pode mudar o mundo, mas mudar as consciências, e falar é agir. Diz Marcuse: «O movimento dos anos sessenta levou uma transformação radical da subjetividade e da natureza, da sensibilidade, da imaginação e da razão. Abrir uma nova visão das coisas, permitiu o ingresso da superestrutura na base. Hoje, o movimento está enclausurado, isolado, na defensiva e uma burocracia esquerdista embaraçada apresenta-se a condenar o movimento como elitismo intelectual, impotente” (idem, p. 43).

Neste sentido, o povo é uma minoria intelectual militante, uma estranha “elite”. O novo marxismo fala do povo, em vez do “proletariado”. Mas, que é o povo, pergunta Marcuse. Esta tendência exprime o fato de, sob o capitalismo monopolista moderno, a população explorada ser maior do que o operariado, abrangendo as classes médias anteriormente independentes. Por isso, tendo em conta a narcotização da massa, a palavra “elite” pode ter hoje um conteúdo radical. Se a arte perder a sua autonomia, perderá a sua própria dimensão transformadora. E a luta se dá hoje entre arte e tecnocientificismo, entre mundo dominado e mundo libertado. Mas a arte se opõe à práxis política, porque tem seu caminho próprio. Desenvolvemos estas teses de Marcuse para rebater as críticas que se fizeram contra Grande Sertão: Veredas, acusado de burguês. Disse-se que Riobaldo era burguês (e burguês aqui significa reacionário). A revolução artística supera também estas dimensões: burguesia e operariado. E mais: acreditamos que, sob o capitalismo de serviço (exceto no Terceiro Mundo) , essa diferença de classe tende a desaparecer, aparecendo em seu lugar a grande massa indistinta e descaracterizada, que cumpre livrar tanto do capitalismo monopolista, quanto do socialismo totalitário. Trata-se de salvar a subjetividade e a interioridade salvar da morte. A subjetividade não é uma exclusividade burguesa, pois operário também tem alma. O capitalismo mudou totalmente esses conceitos. «A “fuga para a interioridade” e a insistência numa espera privada podem servir como baluarte contra uma sociedade que administra todas as dimensões da existência humana A interioridade e a subjetividade talvez venham a tornar-se o espaço interior e exterior da subversão da experiência, da emergência de outro universo (idem, p. 48).

A fuga para a interioridade passa aqui a ser fuga para o sertão. « A solidariedade e a comunidade não significam a absorção do indivíduo Originam-se antes na decisão individual autônoma: unem indivíduos livremente associados, e não massas. Se a subversão da experiência própria da arte e a rebelião contra o principio da realidade estabelecida contida nesta subversão não puder ser traduzida para a práxis política e se o potencial radical da arte reside precisamente nesta não-identidade, então, levanta-se a questão: como pode este potencial encontrar representação valida numa obra de arte e como pode tornar-se um fator de transformação de consciência?» (idem)

Como pode a arte falar o discurso autônomo e como pode, com este discurso, representar a realidade? Por isso, Grande Sertão: Veredas é uma “auto-reflexão irracional” A arte não veicula a experiência de uma classe oprimida, mas de todos os oprimidos por todos os sistemas de opressão, mesmo os mais sutis (que são os mais radicais). A arte não escolhe um campo determinado, onde preservar a sua autonomia. Nem ocupa uma área cultural ainda não ocupada pela sociedade tecnocientífica (como é o caso da produção pornô). A arte faz parte do mundo que denuncia sua autonomia parte da realidade concreta, com a qual estabelece laços de consolidação (no sentido de dar solo). A autonomia da arte só se da do ponto de vista da autonomia da nova consciência que ela faz brotar, na nova percepção da realidade que ela faculta. Ela faz a mimese desse distanciamento estético (conceitos clássicos) intensificando a percepção, distorcendo propositadamente a realidade, tensionando o discurso com suas promessas de liberdade. A liberdade é o fim de todo poder, portanto elemento catártico, só conseguido após uma tensão extrema. «Se a arte fosse prometer que, no fim, o bem triunfaria sobre o mal, tal promessa seria refutada pela verdade histórica. Na realidade, é o mal que triunfa, e apenas existem ilhas de bem onde nos podemos refugiar durante algum tempo. As verdadeiras obras de arte têm disso consciência; rejeitam as promessas fáceis; recusam o aliviante final feliz. Devem rejeita-lo, pois o reino da liberdade fica para lá da mimese. O final feliz é o “contrario” de arte»(idem, p. 55).

Quando se fala de nossa época, costuma-se dizer que ela é a de mundo fragmentado, isto é, que se assistem a uma desintegração da realidade, que torna impossível qualquer tentativa de apreensão total. Entretanto há aí uma contradição, diz Marcuse: «Experimentamos, não a destruição de cada todo, de toda a unidade, de todo o significado, mas antes o domínio e o poder do todo, a unificação sobreposta, administrada. A catástrofe não é a desintegração, mas a reprodução e a integração do que existe»(p. 57-58).

A época é fragmentada, mas a tendência e, por isto mesmo, totalitária. O totalitarismo administrativo tende, inclusive, a diminuir e facilitar a grande arte em arte trivial, facilitando o texto, degenerando sua força revolucionária, comercializando-a para a massa, naturalizando a força de seu impacto e (aí sim) aburguesando a recepção de seu gosto. Mas nas excelências estranhas da forma é que reside a negação da sociedade repressiva, já que forma estética e participação política se identificam.
Assim, o mundo fictício da arte contém mais verdade do que a realidade cotidiana mistificada pela instituição da necessidade natural. É a realidade concreta que parece falsa, ilusória, enganadora. «A lógica dialética pode fornecer um significado e uma justificação a estas pretensões. A sua verdade materialista assenta na análise de Marx da divergência da essência e da aparência na sociedade capitalista» (p.62).

A arte tem necessidade de afastar-se da realidade (para o sertão, por exemplo) porque só pode representar o sofrimento concreto da realidade, sujeitá-lo à forma estética. Por isso, afastar-se do real, para o distanciamento (estético) De seu lugar a arte “recorda-se” da realidade, a1ém de criar as imagens de outra realidade nos domínios do possível, na trans-história. Pois o possível está sempre apontado do fundo do pessimismo artístico (ou da ironia do riso da comédia). Mas o pessimismo da arte não é totalmente autodestrutivo. A morte se dá por amor a vida. Permanece no mundo da ficção, mas corrige sua idealidade, pois o Belo é neutro (o horror é “belo”), isto é, o Belo é o resultado do impacto que a arte produz, resultado este que promove uma mudança de consciência. O Belo é neutro e sensual. E a luta artística se dá pelo tato de que “o mundo não foi feito por amor ao ser humano” (p. 75) e a teoria revolucionária da arte adquire sempre um caráter abstrato, como luta pelo impossível. Ser revolucionário é lutar pelo impossível. A arte não obedece ao princípio da realidade estabelecida, mas ao princípio da negação, que não é mera negação, mas transmanência da realidade, a preservação que transcende a imanência, que transpõe o passado e o presente para a luz de um futuro que, utópico e inatingível que seja, sempre é o moto da realização. “O horizonte da historia ainda está aberto”(p. 79).
O século XX, que começara em 1914, terminou na década de 50. O novo século se inicia a partir de 60, e Grande Sertão: Veredas o atesta. Assim como Marcuse ainda é o grande pensador deste período. Se Oswald de Andrade pode ser visto pela ótica de Benjamim, Guimarães Rosa o pode pela de Marcuse. Diadorim aparece, nesta ótica, como um estudante parisiense.

O “individualismo” visa melhor salvar o sujeito do que negar o objeto, ou fugir da realidade. Riobaldo é uma individuação simbólica: personagem assim fica sendo um efeito desta pratica social. E no 1imite do imanente-transcendente, do ser-e-não-ser no sujeito-produto-objeto é que se coloca o problema do convívio tecnocrático da modernidade. No romance a individuação é um símbolo (e espelho) do social. Reflete a realidade e resume seus problemas suas contradições.

Daí o pacto, nas veredas cruzadas do Sertão por Riobaldo. O problema da individuação em contraste com o totalitarismo do todo é um problema demoníaco.
As imagens, assim, do canibalismo são paródias demoníacas. A anatomia de Diadorim é demoníaca, e a fusão a síntese de um problema dialético, a superação das contradições sociais personificadas por um personagem. Diadorim é o choque do desejo (que revoluciona) com a ordem (que reage). Diabo Diadorim é a ambigüidade da Terceira Imagem, como resposta e como paródia da ordem estabelecida, dos poderes constituídos, do totalitarismo instituído. Diadorim é só veredas, não é uma estrada traçada, trafegável. Nessa absurdidade, nessa ambigüidade reside seu problema fantástico, seu realismo, o isto é, o aspecto espetacular ou visível do drama, o aspecto idealmente visível ou pictórico de qualquer literatura.



O SUJEITO E O OBJETO



O rio dissolve. O rei reifica, racionaliza. O que se opõe é Riobaldo e Reinaldo. Diadorim é a superação de Reinaldo (o menino) e Diadorim (a morta)
“Conforme penseí em Diadorim. Só pensava era nele”.
Diadorim aparece na página 19 e logo desaparece. Aparece como um ser sobre o qual o narrador pensava num momento de felicidade.
“Amor vem de amor. Digo. Em Diadorim, penso também — mas Diadorim é a minha neblina...”.
Diadorim “reaparece” na página 22 mas é urna lembrança bordada de nevoa e de dor: O narrador falava de sua mulher das rezas dela, graças. Diadorim entra quase no compasso de
“D — D”: Digo — Diadorim. A frase bate o timbre de uns “ii”.
Em “Diadorim é minha neblina” Diadorim, ai obscureceu o narrador, é o mistério e a neblina da narrativa.
“Quem me ensinou a apreciar essas belezas sem dono foi Diadorim...”.
Diadorim, professor de beleza, ensina Riobaldo a viver, a ver o mundo, um mundo tocando os limites do sonho (“quando o senhor sonhar, sonhe com aquilo”) , sem dono, numa visão burguesa.
“Eu estava todo o tempo quase com Diadorim. Diadorim e eu, nós dois. (...) De nós dois juntos, ninguém nada não falava”.
O que aparece aqui é a companhia que se tornava objeto de possíveis comentários (Diadorim se vestia de homem, vestido assim aparece como se fosse homem, gênero com que é designado aqui para que não haja uma vio1entação do texto).

... eu sentava. Não gosto de ficar em pé. Então, depois, ele vinha sentava, sua vez. Sempre mediante mais Longe. Eu não tinha coragem de mudar para mais perto.

Entre os dois havia uma desconfiança e um “mediante” Havia o imã do amor que aproximava, mas também o impedimento que não os fazia seres do vário sexo.
“Diadorim não estava por perto, para me reprovar”.
Riobaldo encontra Nhorinhá: Diadorim não está perto, para o ciúme e o controle. Diadorim participa da atitude controladora. A amada é um substituto da mãe.
“... ele gostava de silêncios”.
É o quieto, o calado o silêncio e o mistério.
“... contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence gostar”.
Riobaldo se sente enfeitiçado sente que este amor não é pertinente (não “pertence”) não pode ser “às claras” explicado e racionalizado.
“Mas Diadorim estava a suaves (...) Que vontade era de por meus dedos, de leve, o leve, nos meigos olhos dele”.
Estava em guerra, em plena guerra do texto, que Medeiros Vaz comandava — e de súbito, antítese infeliz Diadorim estava “a suaves” provocando a afetividade do narrador que relembra.
Buriti, minha palmeira
lá a na vereda de lá:
casinha da banda esquerda,
olhos de onda do mar...
Mas os olhos verdes sendo os de Diadorim.

Diadorim, olhos verdes se mistura com Otacília, que queria casar-se com ele. Diadorim decide um sentido: O sentido de ver Os olhos que vêem e os olhos vistos pelos olhos de Diadorim, e o mundo de seus olhos catalisadores de toda a beleza do mundo.
“Pois lá um geralista me pediu para ser padrinho de seu filho. O menino recebeu o nome de Diadorim, também”.
Riobaldo consegue mascarar seu “casamento” impossível com um filho (simbolicamente de Diadorim). Como amar uma mulher vestida de homem, armada cavalheira(o) e guerreira(o)?
“Oi, Diadorim belo feroz! (...) — Reinaldo! O Reinaldo!”.
Quando Diadorim se mostra heroicamente violento e guerreiro, ele se transforma em Reinaldo, para ser chefe. Mas o narrador “nesse repente”, imediatamente nega! “Não! Diadorim, não” . O narrador não aceita que sua amada chegue a ser chefe (o que desestruturaria sua condição feminina, pois a fúria de Diadorim é sempre feminina) E Reinaldo e Rei.

Aí pois de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro Menino mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade /.../ E se ria para mim.

Diadorim muda de nome: Agora é o “menino”. Esta é a primeira vez que o narrador o vê. A precocidade está no “e se ria para mim”, o contato destinado, o poder da ancestralidade do discurso da arqueologia do destino.
“O menino tinha me. dado a mão para descer o barranco Era uma mão bonita, macia e quente, agora eu estava vergonhoso, perturbado”.
O contato. É a região paradisíaca aos signos sutis e clandestinos como uma festa, não dos sentidos, mas do sentido. “O sentido (destino) eletriza-me a mão”.

Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas pestanas, luz-iam um efeito de calma, que até me repassasse. Eu não sabia nadar.

O verde dos olhos emite sinais “luziam um efeito de calma” dos dois personagens estão numa canoa, o narrador diz que “não sabia nadar” teme afogar-se na cor daqueles olhos. É a entrega ao mistério, a sem-razão do amor Todo amado tende a morte no amor de sua amante.
Comparável um suave de ser, mas asseado e forte — assim se fosse um cheiro bom sem cheiro nenhum sensível — o senhor represente.
A sensibilidade do cheiro (depois do contato) a consciência da assepsia do amor, da materialidade suave, da carnadura desejada da amada. A aura do amor.
“Aquele amor não seria mesmo para mim, pelos motivos pessoais”.
Riobaldo se refere a Rosa’uarda, pois soube que ela se casaria com “um Salino Cúri” e sente que a perdera porque estava ligado a Diadorim para sempre (sua liberdade decorre da morte de Diadorim, no fim da narrativa) E a impertinência do poético.

Só flagrante conheci. O moço, tão variado e vistoso, era, pois sabe o senhor quem, mas quem, mesmo? Era o Menino! /.../... o que atravessou o rio comigo, numa bamba canoa, toda a vida./.../ Os olhos verdes...

O destino prende Diadorim (devolve-o, que retorna) a Riobaldo, numa canoa, toda a vida. A canoa com que atravessaram o rio, do porto-de-janeiro, é o instrumento da travessia, no rio se encontram as veredas, atam-se as vidas decidem-se os mistérios do processo narrativo. A “companhia” do mistério.

Eu queria ir para ele, para abraço, mas minhas coragens não deram. Porque ele faltou com o passo, num rejeito, de acanhamento. Mas me reconheceu, visual. Os olhos nossos donos de nos dois. Sei que deve de ter sido um estabelecimento forte, porque as outras pessoas o novo notaram — isso no estado de tudo percebi. O Menino me deu a mão: e o que a mão diz é o curto./.../ E ele como sorriu. Digo ao senhor: até hoje para mim está sorrindo. Digo.

Ao vê-lo o narrador volta a apaixonar-se. Mas tem medo. Amor e medo. Mesmo porque Diadorim “falta com o passo” recua, numa certa rejeição num certo acanhamento. Estabelece-se um acordo “visual” só os olhos só olhos. Este acordo é forte (já havia ocorrido, anos atrás, páginas atrás, na página 80)
O Menino lhe a mão como na primeira vez, como simbolizando isto: Venha colocar-se na via do meu destino, na quebra do estranho. O sorriso é o pacto (“até hoje para mim está sorrindo”). Atração pela Terceira Margem. “O que a mão a mão diz é o curto”
“Riobaldo...Reinaldo...” — de repente ele deixou isto em dizer: — “... Dão par, os nomes de nos dois...”.
Diadorim estabelece a ligação, a homologia, entre os nomes (nomear é dizer o que uma coisa é). A tarefa de Diadorim de deixar o narrador sempre em seu rastro, de destiná-lo. Casamento com o irreal. Homologia conjugal é o casamento inteiro.
E aí esta hora, conheci que, o Reinaldo, qualquer coisa que falasse, para mim virava sete vezes.
Riobaldo já está tomado por sua amada, sua palavra multiplicadora aparece com a multiplicação da força de uma lei. A atração pela quebra da razão continua. A palavra é a lei.

Pessoa limpa, pensa limpo. Eu acho. Depois, o Reinaldo disse: eu fosse lavar corpo, no rio. Ele não ia. Só, por acostumação, ele tomava banho era sozinho no escuro, me disse, no sinal da madrugada.
Sempre eu sabia de tal crendice, como alguns procediam assim esquisito — os caborjudos, sujeitos de corpo-fechado.

A configuração do romance de Guimarães Rosa como novela de cavalaria aumenta aqui: como no banho de cavaleiro. Além disso, a estranheza do Reinaldo (que é Rei.) em se banhar sozinho escondido, no escuro proceder esquisito dos que tem o corpo fechado misterioso. Na realidade, Reinaldo tinha o corpo “fechado”, proibido.

— “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim.. Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve me chamar, digo e peço, Riobaldo...”.

Diadorim revela meia verdade: Não diz que é mulher mas diz que seu nome (portanto seu ser) não é Reinaldo nas Diadorim. É a confidência amante.
“Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe”.
Parodiando Shakespeare, o narrador sente. que o nome “Diadorim” recebe a significação melhor de sua essência, de sua qualidade.
— “vamos embora daqui, juntos, Diadorim? Vamos para longe, para o porto do de-Janeiro...”.
Riobaldo quer retrocesso, voltar a lógica, voltar à infância do amor quando sua mãe Bigri ainda vivia, voltar ao porto de-Janeiro onde ele conhece o Menino, embrionário ponto de sua travessia. É o estado uterino do amor que teme os lances ilógicos da vida de Jagunço de guerra ilógica. É o amante que quer casar-se fugir com sua amada, para um cantinho sossegado, ninho de amor burguês. Reação.
“Diadorim era mais do ódio do que do amor?”.
Diadorim empenha-se na luta, maior é a vingança que o amor. A relação amor e ódio: “Beleza feroz”

Ele, Diadorim? Aonde ia, sem mim então (...) onde tava o amigo? Diadorim, na pior hora, tinha desertado (...) às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro.

O Pai (o Poder) sempre foi, em Diadorim, maior do que o amor. Riobaldo abandonado nunca conseguiu arrancar o Amigo dos trilhos da jagunçagem, mas ao contrário: É Diadorim quem o leva para 1á, o seu rastro. Riobaldo nunca conseguiu arrancá-lo da lei do pai, do sexo (imposto) pelo pai, nunca o fez mulher como Diadorim era de fato. O poder burocratizou Diadorim até a morte.
“A boa surpresa, Diadorim vindo feito um milagre alvo”.
Diadorim retorna, renovam-se as esperanças do amado.

Apertou em mim aquela tristeza pior de todas, que é a sem razão de motivo (...). Dormi, nos ventos, Quando acordei, não cri: tudo o que é bonito é absurdo — Deus estável. Ouro e prata que Diadorim aparecia ali, a uns dois passos de mim, me vigiava.

Riobaldo enfada-se da paz (está contagiado agora, pela belicosa amada) não há guerra. Sente necessidade de mulher amolece entedia-se “no meio da quebreira” Sente um vazio de onde sai pela proteção de seu anjo-de-guarda Diadorim “Jagunço amolece, quando não padece”. Riobaldo agora já é jagunço, essencialmente, radicalmente. Estamos perto da pagina 224 em que se anuncia a morte de Joca Ramiro. A paz atual é aquela perigosa paz que precede as tempestades. Vem aí a guerra maior a guerra da dura vingança. Vem aí o pacto de Riobaldo com o Diabo. Vem aí o ódio, nascido da sexualidade não correspondida. “Tudo o que é bonito é absurdo”

— “Mataram Joca Ramiro!...
Aí estralasse tudo — no meio ouvi um uivo doido de Diadorim (...) Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por João Vaqueiro.

É uma passagem decisiva, um momento de risco na narrativa, um traço, elemento estrutural do romance. Algo muda, a partir dai, ressurgem paixões ocultas chega-se ao terreno do ódio e do diabo. Ódio misturado com uma sexualidade animal. “O ódio que se mescla ao amor provém em parte das fases preliminares do amar não inteiramente superadas”.
“De Diadorim eu devia de conservar um nojo”.
O Riobaldo cada vez mais carente de mulher, o episódio do onanismo do Conceiço, os instintos primários, de procriação animal, misturados com o ódio provocado pelo desejo de vingança da morte do chefe do Pai Joca Ramiro. Riobaldo se masturba. Isola-se. É um momento de solidão do texto. Não mais o lirismo dos primeiros momentos amorosos; É a estação do Diabo. A própria figura do novo chefe Zé Bebelo, não tem mais o carisma de Joca Ramiro, nem o heroísmo mudo de Medeiro Vaz. Zé Bebelo tem algo de diabólico, de Maquiavel de político. A seguir na pagina 248, começará a guerra e o ódio, onde estes instintos sexuais serão descarregados no ódio da ponta das balas. Matam-se os cavalos. “Deus é um gatilho?”. É o domínio diabólico do ódio: “Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida, o ódio surgirá em seu lugar”.
“A roubo, estive perto de Diadorim, quase só para espiar, quase sem a conversação”.
Riobaldo perde a capacidade de amar portanto de falar Paira no ar uma atmosfera de desconfiança, de morte. Eles estão cercados na Casa, cercados pelas tropas do diabo e do ódio. A realidade é suspeição.

... estava sombrio, os olhos riscados, sombrio em sarro de velhas raivas, descabelado de vento. Demediu minha idéia: o ódio — é a gente se lembrar do que não deve-se; amor é a gente querendo achar o que é da gente.

O ódio se apodera de Diadorim, a guerra e a época do Diabo. “Quando os instintos do ego dominam a função sexual /.../ eles transmitem as qualidades de ódio também a finalidade instintitual”.
“Diadorim vinha constante comigo. Que viesse sentido, soturno?”
Diadorim é contagiado (magoado) pelo coração do amigo. Riobaldo está cada vez mais perto do Diabo.
— Escuta, Diadorim; vamos embora da jagunçagem.
A narrativa é feita de avanços e recuos. Riobaldo tem um momento de retrocesso no seu caminhar para o Mal. Diadorim não concorda, é sempre responsável por sua perdição. “Está chegando a hora d’eu ter que lhe contar as coisas muito estranhas”.
“Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha vida”.
Riobaldo no contágio do Mal.
“Diadorim mesmo estranhou aqueles maus modos”.
Riobaldo impregnado do Mal.
— “Repugno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo... Você que dansação e desordem...”.
Diadorim reconhece no amigo sua impregnação demoníaca, mesmo tendo de vingar seu pai. Mistério.
Diadorim não ia me mentir. O amor só mente para dizer maior verdade.
Riobaldo entre em certa competição e desconfiança, com Diadorim. Suspeita.
Tu vigia, Riobaldo, não deixe o diabo te por sela...
Riobaldo chega a ter raiva de Diadorim, mesmo por alguns minutos. Diadorim reconhece nele a presença do diabo. Mistério.

Homem, ele já estava morto. Que a Diadorim dissesse: que dissesse. Que aquele homem leproso era meu irmão, igual, criatura de si? Eu desmentia.

Enquanto Riobaldo se faz mais cruel Diadorim passa a ser sua consciência. O controle racional.
Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia.
A oposição continua, Diadorim pertence ao Bem, Riobaldo pertence, agora, ao Mal. Mistério.
De que jeito eu podia amar um homem, meu de. natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?.
Riobaldo disfarça o sentido da oposição. Diz que se afasta de Diadorim porque ele é homem, e por isso não pode amá-lo. Não aceita que ele e Diadorim se achem separados pela oposição dual do Bem e do Mal.

Assim conforme Diadorim tinha expedido o recado, para minha Otacília, mediante o arrieiro de uma tropa. Pejei por afirmara idéia nisso, que próprio depois eu enxotava. Às vezes as melhores haviam de ser as rezas de mais longe, desconhecidamente.
Diadorim ultrapassa seu ciúme apela para sua rival Otacília, por amor a Riobaldo. É um lance de abnegação de extrema necessidade do amor. É uma espécie de conivência.

Diadorim se chegou, com uma avença. Para meu sofrer, muito me alembro. Diadorim, todo formosura. — “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” — ele disse; e de medo não tremia, que era de amor — hoje sei.

Riobaldo acabara de atravessar — sem obstáculos! — o Liso do Sussuarão, estava próximo do Hermógenes: Diadorim pressente seu fim. Apressar o passo é apressar o tempo disponível para que os amantes vivam juntos, diminuir seu amor Estar próximo do Hermógenes é estar próximo do Diabo.
Mas, Diadorim concordou com os fatos, em armas, em frente.
Depois de ter demonstrações de bondade em oposição a seu diabólico amigo, Diadorim reassume o ódio, vingador da morte do Pai, e concorda na destruição da casa do Hermógenes, na matança geral (“até boi manso que lambia orvalhos até porco magro em beira de chiqueiro”). Entretanto tal matança satisfaz o Mal, que em breve abandonara a cena.
— “Você já está desistindo dela?”.
Riobaldo acabara de “vadiar” com as mulheres do Verde-Alecrim. Diadorim, ao contrário do que se espera, não se irrita, mas até riu de leve satisfeito. Teria ele desistido de sua noiva Otacília? Já que andara com tantas mulheres sem nenhum remorso, despreocupadamente, teria ele esquecido Otacília?
Diadorim ”...” perguntou, esconso, se eu queria aquela guerra completamente /.../ Remeniquei: — “Uai, Diadorim, pois você mesmo não é que é o dono da empreitada ?”.

Diadorim retrocede, prevê sua morte, hesita, teme morrer (por deixar o amigo, certamente livre para Otacília) Diadorim sabe que a vingança de Joca Ramiro é um pretexto para descarregar o ódio diabólico de que está possuído Riobaldo, que o sentido de matar e de destruição (de que o amigo está possuído) não é “saudável”.
Este ódio, que se apodera de Riobaldo, foi analisado aqui como um ódio instintual: A luta pelo objeto de desejo impossível (Diadorim) apareceu em Riobaldo “sob a forma de una ânsia de dominar, para a qual o dano ou o aniquilamento do objeto e indiferente”. O amor nessa forma não se distingue do ódio em sua atitude para com o objeto. que o ódio não se dirigiu para o objeto (Diadorim), escamoteou-se para o inimigo que se achou à disposição (Hermógenes) Relação metonímica. O ódio baseia-se em parte nas realizações de rejeição aos instintos do ego. Estes instintos podem encontrar fundamentos em motivos reais e contemporâneos. O ódio tem como fundamento os instintos autopreservativos. «Se uma relação de amor com um dado objeto for rompida, freqüentemente o ódio surgira em seu lugar, de modo que temos a impressão de uma transformação do amor em ódio. O ódio, que tem os seus motivos reais, é aqui reforçado por uma regressão do amor a fase preliminar sádica, de modo que o ódio adquire um caráter erótico, ficando assegurada a continuidade de uma relação de amor» (FREUD, S. Metapsicologia. Rio de Janeiro, Imago, 1974. 184p.).

Diz mais Freud, na página 44 da Metapsicologia: “A mudança do conteúdo de um instinto em seu oposto só é observada num exemplo isolado a transformação do amor em ódio. É como a critica “racionaliza”.
Diz a razão que o ódio nascido em Riobaldo, creditado por seu pacto com o Demônio, tenha origem em seus instintos sexuais, provocados pelo seu desejo insatisfeito e “impossível” de realizar-se em Diadorim. O ódio de Diadorim e de Riobaldo têm um só endereço: O Hermógenes. Os dois amantes descarregam o ódio, desviado de seu objeto inicial (o próprio objeto amado) para um motivo “real e contemporâneo” Freud diz que e particularmente comum “encontrar ambos (o amor e o ódio) dirigidos simultaneamente para o mesmo objeto”, e sua coexistência oferece o exemplo mais importante de ambiva1ência de sentimento.

Para poder matar o Hermógenes era que eu tinha conhecido Diadorim, e gostado dele, e seguido essas malaventuranças, por toda a parte?
Riobaldo quase “acerta” no seu argumento de amor e ódio.
A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para dar cabo definitivo do Hermógenes — naquele dia, naquele lugar.
O destino de Riobaldo era o amor de Diadorim transformado em ódio vingativo, de matar o Hermógenes.
— O senhor não fala sério!
Riobaldo tenta seduzir Diadorim, quase no fim de sua vida, quase no fim de sua narrativa. Diadorim reage assustado.

Diadorim a vir — de topo da rua, punhal na mão, avançar — correndo amouco .../.../ Assim, admirei e vi o claro claramente: aí Diadorim cravar e sangrar Hermógenes ... Ah, cravou em vão — e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar!

A cena final de Diadorim vivo.
Diadorim — nu de tudo. E ela disse. — “A Deus dada. Pobrezinha ...
É o fim: “Aqui a estória se acabou. Aqui, a estória acabada. Aqui a estória acaba”.


Do que observamos no que se refere a Diadorim, é a superação. Riobaldo, narrador, necessita do mínimo para a organização do discurso narrativo. Diadorim mais livre, mais liberdade, mais solto, “limpo” e heróico. Nos dois, entretanto, pois um contagia o outro, um segue a esteira do outro (Riobaldo seque Diadorim nas veredas da jagunçagem), nos dois, entretanto, assiste-se a superação do princípio da subjetividade sobre o princípio da razão, da realidade, da objetividade. A vingança da morte de Joca Ramiro é postulada como a vitória da paixão sobre o lógico. A razão da narrativa lógica de Riobaldo é necessária para que o fio condutor seja atado, e porque este personagem está mais próximo de Guimarães Rosa do que Diadorim. A reminiscência não é a lógica.
Como objeto, Diadorim é estranhamento, mistério. Apesar de desejar, de castrar, esta castração se destina ao lógico (a sexualidade como norma de acompanhamento do amor, da atração). Cortando a sexualidade de Riobaldo, Diadorim corta a naturalidade socio-psicológica e histórica da atração. Pois sexualidade, mesmo homossexualidade, é histórica. A sexualidade de Diadorim sem escolha objetual, é mais de atração do que de realização (Diadorim recusa a racionalização freqüentemente como ser possuído de um trágico auto-sacríficio a algum deus escondido).
E, se a sociabilidade de Riobaldo é fraca, a de Diadorim é nula; assexual, associal, seu signo é o de completa solidão.
Assim, Diadorim é impertinência, o mistério a que é “destinado” Riobaldo. Mais natureza, menos sociedade. Mais marginalidade, menos ordem. Seu signo é o da superação de si mesmo e de tudo. Proibido (Riobaldo é semi-autorizado, posto em luto e morte, em ódio e vingança, em rejeição sexual e assassínio, travestido, misterioso, impertinente, solitário, posto na outra margem, sob o signo de Tanatos, do não possuído, do punhal na fenda da castração, castrante, atraente e corruptor, assexual, sedutor, estranho e mágico, Diadorim é a superação do desejo e da razão, do prazer, do irracional e do desviante, dos poderes da ordem estabelecida.
De professor a jagunço, Riobaldo tem o que arriscar na vida (Diadorim não, já esta nos domínios da morte), parte da sociedade para a marginalidade, é por isso semi-social, e destinado, tem ação para a vida (Diadorim tem ação para morte), tem sexualidade (isto é, vida social, sociabilidade: Diadorim não tem sexualidade devido à sua associabilidade, devido ao seu isolamento e sua recusa) é contagiado pelo amigo, seduzido, induzido, destinado, mais pertinente do que Diadorim, mais social do que ele, mais “civilizado” do que o outro (que é mais natureza) , mais do lar (que o vence, afinal, pois Riobaldo termina aburguesado), mais Eros do que Tanatos, mais desejo e posse, sexual, mais sujeito do que estranho objeto, mais lógico em suas reminiscências.
Riobaldo tem a Mãe Bigri, tem Otacília; Diadorim nada tem, pois Joca Ramiro é um mito, um nada.
Diadorim revoluciona mais do que Riobaldo, protesto mais feroz, mais fecundo. Mais punitivo, mais arcaico, mais heróico. Mais existência.
A relação Riobaldo/Diadorim é a possibilidade de sair do eixo, do texto. Diadorim o objeto, sim, mas objeto abrangente, cujo sentido escapa sempre, busca o inconcebível, o que não teve raízes, a misteriosa obscuridade. Desconsolida a condição humana, deixada a descoberto. Busca um não-ser, uma existência dissolvida, separada dos sistemas do racionalismo, desprotegida. Diadorim não é o “homo sapiens”, mas a vitória da emoção dos dramas particulares e anti-heróicos que fizeram o triunfo do romantismo. Como indivíduo, Diadorim não se insere num contacto social amplo, num sistema amplo, num modelo amplo, o oposto das evidência, é um herói trágico. inacabado, na luta contra as evidência, tem superação na poesia e no trágico, não tem valor senão para a própria vida, sempre inacabada, sempre em fazer-se, contra o desejo de dar um sentido lógico e útil à vida das profundezas, contra os fatos uniformes e prontos, eficazes (Diadorim é a ineficácia) , contra os esquemas racionais aplicados a todos os fatos. Diadorim é a “verdade” do instinto e da subjetividade, transcendente estado de profundeza íntima. Nada há que o justifique ou que o redima, é um ser em luto. Sua condição humana reabsorve a condição mortal e efêmera do homem, que não recusa a emoção e o alarme de tudo que alarma comove. Não é um ser adequado e seguro, é um puro possível, cuja definição não entra em conta. A vida em Diadorim amplia-se com a morte, vai até limites mais distantes do que os da vida, é a vida que submerge na morte, não a morte que estanca o fluxo da vida.
Diadorim manifesta pois temporalidade, intuição de uma angústia básica de descompromisso com o princípio da realidade. Sua história é uma trajetória direta em direção ao que escapa às quantificações do Poder, direto ao revolucionário, à negatividade absoluta, rejeição da totalidade. Seu passado passa um surto direcionado ao aniquilamento futuro. Marca a vida que fascina, não a ciência que explica. faz a vida como milagre, como obscuridade. Como liberdade de escolha da decisão última. Do suicídio. Diadorim aparece uma espécie de suicida. Pois a vida,para ele, surge mais ameaça do que construção indiferente, angustia existencial do sujeito.
Diadorim traça a vida, em si mesma injustificável, ou contraditoriamente por si mesma justificada, mas sempre no nível da inverossimilhança da morte, da contingência da morte, da gratuidade da morte, da sua nulificação.
Diadorim, entretanto, ser condenado. Não escolheu o caminho de ser, não teve a iniciativa, escolha. Não se criou a si mesmo. Não projetou ser. Mas sua abstenção também faz uma escolha, uma liberdade. Diadorim aceitou ser Diadorim, ficou sendo. Não deixou de ter a liberdade de escolha. Não deixa de ser responsável por si. Encontra-se no ambíguo porque quer. Não falta coragem, como personagem, vive o risco da vida diária da guerra, nunca conheceu o medo. Pode decidir o seu destino, pode inventar caminhos, pode criar seus próprios valores. O homem livre pôde inventar seu próprio caminho, sua própria perdição, seu próprio suicídio. A ausência de medo faz uma premissa imprescindível. Diadorim buscou sua própria solidão, escolheu sua direção existencial. Pois o homem existe inicialmente, e se define em seguida. é isso que Diadorim está a dizer, nos labirintos em que se entredimensionou, sem perder em dignidade e em maturidade. Pois o homem se define pelo que faz. Feliz ou infelizmente, apesar do peso do Poder, ao homem tudo é permitido. Isto caracteriza o herói moderno. É o homem quem dá o sentido que quer a sua própria vida. Pode criar um caos sem sentido, mas pode dar um sentido ao caos, se tiver força e coragem. Pode ser um joguete nos dados do mundo, pode ser uma impossibilidade, ou pode ser um herói fecundo de direções, de salvamento e de felicidade. Mas a liberdade se dá dentro da prisão e não fora dela. A liberdade é mais para dentro do que para fora. Fora nada é possível.

Nenhum comentário: