quarta-feira, 30 de setembro de 2009
JOAQUIM NABUCO: MINHA FORMAÇÃO
Minha Formação
de Joaquim Nabuco
Prefácio
A maior parte de Minha Formação apareceu primeiro no Comércio de São
Paulo, em 1895; depois foi recolhida pela Revista Brasileira, cujo agasalho nunca
me faltou... Os capítulos que hoje acrescem são tomados a um manuscrito mais
antigo. Só a conclusão é nova. Na revisão, entretanto, dos diversos artigos foram
feitas emendas e variantes. A data do livro para leitura deve assim ser 1893-99,
havendo nele idéias, modos de ver, estados de espírito, de cada um desses anos.
Tudo o que se diz sobre os Estados Unidos e a Inglaterra foi escrito antes das
guerras de Cuba e do Transval, que marcam uma nova era para os dois países.
Algumas das alusões a amigos, como a Taunay e a Rebouças, hoje falecidos, foram
feitas quando eles ainda viviam. Foi para mim uma simples distração reunir agora
estas páginas; seria, porém, mais do que isso uniformá-las e querer eliminar o que
não corresponde inteiramente às modificações que sofri desde que elas primeiro
foram escritas.
Agora que elas estão diante de mim em forma de livro, e que as releio,
pergunto a mim mesmo qual será a impressão delas... Esta aí muito de minha vida...
Será uma impressão de volubilidade, de flutuação, de diletantismo, seguida de
desalento, que elas comunicarão? Ou antes de consagração, por um voto perpétuo,
a uma tarefa capaz de saciar a sede de trabalho, de esforço e de dedicação da
mocidade, e somente realizada a tarefa da vida, saciada aquela sede – ainda mais,
transformada por um terremoto à face da época, criado um novo meio social, em que
se tornam necessárias outras qualidades de ação, outras faculdades de cálculo para
lutas de diverso caráter –, a renúncia à política, depois de dez anos de retraimento
forçado, e diante de uma sedução intelectual mais forte, de uma perspectiva final do
mundo mais bela e mais radiante?... Sed magis gratiarum actio...
No todo a impressão, eu receio, será misturada; as deficiências da natureza
aparecerão, cobertas pela clemência da sorte; ver-se-á o efêmero e o fundamental...
Em todo o caso não precisarei de pleitear minha própria causa, porque ela será
sempre julgada pela raça mais generosa entre todas... Se alguma coisa observei no
estudo do nosso passado, é quanto são fúteis as nossas tentativas para deprimir, e
como sempre vinga a generosidade... Infeliz de quem entre nós não tem outro
talento ou outro gosto senão o de abater! A nossa natureza está votada à
indulgência, à doçura, ao entusiasmo, à simpatia, e cada um pode contar com a
benevolência ilimitada de todos... Em nossa história não haverá nunca Inferno, nem
sequer Purgatório.
Não dou entretanto, o bon à tirer a este livro, senão porque estou convencido
de que ele não enfraquecerá em ninguém o espírito de ação e de luta, a coragem e
a resolução de combater por idéias que repute essenciais, mas somente indicará
algumas das condições para que o triunfo possa ser considerado uma vitória
nacional, ou uma vitória humana, e para que a vida, sem ser uma obra d’arte, o que
é dado a muito poucas, realize ao menos uma parcela de beleza, e quando não
tenha o orgulho de ter refletido brilhante sobre o país, tenha o consolo de lhe haver
sido carinhosamente inofensiva.
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A política, entretanto, não foi a minha impressão dominante ao traçar estas
reminiscências... Eu já me achava então fora dela.
“Esta manhã, casais de borboletas brancas, douradas, azuis, passam
inúmeras contra o fundo de bambus e samambaias da montanha. É um prazer para
mim vê-las voar, não o seria, porém, apanhá-las, pregá-las em um quadro... Eu não
quisera guardar delas senão a impressão viva, o frêmito de alegria da natureza,
quando elas cruzam o ar, agitando as flores. Em uma coleção, é certo, eu as teria
sempre diante da vista, mortas, porém, como uma poeira conservada junta pelas
cores sem vida... O modo único para mim de guardar essas borboletas eternamente
as mesmas, seria fixar o seu vôo instantâneo pela minha nota íntima equivalente...
Como com as borboletas, assim com todos os outros deslumbramentos da vida... De
nada nos serve recolher o despojo; o que importa, é só o raio interior que nos feriu, o
nosso contato com eles... e este como que eles também o levam embora consigo.”
Este traço indecifrável, com que, em Petrópolis, tentei há anos marcar uma
impressão de que me fugia o contorno animado, explicará as lacunas deste livro e
muitas de suas páginas.
J. N.
Minha Formação
CAPÍTULO I
Colégio e academia
Não preciso remontar ao colégio, ainda que ali, provavelmente, tenha sido
lançada no subsolo da minha razão a camada que lhe serviu de alicerce: o fundo
hereditário do meu liberalismo. Meu pai nessa época (1864-1865) tinha terminado a
sua passagem do campo conservador para o liberal, marcha inconscientemente
começada desde a Conciliação (1853-1857), consciente, pensada desde o discurso
que ficou chamado do uti possidetis (1862). Houve diversas migrações em nossa
história política do lado liberal para o conservador. Os homens da regência, que
entraram na vida pública ou subiram ao poder representando a idéia de revolução,
foram com a madureza dos anos restringindo as suas aspirações, aproveitando a
experiência, estreitando-se no círculo de pequenas ambições e no desejo de simples
aperfeiçoamento relativo, que constitui o espírito conservador. O senador Nabuco,
porém, foi quem iniciou, guiou, arrastou um grande movimento em sentido contrário,
do campo conservador para o liberal, da velha experiência para a nova
experimentação, das regras hieráticas de governo para as aspirações ainda informes
da democracia. Ele é quem encarnará em nossa história – entre a antiga “oligarquia”
e a República, que deve sair dela no dia em que a escravidão se esboroar – o
espírito de reforma. Ele é o nosso verdadeiro Lutero político, o fundador do livre
exame no seio dos partidos, o reformador da velha igreja saquarema, que, com os
Torres, os Paulinos, os Eusébios, dominava tudo no país. Zacarias, Saraiva,
Sinimbu, com os seus grandes e pequenos satélites, Olinda mesmo, em sua órbita
independente, não fazem senão escapar-se pela tangente que ele traçou com a sua
iniciativa intelectual, a qual parece um fenômeno da mesma ordem que o profetismo
e que, por isso mesmo, só lhe consentia ter em política um papel quase imparcial: o
de oráculo.
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No colégio eu ainda não compreendia nada disto, mas sabia o liberalismo de
meu pai, e nesse tempo o que ele dissesse ou pensasse era um dogma para mim:
eu não tinha sido invadido pelo espírito de rebeldia e independência, por essa
petulância da mocidade que me fará mais tarde, na Academia, contrapor às vezes o
meu modo de pensar ao dele, em lugar de apanhar religiosamente, como eu faria
hoje, cada palavra sua.
Era natural que eu seguisse aos quinze e dezesseis anos a política de meu
pai, mesmo porque essa devoção era acompanhada de um certo prazer, de uma
satisfação de orgulho. Entre as sensações da infância que se me gravaram no
espírito, lembra-me um dia em que, depois de ler o seu Jornal, o inspetor do nosso
ano me chamou à mesa – era um velho ator do teatro S. Pedro, que vivia da
lembrança dos seus pequenos papéis e do culto de João Caetano –, para dizer-me
com grande mistério que meu pai tinha sido chamado a S. Cristóvão para organizar
o gabinete. Filho de presidente do Conselho foi para mim uma vibração de amorpróprio
mais forte do que teria sido, imagino, a do primeiro prêmio que o nosso
camarada Rodrigues Alves tirava todos os anos. Eu sentia cair sobre mim um reflexo
do nome paterno e elevava-me nesse raio: era um começo de ambição política que
se insinuava em mim. A atmosfera que eu respirava em casa, desenvolvia
naturalmente as minhas primeiras fidelidades à causa liberal. Recordo-me de que
nesse tempo tive uma fascinação por Pedro Luís, cuja ode à Polônia, Os Voluntários
da Morte, eu sabia de cor. Depois, a questão dos escravos, em 1871, nos separou;
mais tarde a nossa camaradagem na Câmara nos tornou a unir. Em casa eu via
muito a Tavares Bastos, que me mostrava simpatia, todo o grupo político da época;
era para mim estudante um desvanecimento descer e subir a rua do Ouvidor de
braço com Teófilo Ottoni; um prazer ir conversar no Diário do Rio com Saldanha
Marinho e ouvir Quintino Bocaiúva, que me parecia o jovem Hércules da imprensa e
cujo ataque contra Montezuma, a propósito da capitulação de Uruguaiana, me deu a
primeira idéia de um polemista destemido.
Na situação em que fui para S. Paulo cursar o primeiro ano da Academia, eu
não podia deixar de ser um estudante liberal. Desde o primeiro ano fundei um
pequeno jornal para atacar o Ministério Zacarias. Meu pai, que apoiava esse
Ministério, escrevia-me que estudasse, me deixasse de jornais e sobretudo de
atitudes políticas em que se podia ver, senão uma inspiração, pelo menos uma
tolerância da parte dele. Eu, porém, prezava muito a minha independência de
jornalista, a minha emancipação de espírito; queria sentir-me livre, julgava-me
comprometido perante a minha classe, a academia, e assim iludia, sem pensar
desobedecer, o desejo de meu pai, que, provavelmente, não ligava grande
importância à minha oposição ao Ministério amigo. Nesse tempo as Cartas de
Erasmo, que produziam no país uma revivescência conservadora, me pareciam a
obra-prima da literatura política.
As minhas idéias eram, entretanto, uma mistura e uma confusão; havia de
tudo em meu espírito. Ávido de impressões novas, fazendo os meus primeiros
conhecimentos com os grandes autores, com os livros de prestígio, com idéias
livres, tudo o que era brilhante, original, harmonioso, me seduzia e arrebatava por
igual. Era o deslumbramento das descobertas contínuas, a eflorescência do espírito:
todos os seus galhos cobriam-se espontaneamente de rosas efêmeras.
As palavras de um Crente de Lamennais, a História dos Girondinos de
Lamartine, o Mundo Caminha de Pelletan, os Mártires da Liberdade de Esquiros
eram os quatro Evangelhos da nossa geração, e o Ashaverus de Quinet o seu
Apocalipse. Victor Hugo e Henrique Heine creio que seriam os poetas favoritos. Eu,
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porém, não tinha (nem tenho), sistematizado, unificado sequer o meu lirismo. Lia de
tudo igualmente. O ano de 1866 foi para mim o ano da Revolução Francesa:
Lamartine, Thiers, Mignet, Louis Blanc, Quinet, Mirabeau, Vergniaud e os
Girondinos, tudo passa sucessivamente pelo meu espírito; a Convenção está nele
em sessão permanente. Apesar disso, eu lia também Donoso Cortez e Joseph de
Maitre, e até escrevi um pequeno ensaio, com a infalibilidade dos dezessete anos,
sobre a Infalibilidade do Papa.
Posso dizer que não tinha idéia alguma, porque tinha todas. Quando entrei
para a Academia, levava a minha fé católica virgem; sempre me recordarei do
espanto, do desprezo, da comoção com que ouvi pela primeira vez tratar a Virgem
Maria em tom libertino; em pouco tempo, porém, não me restava daquela
imaginação senão o pó dourado da saudade... Ao catolicismo só vinte e tantos anos
mais tarde me será dado voltar por largos circuitos de que ainda um dia, se Deus me
der vida, tentarei reconstruir o complicado roteiro. basta-me dizer, por enquanto, que
a grande influência literária que experimentei na vida, a embriaguez de espírito mais
perfeita que se podia dar, pelo narcótico de um estilo de timbre sem igual em
nenhuma literatura, o meu coup de foudre intelectual, foi a influência de Renan.
Politicamente o fundo liberal ficou intato, sem mistura sequer de
tradicionalismo. Seria difícil colher-se em todo o meu pensamento um resquício de
tendência conservadora. Liberal, eu o era de uma só peça; o meu peso, a minha
densidade democrática era máxima. Nesse tempo dominava a Academia, com a
sedução da sua palavra e de sua figura, o segundo José Bonifácio. Os leaders da
Academia, Ferreira de Meneses, que, apesar de formado, continuava acadêmico e
chefe literário da mocidade, Castro Alves, o poeta republicano de Gonzaga, bebiamlhes
as palavras, absorviam-se nele em êxtase. Rui Barbosa era dessa geração;
mas Rui Barbosa, hoje a mais poderosa máquina cerebral do nosso país, que pelo
número das rotações e força de vibração faz lembrar os maquinismos que impelem
através das ondas os grandes “transatlânticos”, levou vinte anos a tirar do minério do
seu talento, a endurecer e temperar, o aço admirável que é agora o seu estilo.
As minhas idéias, porém, flutuavam, no meio das atrações diferentes desse
período, entre a monarquia e a república, sem preferência republicana, talvez
somente por causa do fundo hereditário de que falei e da fácil carreira política que
tudo me augurava. Um livro sedutor e interessante – é a minha impressão da época
– o 19 de Janeiro, de Emílio Ollivier, tinha-me deixado nesse estado de hesitação e
de indiferença entre as duas formas de governo, e a France Nouvelle, de Prévost-
Paradol, que eu li com verdadeiro encanto, não conseguiu, apesar de todo o seu
arrastamento, fixar a minha inclinação do lado da monarquia parlamentar. O que me
decidiu foi a Constituição Inglesa de Bagehot. Devo a esse pequeno volume que
hoje não será talvez lido por ninguém em nosso país, a minha fixação monárquica
inalterável; tirei dele, transformando-a a meu modo, a ferramenta toda com que
trabalhei em política, excluindo somente a obra da abolição, cujo stock de idéias
teve para mim outra procedência.
CAPÍTULO II
Bagehot
Não sei a quem devo a fortuna de ter conhecido a obra de Bagehot, ou se a
encontrei por acaso entre as novidades da livraria Lailhacar, no Recife. Se soubesse
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quem me pôs em comunicação com aquele grande pensador inglês, eu lhe
agradeceria as relações que fiz com ele em 1869. É desse ano a amizade literária
íntima que travei com Jules Sandeau; a este quem me apresentou foi, recordo-me
bem, o atual conselheiro Lafayette, da antiga firma da Atualidade, Farnese, Lafayette
e Pedro Luís, que eram, com Tavares Bastos, os diretores da mocidade liberal. A
Atualidade fora talvez o primeiro jornal nosso de inspiração puramente republicana.
A semente que germinou depois, em meu tempo, foi toda espalhada por ela.
Antes de ler Bagehot, eu tinha lido muito sobre a Constituição inglesa. Tenho
diante de mim um caderno de 1869, em que copiava as páginas que em minhas
leituras mais me feriam a imaginação, método de educar o espírito, de adquirir a
forma do estilo, que eu recomendaria, se tivesse autoridade, aos que se destinam a
escrever, porque, é preciso fazer esta observação, ninguém escreve nunca senão
com o seu período, a sua medida, Renan diria a sua euritmia, dos vinte e um anos.
O que se faz mais tarde na madureza é tomar somente o melhor do que se produz,
desprezar o restante, cortar as porções fracas, as repetições, tudo o que desafina ou
que sobra: a cadência do período, a forma da frase ficará, porém, sempre a mesma.
O período de Lafayette ou de Ferreira Viana, de Quintino ou de Machado de Assis, é
hoje, com as modificações da idade, que são inevitáveis em tudo, o mesmo com que
eles começaram. Está visto que eu não incluo nos começos de um escritor as
tentativas que cada um faz para chegar à sua forma própria; o que digo é que o
compasso se fixa logo muito cedo, e de vez, como a fisionomia. Nesse livro de
minhas leituras de 1869, quarto ano da Academia, encontro no índice, com muita
Escravidão e muito Cristianismo, muita Eloqüência inglesa, muito Fox e Pitt.
Nesse tempo a Câmara dos Comuns já tinha para mim o prestígio de primeira
Assembléia do mundo, mas a realeza inglesa era ainda a dos quatro Jorges,
principalmente a de Jorge III, a bête noire de Martinho de Campos, ao passo que a
Câmara dos Lordes, essa, com todo o cortejo das antigualhas dos Tudors, era para
meu liberalismo, americanizado por Laboulave, sob disfarce de carnaval histórico,
uma odiosa procissão aristocrática em pleno mundo moderno. Dos dois governos, o
inglês e o norte-americano, o último parecia mais livre, mais popular. Por motivos
diferentes a monarquia constitucional, democratizada por instituições radicais, seria
ainda para o Brasil um governo preferível à república, mesmo pelo fato de já existir;
mas, em tese, entre essa monarquia e a república, a superioridade se havia, estava
ao lado desta. A France Nouvelle – a última parte dela foi verdadeiramente profética
— com toda a sua preferência raciocinada pela monarquia constitucional, deixou-me,
como já disse, suspenso, porque todo o seu delicado aparelho tinha como peça
principal, ou pelo menos como peça de aperfeiçoamento, a dissolução régia, direito
próprio do monarca, e exatamente essa espécie de dissolução é que era para a
nossa escola a manivela do governo pessoal.
A Constituição Inglesa de Bagehot é o livro de um pensador político, não de
um historiador, nem de um jurista. Quem lê a massa inextricável de fatos que se
contêm, por exemplo, na História Constitucional do Dr. Stubbs, ou um desses
rápidos panoramas de uma época inteira, que de repente Freeman nos desvenda
em uma de suas páginas, não encontra em Bagehot nada, historicamente falando,
que não lhe pareça, por assim dizer, de segunda mão. O que, porém, nem Freeman,
nem Stubbs, nem Gneist, nem Erskine May, nem Green, nem Macaulay conseguiu
nos dar tão perfeitamente como Bagehot, aliás um leigo em história e política, um
simples amador, foi o segredo, as molas ocultas da Constituição.
Freeman mostrava no seu pequeno livro O Crescimento da Constituição
Inglesa que essa Constituição nunca foi feita; que nunca nas grandes lutas políticas
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da Inglaterra a voz da nação reclamou novas leis, mas só o melhor cumprimento das
leis existentes; que a vida, a alma da lei inglesa foi sempre o procedente; que as
medidas para fortalecer a coroa alargaram os direitos do povo e vice-versa. Todo ele
é cheio de idéias sugestivas que iluminam, para o espírito, um grande campo de
visão. De repente encontra-se um quase paradoxo, desses que põem em confusão
todas as idéias morais da experiência histórica. S. Luís, dirá ele, com as suas
virtudes e prestígio, preparou o caminho para o despotismo dos seus sucessores.
Não será o mesmo o efeito do reinado de Pedro II? “Para conquistar a liberdade
como uma herança perpétua há épocas em que se precisa mais dos vícios dos reis
do que das suas virtudes. A tirania dos nossos senhores Angevinos acordou a
liberdade inglesa do seu túmulo momentâneo. Se Ricardo, João e Henrique
tivessem sido reis como Alfredo e S. Luís, o báculo de Estêvão Langton, a espada
de Roberto Fitzwalter, nunca teriam reluzido à testa dos barões e do povo de
Inglaterra”
Bagehot não tem dessas intuições retrospectivas, dessas vistas gerais locais;
o que tem, é a compreensão, a adivinhação do maquinismo que vê funcionar.
Tomando a Constituição inglesa como se fosse um relógio de catedral, outros
saberão melhor a história desse relógio, o modo da sua construção, as alterações
por que passou, as vezes que esteve parado, ou explicarão o simbolismo das figuras
que ele põe em movimento, quando o seu poderoso martelo bate as horas do dia;
ele, porém, conhece melhor o mecanismo atual, que simplifica explicando-o.
Bagehot, pode-se ver, era um espírito de afinidades e simpatias quase
republicanas, como Grote, Stuart Mill, John Morley, e todo o radicalismo positivista
inglês. Banqueiro de nascença, ele é um exemplo mais dessa singular atração para
os estudos especulativos ou de política pura, que por vezes se notou na alta finança
inglesa, com o próprio Grote, Mr. Goschen, ou Gladstone. O seu gênio era desses
que renovam todos os assuntos que tratam. Não sei se me engano, mas acredito
que a Constituição inglesa é uma esfinge, da qual foi ele quem decifrou o enigma.
As idéias que devo a Bagehot são poucas, mas são todas elas, por assim
dizer, chaves de sistemas e concepções políticas, de verdadeiros estados do espírito
moderno. Foi ele, por exemplo, quem me deu a idéia do que ele chamou governo de
gabinete, como sendo a alma da moderna Constituição inglesa. “No governo de
gabinete, diz ele, o Poder Legislativo escolhe o Executivo, espécie de comissão, que
ele encarrega do que respeita à parte prática dos negócios e assim os dois poderes
se harmonizam, porque o Poder Legislativo pode mudar a sua comissão, se não
está satisfeito com ela ou se lhe prefere outra. E, no entanto – tal é a delicadeza do
mecanismo –, o Poder Executivo não fica absorvido a ponto de obedecer
servilmente, porquanto tem o direito de fazer a legislatura comparecer perante os
eleitores, para que estes lhe componham uma Câmara mais favorável às suas
idéias.”
Essa é a primeira idéia, ou grupo de idéias, que devia a Bagehot: o governo
de gabinete, o gabinete comissão da Câmara, o gabinete saído da Câmara tendo o
direito de dissolver a Câmara, dissolução ministerial (não a Coroa só, nem a Coroa
com um gabinete contrário à Câmara): tudo, em suma, que depois daquele pequeno
livro se tornou outros tantos lugares comuns, mas que ele foi o primeiro a revelar, a
fixar.
É ele quem destrói os dois modos clássicos de explicar a Constituição
inglesa: o primeiro, que o sistema inglês consiste na separação dos três poderes; o
segundo, que consiste no equilíbrio deles. Sua idéia é que os dois poderes, o
Executivo e o Legislativo, se unem por um laço que é o gabinete e que, de fato,
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assim só há um poder, que é a Câmara dos Comuns, de que o gabinete é a principal
comissão. “O sistema inglês, diz ele, não consiste na absorção do Poder Executivo
pelo Legislativo; consiste na fusão deles.” O rival desse sistema é o que ele chamou
sistema presidencial. Essas designações são hoje usadas por todos, mas são todas
dele. “A qualidade distintiva do governo presidencial é a independência mútua do
Legislativo e do Executivo, ao passo que a fusão e a combinação desses poderes
serve de princípio ao governo de gabinete.”
Cada uma das suas palavras, comparando os dois sistemas de governo,
merece ser pesada. Resumindo essas páginas, eu contribuo de certo melhor para a
educação dos jovens políticos, chamo a sua atenção para os problemas mais
delicados, do que se lhes desse idéias minhas. “Comparemos primeiro, diz ele,
esses dois governos em tempos calmos. Em uma época civilizada, as necessidades
da administração exigem que se façam constantemente leis. Um dos principais
objetos da legislação é o lançamento dos impostos. As despesas de um governo
civilizado variam sem cessar e devem variar, se o governo faz o seu dever... Se as
pessoas encarregadas de prever todas essas necessidades da administração não
são as que fazem as leis, haverá antagonismo entre elas e as outras. Os que devem
marcar a importância dos impostos entrarão seguramente em conflito com os que
tiverem reclamando o seu lançamento. Haverá paralisia na ação do Poder Executivo,
por falta de leis necessárias, e erro na da legislatura, por falta de responsabilidade: o
Executivo não é mais digno desse nome, desde que não pode executar o que ele
decide; a legislatura, por seu lado, desmoraliza-se pela sua independência mesma,
que lhe permite tomar certas decisões capazes de neutralizar as do poder rival.”
Da desordem financeira que resulte dessa falta de inteligência entre o
Executivo e o Legislativo e dessa fabricação de orçamentos sem o governo, quem é
o principal interessado na perfeição da lei de meios, que é o responsável? A quem
se pode responsabilizar ou afastar da gestão dos negócios públicos? “Não há
ninguém a censurar senão uma legislatura, reunião numerosa de pessoas diversas,
que é difícil punir e que estão armadas, elas mesmas, do direito de punir.” Na
Inglaterra, o sistema é diferente. Em um momento grave, o gabinete pode recorrer à
dissolução; na América, é preciso esperar com paciência, para se resolver qualquer
conflito de opinião entre o Executivo e o Legislativo, que expire o prazo de um deles.
Até lá eles guerreiam-se implacavelmente, como dois partidos rivais.
Suponha-se que não há motivo possível de conflito: “Os governos de gabinete
são os educadores dos povos, os governos presidenciais não o são; pelo contrário,
podem corrompê-los. Diz-se que a Inglaterra inventou esta fórmula: a oposição de
Sua Majestade; que, primeiro, dentre todos os Estados, ela reconheceu que o direito
de criticar a administração é um direito tão necessário na organização política como
a própria administração. Essa oposição que se encarrega da crítica, acompanha
necessariamente o governo de gabinete. Que magnífico teatro para os debates, que
maravilhosa escola de instrução popular e controvérsia política oferece a todos uma
Assembléia Legislativa! Um discurso que é aí pronunciado por um estadista
eminente, um movimento de partido produzido por uma grande combinação política,
eis os melhores modos conhecidos até hoje de despertar, animar e instruir um
povo... Os viajantes que na América percorreram mesmo os Estados do Norte, isto
é, o grande país onde se mostra por excelência o governo presidencial, observaram
que a nação não tem gosto pronunciado pela política e que não se encontra uma
opinião trabalhada com todo o acabado e toda a perfeição que se nota na
Inglaterra... Sob um governo presidencial, o povo não tem senão um momento das
eleições a sua parte de influência... Nada excita tal povo a formar para si uma
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opinião ou uma educação, como o faria sob um governo de gabinete. Sem dúvida a
sua legislatura é um teatro para os debates, mas esses debates são como que
prólogos não seguidos de peças; não trazem nenhum desfecho, porque não se pode
mudar a administração; não estando o poder à disposição da legislatura, ninguém
presta atenção aos debates legislativos. O Executivo, esse grande centro do poder e
dos empregos, fica inabalável. Não se pode mudá-lo. O modo de ensino que, pela
educação do nosso espírito público, prepara as nossas resoluções e esclarece os
nossos juízos, não existe sob este sistema. Um país presidencial não tem
necessidade de formar cada dia opiniões estudadas e não tem meio algum de as
formar.” O mesmo se dá com a ação da imprensa, que também não pode deslocar a
administração. Na Inglaterra, o Times tem feito muitos ministérios; nada de
semelhante se podia dar na América... Ninguém se preocupa dos debates do
Congresso, eles não dão resultado algum, e ninguém lê os longos artigos de fundo,
porque não têm influência sobre os acontecimentos.
Mas não é só o Poder Legislativo que é fraco por essa divisão, é também o
Executivo. “Na Inglaterra, um gabinete sólido obtém o concurso da legislatura em
todos os atos que têm por fim facilitar a ação administrativa: ele é, por assim dizer,
ele próprio, a legislatura. Mas um presidente pode ser embaraçado pelo Poder
Legislativo e o é quase inevitavelmente. A tendência natural dos membros de toda a
legislatura é impor a sua personalidade. Eles querem satisfazer uma ambição
louvável ou censurável; querem, sobretudo, deixar vertígios da sua atividade própria
nos negócios públicos.”
Além do enfraquecimento causado por esse antagonismo do Legislativo, o
sistema presidencial enfraquece o Poder Executivo, diminuindo-lhe o seu valor
intrínseco. “Os homens de Estado entre quem a nação tem o direito de escolher sob
o governo presidencial são de qualidade muito inferior aos que lhe oferece o
governo de gabinete, e o corpo eleitoral encarregado de escolher a administração é
também muito menos perspicaz.”
Todas essas vantagens, porém, são ainda mais preciosas em tempos difíceis,
do que nos tempos calmos: “Uma opinião pública bem formada, uma legislatura que
infunda respeito, hábil e disciplinada, um Executivo convenientemente escolhido, um
Parlamento e uma administração que não se embaraçam reciprocamente, mas que
cooperam juntos, são vantagens cuja importância é maior quando se está a braços
com grandes questões , do que quando se trata de negócios insignificantes: maior,
quando se tem muito que fazer, do que um trabalho fácil. Acrescentemos, porém,
que o governo parlamentar, em que existe um gabinete, possui, além disso, um
mérito particularmente útil nos tempos tormentosos: o de ter sempre à sua
disposição uma reserva de poder pronta para operar, quando circunstâncias
extremas o exijam...”
“Sob um governo presidencial, nada semelhante é possível. O governo
americano gaba-se de ser o governo do povo soberano; mas, quando aparece uma
crise súbita, circunstância na qual o uso da soberania se torna sobretudo
necessário, não se sabe onde encontrar o povo soberano. Há um Congresso eleito
por um período fixo, que pode ser dividido em frações determinadas, de que se não
pode apressar nem retardar a duração: há um presidente escolhido também por um
lapso de tempo fixo e inamovível durante todo ele; todos os arranjos estão previstos
de modo determinado. Não há em tudo isso nada de elástico; tudo, pelo contrário, é
rigorosamente especificado e datado. Aconteça o que acontecer, não se pode
precipitar, nem adiar. É um governo encomendado de antemão, e, convenha ou não,
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ande bem ou mal, preencha ou não as condições desejadas, a lei obriga a conserválo.”
Em tempo de guerra ou de relações diplomáticas complicadas, é que se vê o
defeito desse sistema em toda a luz. Esse sistema, diz Bagehot, pode-se em uma
palavra: – “governar pelo desconhecido”. “Ninguém na América tinha a menor idéia
do que podia ser mister Lincoln nem do que ele poderia fazer. Sob o governo de
gabinete, pelo contrário, os homens de Estado principais são familiarmente
conhecidos de todos, não somente pelos seus nomes, mas pelas suas idéias. Nós
nem mesmo imaginamos que se possa confiar o exército da soberania a um
desconhecido.”
Devo outras idéias a Bagehot. Antes de o ler, eu tinha o preconceito
democrático contra a hereditariedade, o princípio dinástico e a influência
aristocrática. Foi esse democrata que me fez compreender como o que ele chamou
as partes imponentes da Constituição inglesa, “as que produzem e conservam o
respeito das populações”, são tão importantes como as eficientes, “as que dão à
obra o movimento e a direção”. Frases como estas gravam-se no pensamento: “Uma
segunda e raríssima condição de governo efetivo é a calma do espírito nacional, isto
é, essa disposição de espírito que permite atravessar, sem perder o equilíbrio, todas
as agitações necessárias que as peripécias dos acontecimentos encerram. Nunca
no estado de barbaria ou de meia civilização um povo possuiu essa qualidade. A
massa da gente sem instrução na Inglaterra não poderia ouvir hoje tranqüilamente
estas simples palavras: Ide escolher o vosso governo; semelhante idéia lhes
perturbaria a razão e lhes faria recear um perigo quimérico. A vantagem incalculável
(o itálico é meu) das instituições imponentes em um país livre é que elas impedem
essa catástrofe. Se a nomeação dos governantes se faz sem abalo, é graças à
existência aparente de um governo não sujeito à eleição. As classes pobres e
ignorantes imaginam ser governadas por uma rainha hereditária e que governa pela
graça de Deus, quando na realidade são governadas por um gabinete e um
Parlamento composto de homens escolhidos por elas mesmas e que saem das suas
fileiras.”
A pompa, a majestade, o aparto todo da realeza entrava assim para mim nos
artifícios necessários para governar e satisfazer a imaginação das massas, qualquer
que seja a cultura da sociedade; a realeza passava naturalmente para a classe das
instituições a que Herbert Spencer chamou cerimoniais, como os troféus, os
presentes, as visitas, as prosternações, os títulos, etc. “Nada mais pueril na
aparência do que o entusiasmo dos ingleses pelo casamento do príncipe de Gales.
Mas nenhum sentimento está mais em harmonia com a natureza humana. As
mulheres, que compõe ao menos metade da raça humana, preocupam-se cem
vezes mais de um casamento do que de um ministério.” E além: “Enquanto a
espécie humana tiver muito coração e pouca razão, a realeza será um governo forte,
porque se harmoniza com os sentimentos espalhados por toda parte, e a República
um governo fraco, porque se dirige à razão.”
A idéia principal que recebi de Bagehot foi essa da superioridade prática do
governo de gabinete inglês sobre o sistema presidencial americano: por outra, que
uma monarquia secular, de origens feudais, cercada de tradições e formas
aristocráticas, como é a inglesa, podia ser um governo mais direta e imediatamente
do povo do que a república. “Uma vez que o povo americano escolheu o seu
presidente, ele não pode mais nada, e o mesmo se dá com o colégio eleitoral que
lhe serviu de intermediário.” A Câmara dos Comuns, essa, porém, faz e desfaz o
gabinete, de modo que o governo está sempre nas mãos da representação nacional.
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Se se dá um desacordo entre eles, em que o ministério supunha ter de seu lado a
opinião, dissolve a Câmara, e, dentro de dias, a nação se pronuncia. Comparados
os dois governos, o norte-americano ficou-me parecendo um relógio que marca as
horas da opinião, o inglês, um relógio que marca até os segundos.
CAPÍTULO III
1871-1873. Na Reforma
Caí assim da Academia, tendo vencido o preconceito que torna relutante para
certos espíritos a forma monárquica, isto é, o preconceito pela não-eletividade do
chefe do Estado. Eu via claramente nessa não-eletividade o segredo da
superioridade do mecanismo monárquico sobre o republicano, condenado a
interrupções periódicas que são para certos países revoluções certas. Para não sair
da relojoaria, a república era, para mim, um relógio de que fosse preciso renovar a
mola no fim de pouco tempo; a monarquia, um relógio por assim dizer perpétuo. Não
foi pequena aquisição esta que devi a Bagehot; sem ela, sem ter da monarquia
parlamentar uma concepção que me fizesse aceitá-la como um aparelho mais
sensível à opinião, mais rápido e mais delicado em apanhar-lhe as nuanças
fugitivas, guardando ao mesmo tempo inalterável a tradição de governo e a
aspiração permanente do destino nacional, eu teria sido arrastado irresistivelmente
para o movimento republicano que começava. Ainda assim, não foi logo, de uma
vez, que cheguei a dominar as minhas fascinações.
Em 1871 estava no poder o Ministério Rio Branco. Nesses três anos de 71,
72, e 73 escrevi na Reforma, por vezes, artigos políticos. Outras coisas, entretanto,
me ocupavam então mais do que a política. A vida, a sociedade, o mundo, as letras,
a arte, a filosofia mesmo, tinham para mim maior encanto do que ela. Desde muito
moço havia uma preocupação em meu espírito que ao mesmo tempo me atraía para
a política e em certo sentido era uma espécie de amuleto contra ela: a escravidão.
Posso dizer que desde 1868 vi todo em nosso país através desse prisma. Nas três
defesas de júri que fiz na Academia – o meu amigo Alberto de Carvalho há de rir –,
alcancei três galés perpétuas. Eram todos crimes de escravos, ou antes imputados a
escravos – devo ser coerente hoje com o que provavelmente disse no júri. No meu
5º ano no Recife levei a preparar um livro que ainda guardo, uma espécie de
Perdigão Malheiro inédito, sobre a escravidão entre nós. Eu traduzia documentos do
Anti-Slavery Reporter para meu pai que, de 1868 a 1871, foi quem mais influiu para
fazer amadurecer a idéia da emancipação, formulada em 1866 em projeto de lei por
S. Vicente (Pimenta Bueno). A iniciativa, o desejo de que se levasse a questão ao
Parlamento, estou convencido, partiu do imperador, que não descansou enquanto o
não conseguiu, a primeira vez de Zacarias, a Segunda de Rio Branco. Eu já disse
uma vez que possuo o autógrafo, por letra dele, da carta em resposta aos
abolicionistas franceses, carta que foi o ponto de partida de tudo. Eu tomava o maior
interesse na atitude de meu pai nessa questão; desejava para ele a glória de ser
pelo menos o Sumner brasileiro. Recordo-me do prazer que tive quando, em 1869,
ele me referiu que se tinha posto de acordo com Sales Torres-Homem para
moverem a idéia do Senado, e que Sales estava escrevendo sobre a escravidão um
diálogo na forma de Platão.
Eu disse há pouco que não me tinha sido fácil desprender-me da minha
atração para tudo que era democracia ultra. O imperador estava em 1871 a
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empreender a sua primeira visita à Europa. Um artigo que então escrevi na Reforma,
com o título Viagem do Imperador, dá bem idéia de quanto era pequeno nesse
tempo o meu ângulo de inclinação monárquica. É ainda um escrito de mocidade,
não há nele senão mocidade, mas o traço individual que tem cada escritor já está
fixo, não mudará mais; – não só não mudará mais, como, vinte anos depois, quando
eu pensar em voltar, no escrever, à forma literária, é às medidas da minha frase dos
vinte e um anos que hei de tornar. Esse artigo é quase republicano. As minhas
novas idéias inglesas não estavam ainda senhoras, da casa, não tinham força para
eclipsar as projeções, em parte fantásticas, que nesse tempo, com a sua lanterna
mágica, Laboulave acabava de fazer do mundo americano. Por isso eu aconselhava
ao imperador que, em vez de ir à velha Europa, fosse à jovem América:
“Sobretudo ele compreenderia uma coisa. Ao ver os estados Unidos à frente
do progresso industrial e moral, compreenderia que os reis podem bem ser uma
hipótese, um luxo, uma superfetação. Ao ver uma sociedade amplamente liberal e
livre, governando-se sem rei, ele compreenderia que, em certas épocas, os povos
podem dispensar qualquer tutela. Ao ver a família honrada e respeitada – eu referiame
à pureza do lar e ao respeito dos americanos pela mulher, – tornada uma
religião; ao ver a religião feita o laço moral das almas e a trituração dos cultos
chegando quase ao número dos indivíduos sem produzir outro efeito senão o de
uma maior tolerância e maior fraternidade, ao ver a civilização crescendo” – em terra
virgem – “como uma árvore de enormes raízes e de grande sombra; ao ver a
vanguarda do progresso ocupada por uma república” – não merecia eu um primeiro
prêmio-Laboulaye? –, “o imperador perderia o culto monárquico em que comungam
os reis. Ao ver, por outro lado, esse poder que passa de um soldado para um
lenhador, para um alfaiate, sempre o mesmo, íntegro e perfeito, ele, guardando o
amor da família, que cresceria, porque já não era a dinastia, perderia o culto da
hereditariedade.”
Essa era a minha linguagem aos vinte e um anos; nela encontra-se um
mínimo de monarquismo e um máximo de republicanismo, o que produz esta
preferência por uma monarquia sem hereditariedade, sem cerimonial, sem
veneração, toda ao nível comum, como a magistratura popular da Casa Branca. É só
gradualmente que a influência do sistema monárquico vai crescendo e prevalecendo
sobre esse radicalismo espontâneo, esse igualitarismo inflexível. Aos 21 anos de
certo eu não teria compreendido esta máxima política de meu pai no Senado: “A
utilidade relativa das leis prefere à utilidade absoluta”; o relativo não existia para
mim.
Nesses anos o Partido Liberal leva o Ministério Rio Branco para onde quer.
Seguramente a opinião liberal teve muito mais poder sobre aquele Ministério do que
sobre o Ministério Sinimbu ou qualquer outro do seu próprio partido, – exceto o
Ministério Dantas, porque neste o presidente do Conselho era impressionável à
menor censura do liberalismo. A verdade é que o Ministério Rio Branco foi um
Ministério reformista como desde o Gabinete Paraná não se tinha visto outro e não
se viu nenhum depois. O governo tinha o prurido das reformas, não talvez por
inclinação própria, mas para desarmar a oposição liberal. Em dois pontos somente
ele mostrou-se conservador, à moda antiga: na sua prevenção contra a eleição
direta, que provavelmente era também do imperador, e em relação ao equilíbrio do
Prata. Em sua política externa manteve firme a tradição conservadora, ou melhor, a
política tradicional da Tríplice Aliança, e a maior probabilidade é que a política liberal
da Aliança, continuando, depois da guerra, nos tratados de paz, teria criado uma
situação no Prata muito diversa da situação estável e pacífica que resultou dessa
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mudança de atitude dos conservadores. Em tudo mais foi um Ministério inovador
como o Partido Liberal não teria dado igual. O pano das reformas era fornecido
pelos liberais; era todo de padrão liberal; mas o mestre conservador talhava nele
com uma largueza de tesoura que faria chorar no poder toda a alfaiataria contrária.
Na questão religiosa, principalmente, à atitude de Rio Branco só se poderia chamar
conservadora por ser Pombalina, ultra-regalista. O Partido Liberal, em vez de
exultar, dizia-se roubado, pleiteava as suas patentes de invenção, suas marcas de
fábrica.
Nesse tempo, e durante alguns anos, o radicalismo me arrasta; eu sou, por
exemplo, dos que tomam parte mais ativa na campanha maçônica de 1873 contra os
bispos e contra a Igreja. Entro até nas idéias de Feijó, de uma Igreja nacional,
independente da disciplina romana; faço conferências, escrevo artigos, publico
folhetos. Não quisera mesmo hoje retirar uma só palavra do que disse então,
advogando a liberdade religiosa mais perfeita; entendo ainda, hoje mais do que
nunca, depois da esplêndida experiência do pontificado de Leão XIII, que a Igreja
tem tudo a ganhar com a liberdade e que o futuro do mundo pode pertencer à
aliança, já selada no atual pontificado, da Igreja católica com a democracia. Não é
sob Leão XIII que o liberalismo há de mais ser suspeito, e provavelmente este
pontificado não será um acidente feliz, mas sim um ponto de partida definitivo, a data
de uma nova era na história do catolicismo. Do que preciso fazer renúncia, em favor
das traças que o consumiram, é de tudo o que nesses opúsculos escrevi em espírito
de antagonismo à religião, com a mais soberba incompreensão de seu papel e da
necessidade, superior a qualquer outra, de argumentar a sua influência, a sua ação
formativa, reparadora, em todo o caso consoladora, em nossa vida pública e em
nossos costumes nacionais, no fundo transmissível da sociedade. Naquele tempo,
porém, como teria eu acolhido uma manifestação como esta, cada vez mais
verdadeira, mais de que só hoje sinto a profundeza e o alcance – do senador
Nabuco, em 1860, no Senado: “Há duas necessidades, a meu ver, muito importantes
na situação moral do nosso país: a primeira é a difusão do princípio religioso no
interesse da família e da sociedade...”? Posso dizer, falando a nova gíria científica,
que eu não tinha então nada de estático, era todo dinâmico.
Um ministério conservador que se encarrega de realizar as reformas liberais,
produz, forçosamente, no campo liberal, uma grande confusão. Para quem
começava, como eu, a vida política automática na imprensa e no clube do partido, a
política do ministério pouco importava, o alvo continuava o mesmo; não obstante,
instintivamente, pela voz do sangue, a discutir com o governo conservador que fazia
as reformas liberais, eu preferia discutir com a fração que se separava do nosso
partido para formar o Partido Republicano. Já nesse tempo a questão da forma de
governo começa a dominar em mim todas as outras; eu só excetuaria a dos
escravos, mas a lei de 28 de setembro estava votada e a ela se tinha seguido uma
espécie de trégua dada à escravidão. Travo, então, na Reforma, um combate com a
República, do ponto de vista monárquico. Se, em 1871, eu podia pretender, como
disse, o prêmio americano Laboulaye, em 1873, no meu ano de fixação monárquica,
eu entraria em concurso para o prêmio inglês Bagehot, com esses artigos também
da Reforma. O seguinte trecho basta para mostrar, comparado ao da Viagem do
Imperador, a mudança que eu tinha sofrido em dois anos:
“É preciso realmente ser iludido, ou pelas palavras ou pelos símbolos, para
chamar ao rei do sistema parlamentar um tirano. Nem mesmo pode comparar-se um
Lincoln com uma Vitória: o presidente americano governa, administra, tem à sua
disposição milhares de empregos públicos, é o chefe de seu partido, tem uma
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responsabilidade inteira no governo e uma iniciativa poderosa; pode ser um
Washington ou, se quiser, um Johnson. O soberano inglês não tem poder nenhum; o
Parlamento indica-lhe o ministro que ele chama, não podendo chamar outro; esse
ministro imposto torna-se o chefe de Estado, apresenta as leis a que o soberano não
pode negar sanção, e dissolve a Câmara se ela lhe retira a confiança; e enquanto o
ministro governa, o rei somente reina. Não terá esse tirano inglês muito menos poder
do que o primeiro magistrado americano?”
Dessas idéias eu não devia sair mais, como se verá; não são como as de
1871, arrastamento, entusiasmo, paixão; são dessas formas do espírito que deixam
mais a inteligência tomar outra forma; têm para ela a transparência, a clareza da
evidência, como se fossem, e realmente são, primeiros teoremas de geometria
política.
CAPÍTULO IV
Atração do mundo
Nesses anos de mocidade a que me estou referindo, a política era, de certo,
para mim uma forte excitação; em qualquer cena do mundo o lance político
interessava-me, prendia-me, agitava-me; por isso mesmo, eu não era, nunca fui, o
que se chama verdadeiramente um político, um espírito capaz de viver na pequena
política e de dar aí o que tem de melhor. Em minha vida vivi muito da Política, com P
grande, isto é, da política que é história, e ainda hoje vivo, é certo que muito menos.
Mas para a política propriamente dita, que é a local, a do país, a dos partidos, tenho
esta dupla incapacidade: não só um mundo de coisas me parece superior a ela,
como também minha curiosidade, o meu interesse, vai sempre para o ponto onde a
ação do drama contemporâneo universal é mais complicada ou mais intensa.
Sou antes um espectador do meu século do que do meu país: a peça é para
mim a civilização, e se está representando em todos os teatros da humanidade,
ligados hoje pelo telégrafo. Uma afeição maior, um interesse mais próximo, uma
ligação mais íntima, faz com que a cena, quando se passa no Brasil, tenha para mim
importância especial, mas isto não se confunde com a pura emoção intelectual; é um
prazer ou uma dor, por assim dizer doméstica, que interessa o coração; não é um
grande espetáculo, que prende e domina a inteligência. A abolição no Brasil me
interessou mais do que todos os outros fatos de que fui contemporâneo; a expulsão
do imperador me abalou mais profundamente do que todas as quedas de tronos ou
catástrofes nacionais que acompanhei de longe; por último, não experimentei
nenhuma sensação tão cheia, tão prolongada, tão viva, durante meses
ininterrompidos, como a última revolta, quando se ouvia o canhão da guerra civil no
mar e o silêncio ainda pior do terror em terra. Em tudo isto, porém, há muito pouca
política; nesses três quadros, por exemplo, a política suspende-se; o que há é o
drama humano universal de que falei, transportado para nossa terra. Não se poderia
dizer isto da luta dos partidos, nem do que, exclusivamente, é considerado política
pelos profissionais. Esta é uma absorção como a de qualquer hábito, circunscreve a
curiosidade a um campo visual restrito: é uma espécie de oclusão das pálpebras.
Esse gozo especial do político na luta dos partidos não o conheci; procurei na
política o lado moral, imaginei-a uma espécie de cavalaria moderna, a cavalaria
andante dos princípios e das reformas; tive nela emoções de tribuna, por vezes de
popularidade, mas não passei daí: do limiar; nunca o oficialismo me tentou, nunca a
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sua deleitação me foi revelada; nunca renunciei a imaginação, a curiosidade, o
diletantismo, para prestar sequer os primeiros votos de obediência; só vi de muito
longe o véu jacinto e púrpura do Sanctum Sanctorum – (tão de longe, que me
pareceu um velho reposteiro verde e amarelo) –, por trás do qual o presidente do
Conselho contemplava sozinho face a face a majestade do Poder Moderador.
Isto quer dizer que a minha ambição foi toda em política de ordem puramente
intelectual, como a do orador, do poeta, do escritor, do reformador. Não há, sem
dúvida, ambição mais alta do que a do estadista, e eu não pensaria em reduzir os
homens eminentes que merecem aquele nome em nossa política ao papel de
políticos de profissão; mas para ser um homem de governo é indispensável fixar,
limitar, encerrar a imaginação nas coisas do país e ser capaz de partilhar, se não
das paixões, de certo dos preconceitos dos partidos, ter com eles a mais perfeita
comunhão de vida, individuae vitae consuedudinem. Assim, quando eu tivesse, que
não tive, as qualidades precisas, estava impedido para a política pela
incompressibilidade do meu interesse humano. Politicamente, receio ter nascido
cosmopolita. Não me seria possível reduzir as minhas faculdades ao serviço de uma
religião local, renunciar a qualidade que elas têm de voltar-se espontaneamente
para fora.
Assim, por exemplo, desses anos de minha vida, a que me refiro: em 1870, o
meu maior interesse não está na política do Brasil, está em Sedan. No começo de
1871, não está na formação do Gabinete Rio Branco, está no incêndio de Paris. Em
1871, durante meses, está na luta pela emancipação –, mas não será também
nesse ano o Brasil o ponto da terra para o qual está voltado o dedo de Deus? Em
1872, o que me ocupa o espírito é o centenário d’Os Lusíadas; estou então
imprimindo um livro sobre Camões, e a quem trabalha em um livro, apesar do seu
nenhum valor literário, como o mostrou Teófilo Braga, não sobra muita atenção ou
interesse para dar ao que acontece em redor de si. 1873 é o meu ano, como disse,
de fixação monárquica, mas também – o que mostra que a razão amadurece por
partes – o ano em que me atiro contra a Igreja com o furor iconoclasta da mocidade,
supondo estar dizendo coisas novas, nunca ouvidas por ela em 19 séculos de luta,
pensando que ela vai gemer sob os golpes das terríveis hipérboles que lhe arrojo em
panfletos e artigos da Reforma: teocracia, invasão ultramontana, conquista jesuíta!...
Apesar disso, o ano de 1873 é no meu registro o ano da primeira viagem à Europa,
fato de metamorfose pessoal, que é em minha vida a passagem da crisálida para a
borboleta.
Não posso mais – se feliz, se infelizmente, é uma questão que me levaria
muito longe deslindar –, não posso mais sentir o que sentia aos 24 anos, quando
pela primeira vez me fiz de vapor, hoje eu preferiria fazer-me de vela, para a Europa.
Como já vi Leão XIII carregado na sedia gestatoria e tive a fortuna de falar
longamente a sós com um papa, creio que não faria mais uma viagem para
conhecer nenhum grande personagem, exceto, talvez, o imperador da China. Já que
não vi um rei mouro em Granada, passo bem sem ter visto Abdul-Hamid no Bósforo.
Mesmo o imperador da China talvez eu me contentasse em conhecê-lo pela imagem
que me dariam dele, se eu o avistasse, dois rising men da alta diplomacia européia,
de quem sou amigo, que tiveram ocasião de penetrar no recinto inviolável e de
estudar a infantil figura do Incognoscível sob as aflições da guerra japonesa. O que
me interessa nele, bem se pode imaginar, não é o seu trono de almofadas de seda,
o seu porta-voz, os seus cachimbos, os seus perfumadores, os seus colares; é a
originalidade que o envolve, maravilhosa como o próprio sobrenatural, é a psicologia
acumulada de séculos.
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Em 1873, porém, a minha ambição de conhecer homens célebres de toda
ordem era sem limites; eu tê-los-ia ido procurar ao fim do mundo. Do mesmo modo,
com os lugares. O que eu queria, era ver todas as vistas do globo, tudo o que tem
arrancado um grito de admiração a um viajante inteligente. Nessa qualidade de
câmara fotográfica só lastimava não ter o dom da ubiqüidade. Esta febre itinerante
passou-me também. Posso ler, sem perigo, qualquer geografia nova, o Elisée
Reclus inteiro; é só uma boa página de Pausânias ou de Estrabão, com os seus
nomes antigos, que me perturba ainda. Os mais preciosos livros da minha estante
íntima são os meus Baedekers; diversos lugares aí estão marcados com um sinal, e
se eu pudesse, tomaria ainda, para visitá-los, o bilhete (hoje não se diz mais o
bastão) do peregrino; mas são os lugares somente a que está associada – há anos
eu teria dito uma impressão de minha vida – uma das grandes impressões da
humanidade, uma das suas revelações na arte, ou na religião.
O que em matéria de viagem, de paisagens me tentaria hoje – quem sabe se
não é uma pura restituição de um atavismo longínquo? o meu avô materno, que se
transplantou em 1530 para Pernambuco e fundou o morgado do Cabo, João Pais
Barreto, era de Viana – seria, talvez, o Lima, se eu tivesse certeza de ter diante dele
a mesma impressão dos soldados romanos que chamaram às suas margens
Campos Elísios e lhe deram o belo nome de Letes. A verdade é que sinto cada dia
mais forte o arrocho do berço: cada vez sou mais servo da gleba brasileira, por essa
lei singular do coração que prende o homem à pátria com tanto mais força quanto
mais infeliz ela é e quanto maiores são os riscos e incertezas que ele mesmo corre.
Nesse tempo, porém, na minha era antes de Cristo, em pleno politeísmo da
mocidade, o mundo inteiro me atraía por igual; cada nova fascinação da arte, da
natureza, da literatura e, também, da política, era a mais forte; eu quisera conhecer
as celebridades de todos os partidos. Depois do papa, a mais nobre figura da
Europa era para mim o conde de Chambord, que acabava de rejeitar a coroa de
França para não repudiar a bandeira branca; um Henrique V, bem pouco parecido
com Henrique IV, e, no entanto, eu contava como uma boa fortuna à noite que
passei no salão de monsieur Thiers (1).
A viagem à Europa em tais condições não podia deixar de ser para mim,
como foi, o eterno impulso dado ao pêndulo imaginativo. Pelo sentimento, pela
atitude, pelo emprego da vida, acredito ter sido, em meu plano inferior, uma das
mais consistentes figuras de nossa política; acredito mesmo que passarei nela como
um homem de uma só idéia persona unius dramatis, porquanto a minha fidelidade
monárquica pode ser considerada, como a de André Rebouças, ainda um último
compromisso, uma gratidão, um episódio da libertação dos escravos. Quanto às
afinidades espontâneas, porém, às simpatias naturais, ao movimento interior do
espírito, dificilmente se encontrará um pêndulo que descreva um raio de oscilação
mais largo do que a minha imaginação e a minha curiosidade. O que é um homem
político assim diletante, viajante, a quem tudo atrai igualmente, que admira as
grandes construções sociais, qualquer que seja o sistema da arquitetura, convencido
de que em todos há o mesmo espírito, porque o espírito criador é um só?
Nós, brasileiros, o mesmo pode-se dizer dos outros povos americanos,
pertencemos à América pelo sedimento novo, flutuante, do nosso espírito, e à
Europa, por suas camadas estratificadas. Desde que temos a menor cultura, começa
o predomínio destas sobre aquele. A nossa imaginação não pode deixar de ser
européia, isto é, de ser humana; ela não pára na Primeira Missa no Brasil, para
continuar daí recompondo as tradições dos selvagens que guarneciam as nossas
praias no momento da descoberta; segue pelas civilizações todas da humanidade,
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como a dos europeus, com quem temos o mesmo fundo comum de língua, religião,
arte, direito e poesia, os mesmos séculos de civilização acumulada, e, portanto,
desde que haja um raio de cultura, a mesma imaginação histórica.
Estamos assim condenados à mais terrível das instabilidades, e é isto o que
explica o fato de tantos sul-americanos preferirem viver na Europa... Não são os
prazeres do rastaquerismo, como se crismou em Paris a vida elegantes dos
milionários da Sul-América; a explicação é mais delicada e mais profunda: é a
atração de afinidades esquecidas, mas não apagadas, que estão em todos nós, da
nossa comum origem européia. A instabilidade a que me refiro, provém de que na
América falta à paisagem, à vida, ao horizonte, à arquitetura, a tudo o que nos cerca,
o fundo histórico, a perspectiva humana; que na Europa nos falta a pátria, isto é, a
forma em que cada um de nós foi vazado a nascer. De um lado do mar sente-se a
ausência do mundo; do outro, a ausência do país. O sentimento em nós é brasileiro,
a imaginação européia. As paisagens todas do Novo Mundo, a floresta amazônica
ou os pampas argentinos, não valem para mim um trecho da Via Ápia, uma volta da
estrada de Salermo a Amalfi, um pedaço do Cais do Sena à sombra do velho
Louvre. No meio dos luxos dos teatros, da moda, da política, somos sempre
squatters, como se estivéssemos ainda derribando a mata virgem.
Eu sei bem, para não sair do Rio de Janeiro, que não há nada mais
encantador à vista do que, ao acaso, a escolha seria impossível, os parques de S.
Clemente, o caminho que margeia o aqueduto de Paineiras na direção da Tijuca, a
ponta de S. João, com o Pão de Açúcar, vista do Flamengo ao cair do sol. Mas tudo
isto é ainda, por assim dizer, um trecho do planeta de que a humanidade não tomou
posse; é como um Paraíso Terrestre antes das primeiras lágrimas do homem, uma
espécie de jardim infantil. Não quero dizer que haja duas humanidades, a alta e a
baixa, e que nós sejamos desta última; talvez a humanidade se renove um dia pelos
seus galhos americanos; mas, no século em que vivemos, o espírito humano, que é
um só e terrivelmente centralista, está do outro lado do Atlântico; o Novo Mundo
para tudo o que é imaginação estética ou histórica é uma verdadeira solidão, em que
aquele espírito se sente tão longe das suas reminiscências, das suas associações
de idéias, como se o passado todo da raça humana se lhe tivesse apagado da
lembrança e ele devesse balbuciar de novo, soletrar outra vez, como criança, tudo o
que aprendeu sobre o céu da Ática...
A respeito dessa visita, eis a nota que encontro no meu jornal de 1874: “10 de
janeiro. Á noite fui com o Itajubá (o nosso árbitro em Genebra) à casa de monsieur
Thiers, hotel Bragation, faubourg Saint-Honoré. Apresentado a monsieur Thiers, a
madame Thiers, a mlle Dosne. Apresentado a Jules Simon. Itinerário que este me
deu: ver Pierrefonds. Coucy, Reims, Tarascon, Arles e a Grande Chartreuse.
Conversei com monsieur Thiers sobre o Brasil. Opinião dele sobre a desigualdade
da raça negra, de que provém o direito não de escravizá-la, mas de forçá-la ao
trabalho, como a Holanda faz com os javaneses.”
Em um soberbo livro espanhol, que faz honra à Sociedade de Jesus,
Pequeñeces, romance de um padre jesuíta, que é um grande autor, L. Coloma, há
um personagem que diz a cada instante – Usted me entiende. Todos nós temos
algum conhecido que pontua as suas frases com esse fatigante entende? que os
nervos de marquês de Paraná não podiam suportar. O entende? do indivíduo que
quer forçar o ouvinte a nada perder do que ele diz, é muito diverso da fórmula
habitual com que o imbecil marquês de Villamelon exprimia o que lhe faltava força
para pensar. Há também pontos, idéias, modo de sentir que o escritor desejaria
expressar por um lado Usted me entiende, levantando apenas a ele vagamente, sem
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nada precisar, de fato, sem nada dizer. Cada um de nós é só o raio estético que há
no interior do seu pensamento, e, enquanto não se conhece a natureza desse raio,
não se tem idéia do que o homem realmente é. Nesta confissão da minha formação
política, devo, para não deixar ver somente a máscara, o personagem, dar uma
espécie de fotografia dos símbolos que se imprimiram e reproduziram mais
profundamente no meu cérebro. Assim se reconhecerá que a política não foi senão
uma refração daquele filete luminoso que todos temos no espírito.
A instabilidade a que me estou referindo, está grandemente modificada; a
dualidade desapareceu em parte, não tão perfeitamente como em meu amigo
Taunay... Este, apesar de seu sangue de cruzado, apesar de ter escrito o seu livro
clássico em francês, e apesar da sua brilhante propaganda contra o nativismo, é o
mais genuíno nativista que eu conheço, porque não compreende sequer a vida em
outra terra, em outra natureza. Brasileiro de uma só peça é aquele que não pode
viver senão no Brasil. Na mocidade fui um errático, como o próprio imperador
acabou na velhice... Quando, porém, entre a pátria, que é o sentimento, e o mundo,
que é o pensamento, vi que a imaginação podia quebrar a estreita forma em que
estavam a cozer ao sol tropical os meus pequenos debuxos d’almas, Usted me
entiendem, deixei ir a Europa, a história, a arte, guardando do que é universal só a
religião e as letras.
CAPÍTULO V
Primeira viagem à Europa
De diversos modos a minha primeira ida à Europa influiu para enfraquecer as
tendências republicanas que eu porventura tivesse, e fortificar as monárquicas.
Antes de tudo, o republicanismo francês, que era e é o nosso, tem um fermento de
ódio, uma predisposição igualitária que logicamente leve à demagogia – a sua maior
figura é Danton, o homem da Setembrizada –, ao passo que o liberalismo, mesmo
radical, não é só compatível com a monarquia, mas até parece aliar-se com o
temperamento aristocrático. Se fosse preciso personificar o liberalismo, poder-se-ia
chamar-lhe Lafayettismo, por ter sido Lafayette o principal representante dos
gentilhommes libéraux de 1789. Esse estreito republicanismo, que confina nos dias
de crise com a demagogia, e, exasperado pelo perigo ou excitado pela posse
repentina, imprevista, do poder, chega à epidemia sanguinária do Terror, é um fato,
pode-se dizer, de reclusão mental: dá-se somente quando o espírito se encerra em
algum sistema filosófico ou fanatismo religioso, em uma doutrina ou em uma
previsão social qualquer, e aí se isola inteiramente do mundo externo. A intolerância
é, ou era, o característico do republicanismo agressivo francês, e a intolerância é
uma fobia da liberdade e do mundo; é um fenômeno de retração intelectual,
produzindo a hipertrofia ingênua da personalidade.
É provável que em mim também existisse o embrião republicano; não duvido
que, nascido em outra condição, não tivesse meu pai na mais alta hierarquia da
política, se não descobrisse, como tantos outros que se revoltaram, modo de vencer
o terrível multi sunt vocati, pauci vero electi da antiga oligarquia, eu também tivesse
acompanhado o movimento republicano de 1870, do qual faziam parte alguns dos
espíritos que me fascinavam. Se assim fosse, porém, estou certo que o movimento
abolicionista me teria, mais tarde, destacado dele, e que o 13 de maio me
identificaria com a sorte da monarquia libertadora. Se, apesar de tudo, eu me tivesse
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conservado republicano até 15 de novembro – nascesse eu em que condição
nascesse, uma vez que fosse o mesmo que sou, isto é, que tivesse recebido no
berço os mesmos rudimentos d’alma –, não tenho a menor dúvida de que o abalo, o
choque do desterro do imperador teria posto fim à minha fantasia republicana e
restabelecido a sinceridade e a lucidez dos meus sentidos políticos. Como quer que
fosse, a viagem de 1873 destruiu no gérmen toda e qualquer inclinação republicana,
todo indício de fanatismo que eu pudesse ter no segredo da minha natureza.
Não durou muito tempo essa viagem; foi apenas de um ano. A situação de
espírito que ela criou já tinha antecedentes nas minhas relações com a pequena
roda em que vivia então o corpo diplomático em Petrópolis e na corte, na
convivência com ministros e secretários estrangeiros, alguns deles hoje ministros, e
até embaixadores. A situação de espírito cosmopolita ou, antes, mundana,
caracteriza-se pela compreensão das soluções opostas dos mesmos problemas
sociais, pela tolerância de todas as opiniões, pela igual familiaridade com
correligionários e adversários, pela idéia, para dizer tudo, de que acima de quaisquer
partidos está a boa sociedade. Esse modo de ser, em política, não é
necessariamente eclético, nem, ainda menos, cético; é somente incompatível com o
fanatismo, isto é, com a intolerância, qualquer que ela seja. Foi a viagem à Europa a
grande deslocação que consolidou a tendência anti-sistemática em que eu já estava,
amortecendo em mim o predomínio da força política até 1879, quando pela primeira
vez entro para o Parlamento; mesmo no Parlamento, porém, depois do ano de
estréia , em que as emoções da tribuna me fizeram tomar calor e interesse pela luta
dos partidos, desde 1880 até 1889, quando se fechou definitivamente para mim
aquela carreira, posso dizer que o efeito da minha deslocação, de 1873, da política
partidária, porque todo o tempo que estive na Câmara me acolhi sob uma bandeira
mais larga e me coloquei em um terreno politicamente neutro, como era o da
emancipação dos escravos.
Essa viagem que assim imprime à minha evolução política o seu caráter
definitivo, durou, como eu disse, pouco tempo. Partindo em agosto de 1873, volto ao
Rio de Janeiro em setembro de 1874. É menos de um ano de Europa que tenho da
primeira vez; desses onze meses, mais ou menos, passo cinco em Paris, três na
Itália, um mês no lago de Genebra, um mês em Londres, um mês em Fontainebleau.
A razão desse mês de Ouchy e desse mês de Fontainebleau é que, em viagem,
sempre que um lugar me fala, eu me deixo prender por ele e me esqueço de viajar.
É assim que, mais tarde, pretendo dar ao Niagara a hora indispensável para ver as
quedas, me deixo ficar vinte e tantos dias, sem poder arrancar-me daquele
espetáculo até o ter inteiramente absorvido.
O mês de Ouchy quer dizer, sem falar de Lausanne, que os primeiros
passeios a pé, à beira do lago, de um lado na direção de Coppet, do outro, na
direção de Clarens, as visitas a Genebra com a romaria obrigada a Ferney, me
colocavam no teatro literário, talvez o mais interessante da Europa moderna, depois
de Weimar, porque Clarens é o cenário da Nova Heloísa, e está cheio de eloqüência
de Rousseau; Ferney, o dos últimos anos de Voltaire; Coppet, o da realeza de
Corinna com a sua corte vinda de Paris, da Alemanha, da Itália, não esquecendo
lorde Byron. Mais do que tudo, porém, nessa faixa de terra que liga intelectualmente
o século XVIII ao século XIX, o que me teria prendido eternamente a Ouchy, se eu
dispusesse de algumas eternidades nesta vida é o lago, o seu corte, a sua moldura.
O mês de Fontaneibleau tem outra explicação: não é o castelo e a floresta só
por si o que me prende; é que volto da Inglaterra, tendo pela primeira vez falado
inglês com todo o mundo, fascinado por Londres, tocado de um começo de
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anglomania, que foi a doença da sociedade em França, e, portanto, até isso, acusa
a construção francesa do meu espírito, e Fontaneibleau, com o repouso dos seus
jardins simétricos, a frescura de suas águas e das suas sombras, a tranqüilidade do
seu silêncio, era o mais admirável retiro que eu podia querer nesse mês da minha
vida, que posso chamar do mês de Thackeray. Foi esse o claustro ideal em que,
fechado com Vanity Fair, Pendennis, The Newcomes, não sei o que mais, sem
dicionários, adivinhando o que não podia traduzir, compreendendo tudo, esgotei em
mim mesmo até as lágrimas a impressão do grande romancista inglês – o que fiz
depois com George Eliot e Trollope, mas nunca fiz, sinto dizê-lo, com Dickens, nem
com sir Walter Scott.
De certo, em minutos pode abrir-se e fechar-se diante dos nossos olhos um
espetáculo que não esqueceremos nunca. Percorri em meses a Itália, as grandes
capitais antigas somente, sinto também dizê-lo; não fiz sequer a romaria de arte pela
Umbria; estive duas horas diante dos quatro monumentos da velha Pisa, que
inspiraram a Taine a sua página mais eloqüente: como esquecer, no entanto, essa
revelação imorredoura? Keats não disse tudo com o seu verso:
A thing of beauty is a joy for ever?
Não só o que é verdadeiramente belo é “essa alegria”, de que ele fala, “para
sempre”, um raio interior que se incorpora à vida para nunca mais se apagar,
quaisquer que sejam as tempestades, dela, como também uma só thing of beauty,
um único fragmento da verdadeira beleza, basta para iluminar a existência humana
inteira. Nenhum homem terá compreendido bem duas grandes obras d’arte: a coluna
grega e a ogiva gótica, um Miguel Angelo e um Piero della Francesca, nem
tampouco duas vistas diferentes de natureza: o oceano e os lagos de montanha; as
paisagens da neve e os céus do Oriente. Em caso algum, porém, pode-se sentir
uma obra de arte de passagem, isto é, sem que ela produza em nós uma vibração
correspondente ao esforço, à sensação do criador quando a compôs.
Como é que em minutos nos poderia penetrar a impressão do artista que
levou anos para realizar seu pensamento, e morreu ainda agitado por ele? Eu olhei,
por exemplo, para a catedral de Reims, com Rodolfo Dantas, em um dia que
roubamos a Paris, linguagem do bulevar; parei para ver a catedral de Amiens; roubei
outro dia a Paris para fazer a volta da catedral de Rouen; fui a Strasburgo avistar o
grande Münster de Erwin von Steibach; com Artur de Carvalho Moreira, um dos mais
finos espíritos da nossa geração acadêmica, fiz uma vez a tournée dos castelos
históricos do Loire: Chenonceux, Amboise, Blois, Chambord. Horas para tudo isso!
Para Francisco I, Diana de Poitiers, a Renascença Francesa! Mais tarde, por não
querer apressar-me assim, não fiz com o mesmo companheiro, o qual deu anos de
sua vida intelectual exclusivamente aos goethekenners, a visita as cidades de
Goethe: Frankfort, Leipzig – Strasburgo, vi, mas sem pensar em Frederica –, Wetzlar
e Weimar. Por toda a parte, posso dizer, passei, como passei em 1892, por Coimbra,
Alcobaça, Mafra, a Batalha, sem deixar sequer às impressões o tempo de se
gravarem no espírito. Uma hora para a catedral de Reims! só não foi um ultraje, uma
ofensa àquela divina fachada, porque lá estive em verdadeira humilhação, e não
lancei olhares críticos ao seu sublime portal, a toda a sua incomparável legenda,
como o gamin lhe atira pedras. Uma hora em Amiens! nesse “Partenão da literatura
gótica”, como lhe chamou Viollet-le-Duc, e levando na mão a Bíblia de Amiens de
John Ruskin, o qual chega a invejar o humilde guarda, cuja função é espanar-lhe as
esculturas de madeira, como nunca outras foram talhadas!
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De passagem, pode-se ver muita coisa, mas não se tem a revelação de nada.
A primeira condição para o espírito receber a impressão de uma grande criação
qualquer, seja ela de Deus, seja das épocas – nada é puramente individual –, é o
repouso, a ocasião, a passividade, o apagamento do pensamento próprio; dar à
forma divina o tempo que ela quiser para refletir-se em nós, para deixar-nos
compreendê-la e admirá-la, para revelar-nos o pensamento originário donde nasceu.
De todos esses lugares da Suíça ou da Itália, de Fontaneibleau, de Paris, de
Londres, não trago senão impressões literárias, impressões de vida; o grande efeito
em mim dessa viagem é assim apagar a política; suspender durante um ano,
inteiramente, a faculdade política, que, uma vez suspensa, parada, está quebrada e
não volta mais a ser a mola principal do espírito. Eu não podia entretanto estar em
França, em uma época de transformação, como foi essa de 1873-74, e às vezes, em
contato com homens políticos, nem penetrar na sociedade inglesa, sem que a
grande política européia exercesse uma influência positiva sobre o meu espírito,
além da modificação operada negativamente, como eu disse, pelo meu afastamento
do nosso cenário local e pela sensação d’arte. Apesar de tudo, eu tinha afinidades
políticas inapagáveis, que poderiam, quando muito, ficar secundárias, subordinadas
à atração puramente intelectual. Dessa modificação positiva falarei agora.
CAPÍTULO VI
A França de 1873-1874
A época em que eu pela primeira vez tinha Paris por menagem, era
historicamente tão interessante que um espírito sujeito como o meu a fortes
tentações políticas não poderia deixar de voltar-se para o espetáculo dos
acontecimentos, apesar dos meus deslumbramentos artísticos e literários.
Compreende-se, porém, que a atração contrária à política era ainda mais poderosa,
pela novidade, pelo esplendor das suas revelações contínuas, do que o próprio
drama contemporâneo. No Rio de Janeiro ou em S. Paulo, quem se alimente de
política, quando a sensação de um grande acontecimento se apossa dele, não
encontra nada em redor de si que a corrija ou lhe sirva de contrapeso; felizmente, os
acontecimentos raros são grandes. Para um jovem brasileiro, porém, que pela
primeira vez chega a Paris, é quase impossível imaginar acontecimento que possa
torná-lo indiferente ao maravilhoso que o surpreende a cada passo, ou sensação
política que não fosse amortecida, dominada logo, pela sensação de arte.
Realmente, a luta entre o duque de Broglie e monsieur Thiers, o teatro do
palácio de Versalhes convertido em Assembléia Nacional, o Trianon dando as suas
salas para o conselho de guerra de Bazaine, atraíam-me, e fui um dos mais
ansiosos espectadores que assistiram nessa época aos debates daquela
assembléia, ou que participaram da emoção daquele grande processo militar, apesar
de tudo pouco generoso.
Nunca hei de esquecer as frias manhãs de novembro em que o meu querido
amigo José Caetano de Andrade Pinto, depois conselheiro de Estado, e eu
atravessávamos de carro aberto as alamedas de Versalhes para tomar os nossos
lugares na própria tribuna do marechal Bazaine, por detrás dele, quase os únicos
que, talvez por lhe sermos estranhos e sermos estrangeiros, tínhamos a coragem de
acompanhar daquele lugar os interrogatórios, a acusação e a defesa. No último
momento, quando se mandou fechar a tribuna particular do marechal, passamos
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para o prétoire. Que emoção a nossa quando o duque d’Aumale, de pé, como todo o
Conselho, que formava semicírculo em torno dele, a fita vermelha da Legião de
Honra passada sobre o grande uniforme, o chapéu de plumas na cabeça como em
um campo de batalha, na mão uma grande folha de papel sobre a qual se projetava
o refletor de uma lâmpada sustentada por trás dele por um imponente vulto de
huissier, com a solenidade de quem depois de um exílio de vinte e cinco anos
representava outra vez perante a França, leu os três Oui, à l’humanimité, que
sibilaram pela sala toda como as balas de um pelotão!
Também me hei de lembrar sempre da sessão da Assembléia Nacional em
que se votou o setenato de Mac-Mahon como medida provisória, dilatória, entre a
restauração, temporariamente impossibilitada por causa da bandeira branca, e a
república, que não queriam proclamar. Se nesses sete anos morresse o conde de
Chambord, regnante ainda o duque de Magenta, quem sabe se o conde de Paris
não reuniria os votos dos Chevaulégers e da alta finança do Centro Esquerdo!
Afianço a quem me lê que, depois de um discurso pronunciado pelo duque de
Broglie, com o seu acento nasal, a sua perfeição acadêmica, sua maneira e suas
maneiras ancien régime, ver subir à tribuna o velho Dufaure e de improviso, sem
frases cadenciadas, sem períodos embutidos uns nos outros como um mosaico
literário, tomar entre as mãos o discurso do neto de Mme de Staël, amassá-lo, darlhes
as formas que queria, até ninguém mais o poder reconhecer; assistir a um duelo
desses, da elegância com a eloqüência, é um prazer que não se esquece mais. E
não ouvi Berryer! Ali, em Versalhes, eu encontrava ainda os restos da grande
geração parlamentar que começou na Restauração e que trouxe as suas tradições,
a sua escola de oratória, para as Câmaras de Luís Filipe. Tudo isto, não é preciso
dizê-lo, me interessava no mais íntimo de mim mesmo, intelectualmente, falando,
mas um simples relance sobre quaisquer páginas do meu diário nessa época basta
para mostrar quanto o meu interesse se dividia e o meu espírito era solicitado em
direções contrárias por sensações quase do mesmo valor.
Assim, por exemplo (o itálico é para mostrar as oposições repentinas): “19 de
novembro. A sessão do Setenato (em que foi votada a prorrogação dos poderes do
marechal). – 21 de novembro – Começo a ir ao processo Bazaine. – 22 de
novembro. Visita a Ernesto Renan. – 2 de janeiro (1874) Chateauroux – 3 de janeiro.
De manhã. Route de la Châtre. Bosques de álamos batidos pela ventania. Em
Nohant às 11 horas. Esperavam-me desde a véspera, tinham um aposento para
mim. Maurice Sand, a mulher filha de Calamatta. Fazem-me almoçar. Ao meio-dia,
vem George Sand. Conversamos até as 3 horas. Pediu-me para ficar algum tempo
em Nohant. Falamos de Renan, de Jaconde, do teatro, de Bressant, do imperador,
que ela não viu. – 4 de janeiro. Orleans, Catedral. Casas de Jeane d’Arc, Agnès
Sorel, Diane de Poitiers. Notícia da queda de Castelar... – 3 de janeiro. Fomos ao
château de Chambord. Escadaria de pedra à double rampe. Os FF e as
Salamandras de Fransisco I. O Bourgeois Gentilhomme, 1970. Souvent femme
varie. Château de Blois. Quarto de Henrique II. Escada exterior espiral. Renascença
Francesa. – 10 de janeiro. Visita a monsieur Thiers”.
Talvez o dia em que viram pela primeira vez a Vênus de Milo ou a Jaconde
tenha passado indiferente para muitos que notaram as suas menores impressões
políticas. Eu, porém, não poderia sequer lembrar-me de que fora político diante do
mármore dos mármores ou do colorido que se esvai e de um traço que se apaga de
Leonardo. Na própria política eu achava-me dividido pela mais positiva dualidade
que se pudesse dar. De sentimento, de temperamento, de razão, eu era um tão
exaltado partidário de Thiers como qualquer republicano francês; pela imaginação
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histórica e estética era porém legitimista; isto é, perante o artista imperfeito e
incompleto que há em mim, a figura do conde de Chambord reduzia a de Thiers a
proporções moralmente insignificantes. Quando em um mesmo homem há um lírico
e um político, a lenda tem para ele uma projeção duas vezes maior que a da história.
Nesse espaço de tempo a que me refiro, a República estava ainda em
questão em França; Thiers havia sido forçado a demitir-se, e a sua substituição, com
surpresa dele, recaíra no seu general-chefe, que dispunha, absolutamente, do
exército, o marechal de Mac-Mahon. A reconciliação do conde de Paris com o chefe
da casa de França tinha-se efetuado em Frohsdorf, em 5 de agosto; os cavalos para
a entrada solene do rei em Paris estavam sendo negociados, quando o Ministério
recuou, sentindo-se sem forças para impor aos soldados a bandeira branca. A
Restauração, pode-se dizer, tinha abortado; mas, de um momento para outro,
Henrique V podia inspirar-se no precedente de Henrique VI e aceitar a bandeira da
Revolução. Ainda há pouco, o general du Barail, que era o ministro da guerra do
duque de Broglie, confessou que, se o conde de Chambord tivesse querido, não era
o setenato, era sim, a monarquia que teria sido aclamada.
“O marechal, escreve ele, estava convencido de que o príncipe cedera a uma
consideração patriótica: ao receio de atrair sobre o seu país a animosidade e até as
armas da Alemanha.” O testemunho recente do duque de Broglie e do embaixador
em Berlim, o conde de Gontaut-Biron, indicam isso mesmo, que o conde de
Chambord viu que a Restauração seria guerra com a Alemanha e quis poupar à
França uma Segunda e pior mutilação. Quem sabe, também, à vista dessas
revelações diplomáticas, se não foi esse mesmo o motivo secreto superior de Thiers
para desertar a Monarquia?
Quem viu o velho estadista empenhar-se na consolidação da República com
todo o seu prestígio e o seu poder de persuasão, desde que levantara a França dos
campos de batalha onde jazia ferida e retirara do poder da Comuna Paris ainda em
chamas, pode pensar que não se dá toda essa dedicação a uma causa que não se
tenha intimamente a peito. A verdade é que, se Thiers tivesse empregado em
restaurar a monarquia a metade do esforço e do trabalho que empregou em
consolidar a República, a realeza provavelmente teria sido proclamada, talvez ainda
em Bordéus. Durante muito tempo ele manteve-se como o fiel da balança entre os
partidos. Não se pode ler sem emoção esses seus discursos de 1871, quando ele se
vê entre os dois lados da Assembléia e inventa distinções para impedir que eles se
tratem como inimigos diante do invasor estrangeiro, todas essas distinções sutis,
como entre constituir e reorganizar, entre renunciar e reservar o poder constituinte.
Eu era como político francamente thierista, isto é, em França, de fato
republicano. Isto não quer dizer, porém, que me sentisse republicano de princípio;
pelo contrário. A Terceira República em França foi fundada por monarquistas; foi
uma transação de estadistas monárquicos, como Thiers, Dufaure, Rémusat, Léon
Say, Casimir Périer, Waddington, e todo o Centro-Esquerdo.
“Soa como um paradoxo, escreveu, com admirável lucidez, um dos hábeis
redatores da Quaterly Review em 1890, mas não é por isso menos exato, que a
principal barreira diante de uma restauração monárquica em França é o crescente
conservatismo que foi sempre inerente ao caráter francês no meio de todas as
ebulições do sentimento excitado. O povo sabe que uma mudança na forma de
governo só poderia ser realizada por meio de uma revolução ou como resultado de
uma guerra, e recua diante da perspectiva de uma e outra eventualidade, preferindo
aceitar o presente estado de coisas, ainda que este não lhe desperte entusiasmo.”
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Esse espírito conservador da França, inimigo das mudanças bruscas, mesmo
para melhorar, é bem caracterizado por esta anedota, como a contou há anos um
correspondente do Times. Durante as barricadas de junho, quando se ouvia o
canhão nas ruas de Paris, mandaram uma companhia guardar o Ministério de
Estrangeiros. O oficial que comandava, de espada desembainhada, entrou na
Secretaria, mas parou à porta de uma das salas, vendo que os empregados
continuavam tranqüilamente em suas mesas de trabalho, como se nada estivesse
acontecendo. Vendo-o, o diretor levanta-se com uma porção de papéis, prontos para
a assinatura do ministro, aproxima-se dele e, inclinando-se, pergunta-lhe com a
maior deferência e naturalidade: “É ao novo governo que tenho a honra de dirigirme?”
Era esse conservatismo que pelo órgão, principalmente, de Thiers fundava
então a Terceira República; o mesmo que não deixou ainda divorciar-se dela o
espírito da burguesia liberal – espírito a que se pode chamar Centre-Gauche –,
nenhum analista negará que a quintessência desse conservatismo fosse
monárquica, mais sinceramente monárquica do que o espírito de fronde das côteries
restauradoras.
Essa primeira grande escola estrangeira em que aprendi, não me podia fazer
republicano de sentimento, como não fez republicano de sentimento a nenhum dos
seus fundadores, como não fez, nem faz, republicanos aos liberais conservadores
ingleses, ou às testas coroadas da Europa, que, sem má vontade à França,
preferem a República à Realeza ou ao Império; como não faz republicano ao papa,
que protege poderosamente o atual sistema francês. O grande efeito sobre mim
daquela atitude de Thiers e dos parlamentares da Monarquia de Julho era dar-me
uma grande prova experimental de que a forma de governo não é uma questão
teórica, porém prática, relativa, de tempo e de situação, o que em relação ao Brasil
era um poderoso alento para a minha predileção monárquica. O grande efeito era
este: destruir o gérmen republicano latente, gérmen de intolerância e de fanatismo. E
esse foi o grande serviço de Thiers à França moderna: o de acabar com o antigo
monopólio jacobino sobre a idéia republicana.
É o mesmo escritor da Quarterly quem finalmente observa: “Ainda que, por
um lado, o genuíno sentimento realista esteja quase extinto, por outro, o sentimento
republicano também por sua vez esfriou. A nova geração é republicana no sentido
de não acreditar na possibilidade de uma restauração monárquica; o ardente
republicanismo dos velhos doutrinários, esse, porém, está quase tão morto como a
advocacia do direito divino dos reis”. Essa modificação, que está hoje terminada,
começou em 1871, e foi o resultado da adesão, não foi conversão, do Centro-
Esquerdo à situação republicana criada para a França na Europa pela derrota de
Sedan. Esse duplo e igual esfriamento e do republicanismo, pode-se dizer que forma
a atmosfera natural do liberalismo contemporâneo e da cultura política moderna, e,
assim como ela aproveita em França à república, devia aproveitar no Brasil à
monarquia. Foi esta a grande influência política que exerceu sobre mim a minha
estada em França de 1873-74. Agora resta-me precisar a influência rival que sofri, e
a que chamarei influência literária, graças a qual voltei da Europa consideravelmente
menos político do que partira.
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CAPÍTULO VII
Ernest Renan
Desde a Academia a literatura e a política alternaram uma com a outra,
ocupando a minha curiosidade e governando as minhas ambições. Nos primeiros
anos a política teve o predomínio; com a viagem à Europa em 1873 passou este
para a literatura, e esse meu período literário, começado então, dura até 1879,
quando entro para a Câmara.
Eu tinha sempre lido muito e de tudo na época em que me sentia mais político
do que homem de letras. Em filosofia tinha assimilado um pouco de Spinosa, Plotino,
Kant e Hegel; a nota mais sonora e mais sustentada de cada um deles vibra a
mesma em meu espírito ainda hoje que sinto a grandeza da filosofia e coloco Santo
Tomás de Aquino entre Aristóteles e Platão. Em religião, eu estava sob a influência
de Strauss, Renan, Havet, e formava, também eu, com os fragmentos de todos eles
a minha lenda pessoal de Jesus. Pelo espírito, posso dizer que habitei longos anos,
da Praia do Flamengo, as bordas solitárias e silenciosas do lago de Genezareth. Em
crítica literária, achava-me todo imbuído de Sainte-Beuve, Taine, Scherer, ainda que
deste último, de quem falarei, não tanto como depois que o conheci. Em poesia,
tinha passado de Lamartine para Victor Hugo, o de Hernani quase exclusivamente, e
de V. Hugo para Musset, como devia depois de passar de Musset para Shelley, de
Shelley para Goethe, escala em que parei, mas onde não espero morrer, porque
tenho diante de mim o Dante..., o que não quer dizer que não tenha nos ouvidos a
ressonância das grandes rimas novas de um Banville, e não admire um cinzelado
dos fortes relevos de José-Maria Heredia. Em prosa, Chateaubriand e Renan
dividiam o império com Cícero, cujas cartas são talvez o livro mundano que eu
levaria comigo, se tivesse que ficar encerrado em uma ilha deserta. A frase, a
eloqüência, o retrato e a encenação histórica de Macaulay foi também uma
influência permanente que se imprimiu em meu espírito; hoje eu teria que
acrescentar Mommsen, Curtius, Ranke, Taine, Burkhardt. Quanto ao romance, que é
a imaginação abrangendo e modelando a vida, eu ficaria sob a impressão de Jules
Sandeau; vivia à sombra dos seus castelos antigos reconstruídos pela moderna
burguesia entre as duas sociedades, a velha e a nova, que ele queria fundir pelo
amor, é mais que a poesia d’alma de Sandeau, que foi muito grande a que ainda um
dia a França há de voltar, era para mim indefinível a impressão, aristocrática e
feminina a um tempo, dos últimos encantadores estudos de Cousin sobre a
sociedade do século XVII.
Tudo isto formava o fundo do meu espírito, o húmus da minha inteligência,
quando começou a fase literária, aquela em que senti uma impulsão interior
irresistível para entrar na literatura. O período anterior de receptividade, de plantio,
de assimilações; a impressão, o prazer maior era o de ler; agora, vinha a
necessidade de produzir, de criar, e dava-se um fato singular, resultado desses anos
de leituras francesas: eu lia muito pouco o português, ainda não começara a ler o
inglês e desaprendera o alemão da Maria Stuart e de Wallenstein, com verdadeira
mágoa do meu velho mestre Goldschmidt. O resultado foi que me senti solicitado,
coagido pela espontaneidade própria do pensamento, a escrever em francês.
Um brilhante freqüentador da Revista Brasileira, que possui entre outras
qualidades talvez a mais preciosa de todas, uma boa quantidade do fluido simpático,
admira-se dessa minha afinidade francesa; com efeito, não revelo nenhum segredo,
dizendo que insensivelmente a minha frase é uma tradução livre, e que nada seria
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mais fácil do que vertê-la outra vez para o francês do qual ela procede. O que me
admira é que o mesmo não aconteça a todos os que têm lido tanto em francês como
eu, mais do que eu, e cuja vida intelectual tem sido assim em sua parte principal, isto
é, em toda a sua função aquisitiva, francesa. E talvez que eles têm uma força de
assimilação maior do que a minha – ou que eu tenho mais desenvolvida do que eles
a faculdade imitativa? Não sei; mas essa suscetibilidade à influência francesa parece
natural em espíritos que recebem quase tudo em francês e que têm horror à
tradução; o purismo português, esse, sim, é que, até tornar-se uma segunda
natureza literária, exige uma constante vigilância, a retificação exata de todo o
trabalho de aquisição intelectual.
A verdade, para dizer tudo, é esta: admirando a força, o acabado, às vezes a
grandeza desse estilo vernáculo em que há uma peneira de furos imperceptíveis
para impedir qualquer imperfeição estranha, e em que a nossa língua
modernizando-se parece conservar a tonalidade antiga, a minha fonografia cerebral
adaptou-se contudo às leituras estrangeiras. Falta-me para reproduzir a sonoridade
da grande prosa portuguesa o mesmo eco interior que repete e prolonga dentro de
mim, em gradações curiosamente mais íntimas e profundas, à medida que se vão
amortecendo, o sussurro indefinível, por exemplo, de uma página de Renan. Tem aí
o dr. Graça Aranha a confissão da minha deficiência em relação à nossa língua, cuja
fibra forte, resistente, primitivamente áspera, lastimo não possuir. Limito-me, talvez
por isso mesmo, a escrever, como ele vê, com aqueles dos seus fios e dos seus
matizes que se ajustam ao meu tear francês.
O momento em que me apareceu essa febre do verso francês – era em verso,
ainda por cima, que eu me sentia forçado a compor –, foi caprichosamente mal
escolhido, porquanto coincidiu com a minha primeira viagem à Europa. Não há
dúvida também que foi um resultado dela. Da impressão d’arte, da impressão
histórica, da impressão literária do Velho Mundo, jorrava em mim a fonte
desconhecida das Musas, que em outros têm jorrado do amor e da mocidade. Eu
trazia versos de tudo o que vira, como outros viajantes trazem pedras ou folhas de
hera do Coliseu, do Fórum, de Posilipo, de Sorrento, de Pompéia, do lago de
Genebra, de Versalhes. Esses versos, reuni-os em um volume – Amour et Dieu.
Deus no título era tudo o que restava de um longo poema da Eternidade que eu
tinha pensado em Ouchy, uma espécie de réplica teísta ao De Rerum Natura.
Quando comecei a escrever esses versos, eu ignorava regras fundamentais da
prosódia francesa, como a da alternação das rimas; em pouco tempo tinha-me
familiarizado com os segredos dos hiatos e hemistíquios. Os meus versos de Amour
et Dieu pareceram-me – a ilusão do autor é um dos mais finos estratagemas da
Criação – não direi iguais, mas semelhantes aos melhores da decadência em que a
França já tinha entrado. Esses versos valiam muito pouco. Não que fossem todos
eles maus, mas, porque o que teria realmente valor neles, se fosse um novo
caminho aberto por mim à imaginação, era de fato uma estrada já muito percorrida
por ela, uma espécie de via sacra das procissões antigas, na qual muito maiores
espíritos tinham levantado por toda a parte colunas votivas. Isso por um lado, e por
outro, porque o que neles podia soar agradavelmente era declamação poética, e não
poesia; pertenceria à retórica, ou à eloqüência, e não à arte, que em tudo é criação.
Desde que toquei na ilusão do autor, vou abrir um parêntesis para uma
reminiscência, que talvez previna os jovens poetas contra uma das ciladas mais
freqüentes no caminho da mocidade, e até da velhice, a do elogio que de qualquer
modo forçamos ou mesmo somente desejamos.
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Em 1872, quando Alexandre Dumas Filho escreveu a brochura L’Homme-
Femme terminando pelo famoso Tue-la!, publiquei no Rio de Janeiro uma carta em
francês a Ernesto Renan com o título Le Droit au Meurtre. Um amigo entregou de
minha parte um exemplar dessa brochura ao grande escritor, a quem só me faltou
tratar de divin maître. Hoje descubro, mesmo literariamente falando, os lados fracos
da maneira renaniana; naquele tempo eu era o mais inteiramente sugestionado dos
nossos renanistas. O meu emissário foi Artur de Carvalho Moreira, de quem já falei,
e a carta que ele me escreveu dando conta da sua missão, podia ter a assinatura de
Chamfort. L’Homme-Femme, segundo Renan, não era senão un méchant paradoxe
que não valia a pena refutar; une plaisanterie, que não se devia tomar ao sério.
Quando no ano seguinte fui a Paris, uma das minhas primeiras visitas foi a Renan.
Ele lembrava-se do meu nome e não se demorou em responder ao pedido que lhe
fiz de alguns momentos para apresentar-lhes as minhas homenagens. Ainda
conservo esses curtos pequenos autógrafos: “C’est moi qui serai enchanté de causer
avec vous. Tous les jours vers 10 heures, vous êtes sûr de me trouver. Votre très
affectueux et dévoué – E. Renan. Rue Vanneau, 29.” Três dias depois, eu subia os
quatro andares do nº 29 da rua Vanneau e penetrava no mesmíssimo modesto
“apartamento” que Carvalho Moreira me havia fotografado em sua carta. Dentro de
minutos me aparecia Renan. Na minha vida tenho conversado com muito homem de
espírito e muito homem ilustre; ainda não se repetiu, entretanto, para mim, a
impressão dessa primeira conversa de Renan. Foi uma impressão de encantamento;
imagine-se um espetáculo incomparável de que eu fosse espectador único, eis aí a
impressão. Eu me sentia na pequena biblioteca, diante dos deslumbramentos
daquele espírito sem rival, prodigalizando-se diante de mim, literalmente como Luís
II da Baviera na escuridão do camarote real, no teatro vazio, vendo representar os
Niebelungen em uma cena iluminada para ele só.
Dessa entrevista não saí só fascinado, saí reconhecido. Renan deu-me cartas
para os homens de letras que eu desejava conhecer: para Taine, Scherer, Littré,
Laboulaye, Charles Edmond, que devia apresentar-me a George Sand, Barthélemy
Saint-Hilaire, por intermédio de quem eu conheceria monsieur Thiers. As nossas
relações tornaram-se desde o primeiro dia afetuosas, e, naturalmente, quando
imprimi o meu Amour et Dieu, mandei-lhe um dos primeiros exemplares. Aqui está a
carta que ele me escreveu:
“Sèvres, 15 août 1874. Cher Monsieur, J’ai tardé plus que je n’aurais dû à
vous dire tout ce que je pense de vos excellents vers. Je voulais les relire et, puis,
j’espérais quelque vendredi vous voir à Paris. Oui, vous êtes vraiment poète. Vous
avez l’harmonie, le sentiment profond, la facilité pleine de grâce. Si vous voulez venir
après demain, lundi, vers trois ou quatre heures, rue Vanneau, vous serez de me
trouver; nous causerons. Je suis prêt à faire tout ce que vous voudrez pour la Revue
et les Débats. Malheureusement ces recueils sont depuis longtemps brouilles avec la
poésie. Ce sont des vers comme les vôtres qui pourraient les réconcilier. Croyez à
mês sentiments les plus affectueux et les plus dévoués. – E. Renan.”
Não é verdade que, para um jovem brasileiro que escrevia pela primeira vez o
francês, uma carta assim devia ser uma sensação de fazer época na vida? Leiam
agora esta traidora página dos Souvenirs d’Enfance et de Jeunesse, que
seguramente não fui o único a inspirar. Vou cometer o crime de traduzir Renan:
“De 1851 acredito não ter praticado uma só mentira, exceto, naturalmente, as
mentiras oficiosas e de polidez, que todos os casuístas permitem, e também os
pequenos subterfúgios literários exigidos, em vista de uma verdade superior, pelas
necessidades de uma frase bem equilibrada ou para evitar um mal maior, como o de
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apunhalar um autor. Um poeta, por exemplo, nos apresenta os seus versos. É
preciso dizer que são admiráveis, porque sem isso seria dizer que eles não têm valor
e fazer uma injúria mortal a um homem que teve a intenção de nos fazer uma
civilidade.”
A meu respeito, se uma vaga lembrança dos meus versos lhe ocorreu tanto
tempo depois ao escrever essa graciosa ironia, o grande escritor enganou-se em um
ponto: ele não me teria apunhalado dizendo que os meus versos não valiam nada,
em vez de dizer-me que eram admiráveis. George Sand escreveu-me também a
respeito do meu livro: “Il est d’une rare distinction et les nobles pensées y parlent une
noble langue”, e curiosamente, Madame Caro igualmente se referia a “l’oeuvre qui
exprime dans une noble style la plus noble sympathie pour notre malheureuse
patrie.” Todos esses cumprimentos, toda essa nobreza, eu a recolhia e guardava
preciosamente como provas de generosa amabilidade e cortesia do caráter francês.
Quanto ao valor dos meus versos, porém, a impressão que me ficou e apagou todas
as outras, foi o silêncio frio, impenetrável, entretanto polido, atencioso, simpático, de
Edmond Scherer. Contei esse episódio para acautelar o talento que se estréia contra
a perigosa sedução da eutrapelia literária. Conheço entre nós um mestre dessa arte
do espírito, Machado de Assis, mas este, espero, não fará confissões. “Quem se não
pode conformar à perda da própria honra, diz S. Filipe Néri, nunca avançará na vida
espiritual.” O escritor juvenil que não se resignar ao sacrifício da rua “honra” literária,
não fará progressos em literatura.
CAPÍTULO VIII
A crise poética
Agora, as razões pelas quais eu naufragaria sempre no verso. Se o que
estava nas páginas de Amour et Dieu fosse novo, eu poderia, de certo, orgulhar-me
do meu pensamento; ainda assim, entretanto, não seria poeta. Não era novo, porém.
Tomem-se essas quadras:
La terre est une triste et bien sombre demeure:
Pour que l’homme s’attache à ce terrible lieu,
Il faut que le poète avec lui souffre et pleure,
Et lui fasse espérer l’adoption de Dieu.
Car Dieu toujours est loin, et notre humble prière
Ne le fait poit descendre à ce séjour du mal;
En vain nous l’appelons et crions: Notre Père!
Il n’est encore pour nous qu’un soupir, l’idéal.
Se ninguém tivesse dito o mesmo antes, essa humanidade esperando a
adoção de Deus, que ainda, por enquanto, um suspiro do seu coração, seria o
gérmen de uma sedutora filosofia; aquele trecho, porém, é a tradução, em verso
fraco e mal trabalhado, do que Renan mesmo tomara aos alemães e tinha
expressado de modo perfeito na mais elegante das prosas. O que me enganava nos
meus versos, parecendo-me sonoro e elevado, não pertencia à poesia, pertenceria à
eloqüência. Aqui está uma ode à França; é a Alsácia-Lorena que fala à Alemanha:
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Tu penses arréter le sang de notre vie,
En t’emparant des rails de nos chemins de fer;
Nous avons cinquante ans pour changer de patrie,
Pour nous enrôler, tous, contents, dans la landwehr?
Ah! la force t’inspire autant de confiance
Que nous en puiserons dans le droit éternel?
Nous sommes les deux bras mutilés de la France,
Qu’elle tend toujours vers le ciel!
Mme Caro, no agradecimento que me manda, escreve: “Os dois braços
mutilados levantados para os céus, acabarão, tenho confiança, por vencer o
destino.” Os dois braços mutilados podiam ser os dois joelhos dobrados em oração,
os dois pés acorrentados, ou o fígado do Prometeu dos Vosges devorado pela águia
negra da Prússia e renascendo sempre. Tudo isto é do domínio da retórica e do
panfleto político: é um líbelo em hemistíquios como a Nemésis de Barthélemy. Nada
é mais contrário à poesia do que a ênfase, o lugar-comum e o patético da oratória.
Onde começa o advogado ou o tribuno, acaba o poeta.
O fato é que não possuo a forma do verso, na qual a idéia se modela por si
mesma e donde sai com o timbre próprio da verdadeira rima, que nenhum artifício
nem esforço pode imitar. Isto, por um lado, quanto à pequena poesia, à poesia solta,
ao que se pode chamar a música da poesia. Quanto à grande poesia, à poesia de
imaginação e criação, poema, romance, balada que fosse, para essa eu seria
incapaz, além da insuficiência do talento, pela falta de coragem para habitar a região
solitária dos espíritos criadores, os quais vivem naturalmente entre figuras tiradas de
si mesmos, sem vida própria, autômatos da sua inteligência e da sua vontade, como
em um sonho acordado. Nessa altura, onde tudo é fictício, tudo irreal, tudo
fantástico, a poesia tem para mim o terror do adytum da Pítia. Mesmo quando as
figuras sejam meigas, suaves, humanas, a criação envolve sempre alguma coisa de
misterioso e terrível; a completa abstração, que ela supõe, da realidade exterior, do
mundo dos sentidos, me daria vertigem.
Há, além da poesia de sentimento e da poesia de criação, outra poesia. O
verso é a mais nobre forma do pensamento, a mais pura cristalização da idéia, e,
como se tem dito, o que não se pode expressar em verso não vale quase a pena ser
conservado. Essa poesia, porém, que engasta as belas idéias na mais durável e
perfeita das cravações, pertence quase à espécie dos provérbios, em que se
condensa e perpetua a sabedoria humana. Em Homero ela confunde-se com a
história; em Dante com o catolicismo; em Goethe com a arte e com a ciência. Essa é
do domínio dos mais altos gênios.
A poesia ao meu alcance só podia ser a humilde nota individual; mas, como
eu disse, não encontrei em mim a tecla do verso, cuja ressonância interior não se
confunde com a de nenhum timbre artificial. Quando mesmo, porém, eu tivesse
recebido o dom do verso, teria naufragado, porque não nasci artista. Acredito ter
recebido como escritor, tudo é relativo, um pouco de sentimento, um pouco de
pensamento, um pouco de poesia, o que tudo junto pode dar, em quem não teve o
verso, uma certa medida de prosa rítmica; mas da arte não recebi senão a aspiração
por ela, a sensação do órgão incompleto e não formado, o pesar de que a natureza
me esquecesse no seu coro, o vácuo da inspiração que me falta... Ustedes me
entienden. “O artista, disse Novalis, deve querer e poder representar tudo.” Dessa
faculdade de representar de criar a menor representação das coisas – quanto mais
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uma realidade mais alta do que a realidade, como queria Goethe –, fui inteiramente
privado. Nem todos os que têm o dom do verso são por natureza artistas, e nem
todos os artistas têm o dom do verso; a prosa os possui como a poesia; a mim,
porém, não coube em partilha nem o verso nem a arte.
É singular como entre nós se distribui o título de artista. Muitas vezes tenho
lido e ouvido falar de Rui Barbosa como de um artista, pelo modo por que escreve a
prosa. No mesmo sentido poder-se-ia chamar a Krupp artista: a fundição é de
alguma forma uma arte, uma arte ciclópica, e de Rui Barbosa não é exagerado dizer,
pelos blocos de idéias que levanta uns sobre outros e pelos raios que funde, que é
verdadeiramente um ciclope intelectual. Mas o artista? Existirá nele a camada da
arte? Se existe, e é bem natural, ainda jaz desconhecida dele mesmo por baixo das
superposições da erudição e das leituras. Eu mesmo já insinuei uma vez: ninguém
sabe o diamante que ele nos revelaria, se tivesse a coragem de cortar sem piedade
a montanha de luz, cuja grandeza tem ofuscado a República, e de reduzi-la a uma
pequena pedra. Aqui está outro, José do Patrocínio, que não é também um artista,
ainda que em sua prosa se encontre o veio de ouro da poesia, filão, é certo, fugitivo,
e que se perde a cada instante na rocha política. Dela poder-se-ia extrair verdadeira
poesia; fazer com as palhetas da sua frase pelo menos uma imagem, a da loura mãe
dos cativos, assim como com o sopro da sua eloqüência de combate se faria um
baixo-relevo para um arco de triunfo: o Chant du Depart da abolição. Também ele
não tem a faculdade do verso, no qual naufragaria como naufragou no romance,
porque o seu reflexo intelectual tem a vibração e a rapidez do relâmpago, e o verso
é por natureza diamantino. Por isso mesmo também sua prosa, em que por vezes há
o toque da poesia, e quase o calor do sentimento criador, ainda não pertence à arte,
como pertence a de Chateaubriand, a de Renan, por exemplo, porque não é um
estilo. Não tem governo, tem apenas medida; reflete a ação confusa, a agitação
perpétua de uma época desequilibrada, sem um instante de calma, de eternidade,
em sua obra, no todo, genial. Agora outro muito diverso. Haverá quem não sinta a
música inata de Constâncio Alves? Este é bem da ordem dos pássaros, tem o canto;
a prosa dele gorjeia, sobe, trina; no entanto, se quisesse reduzir a uma obra d’arte a
ironia melodiosa que tem em si, que restaria dela?
Eu disse que me faltava o dom do verso. O timbre do verso reconhece-se em
qualquer quadra. Tome-se Olavo Bilac, por exemplo. Não posso falar de Luís Murat,
que tem maior voadura de imaginação, porque tenho até hoje respeitado
instintivamente o caos da sua arte; sinto que há no seu talento os elementos da
poesia, menos a ordem, o principal de todos, mas que, felizmente para ele, se
adquire, ao passo que os outros são de herança. Suas formas confusas e intricadas
parecem-me de muda, e eu o aguardo na época em que a mocidade tiver gastado a
sua violência e ele entrar no bosque das Musas levando o silêncio e a tranqüilidade
na alma. “Ele ensinou-me, disse Goethe falando de Oeser, que a beleza é
simplicidade e repouso, do que se segue que nenhum jovem pode tornar-se um
mestre.” De Murat esperarei para falar que primeiro ele encontre o seu Oeser. Tomese
Bilac, porém. Basta ler a Profissão de Fé em Panóplias, para ver que o verso
nasceu com ele, que não é um esforço, um trabalho, mas a expressão livre, franca,
natural do pensamento:
Invejo o ourives quando escrevo;
Imito o amor
Com que ele em ouro o alto relevo
Faz de uma flor.
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Não me cabe inquirir se o artifice se cingiu sempre em sua obra às regras do
ofício, que tão perfeitamente esculpiu; o buril da rima, porém, está em sua mão e
ninguém se pode enganar sobre a espécie de metal que ele é digno de lavrar.
O fato que eu queria assinalar, é somente que contraí em França neste ano
de 1873-74 a aspiração de autor, a qual se desenvolveu a contato de grandes
espíritos da época, que me acolheram como eu podia desejar, especialmente
Renan, Scherer, George Sand.
Renan me dera o conselho, que transmito à nova geração de literatos, de
entregar-me a estudos históricos. Não há em regra nada mais ingrato, mais fútil, do
que a produção que o indivíduo tira toda de si, e é o que acontece quando o talento
não tem uma profissão literária séria. Há estudos, como as humanidades, que são
apenas a habilitação do espírito para a carreira das letras: quem os tem pode dizer
que possui a ferramenta do seu ofício; além da ferramenta, há, porém, que escolher
o material. O material em que trabalham os nossos homens de letras, são os
costumes, a sociedade, quando são romancistas, ou dramaturgos; as leituras,
quando são críticos, a própria vida ou impressões, quando são poetas.
O material preferido é, como se vê, todo ele pouco consistente, efêmero, em
parte grosseiro, em parte imprestável ou insuficiente, e assim a produção é quase
toda fácil, improvisada, sem trabalho anterior, sem investigação, sem esforço, sem
tempo, sem nenhum elemento que revele continuidade, ambição. Faltando a
disciplina e a emulação de uma especialidade, que acontece? A inteligência contrai
o hábito da dissipação, da indolência, do parasitismo; o talento relava-se, perde todo
o peso específico. Temos por isso uma literatura desocupada; o nosso campo
literário é composto de flâneurs. A verdade é que vai aumentando
consideravelmente em nosso tempo o que Matthew Arnold traduziu por
inacessibilidade às idéias, e que esse novo Filistinismo reduzirá a arte dos nossos
banquetes literários a um só gênero de iguarias, o gênero nature. O público, o
protetor moderno das letras, cuja generosidade tem sido tão decantada, não passa
de um Mecenas de meia-cultura, mesmo em França e na Inglaterra. Aconselhar a
jovens brasileiros que se dediquem a estudos históricos desinteressados, é
aconselhar-lhes a miséria; mas as leis da inteligência são inflexíveis e a produção do
espírito que não se alimenta senão de sua própria imaginação, tem que ser cada dia
mais frívola e sem valor.
Não me aproveitei do conselho de Renan senão tarde demais na vida,
quando comecei a preparar a biografia de meu pai, que é uma perspectiva da época
toda de d. Pedro II. O aviso, porém, aí fica para os que quiserem desenvolver e
aperfeiçoar o talento literário que possuem, em vez de dispersá-lo e nada apurar
dele. O conselho não deixou, entretanto, de influir no meu espírito, se não para me
disciplinar a mim mesmo, ao menos para me fazer aquilatar o valor do trabalho e da
indagação e sentir a inutilidade, a vacuidade do que é puramente pessoal e
espontâneo, desde que não seja característico.
Das minhas conversas com Scherer, o que me contagiou foi a sua admiração
pelo romance inglês, que parecia ser a literatura da casa. – Adam Bede, Jane Eyre,
etc. Em mim a conquista anglo-saxônia começou por Thackeray, que li então, como
já disse, no retiro de Fontainebleau. A respeito de meus versos, o grande crítico
manteve esse silêncio desanimador dos médicos que não sabem enganar, quando
os doentes ingênuos que se fizeram auscultar, querem surpreender e penetrar com
perguntas insidiosas a realidade do seu estado.
A febre poética que se tinha apossado de mim com esse primeiro ensaio de
Amour et Dieu, não devia ceder facilmente; eu queria resgatar esse esboço, que me
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parecia inferior e imperfeito, substituí-lo, e uma idéia, que estava em gérmen em
uma de suas poesias, desprendeu-se dele e tomou em meu espírito as proporções
extravagantes de um grande drama em verso. Deste falarei mais tarde. Como se vê,
bem pouco do político militante restava depois dessa primeira viagem à Europa; eu
trocara em Paris e na Itália a ambição política pela literária, crítica, isto é, com uma
espessa camada européia na imaginação, camada impermeável à política local, a
idéias, preconceitos e paixões de partido, isoladora de tudo que em política não
pertencesse à estética, portanto também do republicanismo – porque a minha
estética política tinha começado a tornar-se exclusivamente monárquica.
CAPÍTULO IX
Adido de legação
Durante os cinco anos que seguem (1873-78), a política é para mim
secundária, quase indiferente, mas esse mesmo estado de espírito é, com relação à
monarquia, um processo de consolidação, porquanto, graças a todas essas
fascinações de artes e de poesia, a minha estética política, segundo a expressão de
que me servi, encerrava-se, isolava-se, cristalizava-se na forma monárquica. Quem
me acompanha pode estar certo de que não existe no que vou dizendo nenhuma
sombra dessa admiração pela própria imagem, a que Jules Lemaître deu o nome de
narcisismo moral. A verdade é que, entre as molas do meu mecanismo, nenhuma
teve a elasticidade e a força da que eu chamaria a mola estética. O meu juízo
estético foi, em todas as épocas, ainda o é hoje, imperfeito, instintivo, oscilante,
como uma agulha que girasse por todo o mostrador: para seguir algumas das suas
indicações, faltou-me a resolução, a força de caráter, a coragem e o espírito de
sacrifício precisos: mas, em compensação, posso dizer que, através da vida, aspirei
ao Absoluto, naufragando sempre, porque na vida da inteligência, ao contrário da
vida espiritual, onde, no dizer de um de seus grandes guias, não há nada que se
pareça com ancoradouro, há um ancoradouro, mas esse é a religião, e a religião me
pareceu, até bem pouco atrás, o remanso das mulheres e das crianças. Durante
toda a minha carreira movi-me sempre por algum magnete moral; meus erros foram
desvios de idealização; eu nunca teria podido confessar uma idéia, uma crença, um
princípio, que não fosse para mim um ímã estético. Sendo assim, se a minha
estética fosse republicana, isto é, ateniense, romana, florentina, nunca a monarquia
me teria feito despregar a sua bandeira no campo da imaginação como um cavaleiro
andante. Para sentir, sempre que a hasteei, a minha dignidade, a minha altivez, o
meu espírito expandir-se, era preciso que o signo monárquico atuasse em mim,
como uma parceria da arte que está misturada com a história e que de algum modo
a diviniza.
Esse processo de idealização, pelo qual a forma monárquica se incorporou à
minha consciência estética, se associou a minha idéia de arte, é o principal trabalho
político que se opera em mim desde o ano de 1873 até o ano de 1879, em que tomei
assento na Câmara. Nesse intervalo, eu tinha voltado à Europa e vivido um ano nos
Estados Unidos. Entram neste período as influências da Inglaterra e da sociedade
inglesa, da América do Norte e da carreira diplomática, além do desenvolvimento da
influência literária, sob a qual voltei de Paris em 1874.
Esta última foi tão forte que, nos dois anos que passei novamente no Rio de
Janeiro, não me ocupei de política; fiz, a pedido do imperador, algumas conferências
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na Escola da Glória sobre o que tinha visto de Miguel Ângelo, de Rafael e dos
grandes pintores venezianos; fui colaborador literário do Globo e travei com José de
Alencar uma polêmica, em que receio ter tratado com a presunção e a
injustiça da mocidade o grande escritor – (digo receio, porque não tornei a ler
aqueles folhetins e não me recordo até onde foi a minha crítica, se ela ofendeu o
que há profundo, nacional, em Alencar: o seu brasileirismo); escrevi numa revista
que apareceu e logo morreu no gênero da Vie Parisienne, a Epocha, e, desde os
fins de 1875, entreguei-me à composição de um drama, em verso francês cuja fatura
me absorveu durante mais de dois anos.
A idéia do meu drama era o problema da Alsácia-Lorena. Isso revelava bem o
fundo político da minha imaginação. A política, felizmente para a inteligência que
nasceu com essa diátese, tem lados ainda indefinidos que confinam com a arte, a
religião e a filosofia, isto é, para falar a linguagem hegeliana, com as três esferas em
que se manifesta o espírito do mundo. O meu drama com ser francês, de
precedência, de motivo sentimental, elevava-se, como composição literária, acima
do espírito de nacionalidade, visava à unidade da justiça, do direito, do ideal entre as
nações, e baseava-se no seu entrecho sobre as afinidades e simpatias que ligaram
a França intelectual moderna à Alemanha de Klopstock, Winckelmann, Jean Paul
Richter, Johannes Muller, de Novalis e dos Schlegel, de Kant, Fichte, Hegel,
Schelling, de Bach, Gluck, Haydn, Mozart, Schubert, Schumann e Beethoven, em
uma palavra, à alma parens do século 19.
Por uma aparente anomalia, ao passo que eu era politicamente, como disse,
thierista ou republicano em França, o meu drama saía todo legitimista e católico; os
personagens eram tirados para mim, não por mim (a produção intelectual é
involuntária), da velha rocha em que se estratificaram as grandes tradições
francesas. Isso quer dizer que o inconsciente, que é em qualquer de nós o nosso
único talento, o nosso único poder criador, era em mim, qualquer que fosse a causa,
fosse ela o instinto, fosse a cultura, distintamente monárquico.
Uma composição literária assim caracterizada não podia deixar de ser para o
meu espírito uma forte modelação política. Para não voltar a falar desse drama, cuja
única qualidade é, talvez, ser inédito, contarei desde já que, depois de o fazer e
refazer, copiá-lo e tornar a copiá-lo, acabei-o em 1877, em Nova York. Tenho no
meu Diário desse ano a data em que, depois de uma jantar, com egoísmo inflexível
de autor, infligi a leitura desses cinco atos a um pequeno comité de amigos de que
fazia parte o barão Blanc, então ministro da Itália em Washington, ultimamente
ministro de Estrangeiros. Ele me terá perdoado esse sacrifício, ao qual ele mesmo
se ofereceu. O enigma europeu da Alsácia-Lorena, que é o fundo da tríplice aliança,
lhe terá imposto na Consulta serões mais penosos e fatigantes do que aquela
assentada do Buckingham Hotel.
A indiferença política em que me achava, a predisposição literária que acabo
de descrever, fez-me entrar para a diplomacia em 1876. Eu tinha perdido 5 anos
desde a formatura, mas nesses 5 anos não me teria ocorrido aceitar qualquer posto
das mão de um ministro conservador, eu liberal. O preconceito, o extremo partidário,
impediam essa apostasia. Nesse intervalo, porém, a intransigência se tinha gastado
toda e agora me parecia plausível a idéia, que nunca antes me viera, de que os
cargos públicos não são monopólio do partido que está no poder e devem ser
confiados a quem melhor os pode desempenhar. Nem era pretensão da minha parte
pensar que um lugar de adido de legação estava ao nível da minha capacidade e
situação social. Era, pelo contrário, uma sensível redução de pretensões anteriores,
porque, ao sair da Academia, creio que só o lugar de ministro me teria contentado. A
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ambição em mim foi-se progressivamente restringindo à medida que fui vivendo.
Não quero dizer que se tenha deslocado do pessoal para o real, do efêmero para o
duradouro, isto é, que se tenha gradualmente elevado; graças a Deus, porém, na
esfera das competições que formam a luta pela vida ela nunca deu combate a
ninguém.
Talvez eu tenha sentido um pouco a desdenhosa voluptuosidade do
provérbio: “as glórias que vêm tarde já vêm frias”. Como a ambição foi em mim toda
de imaginação e despontou pelos meus dezoito ou vinte anos, nada podia ter vindo
para mim que não chegasse tarde. Do ponto de vista em que me coloco hoje, sinto
bem que o pouco que me tocou, veio a tempo, no momento em que eu estava apto
para o receber, e que o que não veio, deixou de vir porque não me convinha ainda, e
eu teria naufragado. A impaciência da mocidade, porém, não me deixava apreciar
então a generosidade do veto da Fortuna, que me excluía do que eu não estava
interiormente preparado para aproveitar. Nesse tempo, eu não tinha a menor idéia
de que uma grande vida pública precisa ser alumiada, como a arquitetura de Ruskin,
entre outras pelas lâmpadas do sacrifício, da verdade, da imaginação, da beleza e
da obediência. O talento, a forma, a eloqüência, o que tinha brilho exterior, tinha
para mim maior valor do que o espírito interior de fé, continuidade e submissão, que,
único, inspira e forma os verdadeiros padrões humanos.
Como quer que seja, tenho daquele cargo de adido de legação, único que
exerci, a mais reconhecida e afetuosa lembrança. Nunca mais teria eu podido aceitar
outro; com efeito, pouco depois entrava para a Câmara, e dava-se a minha
incompatibilidade de abolicionista militante com o sistema político da escravidão, e,
acabada esta, logo em seguida, surgia para mim outra abstenção forçada: a da
defesa da monarquia contra os partidos. O signatário daquele decreto foi o barão de
Cotegipe. A nomeação não era de certo escandalosa; em qualquer Ministério de
Estrangeiros onde não existisse patronato, eu tiraria o meu lugar de adido em
concurso: não tenho, porém, em mim essa medida da gratidão com que outros
apuram por milímetros o favor ou o serviço que recebem; não conheço a arte de
analisar, de decompor, pelas intenções secretas e circunstâncias fortuitas, o
obséquio, a distinção, o benefício que nos é feito, de modo a ser o aceitante às
vezes quem generosamente cativa e obriga o doador. Se o barão de Cotegipe me
tivesse nomeado de vez ministro plenipotenciário, o seu crédito contra mim não teria
sido maior do que foi com essa designação para o primeiro degrau da carreira
diplomática.
CAPÍTULO X
Londres
Talvez eu pudesse resumir o processo da minha solidificação política, dizendo
somente que a monarquia faz parte da atmosfera moral da Inglaterra e que a
influência inglesa foi a mais forte e mais duradoura que recebi.
Quando pela primeira vez desembarquei em Folkestone, entrando na
Inglaterra, eu tinha passado meses em Paris, tinha atravessado a Itália, de Gênova a
Nápoles, tinha parado longamente à margem do lago de Genebra, e não me podia
esquecer da suave perspectiva, à beira do Tejo, de Oeiras a Belém, cuja tonalidade
doce e risonha nunca outro horizonte me repetiu. Por toda a parte eu tinha passado
como viajante, demorando-me às vezes o tempo preciso para receber a impressão
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dos lugares e dos monumentos, o molde íntimo da paisagem e das obras de arte,
mas desprendido de tudo, na inconstância contínua da imaginação. Quando avistei,
porém, da janela do wagon, por uma tarde de verão, o tapete de relva que cobre o
chão limpo e as colinas macias de Kent, e no dia seguinte, partindo do pequeno
appartment que me tinham guardado perto de Grosvenor Gardens, fui descortinando
uma a uma as fileiras de palácios do West End, atravessando os grandes parques,
encontrando em St. James’ Street, Pall Mall, Piccadilly, a maré cheia da season,
essa multidão aristocrática que a pé, a cavalo, em carruagem descoberta, se dirige
duas vezes por dia para o rendez-vous de Hyde Park, e, dias seguidos, penetrei em
outras regiões da cidade sem fim, conhecendo a população, a fisionomia inglesa
toda, raça, caráter, costumes, maneiras, – posso dizer que senti minha imaginação
excedida e vencida. A curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo
de parar ali para sempre.
Às vezes me distraio a pensar que povo eu salvaria, podendo, se a
humanidade se devesse reduzir a um só. Minha hesitação seria entre a França e a
Inglaterra, – aliás, sei bem que no começo do século quem eliminasse a Alemanha
do movimento das idéias, da poesia, da arte, eliminaria o que ele teve de melhor.
Entre a França e a Inglaterra, porém, fico sempre incerto. O meu dever seria, talvez,
socorrer a França. “Se madame Récamier e eu estivéssemos a nos afogar, qual de
nós duas o senhor salvaria?” – perguntou uma vez madame de Staël ao seu amigo
Talleyrand. “Oh! madame,vous savez nager.” A Inglaterra, também, sabe nadar.
O gênio francês tem todos os raios do espírito humano, principalmente os
raios estéticos; o gênio inglês não os tem todos, tem até uma opacidade singular nos
focos do espírito, que merecem o nome de franceses, em quase todos os que
merecem o nome de atenienses. A Inglaterra – a associação de idéias tem sido
muitas vezes feita, – é a China da Europa; isto é, tem uma individualidade
inamolgável, incapaz de tomar a fisionomia comum. Latinos, alemães, eslavos
formarão uma só família, por muitíssimos traços comuns, antes que o inglês deixe
de ser um tipo sui generis, à parte do tipo coletivo europeu. Por esse motivo, a
França, só, representaria melhor a humanidade do que a Inglaterra; há nela mais
atributos universais, maior número de faculdades criadoras, de qualidades de tronco,
maior soma de hereditariedade humana, de possibilidades evolutivas portanto, do
que no particularismo e no exclusivismo inglês. Em compensação, a raça inglesa
parece ser mais sã, mais elástica; ter maior vigor mesmo de gênio e de criação;
maior provisão de vida e de força, – ainda que a força sem a imaginação e a cultura,
(que na Inglaterra tem sido, em grande parte pelo menos, estrangeira), possa
degenerar em brutalidade e egoísmo. Estão aí as razões da minha hesitação,
quando imagino um novo dilúvio universal e me pergunto que país, nos mais altos
interesses da inteligência humana, mereceria o privilégio de construir a arca.
Qualquer que seja a explicação, o fato é que nunca experimentei esse prazer
de viver em Paris, que foi e é a paixão cosmopolita dominante em redor de nós. A
grande impressão que recebi não foi Paris, foi Londres. Londres foi para mim o que
teria sido Roma, se eu vivesse entre o século 2 e o século 4, e um dia, transportado
da minha aldeia transalpina ou do fundo da África Romana para o alto do palatino,
visse desenrolar-se aos meus pés o mar de ouro e bronze dos telhados das
basílicas, circos, teatros, termas e palácios; isto é, para mim, provinciano do século
19, foi, como Roma para os provincianos do tempo de Adriano ou de Severo: a
Cidade. Essa impressão universal, da cidade que campeia acima de todas, senhora
do mundo pelo milliarium aureum, o qual no século tinha que ser marítimo; essa
impressão soberana, tive-a tão distinta como se a humanidade estivesse ainda toda
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centralizada. O efeito dessa impressão de domínio foi uma sensação de finalidade,
que somente Londres me deu: – não de finalidade intelectual, como dá a Atenas de
Péricles, a Florença dos Médicis, a Roma de Leão X, ao homem de arte. a Versalhes
do século 17 ao homem de corte, a Roma das Catacumbas ao homem de fé, a
Roma antiga ao homem do passado, Niebuhr, Chateaubriand, Ampère, a pequena
Weimar do fim do século 18 ao homem de letras, ou Paris, ainda neste século, até
Renan e Taine, ao homem de cultura; finalidade material, se me posso expressar
assim, de grandeza esmagadora e império ilimitado.
Donde procede essa impressão universal de Londres, seguida dessa
sensação de finalidade, que talvez seja toda subjetiva? (Não me parece entretanto.)
O que dá à “Metrópole” esse ascendente imperial, quero crer, é a sua massa
gigantesca, as suas perspectivas indefinidas, a solidez eterna, egipcíaca, das
construções, as imensas praças, e os parques que se abrem de repente na
embocadura das ruas, como planícies onde poderiam errar grandes rebanhos, à
sombra de velhas árvores, à beira de lagos que merecem pertencer ao relevo natural
da Terra. Este último é, para mim, o traço dominante de Londres: o estrangeiro
suporia ter entrado no campo, nos subúrbios, quando está no coração da cidade; é a
mesma impressão, porém, incalculavelmente mais vasta, que dava a Casa de Ouro:
“O ouro e as pedras preciosas não causavam tanta maravilha, por serem já muito
vulgares, e uma ostentação ordinária do luxo, como os campos e os lagos, e por
uma parte as artificiais solidões e desertos, formados por bosques espessos, e por
outra, as largas planícies e longas perspectivas, que dentro do seu imenso círculo se
viam.”
Nem pára aí o assombro. E a larga faixa do Tâmisa, com as pontes colossais
que o atravessam e os monumentos assentados à sua margem desde Chelsea até a
Ponte de Londres, principalmente o maciço dos edifícios de Westminster, a extensa
linha das casas do Parlamento, a mais grandiosa sombra que construção civil
projeta sobre a terra. É, por outro lado, a City, em roda do Banco de Inglaterra, com
o Royal Exchange ao lado, e Lombard Street defronte, o mercado monetário, o
verdadeiro comptoir do mundo. Aqui, nas ruas calçadas a madeira, para ainda mais
amortecer o ruído, causa uma impressão singular a multidão que não perde um
minuto, indiferente a si mesma, à qual nada distrairia o olhar nem arrancaria uma
sílaba, e que transporta debaixo do braço, em suas carteiras, massas de capital que
seriam precisos wagons para carregar em dinheiro, os cheques que vão para a
Clearing-House, os bilhões esterlinos, que por ela passam, transferidos de banco a
banco, importados, reexportados , pelo telégrafo para os confins do mundo donde
vieram. O transeunte pára no meio de todo esse luxo e refluxo do ouro, sentindo não
ouvir o tinido das libras; as oscilações contínuas, subterrâneas, dessas correntes
contrárias de metal ele só conhecerá pelo seu efeito sensível: a taxa do desconto.
O que dá também a Londres o seu tom de majestade e soberania é a
dignidade, o silêncio que a envolve; a calma, a tranqüilidade, o repouso, a confiança
que ela respira; é o ar concentrado, recolhido, severo por vezes da sua fisionomia, e,
ao mesmo tempo, a urbanidade das suas maneiras; é o retiro em que se vive no seio
dela, no centro das suas ruas mais populosas; o isolamento em que se está nas
suas catedrais, como no British Museum, nos seus parques, como nos seus teatros
ou nos seus clubes. Esse traço de seriedade e de reserva define, a meu ver, uma
raça imperial, energética e responsável, cônscia da sua força, viril e magnânima.
Além disso, há uma feição notável, característica, expressão suprema de força e de
domínio; não é uma cidade cosmopolita essa metrópole do mundo: é uma cidade
inglesa.
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Paris ao lado de Londres é uma obra de arte, imortalmente bela, ao lado de
uma muralha pelásgica; é um Erechteion, em frente ao Memmonium de Tebas. De
certo não há no mundo uma perspectiva arquitetural igual à que se estende do Arco
do Triunfo pelos Campos Elísios até o Louvre pelo cais do Sena até apanhar Notre-
Dame. Em Londres, não se tem essa impressão de arte que corre por cima da velha
Paris toda como um friso grego. Para o artista que precisa inspirar-se exteriormente
nas formas da edificação, viver no meio do belo realizado pelo gênio humano.
Londres está para Paris como Khorsabad para Atenas. O gênio francês alegre e
festivo é em tudo diferente da grande apatia inglesa, e em Paris se está defronte da
obra-prima da arte francesa. Por aí não há que comparar. Para o intelectual que
precise diariamente de um passeio artístico para vitalizar-se, assim como para o
homem de espírito e de salão, Paris é a primeira das residências, porque é a que
reúne à arte o prazer de viver em suas formas mais delicadas e elegantes. Não há
nada em Londres que corresponda à aspiração francesa, hoje decadente e muito
esvaecida, de fazer da vida toda uma arte, aspiração cuja obra-prima foi a polidez do
século 17 e o espírito do século 18. Deixando a grande arte que tem cometido
infidelidades ao gênio francês, como a de produzir fora de França Goethe,
Beethoven e Mozart, as pequenas artes, – e não chamo pequena arte à obra dos
grandes ebanistas, incrustadores, cinzeladores do móvel, de Riesener, Boulle,
Beneman, Gouthière, – as pequenas artes são ainda exclusivamente francesas,
como na Roma de Cícero eram gregas. O que há em Londres como prazer da vida,
não é a arte, é o conforto; não é a regra, as medidas, o tom das maneiras, é a
liberdade, a individualidade; não é a decoração, é o espaço, a solidez. Paris é um
teatro em que todos, de todas as profissões, de todas as idades, de todos os países,
vivem representando para a multidão de curiosos que o cercam; Londres é um
convento, em forma de clube, em que os que se encontram no silêncio da grande
biblioteca ou das salas de jantar não dão fé uns nos outros, e cada um se sente
indiferente a todos. Em Paris, a vida é uma limitação; em Londres, uma expansão;
em Paris um cativeiro, cativeiro da arte, do espírito, da etiqueta, da sociedade,
cativeiro agradável como seja, mas sempre um cativeiro, exigindo uma vigilância
constante do ator sobre si mesmo diante do público, que repara em tudo, que nota
tudo; em Londres é a independência, a naturalidade , a despreocupação. Ceci tuera
cela.
Foi, talvez este lado da vida inglesa o que me seduziu. A impressão artística
é, por sua natureza, fatigante, exclusiva, e, além de certo diapasão, inconfortável,
como toda vibração demasiado forte. Eu não quisera ser condenado a passar uma
hora por dia diante da Jaconde, nem mesmo diante da Vênus de Milo. Para renovar
a minha curta faculdade de admirar e de gozar da obra de arte, preciso de longos
intervalos de repouso, para dizer a verdade, de obtusão. Londres era essa
penumbra que quadra admiravelmente à minha fraca pupila estética; ali tinha à
minha disposição, excusez du peu, os mármores de Fídias; não havia época artística
ou literária que, querendo viver na meia hora, – de mais não me sentiria capaz, – eu
não achasse representada no British Museum, na National Galery, em South
Kensington, e nas outras grandes coleções nacionais. Essa proximidade bastavame;
quanto a tudo mais que faz o prazer da vida, eu preferia, como disse, a
naturalidade, a calma, o descanso, as grandes perspectivas, o isolamento, o
esquecimento de Londres à constante vibração de Paris, vibração cosmopolita de
espírito, de prazer, de arte, através de uma atmosfera de luxo, de combate e de
teatro.
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Eu sei bem que há ali outra vida; que há indiferentes, solitários, reclusos na
grande capital, pequenos claustros de silêncio e de meditação, onde não chegam
até ao pensador e ao artista os ruídos de fora. Sem isso, Paris não produziria o
grande pensamento; mas a viver isolado do movimento de Paris, antes estar
separado dele pela Mancha do que pelo Sena, como o meu amigo Rio Branco, que
se fechava na margem esquerda, com a sua biblioteca brasileira, as suas provas a
corrigir, e os seus íntimos do Instituto.
O fato é que amei Londres acima de todas as outras cidades e lugares que
percorri. Tudo em Londres me feria uma nota íntima de longa ressonância: as suas
extensas campinas e os seus bosques, como o tijolo enegrecido das suas
construções; o movimento atordoador de Regent Circus ou Ludgate Hill, como os
recessos de Kensington Park, à sombra do arvoredo secular; os seus dias quentes
de verão, quando o asfalto amolece debaixo dos pés, a folhagem se cobre de
poeira, e o ar tem o calor seco das termas, como os seus deliciosos dias de maio e
junho, quando as mais altas janelas se transformam em jardins suspensos, e as
grandes cestas dos parques se enchem de tulipas e jacintos; as suas noites de luar,
que faziam Park Lane parecer-me às vezes na névoa, com a sua rua de palácios,
um trecho de Veneza, e que de Piccadilly olhando por cima da bruma de Green-Park
para a iluminação em roda de Buckingham Palace, me davam sempre a ilusão do
outro lado da baía do Rio, visto da esplanada da Glória, como os seus dias escuros
e tristes de nevoeiro, que eu não teria então trocado pelo azul do Mediterrâneo nem
pela pureza do céu da Ática; os seus traços de maior cidade do mundo, a esplêndida
beleza da sua raça, e os menores detalhes de sua fisionomia própria; os
mostradores das lojas de luxo de Piccadilly e New-Bond-Street, como os hansoms
que paravam em frente; o Times, a Pall Mall Gazette, o Spectator, como o papel
aveludado, o tipo, grande e claro, o couro liso, macio, dourado dos livros; a
tranqüilidade dos clubes, o recolhimento das igrejas, o silêncio dos domingos, como
a confusão, o movimento, o atropelamento em Charig-Cross e Victoria Station, da
onda imensa de todas as classes e todas as cidades, que se espalha de Londres, à
tarde do sábados, para as praias de mar, para as casas de campo, para as margens
do Tâmisa.
Tudo isso, eu vejo bem, não era senão a minha própria mocidade... com a
diferença talvez de que os outros lugares, era ela que os coloria, os animava, os
assimilava a si, ao passo que em Londres ela transbordava naturalmente pelo jorrar
de todas as suas fontes.
Esse sentimento paguei-o caro depois, porque foi em Londres que senti
definhar mortalmente a planta humana que há em cada um de nós e sobre a qual o
nosso espírito apenas pousa, como o pássaro no mais alto da ramagem: as suas
raízes físicas e morais precisavam do solo em que ela se tinha formado; as suas
folhas, do nosso sol. Ainda assim, foi a Londres que vim a dever, anos mais tarde,
uma restituição que bem compensou aquele deperecimento. Foi em Londres, graças
a uma concentração forçada, a qual não teria sido possível para mim senão em sua
bruma, que a minha inteligência primeiro se fixou sobre o enigma do destino humano
e das soluções até hoje achadas para ele, e, insensivelmente, na escondida igreja
dos Jesuítas, em Farm Street, onde os vibrantes açoites do padre Gallway me
fizeram sentir que a minha anestesia religiosa não era completa , depois no Oratório
de Brompton, respirando aquela pura e diáfana atmosfera espiritual impregnada do
hálito de Faber e de Newman, pude reunir no meu coração os fragmentos
quebrados da cruz e com ela recompor os sentimentos esquecidos da infância.
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CAPÍTULO XI
Grosvenor Gardens
Falei de Londres como se fosse para mima cidade única, porque Londres
reuniu em uma só impressão as sensações diferentes que me causaram, ou vieram
a causar, Paris, Roma, Pisa, Veneza, Nova York, Boston, Washington. É preciso,
para cada um desses nomes, fazer um transporte, de raça, clima, arte, passado,
para se ter a impressão inglesa equivalente; mas eu pretendo ter tido em Londres a
sensação: de vida suprema que se tem em Paris, de encantamento que se tem em
Roma ou Florença, de morte radiante que se tem em Pisa, de poder marítimo e
solidez que se tem em Veneza, de opulência, mocidade, e beleza humana que se
tem em Nova York, de silêncio, distinção intelectual que se tem em Boston, de
instituições civis e indestrutíveis e gigantescas que se tem em Washington diante do
Capitólio. Tudo isso transportado, eu já disse, fazendo-se, por exemplo, a redução
da impressão do fórum para a da torre de Londres, ou do catolicismo para o
protestantismo, como quem dissesse do papa para o arcebispo de Cantuária, ou do
Vaticano para Lambeth Palace.
Não pertenço ao número dos solitários, dos fortes, que bastam a si mesmos e
podem viver consigo só de arte, de história, de paisagem, de pensamento. Londres
com a sua grandeza, o seu império, os seus vastos horizontes interiores, as suas
estátuas, o seu friso do Parthenon, os seus touros alados da Assíria, os seus
Cartões de Raphael, teria sido para mim uma solidão asfixiante, se eu não tivesse
encontrado no meio dela um círculo íntimo onde descansar a imaginação da
acuidade, da plenitude de todas aquelas impressões. Sem um mediador plástico, eu
não teria ficado ali, apesar de todas as minhas afinidades. Se eu tivesse que definir
a felicidade, diria que é a admiração, o sentimento do que é belo em conta de
participação com os que nos são harmônicos. O elo de união foi para mim 32,
Grosvenor Gardens.
Não tenho espaço nestas páginas para colocar os retratos do dono e da dona
da casa. Só direi do primeiro, nas suas roupas de doutor de Oxford, que o seu molde
diplomático está para o Brasil tão irreparavelmente perdido como para Veneza o dos
seus embaixadores dos séculos 16 e 17. Da baronesa de Penedo basta-me dar este
traço: vivendo por mais de trinta anos com a corte e a sociedade inglesa, ela não
pôs nunca no segundo plano as suas amizades ainda as mais humildes e exerceu
sempre a hospitalidade da sua mansão de Londres à boa moda de nosso país, com
a mais igual afabilidade para todos, o que bem mostra a altivez de raça de uma
Andrada.
Entre os íntimos de Grosvenor Gardens eu vinha encontrar Rancés, marquês
de Casa la Iglesia, o mais belo homem de seu tempo, que não sei se não terá
fundado em expiação do seu perfil, alguma Trappa na Andaluzia; o marquês
Fortunato, que representava a realeza extinta de Nápoles tão fielmente como se
Francisco II ainda habitasse Capodimonte; o velho John Samuel, que nos contava
histórias do velho Brasil, tendo vivido e dirigido a moda no Rio de Janeiro no tempo
de Pedro I; outro velho, Saraiva, o dicionário português de Londres, verão e inverno
em um casacão que lhe descia até os pés, a longa barba inculta, a pele entalhada
como um retábulo espanhol, com um montão de livros debaixo do braço e em cada
bolso, primeiro e último amigo de dom Miguel na Inglaterra, e que desde 1834 se
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consolava do desterro, da pobreza, do frio de Londres com os seus alfarrábios e os
seus ouvintes.
Encontrei ali ainda Mr. Clark, o famoso correspondente do Jornal do
Comércio, a quem depois sucedi, a bête noire de Zacarias, um desses old
gentlemen que a Inglaterra pode mandar ao estrangeiro, com certificado, como
espécime nacional, porque nada do que é essencialmente inglês, perfil, caráter,
tradição, maneira, preconceito, humor, orgulho insular, deixaria de estar
representado neles; Pellegrini, o caricaturista de Vanity Fair, um dos artistas
napolitanos que invadiram com a sua loquacidade alegre, o seu riso comunicativo, a
sua mímica irresistível, a fria e reservada sociedade inglesa e tomaram conta dela.
Devo também citar Mr. Youle. Este há cinco anos serve em Londres de
correspondente aos seus amigos do Brasil e de Portugal; a todos hospeda,
agasalha, enche de obséquios, dando-se o incômodo de ir até a Alemanha por um
rapaz que o pai quer colocar em uma casa de Hamburgo; tomando o trem de Calais,
mal acaba de chegar da Escócia ou de Manchester, para deixar no Sacré Coeur de
Paris uma menina que não quer continuar em Rohampton; indo a Lisboa, e, se
preciso for, à Madeira para acompanhar um doente que foge do inverno inglês;
pronto sempre, incansável nas suas funções de provedor de brasileiros e
portugueses na Inglaterra, há meio século, e além disso o oráculo na City, nos
grandes bancos, quando se trata de interesses comerciais dos dois países.
Esses eram alguns dos íntimos de 1874-76, período a que me refiro, sem
contar os brasileiros que ali se achavam no Brasil. Em períodos anteriores sei que o
foram entre outros Musurus Pachá e o infante don Juan, pai de d. Carlos de
Espanha; o dr. Gueneau de Mussy, médico fiel da família de Orleans desterrada, e o
republicano Dupont, proscrito do Império, companheiro de Ledru-Rollin e de Louis
Blanc, o velho barão Leonel de Rothschild, o marquês do Lavradio, modelo dessa
distinção e urbanidade portuguesa que parece requintar sobre todas as outras
aristocracias.
A Legação do Brasil estava naquele tempo no seu maior brilho: pertencia ao
número das casas que tinham o privilégio de receber a realeza, isto é, o príncipe e a
princesa de Gales. Muitos argumentos me foram apresentados na mocidade em
favor da monarquia; nenhum, porém, teve para mim a força persuasiva, a evidência,
destes dois, um que me foi formulado no Pincio, outro que me foi formulado no Hyde
Park: a princesa Margarida de Sabóia e a princesa de Gales. A republicanos de boa
fé estética – ponhamos tanto os bárbaros como os anacoretas de parte – eu não
quisera apresentar outros. A monarquia moderna faria bem para sustentar-se em
promulgar a lei sálica em sentido contrário, isto é, em neutralizar ainda mais o poder
neutro, estabelecendo a realeza exclusiva das mulheres. Seria isso fazer política
experimental, que não se basearia somente no esplêndido e pacífico jubileu da
rainha Vitória e na calma relativa em tempos cruéis para a Espanha da regência de
d. Maria Cristina, mas no profundo interesse das massas pelos dramas de que a
primeira figura é uma mulher. A entrada triunfal em Paris dos restos de Napoleão
nunca fará um quadro como o que Tácito nos deixou do Campo de Marte, no “dia
maravilhoso” em que foram depositadas no túmulo de Augusto as cinzas de
Germânico traduzidas por Agripina. Se ao prestígio da posição se alia na mulher a
irradiação da mocidade e da beleza, pode-se dizer que ela tem no cetro um condão
de fada. A formosura das rainhas tem, quando é perfeita, um reflexo seu exclusivo,
combinação de bondade e soberania, de encanto pessoal e grandeza nacional, de
dependência, tremor mesmo, do Destino, e proteção e amparo para os que se
acolhem ao seu manto, que forma a dupla projeção, ascendente e descendente, do
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povo para o trono e do trono para o povo, que na ordem espiritual fez a Rainha dos
Anjos comparar-se a si mesma com o arco-íris. Além da família real de Inglaterra e
da alta sociedade de Belgrávia e Mayfair que a cerca vinham à Legação príncipes
estrangeiros reinantes ou destronados, como esse jovem príncipe imperial,
azagaiado na Cafraria, e cuja morte, tão inglória que parece predestinada, me faz
sempre lembrar a de Saldanha em Campo Osório.
Era para tal sociedade que o famoso Cortais, inspirando-se nas glórias dos
grandes cozinheiros, formava o cortejo dos seus pratos arquitetônicos, verdadeiras
obras-primas com que depois pretendeu, segundo me disseram, arruinar a coroa de
Itália. Ouvi também que ele, seguindo ainda nisso as tradições dos mestres da arte,
mostrara uma vez o seu reconhecimento servindo em um dos banquetes do Quirinal
uma composição sua inscrita no cartão real – à la Penedo. Naquele dia o diplomata
brasileiro há de ter dito, como Chateaubriand, quando deram o seu nome a um
beefsteak: “Agora, sim, não posso mais morrer”.
Uma dessas representações de monsieur Cortais diante de testas coroadas
com toda a encenação que reclamava, inclusive o grupo de belezas profissionais da
alta sociedade inglesa, não podia deixar de apagar de todo no espírito de um jovem
adido de Legação brasileiro o prestígio, se o conservavam, das decapitações reais
da Convenção ou de Witehall.
Não me tomem por um sibarita, porque me inclinei diante de um grande chefe
como diante de um artista. “Il en faudrait au moins un à l’Institut”, dizia Talleyrand.
Entre o festim de Trimalcião e um menu composto por um estilista francês, há, como
entre a dança das alméias e o minuete a longa distância de civilização que separa a
sensualidade da elegância.
De todos os sentidos é realmente o paladar o menos intelectualizável, o que
admite menor grau de ascetismo. Mesmo a taça de bouillon servida de Maintenon
em Saint-Cyr ou a taça de chá preto que conforta a rainha Vitória no terraço de
Osborne é sempre um gozo material; não pode sofrer a transformação por que
passa até tornar-se uma pura saudade o aroma das rosas e das violetas. O
idealismo de que é suscetível a cozinha artística revela-se em não ser
principalmente ao sabor que ela visa: a sua ambição seria deixar ao paladar uma
sensação vaga, leve, imaterial, quase apenas de um perfume, como a do buquê no
vinho, à vista, porém, a impressão durável de um quadro, de uma natureza morta
pintada por um mestre. Que ingrato colorido, porém, o dos seus molhos, dos seus
cremes nevados, das suas gelatinas e primeurs!
Há, entretanto, poesia real, verdadeira, no alimento são, natural, pátrio; há
sentimento, tradição, culto de família, religião, no prato doméstico, na fruta ou no
vinho do país. A nós, do norte do Brasil, criados em engenhos de cana, o aroma que
rescende das grandes caldeiras de mel nos embriaga toda a vida com a atmosfera
da infância. E assim como há poesia na cozinha de cada país, há um quid de arte na
cozinha ornamental, cozinha de refinamento, que se procura elevar pelo desenho e
pela forma até o motivo do banquete, – e fazer história, fazer política...
O leitor me perdoará a confissão, mas eu não devia calar em minha formação
a influência mundana estrangeira, a influência aristocrática, artística, suntuária que
descrevi. Assim como a notei em um banquete real em Grosvenor Gardens, poderia
notá-la em um baile dos Astors em Nova York; é a mesma impressão de uma tarde
de corso na Villa-Borghese, de uma manhã de drawing room em Londres, do grande
dia de corridas em Ascot; a mesma do jubileu da rainha em Westminster e do jubileu
de Leão XIII no Vaticano. Não posso negar que sofri o magnetismo da realeza, da
aristocracia, da fortuna, da beleza, como senti o da inteligência e o da glória;
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felizmente, porém, nunca os senti sem a reação correspondente; não os senti
mesmo, perdendo de todo a consciência de alguma coisa superior, o sofrimento
humano, e foi graças a isso que não fiz mais do que passar pela sociedade que me
fascinava e troquei a vida diplomática pela advocacia dos escravos.
O fato, entretanto, é este: se eu fosse somente capaz da impressão política,
social, a escravidão, a oligarquia dos partidos, e minha falsa compreensão do papel
do imperador e da função monárquica, ter-me-iam talvez, depois da morte de meu
pai, feito queimar o meu Bagehot e alistar-me sob a bandeira norte-americana. Se,
por outro lado, no momento de que dependia a minha carreira, eu tivesse tido
exclusivamente a impressão de arte, teria, quem sabe, igualmente inclinado em
política para a República. É como explico em Portugal o republicanismo de Ramalho
Ortigão, Bordallo Pinheiro, Oliveira Martins, em suas estréias: como uma revolta
contra o caráter inestético da instituição, do reinado em que desabrocham; é assim
que explico entre nós o republicanismo de Castro Alves, de Ferreira de Menezes, do
meu Pedro de Meirelles, de Salvador de Mendonça, de Quintino Bocaiúva, de
Lafayette Rodrigues Pereira, de Pedro Luís, e outros. O que me impediu de ser
republicano na mocidade foi muito provavelmente o ter sido sensível à impressão
aristocrática da vida.
CAPÍTULOXII
A influência inglesa
A impressão mundana, aristocrática, era para mim uma influência política
puramente negativa, como o tinha sido a impressão artística da Itália ou a impressão
literária de Paris. O efeito da sociedade, como o das artes e das letras, não era outro
senão o de impedir o desenvolvimento do gérmen revolucionário que as leituras
francesas dos vinte anos tinham deixado em meu espírito. Sem aquelas influências,
entregue a meus próprios impulsos, do mesmo modo que meu liberalismo inato
degenerou em radicalismo, – o qual foi em mim um puro fenômeno de estagnação
em um espaço político fechado, – o radicalismo teria degenerado em
republicanismo.
Um distinto escritor, que costumo encontrar na Revista Brasileira, o dr. Pedro
Tavares, dessa ordem de republicanos a que chamarei prematuros, mais de uma
vez me tem estranhado o que chama o desvio de minha evolução política. Para ele o
liberalismo desenvolve-se, completa-se, termina, naturalmente, pelo republicanismo.
Terá ele, porém, certeza de que Mirabeau, se vivesse, havia de figurar na
Convenção? A crítica é igual à que se fizesse, por exemplo, a Lafayette, por não ter
abraçado a República em França depois de ter ajudado a fundá-la na América. O
fato é que no republicanismo, falo do sincero, do verdadeiro, há um ideal, mas há
também um ressentimento das posições alheias, como no socialismo, no
comunismo, no anarquismo há ideal, mas há também inveja, e desta é que parte,
quase sempre, o impulso revolucionário.
Sem as influências negativas da imaginação, eu teria sido talvez levado até à
República, como tantos que depois se arrependeram; aquelas influências me
contiveram somente porque me desviaram, ou me distraíram da política. Eu era,
porém, por natureza, um temperamento político. Cedo ou tarde, a política tornaria a
seduzir-me, e só uma influência positiva, que criasse em mim uma segunda natureza
e modificasse o meu temperamento em suas tendências absolutas, radicais, podia
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tornar-me monárquico de razão e de sentimento, como fiquei. Essa influência foi o
contágio do espírito inglês, o que pude apropriar-me dele.
A minha passagem pela Inglaterra deixou-me a convicção , que depois se
confirmou nos Estados Unidos, de que só há, inabalável e permanente, um grande
país livre no mundo. A Suíça é um país livre, mas é um pequeno país. Os Estados
Unidos são um grande país, mas há nele, sem falar da sua justiça, da lei de Lynch,
que lhe está no sangue, das abstenções em massa da melhor gente, do desconceito
em que caiu a política, uma população de 7 milhões, toda a raça de cor, para a qual
a igualdade civil, a proteção da lei, os direitos constitucionais são contínuas e
perigosas ciladas. A França é um grande país e um país livre, mas sem espírito de
liberdade arraigado, sujeito sempre às crises das revoluções e da glória.
O que deixa tão funda impressão na Inglaterra é, antes de tudo, o governo da
Câmara dos Comuns: a suscetibilidade daquele aparelho, ainda perante as mais
ligeiras oscilações do sentimento público, a rapidez dos seus movimentos e a força,
em repouso, de reserva, que ele concentra. Mas ainda, porém, do que a Câmara dos
Comuns, é a autoridade dos juízes. Somente na Inglaterra, pode-se dizer, há juízes.
Nos Estados Unidos a lei pode ser mais forte que o poder; é isto que dá à Corte
Suprema de Washington o prestígio de primeiro tribunal do mundo, mas só há um
país no mundo em que o juiz é mais forte que os poderosos: é a Inglaterra. O juiz
sobreleva à família real, à aristocracia, ao dinheiro, e, o que é mais do que tudo, aos
partidos, à imprensa, à opinião; não tem o primeiro lugar no Estado, mas tem-no na
sociedade. O cocheiro e o groom sabem que são criados de servir, mas não receiam
abusos nem violência da parte de quem os emprega. Apesar de seus séculos de
nobreza, das suas residências históricas, da sua riqueza e posição social, o marquês
de Salisbury e o duque de Westminster estão certos de que diante do juiz são iguais
ao mais humilde de sua criadagem. Esta é, a meu ver, a maior impressão de
liberdade que fica da Inglaterra. O sentimento de igualdade de direitos, ou de
pessoa, na mais extrema desigualdade de fortuna e condição, é o fundo da
dignidade anglo-saxônica.
Exceto essa idéia da justiça, que se foi formando e crescendo em mim, à
medida que lia no Times a seção dos tribunais, curso prático de liberdade que a
nenhum outro se compara, posso dizer que não fiz na Inglaterra senão verificar por
mim mesmo a precisão, a penetração, a agudeza de espírito de Bagehot. O seu
pequeno livro, cotejado com o que eu via, ouvia e sabia, explicava-se, tornava-se
claro, sensível, palpitante no que antes era obscuro, indiferente; fazia-me
compreender o mecanismo de que ele formulara a teoria: passava a ser para mim,
em direito constitucional, um verdadeiro evangelho. Uma coisa era ter assimilado
aquelas idéias logo ao sair da academia a outra ver funcionar o próprio sistema,
receber a impressão viva do que apenas eu aprendera ou decorara.
Essa dupla influência do governo inglês e da liberdade inglesa era, por sua
natureza, monárquica. Não podia deixar de inclinar-me interiormente à Monarquia a
idéia de que o governo mais livre do mundo era um governo monárquico. Ainda
assim um estrangeiro inteligente não seria no seu país inabalavelmente monarquista
somente porque o governo chegou na Inglaterra a um grau maior de perfeição do
que nos Estados Unidos, que tomaram a forma republicana, Desde que não
tínhamos no Brasil os elementos históricos que a liberdade inglesa supõe, a não
querer ou cometer o maior erro que se pode cometer em política, – o de copiar de
sociedades diferentes instituições que cresceram, – eu não podia repelir a República
no Brasil somente por admirar a Monarquia inglesa de preferência à Constituição
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americana. Era preciso alguma coisa mais, no que respeita à forma de governo, para
eu não me deixar arrastar.
A transformação, ou, melhor, a modificação de ideal político que sofri na
Inglaterra era, todavia, a preliminar, o preparo para a impenetrabilidade que ofereci
depois à aspiração republicana. Até então, a forma republicana me parecera
superior a monárquica pelo lado da dignidade humana. Foi na Inglaterra que senti
que nunca a nossa raça atingiu ao mesmo ponto de altivez moral que em uma
Monarquia. Como o privilégio dinástico, que também o meu radicalismo rejeitava, eu
agora o via bem, não se fazia no século 19 senão aproveitar a tradição nacional
mais antiga e mais gloriosa para neutralizar a primeira posição do Estado. A
concepção monárquica ficava sendo esta: a do governo em que o posto mais
elevado da hierarquia fica fora de competição. Era uma concepção simples como a
da balança, como a do eixo. Nenhum direito se transformou tanto no decurso deste
século no Ocidente como o direito real, que de divino passou a ser passivo. O rei da
Inglaterra, se quiser influir na política com as suas idéias próprias e a sua iniciativa,
tem primeiro que abdicar e – se a hipótese é admissível –, fazer-se eleger à Câmara
dos Comuns ou tomar a decisão da casa dos Lordes. Entre o czar e a rainha Vitória
a diferença de autoridade é infinitamente maior do que entre a rainha Vitória e o
presidente dos Estados Unidos. O governo pessoal é possível na Casa Branca; é
impossível em Windsor Castle.
O chamado privilégio é assim um cargo honorífico, uma tradição nacional,
uma conveniência pública, quase uma fórmula algébrica de equilíbrio de forças, de
conservação de energia, de moto contínuo. É tão absurdo ressentir-se alguém em
sua dignidade da existência desse ponto fixo do sistema político, como seria o
ressentir-se da existência do eixo da terra ou da estrela polar. A muitos é impossível
deixar de ver no ocupante do trono o homem ou a mulher, o acidente, a pessoa,
para ver a função, a existência tradicional, a lei do movimento político. Desses podese
dizer que são deficientes em imaginação simbólica; mas desaparecendo o
simbolismo, podemos estar certos de que desaparecerá também o ideal na religião,
na poesia, na arte, na sociedade, no Estado.
A Monarquia constitucional ficava sendo para mim a mais elevada das formas
de governo: a ausência de unidade, de unidade, de permanência, de continuidade
no governo, que é a superioridade para muitos da forma republicana, convertia-se
em sinal de inferioridade. Esse ideal republicano, de um Estado em que todos
pudessem competir desde o colégio para a primeira dignidade, passava a ser a
meus olhos uma utopia sem atrativo, o paraíso dos ambiciosos, espécie de hospício
em que só se conhecesse a loucura das grandezas. Não era este, de certo, o termo
da evolução humana, pela qual rezamos todos os dias, quando repetimos o adveniat
regnum tuum. Desistir da idéia monárquica não é tão fácil como parece. Mesmo o
sistema planetário é monárquico, diz Schopenhauer. O universo é a Monarquia por
excelência. Em vez de Cosmos, Humboldt podia ter dado ao seu livro o título de
Monarquia. A idéia central de infinito, isto é, Deus, não podia deixar de ser em toda a
esfera da inteligência e da atividade humana o verdadeiro ideal. Até hoje a força,
transformada em direito e em tradição, terá sido a gênese do ideal monárquico; um
dia ele sairá da ciência, da inteligência, da virtude, da santidade. O ideal humano,
todo ele, toda a estética religiosa, social, artística, podemos ficar certos, está inteiro
na linha: “E criou Deus o homem à sua imagem”
Eu encontrava republicanismo na Inglaterra em espíritos de primeira ordem;
havia republicanismo, mais ou menos consciente, em Spencer, em Mill, em Bagehot,
em Bright, em Morley, em George Eliot, em G. Henry Lewes, mas era
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republicanismo sine die, conservado no sentimento monárquico, para impedi-lo de
corromper-se. A Inglaterra não seria a nação livre que é se não houvesse no seu
caráter uma fibra que impede a veneração dinástica de degenerar em superstição, a
“loyalty” de tornar-se servilismo... No coração inglês a fidelidade à Câmara dos
Comuns precede a fidelidade à realeza, e dessa regra não faz exceção a própria
dinastia, que sente como a nação. Esse fundo de republicanismo, latente, esquecido
até, mas que a menor provocação faria ressuscitar o mesmo que sob os Stuarts,
longe de ser incompatível com o monarquismo, é que o tem conservado,
restringindo, reduzindo o poder real à função que é hoje, puramente moderadora e,
só raras vezes, provisoriamente arbitral. Esse republicanismo não impedirá – pelo
contrário –, os que o têm em reserva, de inclinar-se diante da rainha e defender a
integridade da sua prerrogativa esvaecente.
Como eu disse, porém, não me bastaria mesmo essa profunda modificação
de ideal político para impedir-me de acompanhar o movimento republicano entre
nós, dadas certas contingências. Eu podia ser monarquista de ideal e julgar a
República, em um momento dado, o melhor governo praticável, como se pode ser
republicano de ideal – e muitos o são na própria Inglaterra –, e fazer da Monarquia o
seu noli me tangere. Além disso, eu podia deixar arrastar-me por uma corrente de
entusiasmo, por uma solidariedade de partido, por amizades políticas, ou, mesmo,
por algum interesse que soubesse disfarçar-se e insinuar-se-me no espírito, – sob a
forma de um sacrifício à causa pública. As idéias para espíritos que vêem os lados
opostos das coisas, o que tudo tem de bom e de mau, são pobres, frágeis,
antemurais. É preciso, para sustentar a fé política, mais do que a lucidez da
inteligência; a não haver um sentimento que interesse o coração, ou uma espécie de
ponto de honra que se imponha ao caráter, é indispensável um espírito uniforme de
conduta, uma regra certa de direção. No meu caso particular, o que me poupou da
ilusão republicana foi um toque apenas do espírito inglês.
CAPÍTULO XIII
O espírito inglês
Sem ele a convicção da superioridade do tipo político da Inglaterra não teria
bastado. Quanto à sensação aristocrática da vida, de que também falei, essa, no
combate dos partidos, não teria resistido ao primeiro choque. O que entendo por
espírito inglês neste caso é a norma tácita de conduta a que a Inglaterra toda parece
obedecer, o centro de inspiração moral que governa todos os seus movimentos. Vi
quase nada da Inglaterra, sinto dizê-lo, mas vi pedaços que me impedem quase de
querer ver o resto, exceto Oxford, cujo lugar tenho vago em minha galeria interior, à
espera do seu pequeno quadro. Vi, por exemplo, Cantuária, e tenho no pensamento
a calma, o silêncio, a grandeza daquela imponente massa recolhida em si mesma.
Vi, na semana de Cowes, Southampton e a ilha de Wight, pequena sombra da
Inglaterra no mar, sombra colorida, movente e alegre. Fui em carruagem – poderá
haver um dia mais completo de romance? – de Straford-on-Avon, atravessando
Warwick, a Kenilworth. Passei dias à margem do Tâmisa, entre Windsor e Henley, e
creio que tive reminiscências do paraíso terrestre. É realmente a vinheta mais
perfeita que se podia imprimir à margem do capítulo II, v. 10 do Gênese: “Deste
lugar de delícias saía um rio que regava o paraíso”. Em toda parte a impressão que
tive da Inglaterra foi a mesma: ruínas cobertas de hera, antigas gravuras expostas
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em Pall Mall, montes de trigo nos campos ceifados, castelos recortados no meio de
parques florestais, velhas estalagens à beira da estrada, botes encostados ao
arvoredo de Cliveden, grandes transatlânticos nas docas de Southampton, sempre a
mesma impressão, o cunho inglês estampado em tudo. A sensação foi a mesma
para mim da Inglaterra, vista de dentro, na segurança de seus recursos, e vista de
fora, inatacável nos seus altos cliffs brancos, a cujos pés o mar se abre como uma
trincheira.
É, porém, na sua feição política somente que considero neste momento o
espírito inglês, e, ainda mais restritamente, o modo por que ele se manifesta nos
movimentos reformistas, a influência que tem sobre os espíritos inovadores.
Politicamente, o espírito inglês pode decompor-se em espírito de tradição, em
espírito de realidade, em espírito de força e generosidade de progresso e
melhoramento, em espírito de ideal: supremacia anglo-saxônia e supremacia cristã
no mundo.
A veneração imprime na Inglaterra aos precedentes uma autoridade quase
sagrada, o tira a tudo que tem caráter histórico ou função nacional, a feição
individual em que se fixa a vista de outros povos. A rainha Vitória é mais do que a
augusta, cuja imagem cada família venera no seu lararium interior; é a realeza
normanda, Plantagenet, Tudor. Como a rainha, a Constituição. Esta não é mais do
que uma procuração em causa própria dada pela nação inglesa à Câmara dos
Comuns, e mesmo assim, um mandato de que nunca se viu o instrumento. Nenhum
grande legista a redigiu, nenhum homem de Estado a ideou: formou-se
espontaneamente, inconscientemente, como a língua inglesa, a arquitetura
perpendicular, os contos da nursery. A tradição, como base do temperamento
nacional, produz no inglês a faculdade de admirar a massa histórica de uma
instituição, como o arquiteto admira a grandeza e o detalhe de uma catedral gótica.
Para o inglês, se a liberdade é o grande atributo do homem, se ele a sente como o
desenvolvimento da personalidade, a ordem é a verdadeira arquitetura social. Ele
compreende e penetra a grandeza do sistema que se perpetua mais do que a das
revoluções, ao contrário do latino, que pode viver e ser feliz em um solo político
oscilante, sujeito a terremotos contínuos. Daí, para ele o amor da lei e a simpatia,
interesse, carinho mesmo, pela autoridade encarregada de executá-la; daí, também,
o prestígio do juiz, a popularidade das sentenças que aterrorizam o criminoso, ao
contrário das facilidades que este encontra nos países onde decai o instinto de
conservação.
Se numa organização assim formada existe, ao lado dessa quase superstição
do costume, o espírito de aperfeiçoamento e de progresso, o que resulta é que as
reformas, as modificações serão governadas por algumas regras elementares. Uma
destas será conservar do existente tudo o que não seja obstáculo invencível ao
melhoramento indispensável; outra, que o melhoramento justifique – e para justificar
não basta só compensar – o sacrifício da tradição, ou mesmo do preconceito que o
embarga; outra regra é respeitar o inútil que tenha o cunho de uma época, só
demolir o prejudicial; outra, substituir tanto quanto possível provisoriamente,
deixando ao tempo a incumbência de experimentar o novo material ou a nova forma,
para consagrá-lo ou rejeitá-lo; uma última, esta rara e extrema, será reformar, no
sentido originário da instituição, o mais antigo, procurando o traçado primitivo.
Dessas regras resulta o dever de demolir com o mesmo amor e cuidado com que
outras épocas edificaram. Nenhum explosivo é legítimo, porque a ação não pode ser
de antemão conhecida; é preciso demolir a nível e compasso, retirando pedra por
pedra, como foram colocadas.
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O que, porém, dirige o espírito de progresso é o espírito de realidade, espírito
prático, positivo, que se manifesta pela rejeição de tudo que é teórico, a priori,
tentativo, lógico, ou que pretenda à perfeição, à finalidade, à uniformidade, à
simetria. A esse espírito corresponde, na ordem política, a idéia de crescimento: as
instituições tem o seu habitat como as plantas, as suas latitudes e terrenos próprios,
condições especiais de aclimação, obstáculos e perigos de transplantação. Não
basta que a reforma seja indicada pela experiência, baseada em uma forte
verossimilhança; é preciso que tenha afinidade com as outras instituições. Esse
espírito prático, positivo, é a experiência do utilitarismo, do espírito de criar e
acumular riqueza, característico da raça. O utilitarismo manifesta-se em que as
reformas devem ter uma vantagem econômica, pelo menos indireta, e justificar-se
por algarismos. Ao lado, porém, da corrente utilitária, há a corrente imaginativa ou de
ideal, moral, nacional, religiosa.
A varonilidade impõe ao reformador não fazer vítimas emissárias,
responsabilizando indivíduos ou instituições pelos erros comuns da sociedade, não
lavar as mãos como Pilatos das injustiças da multidão, não preferir o fraco para
sobre ele descarregar o golpe, em uma palavra, o flair-play. O patriotismo manda
não consentir que o espírito de partido suplante o de responsabilidade para com o
país. O que, entretanto, na Inglaterra alimenta, renova e purifica o patriotismo, é
outra espécie de responsabilidade: a do homem para com Deus. Só quando o
orgulho britânico e a consciência cristã estremecem juntos e se unem em uma
mesma causa, é que o sentimento inglês desenvolve a sua energia máxima. A
inspiração da vida pública na Inglaterra vem em grande parte da Bíblia. A política e a
religião sentem que terão sempre muito que fazer em comum, que uma e outra têm
o mesmo objetivo prático – elevar a condição moral do homem, e o efeito desse
último e, talvez principal elemento do espírito inglês, em relação às reformas, é fazer
o argumento moral prevalecer sobre o argumento utilitário.
Tomando-se o espírito inglês, como acabo de delinear, que é que ele
inspirará na Inglaterra a republicanos de ideal, que se subordinem, entretanto, como
indivíduos, à consciência coletiva, ao instinto nacional ? Há uma página interessante
em On Compromise, livro típico de casuística intelectual inglesa, escrito por John
Morley. Essa página é a melhor ilustração do que eu disse antes sobre o
republicanismo que pode existir por baixo do sentimento monárquico, até para darlhe
brilho e calor. Ele figura um inglês convencido de que a Monarquia, mesmo
meramente decorativa, tende a engendrar hábitos sociais degradantes. O dever
desse republicando será deixar a Monarquia de lado e abster-se de todos os atos,
em público e em particular, que possam, mesmo remotamente, alimentar o espírito
de servilismo. “Tal política não interfere, diz-nos Mr. Morley, com as vantagens que
se diz ter a Monarquia, e tem o efeito de tornar as suas supostas desvantagens tão
pouco prejudiciais quanto possível...”
Desse espírito inglês eu disse que tive apenas um toque. Na questão da
abolição, entretanto, não me desviei dele. A abolição era uma reforma que o espírito
inglês anteporia a todas as outras por toda ordem de sentimento. Se a abolição se
fez entre nós sem indenização, a responsabilidade não cabe aos abolicionistas, mas
ao partido da resistência. O meu projeto primitivo, em 1880, era a abolição para
1890 com indenização. Se em qualquer tempo um ministro da coroa chegasse às
Câmaras e dissesse: “A escravidão não pode mais ser tolerada no Brasil, o nosso
grau de civilização repele-a, e eu venho pedir que decreteis a liberdade imediata dos
escravos existentes, votando os precisos recursos para a respectiva
desapropriação”, poderia haver abolicionista que quisesse prolongar a escravidão?
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Nenhum de nós assumiria a odiosa responsabilidade. Esse homem, porém, não
surgiu dentre os estadistas do Império; todos pensavam, ou que a abolição
arruinaria a lavoura e o crédito do país, ou que o Brasil não era rico bastante para
pagar a libertação moral do seu território. Podia haver abolicionistas contrários à
indenização; de fato, os houve; mas podiam eles, acaso, votar nunca contra uma lei
de abolição imediata? A responsabilidade foi assim dos partidos, que se
comprometeram perante a lavoura a resistir ao movimento, e que teriam, do seu
ponto de vista, feito melhor sacando sobre o futuro e desapropriando os escravos,
quando o princípio da não-indenização ainda não tinha triunfado no projeto Dantas e
na segunda lei de 28 de setembro. Essa intuição só a teve meu querido amigo José
Caetano de Andrade Pinto no Conselho do Estado; não lhe deram, porém, valor.
Com relação à lei de 13 de maio devo dizer que em 1888 era tarde para se pleitear a
eqüidade da desapropriação diante de um movimento triunfante, quando já a maior
parte dos escravos tinha sido liberalmente alforriado pelos senhores e o resto da
escravatura estava em fuga, depois, sobretudo, de estar por lei consagrado o
princípio de que a escravidão era uma propriedade anômala, a que o legislador
marcava sem ônus para o Estado o prazo de duração que queria.
Em relação à Monarquia do Brasil aquele toque do espírito inglês bastou para
traçar-me uma linha de que eu não poderia afastar-me, mesmo querendo. Era um
ponto de honra intelectual, um caso de consciência patriótico definitivamente
resolvido em meu espírito, aos 23 anos. Suprimir a Monarquia que tínhamos, ficou
claro para mim desde então, era uma política a que eu não poderia nunca associarme;
eu poderia tanto banir, deportar o imperador, como atirar no mar uma criança ou
deitar fogo à Santa Casa. Quebrar o laço, talvez providencial, que ligava a história
do Brasil à Monarquia, era-me moralmente tão impossível, como me seria no caso
de Calabar entregar Pernambuco por minhas próprias mãos ao estrangeiro. Faltarme-
iam forças para uma intervenção dessas no destino do meu país. Seria atrair
sobre mim um golpe de paralisia, ferir-me eu mesmo de morte moral. Minha
coragem recuava diante da linha misteriosa do Inconsciente Nacional. O Brasil tinha
tomado a forma monárquica, eu não a alteraria.
O que vi nos Estados Unidos não fez senão calcar mais profundamente a
impressão monárquica que eu levava da Inglaterra. Foi uma segunda chave, de
segurança, que fechou em meu pensamento a porta que nunca mais se devia abrir.
O espírito político americano, com certas modalidades que não quero amesquinhar,
mas que me parecem secundárias, é uma variedade do espírito inglês, o qual
merece antes ser chamado espírito anglo-saxônio, porque é um espírito comum de
raça, de grande família humana, superior a formas e acidentes de instituições.
CAPÍTULO XIV
Nova York (1876-1877)
Talvez o melhor modo de mostrar o que devo aos Estados Unidos seja
reproduzir páginas do meu diário de 1876-77. Cheguei pouco tempo depois da visita
do imperador; pude assim recolher o eco da impressão deixada por ele. O ano que
passei na grande República foi um dos seus momentos políticos mais interessantes,
porque foi o da eleição de Tilden. Como se sabe, os democratas ganharam as
eleições de 1876, mas as juntas apuradoras republicanas de alguns Estados do Sul
manipularam as atas de forma a dar maioria aos eleitores do seu partido. Ambos os
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lados reclamavam a vitória, e, como a Câmara dos Representantes era democrata e
o Senado republicano, a perspectiva era que o Congresso não chegaria a acordo até
março, e que os Estados Unidos teriam dois presidentes com todas as
probabilidades de uma guerra civil. O espírito prático, o espírito de transação da raça
anglo-saxônia interveio, e as duas casas do Congresso concordaram em entregar o
julgamento a uma comissão especial, tirada de cada uma delas e do Supremo
Tribunal. A diferença entre Inglaterra e os Estados Unidos não pode ser melhor
apresentada do que nesse caso: a resolução americana foi como a inglesa, o acordo
em vez da guerra civil dos países latinos, mas nos Estados Unidos, ao contrário do
que aconteceria na Inglaterra, a comissão não se elevou acima do espírito de
facção, as votações foram todas estritamente partidárias, o que quer dizer, figurando
nela cinco membros da Corte Suprema, que o mais alto tribunal da União era
composto de politicians. Com juízes ingleses a decisão teria, talvez, sido injusta,
mas não seria nunca parcial, dada por motivo político; não se contariam de antemão
os votos dos juízes como os dos congressistas. Em tão pouco tempo como tive,
nenhum estudo comparativo da educação, da seriedade e dos costumes políticos
dos dois países podia ser mais proveitoso para mim do que foi essa campanha
eleitoral de 1876-1877 e o desenlace que ela teve. As qualidades e as deficiências
da política americana estavam todas visíveis e patentes nessa lição de coisas. Eu
tinha acompanhado a luta dos partidos para a captura da cadeira presidencial com o
maior interesse, cada boss me era conhecido, como o era cada figura de senador, a
opinião de cada jornalista influente, cada nuança das duas convenções. É realmente
o momento para o estrangeiro abranger num relance a vida política dos Estados
Unidos, esse ano eleitoral. Eu tinha chegado a Nova York a tempo de familiarizar-me
com as questões, as alusões, a gíria política do formidável canvass que se ia travar
e do qual a política da reconstrução no Sul devia ser o eixo. Interessava-me o
Tammany Ring, o Whiskey Ring, o cisma dos Independentes, o Civil-Service
Reform, o Railroad Land-Grants, como me interessava o encontro de Gladstone com
Disraeli na questão do Oriente, ou a luta de Thiers com o duque de Broglie. Durante
mais de um ano fui um verdadeiro americano nos Estados Unidos, como o provérbio
manda ser romano em Roma. Era o meio de penetrar, de compreender, de sentir a
vida política do país, se eu o queria, e este fora o meu motivo ao desejar ir para os
Estados Unidos.
O meu diário desse ano é antes um registro de pensamentos do que de
impressões americanas. Há muito pouca política nele, o que mostra que eu vivia em
uma atmosfera diversa da que os homens de partido respiram, mesmo no
estrangeiro. Reproduzo algumas dessas notas para mostrar isto mesmo, que o meio
norte-americano teve sobre mim o efeito que muita vez tem sobre os próprios
americanos, de desinteressá-los da política, exceto como e espectadores. Posso
dizer que vivi esses dois anos, de 1876 e 1867, na sociedade de Nova York, onde se
está tão longe da política americana como em Londres ou em Paris; mas o mundo
exterior, que me cercava por toda parte, a rua, a praça pública com os seus
cartazes e procissões eleitorais, os jornais com as cenas do Congresso e as
torrentes de eloqüência dos meetings, não podia deixar de atrair-me como todo
espetáculo nacional curioso e único, além, está visto, do interesse intelectual que eu
tinha em saber como um tão grande país era governado e dirigido, as forças sociais
e influências morais que presidiam ao seu colossal desenvolvimento. Aqui estão ao
acaso algumas das notas.
“22 de outubro. O discurso de Carl Schurz pronunciado ontem no Union
League Club, expõe o sentimento republicano na melhor luz. O principal elemento
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da presente campanha começa a ser a Questão do Sul. Com a aproximação do dia
7 de novembro esse ponto de vista tornar-se-á mais importante do que todos os
outros. A camisa ensangüentada (bloody-shirt) caiu em completo descrédito, mas é
preciso contar como receio de que o Sul, unido, composto dos antigos Estados
rebeldes e onde os candidatos são todos soldados da Confederação, possa dominar
o Norte tão cedo, depois da guerra, passando o governo americano a ser
representado por antigos separatistas. Esta idéia assunta os que põe acima de tudo
a União, mesmo quando seja preciso reduzir os Estados impenitentes a territórios
sujeitos ao despotismo militar e entregues politicamente ao domínio conjunto dos
carpet-baggers e dos negros. Este elemento decidirá, provavelmente, em favor de
Hayes a luta que de outra forma seria nos últimos anos desonra a política
americana.”
“1º de janeiro. Cheguei a Washington, em Riggs House. Pela primeira vez
ponho o uniforme. À Casa Branca. Apresentação ao presidente, depois à casa do
secretário de Estado, mr. Fish. A chamada dinastia Grant, a filha de mrs. Sartoris; a
netinha recebendo os cumprimentos pelo avô. Vou com o capitão-tenente Saldanha
de Gama visitar os membros da Corte Suprema: através da terrapine e das baked
oysters todo dia, até que em casa do secretário da Marinha um solene the reception
is over! põe termo à nossa peregrinação de New-Year’s day.”
Eu tinha conhecido Saldanha na Exposição de Filadélfia, depois ligamo-nos
muito em Nova York, onde morávamos no mesmo hotel, o Buckingham. Ele ria-se
sempre muito daquele: the reception is over! Pobre Saldanha! nascido para o
mundo, para o amor, para a glória, quem imaginaria, ao vê-lo naquele tempo em
Nova York, que o seu destino seria o que foi? A esfinge da vida que lhe dera, ainda
adolescente, um dos seus enigmas indecifráveis para resolver, destruindo nele a
aspiração de ser feliz, reapareceu de novo a embargar-lhe o passo no momento em
que podia disputar a primeira posição do país.
“11 de janeiro. À casa de mr. John Hamilton, filho de Alexandre Hamilton. Um
homem do passado, voltado todo para ele. Diz-me que o Brasil deve conservar o
mais tempo possível a sua formação monárquica. Este Whig não acredita que
países como os nossos possam durar unidos sob outra forma de governo. Emoção
ao mostrar-me o retrato de Luís XVI, presente feito ao pai...”
“22 de fevereiro. Almocei com mr. Marshall no Knickerbocker Club, hoje
aniversário de Washington; almoçavam mr. Manton Marble, ex-redator do World, mr.
Appleton, o grande editor, mr. Stout, mr. Robinson, mr. Pell, e outros. Ao toast feito
ao imperador respondi, como todas as saúdes eram humorísticas, com um ensaio de
humor. Disse que nós tínhamos tido receio de que os americanos o guardassem,
lembrando-se de que uma grande autoridade para eles, o general Lafayette, dissera
da Monarquia constitucional: “Aqui está a melhor das repúblicas”. Mas, desde que
eles tinham deixado o imperador partir, eu fazia votos para que os dois países
conservassem suas instituições como uma aposta de liberdade perpétua entre a
Monarquia e a República. Quanto a Washington, fiz uma reserva à sua grande obra:
a de ter fundado a capital em uma cidade, sem dúvida, muito agradável, mas para a
qual sempre se vai a custo, quando se tem que deixar Nova York.”
“Março, 2. Hoje fui ao Congresso ver os destroços da véspera. (Hayes fora
proclamado presidente por um voto.) Não há alegria no lado republicano; no
democrata a decepção é grande; mas, em pouco tempo, quando a ferida tiver
cicatrizado e se pensar no futuro, esse partido ficará contente de se terem passado
as coisas como vimos ontem. O general Banks, antigo speaker da Câmara, cedeume
a sua cadeira no próprio recinto do Congresso (em sessão), depois veio sentarwww.
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se nela o meu ministro, e fomos apresentados a diversos deputados, notáveis, entre
eles Lamar e Garfield.”
“8 de março. O presidente propõe uma emenda constitucional, tornando o
prazo da presidência de seis anos, sem reeleição. Essa emenda provém do medo
que se tem de que as eleições presidenciais sejam tão disputadas pelos dois
partidos, que dividem em duas metades o país, como foram as do outono passado, e
que os negócios de três em três anos tenham um quarto ano de interrupção e de
paralisia, como se tudo peregrinasse e a anarquia ou a guerra civil, talvez a
separação, pudesse seguir-me a uma eleição duvidosa. Os interesses do comércio e
os da propriedade conseguirão um dia alongar o prazo até seis anos, e como com a
maior escassez de eleições elas tendem a tornar-se mais renhidas, não há prazo
para o país correr todos os seis anos um risco que não quer correr todos os quatro.
Assim, a eleição crítica do chefe do Estado irá sendo o mais possível espaçada, e
não é impossível que a República americana se aproxime tão de perto das
monarquias eletivas, que, vendo o perigo desta forma, ela prefira a tranqüilidade das
longas dinastias...
É curioso que o que há de mais perfeita nesta democracia seja a mulher, que
é aqui o ente mais aristocrático do mundo.”
“2 de abril. A idéia de governo hoje é inteiramente diversa da idéia de governo
antigamente; tomemos, por exemplo, a liberdade de imprensa nos Estados Unidos,
que representavam a nova educação política, e a censura na Rússia. Há muito que
dizer em favor de se deixar o pensamento inteiramente livre e sobre os
inconvenientes da repressão; mas o correto é que se formam duas sociedades
diversas pelo respeito forçado à autoridade e pelo desprestígio dela. A dificuldade
que há no caminho da tradição é que a dignidade, ou a altivez pessoal, não quer
sacrificar-se aos grandes resultados morais e que os homens se consideram todos
iguais por um sentimento que já é indestrutível. Eu sou seguramente igual a um rei,
como indivíduo, mas, como do princípio da Monarquia vêm muitos bens para a
sociedade, coloco-me em plano inferior. Isso não é quebra de dignidade humana,
ainda que a altivez pessoal tenha que se curvar.”
“13 de maio. Diz-se que Tilden não reconhece Hayes como presidente. É o
caso de algum amigo ler-lhe o Kriton. Quando Kriton quer convencer a Sócrates de
que deve fugir para evitar uma morte injusta, Sócrates nega-se com o fundamento
de que a sentença, injusta como é, é todavia inteiramente legal. Se os juízes fizeram
mal em pronunciá-la, ele faria pior em não se sujeitar às leis de Atenas, porque o
cidadão que goza da proteção e dos direitos que uma cidade lhe oferece, tem com
ela o pacto tácito de respeitar as suas leis. Sócrates recusava a vida por ser ilegal,
ainda que soubesse que adviria da sua fuga mais bem do que mal à democracia
ateniense. Não devia Tilden reler esse diálogo? Injusta como foi a decisão contra
ele, foi estritamente legal, não no sentido de estar de acordo com o direito, mas por
ser dada pelos intérpretes competentes da lei. Ele só pode chamar para si e o seu
partido as simpatias de todos, sujeitando-se à decisão proferida, salvo o seu direito
de brandir contra o novo presidente as fraudes pelas quais chegou ao poder.”
“Junho, 13. Ontem realizou-se no Manhattan Club a recepção dos swallowtails
aos candidatos democráticos eleitos e counted out. Tilden falou pela primeira
vez depois da inauguração de Hayes, à qual chamou o mais portentoso
acontecimento na história da América. América quer dizer Estados Unidos, porque
no México e no Peru há, cada dia, acontecimentos desses muito mais portentosos.
‘Os males no governo crescem com o êxito e com a impunidade. Não se restringem
a si mesmos voluntariamente. Não podem ser nunca limitados senão por forças
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externas. Uma grande e nobre nação não separa a sua vida política da sua vida
moral.’ Tudo isto é muito exato. O Brasil é a prova. Deve o povo, ou não, fazer
política? O adiantamento de um país prova-se pela extensão da idéia de que a
política é inseparável dos mais vitais interesses da sociedade, e por aí, de cada um.
No Brasil, essa idéia não se derramou, pelas condições especiais em que nos
achamos, de território, população, trabalho escravo, etc. Aqui ela está em cada
cabeça. O que mais me surpreendeu nessa reunião de Manhattan, foi o governador
de Nova York, este de jure e de facto, mr. Robinson, chamar em público ao
presidente dos Estados Unidos um presidente fraudulento. Depois de ter dito que
não teriam que esperar até 1880 para pô-lo fora da Casa Branca, terminou assim,
referindo-se a Tilden e a Hendricks: ‘Fellow citizens, tivestes a primeira oportunidade
de saudar o presidente e o vice-presidente dos Estados Unidos depois da sua
eleição. Eu vos felicito e acredito que este é apenas um presságio de fatos que se
hão de suceder’. A alocução do governador do principal Estado da União
proclamando a rebelião, legal ou ilegal, é característico do regime político
americano, e do laissez-faire, laissez-passer de que goza neste país a palavra. As
revoluções de língua e pena não são nunca um delito; são um desabafo. A boca do
politician é uma válvula de segurança das instituições. É o país das válvulas
automáticas.”
“19 de junho. Os jornais têm hoje um fato interessante: a visita feita por
Frederic Douglass ao seu velho senhor, que deixou na adolescência, para começar
a vida de aventuras que o levou até ser marshall em Washington e o grande orador
da abolição que foi. Vim antes de tudo, disse Douglass, ver meu velho senhor, de
quem estive separado 41 anos, apertar-lhe a mão, contemplar-lhe o velho rosto
bondoso, brilhando com o reflexo da outra vida.’
Esta cena dá uma idéia mais tocante da escravidão no Sul do que a Cabana
do Pai Tomás. O lugar é St. Michel, Talbot, County, Md. O nome do senhor Capt,
Thomas Aould. Marshall Douglass ouviu a sua verdadeira cidade da boca do seu
senhor, em cujos livros ele figura assim: ‘Frederic Balley, fevereiro 1818’.
Provavelmente, o senhor não registrou mais carreira agitada de Frederic desde a
idade de 18 anos (1836). Esse fato é, do que tenho lido, uma das mais profundas e
penetrantes apresentações do fato moral complexo da escravidão, o laço entre
escravo e senhor.”
CAPÍTULO XV
O meu diário de 1877
Parei ainda alguns trechos do meu diário dos Estados Unidos; não são tanto
impressões americanas que pretendo reproduzir, já antes o disse, como o meu
modo de sentir naquela época:
“20 de junho. Hoje foram enforcados 11 criminosos de uma associação da
Pensilvânia, os Molly Naguires. Onze pessoas enforcadas em um dia no Brasil!
Quantos discursos isso não daria na Câmara dos Deputados? Aqui só faz vender
maior número de extras dos jornais”.
“Junho, 8. Há duas espécies de movimento em política: um, de que fazemos
parte supondo estar parados, como é movimento da terra que não sentimos; outro, o
movimento que parte de nós mesmos. Na política são poucos os que tem
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consciência do primeiro, no entanto esse é, talvez, o único que não é uma pura
agitação.”
“Julho, 8. A temperatura moral do futuro, a julgar pela americana, deve ser
muito baixa. O sentimentalismo resfria aqui diariamente. A Inglaterra é um forno em
comparação.”
“Junho, 26. A França parece-me a casa de Ulisses cheia de pretendentes a
consumirem entre si a fortuna de Telêmaco, à espera que Penélope se decida por
um deles. Cada um está certo de ser o preferido e, enquanto ela pede a Minerva que
acabe com os seus insuportáveis perseguidores, eles continuam a devorar os bois e
os carneiros, repetindo: ‘Não há dúvida que ela se está preparando para o
casamento’. Infelizmente não parece provável que Ulisses volte para exterminá-los e
tomar conta da casa.”
Essa nota é, quase, puramente literária. Ulisses aí era o conde de Chambord,
e os pretendentes os partidos que arrastavam a França, depois da derrota nacional,
talvez para a guerra civil. Eu pensava escrever um ato, intitulado Os Pretendentes,
com a idéia do arco de Ulisses. Era, como o drama de que falei, um caso da falta de
coincidência que se dava em mim, entre a imaginação literária e a simpática política.
Há outras notas, com relação aos Pretendentes. Em 16 de julho:
“O conde de Chambord representa a teoria de que a política é uma arte
religiosa, e um reinado uma espécie de monumento das crenças de uma época. A
concepção de que governar é um ato religioso, como o de confessar, e tem um fim
religioso, destrói toda liberdade de pensamento. Um homem pode fazer da sua vida
uma forma de arte, mas não da vida de todo mundo, que quer viver a seu modo. A
política, se é uma arte, não é arte ascética, religiosa – nem mesmo no seu período
hierático. A política, arte religiosa, converte em crime de sacrilégio o menor ato de
liberdade individual.”
Em 30 de julho: “Estive a pensar nos Pretendentes. O appel au peuple é feito
pelo candidato respectivo às rãs, e a prova real é tirada por outro, que apela também
para elas. A tudo elas respondem: couac”.
“Julho, 5. A posição do presidente Hayes é a mais singular que já se viu neste
país. Ele chegou ao poder por fraudes eleitorais sem exemplo, empurrado até a
Casa Branca pelos carpet-baggers do Sul e wire-pullers do Senado, depois de uma
campanha de que os empregados públicos fizeram os gastos: deve, assim, a sua
eleição, ou, melhor, o seu posto, a um sem-número de politicians de todos os
matizes, desde os fabricadores de atas falsas até os juízes da Corte Suprema, que
as apuraram. Chegando ao poder, porém, tem vergonha de tudo isso e torna-se ele
o representante da pureza administrativa e eleitoral. Os últimos carpet-baggers do
Sul, com a amputação da membrana que os ligava ao presidente eleito com eles e
por eles, desaparecem para sempre da cena política. Os politiquistas são enxotados,
os senadores snubbed; os empregados públicos, senhores da máquina eleitoral e
que se cotizavam para a eleição solidária, intimidados a mudar de vida e a não
subscrever mais um cent. De tudo isso se conclui que Hayes, assim como não quer
outra vez ser eleito, entende que ninguém mais deve ser eleito presidente como ele
foi. Poucos homens teriam feito tão bom uso de um poder tão mal adquirido. Isto
resgata quase a falta de coragem cívica que o levou a aceitá-lo.”
“Julho, 19 e agosto 9. Não se pode dizer deste país que tenha ideal. É o país
prático por excelência, e que tem a admirável qualidade, se bem ou mal, governa-se
a si mesmo. Não lhe falta manhood, mas tudo nele preenche um fim material. O
americano é, acima de tudo, um homem positivo, em cuja vida a metafísica tem
pequena parte, reconhece a cada instante que a vida é um business, que é preciso
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um lastro para não afundar nela; põe a arte, a ciência, a cultura, a polity, depois do
que é essencial, isto é, do dollar, indo sempre ahead como a locomotiva, tratando a
mulher com o maior respeito, mas na vida prática como uma obstruction, por isso
entregando-a a ela mesma, ambicionando, acima de tudo, a riqueza de um grande
operator de Wall Street, depois a influência de um boss, insensível à inveja, à má
vontade, ao comentário, a tudo o que em outros países emaranha, complica e, às
vezes, inutiliza grandes carreiras; nunca procurando o prazer para si, dando-os aos
hóspedes em sua casa, como se dão brinquedos às crianças, superior às
contrariedades, sóbrio de dor, calmo na morte dos seus, e tratando a própria apenas
como uma questão de seguro... ‘A vida privada’ aqui é apenas uma expressão
conservada do inglês. Todo o homem é um homem público, e ele todo.”
São impressões de simples transeunte. Eu hoje não escreveria dos Estados
Unidos que é uma nação sem ideal; diria que é uma nação cujo ideal se está
formando. Assim como o inglês trata de adquirir fortuna e independência antes de
entrar para a Câmara dos Comuns, dir-se-ia que a nação americana trata de
crescer, de povoar o seu imenso território, de chegar ao seu completo
desenvolvimento, her full size, para depois fazer falar de si e pensar no nome que
deve deixar. Até hoje os Estados Unidos têm feito vida à parte e se tem ocupado de
si só; mas um país que caminha para ser, se já não é, o mais rico, o mais forte, o
mais bem aparelhado do mundo, tem, pela força das coisas, que ligar a sua história
com a das outras nações, que se associar e lutar com elas.”
“Agosto, 18. Gladstone, por ter atendido às reclamações da guerra civil, é
ainda mais impopular no Sul do que na Inglaterra entre os governadores. O tempo
em que se assinou o tratado de Washington, era entretanto para o estrangeiro, de
perfeita unificação americana. Há entre o Norte e o Sul mais que uma
desinteligência política, há reserva tácita de uma má vontade hereditária, um estado
de guerra latente.
O que torna os dois grandes partidos nacionais coligações acidentais e
impossibilita a unidade de vistas em cada um deles, é a divergência dos interesses
dos Estados de Leste, dos pagamentos em ouro e do resgate do papel, com a
política dos Estados do Oeste, dos green-backs; e o Partido Republicano tem que
harmonizar a política de intervenção de Grant com a política de Hayes de completo
self-government para os Estados do Sul.”
“Julho, 25. As cenas destes últimos dias (a parede das estradas de ferro) dão
muito que pensar... Victor Hugo diz que o culpado de terem os comunistas pegado
fogo a Paris é quem não lhes ensinou a ler. Cada um dos incendiários, porém, era
provavelmente assinante do Rappel. Que povo calmo, o americano! A grande
excitação de que se fala, não passa de uma conversa particular do bar-room de um
hotel. Nova York está, talvez, a ponto de se tornar o teatro de um riot amanhã, e as
autoridades concedem um parque aos comunistas para o seu meeting. tudo
fraterniza: a tropa com os strikers, grevistas, os citizens com a mob, e ninguém
perde a calma. O pessimista francês não existe neste país de otimistas que dizem
sempre: Não haverá nada, e se há: ‘Isto passa logo’, e se dura: ‘Podia ser pior’. A
barba do vizinho, de que fala o ditado, não se entende aqui de cidade a cidade, nem
de bairro a bairro, mas quase de casa a casa. Os próprios que perdem tudo não
acham meio de queixar-se senão de si mesmos.”
“1º de setembro. Há poucos homens em política que prefiram cair por seus
princípios a sofismá-los para ficar de pé. O ministro que sustenta a preeminência da
Câmara dos Deputados, procurará, se a Câmara lhe for contrária, provar que ela não
representa o país e apoiar-se na Câmara alta. Durante o Império, Gambetta não
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falaria do sufrágio universal com o entusiasmo de hoje, e nenhum bonapartista se
submeteria agora, como sob os Napoleões, a um apelo ao povo. No fundo só há
duas políticas: a política de governo e a política de oposição.”
“Setembro, 8. Bradley, o juiz da Corte Suprema, que de fato fez a Hayes
presidente, tendo sido atacado pelos jornais democratas e acusado de ter mudado
de opinião depois de ouvir os diretores do caminho de ferro do Pacífico, entendeu
dever justificar-se pela imprensa. Nessa justificação, admitindo a possibilidade de ter
expressado a seus colegas durante o processo uma opinião diversa da que deu, ele
conta que escrevia razões ora em um sentido, ora em outro, sobre o voto da Flórida,
tendo chegado ao voto que deu, depois de muita dúvida. Esta carta a um jornal de
Nova York é curiosa em muitos pontos de vista. Um juiz que vacila, que chega a
conclusões diferentes durante muitos dias, deveria considerar definitiva a opinião
que ocasionalmente predomina em seu espírito no momento de ser tomado o voto?
Não será provável, pelo menos possível, que ele mude ainda de juízo, depois de
emitido o seu voto, isto é, de irreparável? Por outro lado, essas dúvidas não
provarão a sinceridade do processo lógico de investigação, e poder-se-á exigir do
juiz que tenha, desde o começo de uma causa, opinião formada: A vacilação quadra
menos com a distribuição da justiça, a qual deve sempre proceder de uma convicção
inabalável e inabalada, do que a obstinação, que muitas vezes é falta de percepção
e exclusivismo de juízo. Quanto à força que a reflexão posterior tem dado em seu
espírito ao voto que emitiu, é esse um fenômeno de assentimento de consciência,
muito comum na magistratura. Cometido o erro, a inteligência o toma como verdade,
porque é o interesse do bom nome do juiz.”
“Setembro, 4. Thiers morreu ontem. Por toda a parte a notícia vai produzindo
a mesma impressão. Pobre França! é o que se exclama. A perda é irreparável. O
leme fica sem homem. A confiança que a Europa toda tinha no velho conselheiro da
França não acha a quem se entregar... O último em França dos grandes homens do
passado não nomeou sucessor...”
“Setembro, 11. Muito se tem dito sobre as mudanças de Thiers. Quando se
procura saber por que esse pequeno marselhês, nascido pobre, sem família,
exposto ao ridículo e ao desdém dos seus competidores aristocratas, atravessou
tantos governos diversos, sem nunca perder a sua importância política, até vir a ser,
na extrema velhice, o Libertador do Território, encontra-se a explicação dessas
mudanças. Quando tantos homens de talento, caráter, fortuna e prestígio social
representavam o seu papel em um regime e desapareceriam, Thiers era sempre
contado como um poder político. Foi seu destino fundar e destruir governos, mas
não se pode acusá-lo de se ter divorciado da França em nenhum desses momentos.
Mudou sempre com o país. A sua grande mudança final de monarquista para
republicano coincidiu com o seu interesse pessoal como primeiro presidente da
República, mas coincidiu também com a conversão das classes médias, não ao
princípio republicano, mas à idéia de que só a República era possível. Sempre a
França, nos seus movimentos liberais, o encontrou ao seu lado. Durante o Império,
ele fez uma oposição patriótica, que teria, talvez, evitado Sedan e conservado a
dinastia, se o não considerassem orleanista. Quando concorreu para colocar Luís
Filipe no trono, o pensamento era que uma Monarquia republicana dispensava a
República. A fraqueza da Monarquia de 1830 foi que o princípio da hereditariedade a
minou desde o começo. Luís Filipe destruiu o direito divino para subir, e depois, quis
servir-se dele para durar, transformando-o em bom senso, princípio de autoridade
etc. O que faz a unidade da carreira de Thiers, é que ele foi sempre pelo governo
parlamentar, pelo direito popular representado nas assembléias legislativas. Por
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esse princípio renunciou à presidência da República em mão suspeitas. O segredo
da sua fortuna política consistiu em guardar fidelidade à França.
Muitas vezes um país percorre um longo caminho para voltar, cansado e
ferido, ao ponto donde partiu. É possível que a França volte ainda à Monarquia
legítima, e se Thiers tivesse vivido mais tempo e a República trouxesse novas
desgraças para a França, como a Comuna, talvez fosse o mesmo Thiers quem
entregasse a França ao herdeiro dos seus reis. Mesmo assim, quando a França
comparar os dois tipos de estadistas; Berryer, que não mudou nunca, fosse por uma
convicção monárquica sempre renovada, fosse por um cavalheirismo digno do seu
caráter, e ficou sempre no mesmo lugar à espera de que a França voltasse aí, e
Thiers, que a acompanhou nas suas vicissitudes, eu acredito que ela se
reconhecerá a si mesma no homem que encontrou sempre como seu conselheiro,
que por vezes mudou para ficar ao lado dela e poder valer-lhe com a sua
consumada experiência nos dias em que viesse a precisar de uma palavra amiga.”
Ao reler hoje esta página do meu diário de 1871, vejo que a minha explicação
da unidade da carreira política de Thiers se parece muito com a que, há alguns
anos, foi publicada de Talleyrand, justificando-se em suas Memórias de só ter
mudado com a França e por causa da França.
Esses trechos mostram que em Nova York eu não me achava sob influência
americana, mas que continuava em mim a influência européia e eu era o espectador,
que tinha sido em Londres, quase desinteressado da política, desinteressado pelo
menos de toda a política que não pudesse converter em assunto literário, ou em
nota crítica e observação. Agora direi a minha impressão geral dos Estados Unidos,
o que é hoje a minha idéia da democracia na América.
CAPÍTULO XVI
Traços americanos
Dos Estados Unidos não vi senão muito pouco, como da Inglaterra, por isso
as impressões que reproduzo devem ser entendidas como impressões de Nova York
e Washington, quase exclusivamente. Por uma circunstância fortuita pude ficar em
Nova York quase todo o tempo que passei na legação do Brasil. O meu ministro, o
barão de Carvalho Borges, de quem conservo a mais grata recordação, estava de
luto, por isso ausentara-se de Washington e vivia em Nova York, incógnito, ao
contrário de outros colegas seus, contra cujo realce aos bailes e recepções da
Quinta Avenida os jornais de Washington em vão reclamavam. Além das duas
grandes capitais da União, a política e a cosmopolita, conheci somente Filadélfia,
durante o centenário, Saratoga, durante uma Convenção Nacional, e Niagara e
Boston, que me fizeram perder Newport. A idéia, porém, que tenho é que fizeram
quem viu Nova York e Washington viu tudo que há que ver nos Estados Unidos,
excetuando somente as poucas cidades a que se podem chamar cidades históricas,
que têm o cunho das suas tradições próprias. Quem viu Buffalo, St. Louis, S.
Francisco, Chicago, não viu porém Nova York, como quem viu Saratoga não viu
Newport, ao passo que Boston, Nova Orleans, não têm semelhantes.
Para o engenheiro, para o inventor, para o arquiteto, para todo economizador
de tempo e trabalho, para quem admira acima de todos o gênio industrial deste
século, os melhoramentos que ele tem introduzido na ferramenta humana, os
Estados Unidos são de uma extremidade a outra um país para se visitar e conhecer.
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É ele, talvez, o país onde melhor se pode estudar a civilização material, onde o
poder dinâmico ao serviço do homem parece maior e ao alcance de cada um. Em
certo sentido, pode-se dizer dele que é uma torre de Babel bem sucedida. Na ordem
intelectual e moral, porém, compreendo a arte, os Estados Unidos não têm o que
mostrar, e certa ordem de cultura, toda cultura superior quase não precisa para ser
perfeita e completa de adquirir nenhum contigente americano.
Da política, a impressão geral que tive e conservo é a de uma luta sem o
desinteresse, a elevação de patriotismo, a delicadeza de maneiras e a honestidade
de processos que tornam na Inglaterra, por exemplo, a carreira política aceitável e
mesmo simpática aos espíritos mais distintos. O que caracteriza essa luta é a crueza
da publicidade a que todos que entram nela estão expostos. Como antes eu disse,
não há vida particular nos Estados Unidos. Para a reportagem não existe linha
divisória entra a vida pública e a privada. O adversário está sujeito a uma
investigação sem limites e sem escrúpulos, e não ele, somente – todos que lhe
dizem respeito. Se um candidato à Presidência tiver tido na mocidade a menor
aventura, terá o desgosto de vê-la fotografada, apregoada nas ruas, colorida em
cartazes, cantada nos music-halls, por todos os modos e invenções que o ridículo
sugerir e parecerem mais próprios para captar o eleitorado. A campanha contra
Tilden foi feita com uma revelação de que ele tinha uma vez iludido o fisco, a
respeito do seu rendimento profissional. O político é entregue sem piedade aos
repórteres; a obrigação destes é rasgar-lhes, seja como for, a reputação, reduzi-la a
um andrajo, rolar com ele na lama. Para isso não há artifício que não pareça legítimo
à imprensa partidária; não há espionagem, corrupção, furto de documentos,
intercepção de correspondência ou de confidência, que não fosse justificada pelo
sucesso.
O efeito de tal sistema pode ser moralizar a vida privada, pelo menos a dos
que pretendem entrar para a política, se há moralidade no terror causado por um
desses formidáveis exposures eleitorais, os franceses diriam chantage. A vida
política, porém, ele não tem moralizado. A consciência pública americana é muito
inferior à privada, a moral do Estado à moral de família.
De certo, nos Estados Unidos, os chamados rings, nós diríamos quadrilhas,
roubos políticos, os sindicatos administrativos são denunciados e investigados como
não o seriam talvez em nenhum país, o americano não tendo pena dos adversários,
julgando-se obrigado para com o seu partido a reduzi-los à condição mais
humilhante, a expeli-los um por um, sendo possível, da vida pública. Mas, desde que
a corrupção reina nos dois partidos, que ambos têm as suas chagas conhecidos, as
suas ligações comprometedoras, todas as campanhas a favor da pureza
administrativa têm muito de insincero, de simulado, de convencional, o que não
acontece com as investigações da vida privada. Estas, sim, encontram em toda a
parte a unidade do sentimento e da educação religiosa do país para ecoá-las. A
consciência em voga entre os politicians tem a sua casuística especial.
Isto não quer dizer que na política americana não haja um tipo muito diferente
do do politician, ou, como os antigos lhe chamariam, do demagogo; que, ao lado da
consciência elástica, insensibilizada para todas as espécies de fraude, de corrupção,
de chicana, como males inevitáveis da democracia, não exista a honra, o decoro, a
imaculabilidade. Há homens na política respeitados em todo o país, e que ambos os
partidos reputam incapazes da menos indelicadeza no que toca à honestidade
pessoal. Não há um só, na atividade e na luta partidária porém, a quem se atribua o
caráter preciso para repudiar e condenar os seus correligionários ainda nos piores
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recursos que tiverem empregado. O homem da mais pura reputação no Senado
americano votará solido, sempre que se tratar do interesse geral do partido.
Não havia nada que me desse na América do Norte idéia da superioridade de
suas instituições sobre as inglesas. A atmosfera moral em roda da política era
seguramente muito mais viciada: a classe de homens a quem a política atraía,
inferior, isto é, não era a melhor classe da sociedade, como na Inglaterra; pelo
contrário, o que a sociedade tem de mais escrupuloso afasta-se naturalmente da
política. A luta não se trava no terreno das idéias, mas no das reputações pessoais;
discutem-se os indivíduos; combate-se, pode-se dizer, com raios Roentgen;
escancaram-se as portas dos candidatos; expõe-se-lhes a casa toda como em um
dia de leilão. Com semelhante regime, sujeitos às execuções sumárias da calúnia e
aos linchamentos no alto das colunas dos jornais, é natural que evitem a política
todos os que se sentem impróprios para o pugilato na praça pública, ou para figurar
em um big show.
A grandeza do espetáculo que dão os Estados Unidos é tanto maior, eu sei
bem, quanto mais baixo o nível do político de profissão. A degradação dos costumes
públicos do país, coincidindo com o seu desenvolvimento e cultura; com sua
acumulação de riqueza e de energia, com os seus recursos ilimitados, não quer
dizer outra coisa senão que a nação americana não se importa que administrem mal
os seus negócios, porque não tem tempo para tomar contas. É como uma fazenda
de imensa safra, em que o proprietário ausente fechasse os olhos às dilapidações
do administrador, levando-as à conta de lucros e perdas, inevitável em todo gênero
de negócios. Os americanos deixam-se tratar pelos seus politicians do mesmo modo
que os reis de França pelos seus fermiers-géneraux. Sejam causados pela
ignorância e incapacidade, ou pela corrupção e venalidade, prejuízos há de sempre
haver em toda administração; para impedi-los seria preciso montar um sistema de
fiscalização ruinoso para o país, não só pelo seu custo, como porque seria preciso
distrair para ele dos negócios e de outras profissòes o que o país tivesse de melhor.
Que pode acontecer de pior entregando-se o país à direção de partidos
organizados como associações de seguro mútuo e que para isso recolhem uma
percentagem de rendimento nacional? Uma agravação de impostos? Que importa ao
americano pagar mais alguns cents no dólar e não se incomodar com a política?
Envolverem os politicians a nação em uma guerra estrangeira? O perigo é muito
problemático e a varonilidade do país não teme que o envolvam em uma guerra
sem ele a querer e a achar legítima ou vantajosa. O americano sabe que há no seu
país uma opinião pública, desde que cada americano tem uma opinião sua. É uma
força latente, esquecida, em repouso, que não se levanta sem causa suficiente, e
esta raro se produz; mas é uma força de uma energia incalculável, que atiraria pelos
ares tudo o que lhe resistisse, partidos, legislaturas, Congresso, presidente.
É nesse sentido um grande espetáculo. O governo tem uma capacidade
limitada de fazer mal; a parte de influência e de lucros que a nação abandona à
classe política está circunscrita a uma escala móvel, isto é, proporcional ao
rendimento público, o que permite à profissão vantagens crescentes e progressivas,
mas, como quer que seja, está circunscrita; a nação deixa-se dividir em partidos,
forma e manobra em campos eleitorais, e, apesar da massa das abstenções,
acompanha os maus administradores dos seus interesses; mas todos sentem que
de repente a opinião pode mudar, tornar-se unânime, adquirir a força de um impulso
irresistível, destruir tudo. Nos Estados Unidos o governo não tem assim a
importância que tem nos países onde ele governa; o governo na América é uma
pura gestão de negócios, que se faz, mal ou bem, honesta ou desonestamente, com
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a tolerância e o conhecimento do grande capitalista que a delega. A corrupção
política é, por isso, na América do Norte, já uma vez citei esta imagem a Boutmy,
uma simples erupção na pele, enquanto em outros países ela é um mal profundo,
visceral.
O fato é que nenhuma impressão guardei dos Estados Unidos de ordem
equivalente à impressão inglesa, nem mesmo a de liberdade individual. É certo que
o americano, comparado ao inglês, tem o sentimento da altivez individual mais forte,
porque não há classe nem hierarquia a que ele se curve. O inglês tem reverência
pela posição, pela classe, pelo nascimento; o americano não tem, e isto faz
naturalmente que este se considere mais independente no seu modo de sentir do
que o inglês. É incontestável que a democracia, introduzindo na educação a idéia da
mais perfeita igualdade, levanta no homem o sentimento do orgulho próprio. A
questão é saber, tomando o conjunto dos resultados, se as sociedades antigas
onde as influências tradicionais não se apagaram de todo, como a inglesa, antes são
por assim dizer artificialmente mantidas, não produzem com as limitações de classe
uma dignidade pessoal moralmente superior a essa altivez da igualdade. É preciso
não esquecer, tratando-se do norte-americano, que a igualdade humana para ele
fica dentro dos limites da raça; já não falando do Chim ou do negro – que seria
classificado, se vencesse o espírito americano, em uma ordem diferente da do
homem – nunca ninguém convenceria o livre cidadão dos Estados Unidos, como ele
se chama, de que o seu vizinho do México ou de Cuba, ou os emigrantes
analfabetos e indigentes que ele repele dos seus portos são iguais. Para com estes
o seu sentimento de altivez converte-se no mais fundo desdém que ente humano
possa sentir por outro.
Não quisera eu negar a inspiração superior que há no sentimento de
igualdade na América, como no antigo Israel e na antiga Grécia, onde ele foi um
sopro de liberdade, de heroísmo, de independência, de que procederam os mais
perfeitos tipos na arte e na religião. É evidente que nesse caminho é a Inglaterra que
avança na direção dos Estados Unidos e não os Estados Unidos que retrocedem a
encontrar a Inglaterra. Ninguém que conheça o tipo americano, desde o news-boy,
que grita os jornais na rua, até o king, o rei, de algum monopólio ou especulação,
estradas de ferro, minas de carvão ou de prata, mercado de algodão ou de farinha
de trigo, desconhecerá que a característica, por excelência, do americano é a
convicção de que melhor do que ele não existe ninguém no mundo. A matéria-prima
dos discursos feitos às multidões, ou dos artigos de propaganda eleitoral, posso
dizer que se contém toda nesta frase, que ouvi a um dos oradores de um monstermeeting:
“Nos Estados Unidos (ele disse, como sempre, in America) cada homem é
um rei, e cada mulher uma rainha”. Talvez fosse paradoxo dizer eu que o efeito de
tal sentimento não pode ser senão gerar um ilimitado orgulho, e que do orgulho
renascerá senão a desigualdade, porquanto a igualdade pode ficar entranhada, no
sangue da raça, o servilismo. Não foi assim sempre com as mais livres de todas as
raças e as mais soberbas de todas as democracias? O sentimento, entretanto, da
igualdade perante a lei e perante a justiça, qualquer que possa ser o sentimento da
igualdade de condição, é maior, é mais seguro na Inglaterra do que nos Estados
Unidos. É mais provável que o groom do marquês de Salisbury obtenha justiça
contra seu amo do que o caixeiro de um grande estabelecimento de Nova York
contra o patrão, se este tiver qualquer influência na City-Hall.
Nos Estados Unidos não seria necessário anunciar hoje: “Precisa-se de uma
aristocracia”. Essa aristocracia já existe, ou, pelo menos, se está formando
rapidamente como tudo se forma ali: aristocracia de nascimento, aristocracia de
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fortuna, aristocracia de inteligência, aristocracia de beleza. O que distingue essa
aristocracia sem títulos nem pergaminhos de nobreza, toda de convenção, mas,
apesar disso, uma aristocracia, o que a distingue das outras aristocracias do mundo
é não ser política, ser mesmo o resultado da abstenção política. Em segundo lugar;
– e este é o ponto mais delicado da sociedade americana – a idéia que se insinuou
entre as mulheres desse círculo estreitíssimo, de que o gentleman inglês é um tipo
superior ao dos seus patrícios de maior cultura e distinção. É certo que as
americanas que preferem casar com estrangeiro para pertencerem às rodas mais
exclusivas da aristocracia européia são poucas em relação às que casam com
compatriotas seus, mas a aristocracia é, em si mesma, uma minoria, e são as suas
minorias que melhor lhes representam o espírito. Essa preferência pelo estrangeiro,
por parte da mulher americana, quer me parecer um desastre sentível para o
sentimento da igualdade dos americanos. Se o resultado desse sentimento, e é claro
que o efeito não é de outra causa, é criar uma aristocracia em que o homem é
considerado abaixo do nível da mulher, e menos próprio para inspirar-lhe amor e
desposá-la do que o lorde ou o honorable inglês, pode-se dizer que, na mais alta
esfera da sociedade, aquele sentimento faliu desastrosamente.
Nesse ponto, nenhuma alta sociedade sofre de um mal tão deprimente como
é a consciência que o homem do mundo americano tem de que a sua jovem patrícia,
bela e muitas vezes milionária, reputa o duque inglês ou o conde francês um ente
superior a ele. Não é o título necessariamente o que constitui as vantagens do
estrangeiro que telegrafa para Londres ou Paris o seu veni, vidi, vici, dias depois de
Ter desembarcado; é em parte o prestígio, a sedução do mundo europeu e a idéia
de que só excepcionalmente o americano chegaria a afinar-se com a sociedade
inglesa, francesa ou romana, como ela, americana, se afina; mas é principalmente o
tipo aristocrático de homem que exerce sobre ela essa fascinação desoladora para
os seus compatriotas. Há famílias, e as haverá cada dia mais nos Estados Unidos,
que são famílias patrícias, seja pela imensa riqueza, como os Astors e os
Vanderbilts, pela magistratura consular que exerceram, como os Adams, os
Hamiltons, os Jays, pelas gerações que representam de nomes conhecidos e de
proeminência social, e é evidente que nessa aristocracia, que tende a ter o seu
espírito de classe, a idéia de casamento com estrangeiro, ou de superioridade do
estrangeiro, não pode ser senão a exceção. Mas em uma sociedade é preciso levar
em conta o sentimento do grupo que atrai nela a maior soma de interesse público,
não há dúvida que, no último degrau da sociedade americana, o prestígio do nobre
inglês, dos bons títulos franceses, dos príncipes romanos, vence toda a competição
nacional. Está aí uma terrível ocorrência, contra qual é impotente o gênio
protecionista do país. Apenas, como compensação, poder-se-ia imaginar um
drawback em favor dos americanos que casassem na alta sociedade ou finança
européia. Uma aristocracia, onde as mulheres mais ambicionadas, as que têm a
primazia da beleza, da fortuna, da sedução, julgam o estrangeiro, quando se trata de
amor ou de união, mais ao seu nível do que o seu compatriota, sofre de um
desequilíbrio de ideal entre os dois sexos. Não é senão justo apreciar as sociedades
pela sua flor, pela sua élite, isto é, pelo que elas mais profundamente admiram em si
mesmas e o mundo mais admira nelas.
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CAPÍTULO XVII
Influência dos Estados Unidos
Eu não podia, entretanto, ter vivido quase dois anos nos Estados Unidos sem
em algum ponto ser modificado pela influência norte-americana. Uma coisa é a
Europa, outra a América do Norte. Entre os americanos, o metal do caráter, o fundo
de experiência humana, o tato da vida é, falando do país como uma só pessoa
moral, anglo-saxônia. Os Estados Unidos, como a Austrália e o Canadá, não podem
esconder a sua procedência. O fundo anglo-saxônio revela-se, aumentando ou
diminuído, na coragem e tenacidade, na dureza e impenetrabilidade, no espírito de
empresa e de independência da raça, também na brutalidade e crueldade do instinto
popular, nas rixas de sangue, na bebida, nos linchamentos, na sede insaciável de
dinheiro, e também, outras traços, na necessidade de limpeza física e moral, no
espírito de conservação, na emulação e amor-próprio nacionais, na religião, no
respeito à mulher, na capacidade para o governo livre.
Que homem diferente, porém, é o americano do inglês! Os moldes são tão
diversos que, para explicar a diferença, é preciso admitir uma influência modificadora
mais forte do que a de instituições sociais, uma influência de região, – cada grande
região do globo produzindo como o tempo uma raça sua, diferente das outras. As
instituições modificam o caráter de um povo, mas não se provou ainda que lhe
modificassem o tipo e o temperamento físico. Qual seria a diferença entre o grego do
tempo de Milcíades e do tempo de Alexandre ou de Trajano? Qual a diferença do
napolitano do tempo de Afonso o Grande para o rei Umberto, ou do português
manuelino para o de hoje?
A comparação do maquinismo político-social entre a América do Norte e a
Inglaterra é, em quase tudo, favorável a esta. As instituições inglesas, tanto as
políticas quanto as judiciárias, tanto as públicas quanto as privadas, têm mais
dignidade, mais seriedade, mais respeitabilidade. Na Câmara dos Comuns não se
imagina o processo do lobbying, não há na administração inglesa o spoils system,
ninguém pensaria em squaring um tribunal inglês, não há na Inglaterra um trecho de
território em que os cidadãos só tenham confiança na justiça que fazem por suas
mãos, como nos lynchings americanos. A todos os que têm que tratar com a
administração, que estão na dependência da justiça, a organização americana
oferece muito menos garantias de eqüidade e menor proteção do que a inglesa.
Isto, por um lado; por outro, quem entra na vida pública tem que procurar nos
Estados Unidos as boas graças de indivíduos muito diferentes dos que na Inglaterra
abrem aos principiantes as portas da política; além disso, tem que aprender por um
catecismo muito mais relaxado. A intervenção do grande pensador, do grande
escritor, do homem competente, faz-se sentir na Inglaterra mais do que nos Estados
Unidos, onde as massas obedecem a influências que não têm nada de intelectual e
não tem apreço por nenhuma espécie de elaboração mental. Tudo o que é superior
tem, com efeito, o cunho da individualidade, envolve, portanto, desdém pela
sabedoria das massas. O gênio político, qualquer que seja, está para elas eivado de
rebeldia. Singularmente, o cidadão vale menos nos Estados Unidos do que na
Inglaterra. Para ser uma unidade na política americana, é preciso que o indivíduo se
matricule em um partido, e, desde esse dia, renuncie à sua personalidade. Na
Inglaterra não há semelhante escravidão do partido. O país é governado, como os
estados Unidos, por dois partidos que se alternam e se equilibram, mas os partidos
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ingleses são partidos de opinião, não são machines, como os americanos, das quais
certo número de bosses governam e dirigem os movimentos.
Tomando-se, porém, o indivíduo sem relação ao maquinismo político, o
homem que não tem dependências da administração nem da justiça e que denuncia
o direito de desgovernar ele também os seus concidadãos, os Estados Unidos são o
país livre por excelência. Os americanos são uma nação que quisera viver sem
governo e agradece aos seus governantes suspeitarem-lhe a intenção. Daí a
popularidade de seus presidentes: eles não fazem sombra ao país, não pesam
sobre a nação. A pressão de cima para baixo, do governo sobre a sociedade, a que
a humanidade se habituou de tempos imemoriais, de forma a não poder viver sem
ela, faz-se sentir nos Estados Unidos menos do que em outra qualquer parte, menos
do que na Inglaterra, onde a proteção governamental está sempre presente. A
coluna da autoridade é menor sobre os ombros do americano do que sobre os de
qualquer outro povo; a sua respiração é a mais franca, a mais larga, a mais profunda
de todas. O governo pode ser melhor, mais perfeito na Inglaterra: que lhe importa
isso, se o que ele quer é mesmo que a ação do governo se vá cada dia restringindo
e ele a sinta menos e tenha menos que ver com ela? A questão é saber se a coluna
de autoridade, que é hoje tão leve nos Estados Unidos, não virá um dia a ser a mais
pesada de todas. O sistema americano pode bem corresponder, dada a diferença de
época e adiantamento, à liberdade pessoal de que gozaram sempre mais ou menos
as raças que tinham espaço ilimitado para se estenderem a escassa vizinhança em
país novo. No fundo, essa extrema liberdade é uma forma de individualismo, de
isolamento, de vida à parte, de responsabilidade ainda não formada, do homem na
sociedade. Isoladamente, o americano será, como eu disse, o mais livre de todos os
homens; como cidadão, porém, não se pode dizer que o seu contrato de sociedade
esteja revestido das mesmas garantias que o do inglês, por exemplo. A autoridade é
menor sobre os seus ombros, mas a solidariedade humana é também mais frouxa
em sua consciência.
Uma coisa o governo americano não é: não é o governo do melhor homem,
como pretendiam ser as democracias antigas. Governo pessoal, as presidências
podem ser, pelo menos foram algumas acusadas de o ser; não se pode, porém,
apontar neste século o homem de influência nos Estados Unidos, o Gladstone ou o
Gambeta americano. A nação dispensa tutores, diretores, conselheiros, rejeita tudo
o que pareça patronizing, ares de proteção e condescendência para com ela. Aos
seus olhos, o que faz um estadista considerável é a soma de confiança que ele lhe
merece, é o reflexo da satisfação que causa o Uncle Sam.
A idéia de que o seu governo é o mais forte do mundo e o que mais
economiza e oculta a sua força, é o orgulho por excelência do americano. Entre o
militarismo europeu e a democracia desarmada dos Estados Unidos pode um dia
rebentar um conflito que hoje parece quase um paradoxo figurar, mas, até se
experimentar em uma grande guerra estrangeira, como se provou em uma grande
rebelião, a solidez e a elasticidade da americana, não se a pode considerar superior
à velha textura européia.
O que se pode dizer é que os Estados Unidos não tiveram ainda os mesmos
perigos de que se acautelar do que a Europa. Esse governo que muda todos os
quatro anos, pode ser o mais forte do mundo, mas não foi experimentado nas
mesmas condições que os outros, e que para estes, que são governos armados e
em constante vigia pelo risco das coalizões estrangeiras, como os magníficos
transatlânticos, de vastos salões iluminados, cobertas altas, camarotes espaçados e
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arejados, verdadeiras cidades flutuantes, estão como habitação para os navios de
combate.
A União, comparada com a Inglaterra, é como a prairie americana comparada
ao pátio interior de um castelo normando. Em uma, há de todos os lados o espaço
descortinado, a planície sem fim; em outro, o espectador está fechado por altas
paredes, que lhe contam sempre a história de outras épocas. O passado pesa sobre
o presente na Inglaterra e o limita; na América, não há vista retrospectiva. De tudo
isto resulta para o americano um sentimento de independência, que o faria, como
fazia o grego, sentir-se metade escravo, se lhe dessem um rei, mesmo quando efeito
da realeza fosse aumentar a sua parte efetiva de direitos e de influência na
comunhão. É nisto que consiste a maior “liberdade” americana: no sentimento de
igualdade hierárquica entre governantes e governados.
Não havia perigo de que eu adquirisse essa idiossincrasia americana: era
evidente para mim que ela era o resultado das condições em que o país crescera e
que, se a independência tivesse sido feita com um príncipe inglês, como a nossa foi
feita com o herdeiro do trono, os Estados Unidos. em um século de progresso e de
adiantamento, teriam desenvolvido para com a sua casa reinante o mesmo
sentimento de loyalty dos ingleses. Se a realeza, na Inglaterra, passou, no nosso
tempo, pela metamorfose que se observa do reinado de Jorge IV para o reinado de
Vitória, teria passado na América do Norte por uma transformação ainda maior. Mr.
King ou mrs. Queen seria uma pessoa muito mais popular do que mr. President, e
diariamente receberia mais esmagadores shake-hands ou mais familiares cartões
postais. No Brasil a Monarquia foi o que vimos, uma pura magistratura popular;
como não seria nos Estados Unidos, onde o princípio ativo, a força corrosiva da
democracia é ainda mais enérgica? A Monarquia na Nova Inglaterra, teria,
provavelmente, exercido maior influência sobre as velhas Monarquias européias do
que exerceu a grande República, e outra espécie de influência sobre o resto da
América.
Depois da recepção e do acolhimento que d. Pedro II teve nos Estados
Unidos em 1876, não era mais lícito duvidar de que para a inteligência culta do país
a Monarquia constitucional, representada por uma dinastia como a brasileira, era um
governo muito superior às chamadas repúblicas da América Latina. Perante
multidões americanas nem sempre conviria, talvez, ao orador dizer isso; ele poderia
às vezes declamar que a pior das repúblicas é um progresso sobre a melhor das
monarquias, mas eu sentia que falar assim era o privilégio do demagogo
irresponsável, e que esse não fora o sentimento dos Washingtons, dos Hamiltons,
dos Jeffersons, nem é o dos que procuram seguir-lhes as tradições. O efeito do
republicanismo norte-americano só podia ser para mim o de corrigir o que houve de
supersticioso no meu monarquismo, tirar-lhe tudo o que parecesse direito divino,
consagração super-humana. Entre os dois espíritos, o inglês e o norte-americano, eu
não via oposição, como não há oposição entre as duas raças e as duas sociedades;
não havia nada mais fácil de compreender e conciliar do que a admiração com que
Gladstone fala dos Estados Unidos e a admiração dos escritores mais respeitáveis
da América pela Constituição inglesa.
Nenhuma das minhas idéias políticas se alterou nos Estados Unidos, mas
ninguém aspira o ar americano sem achá-lo mais vivo, mais leve, mais elástico do
que os outros saturados de tradição e autoridade, de convencionanismo e
cerimonial. Essa impressão não se apaga na vida. Aquele ar, quem o aspirou uma
vez, prolongadamente, não o confundirá com o de nenhuma outra parte; sua
composição é diferente da de todos.
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Quanto a mim, fui tratado com tanta benevolência, encontrei tão generoso
acolhimento nos Estados Unidos, que ainda hoje me reconforto nessas doces
recordações. A impressão geral que me deixou o que vi na América do Norte, é uma
impressão de nitidez; tudo é nítido, de contorno perfeito e incisivo, como uma
medalha antiga. O inglês fará tudo sólido; o francês elegante; o americano procura
fazer nítido, clear cut. Isso reconhece-se logo em qualquer estampa americana. Há
uma perfeição à parte, que é a perfeição americana, distinta do último toque que o
inglês ou o francês dá as coisas, perfeição real, incontestável, como é a japonesa.
Pode-se preferir o modo de ver, ou, antes, o modo de olhar – a arte não é no fundo
senão um modo de olhar, uma questão de ângulo visual – ,do europeu ao do
americano, é também isso em grande parte uma questão de raça, mas não há
dúvida que o traço americano é um traço que alcançou, por sua vez, a perfeição.
Tudo o que vi me pareceu feito, desenhado com esse traço, que eu não confundiria
com outro. O que o distingue é que ele não exprime, como os outros, um estado de
espírito ou aspiração de ordem puramente estética; que não exprime uma resolução,
uma vontade, um caráter. Se não fosse a aspiração histórica, de que eu não
poderia, nem quisera, desfazer-me, nenhuma residência, nenhuma vida, nenhum
espetáculo me teria nunca parecido tão encantador como o de Nova York. Não sei
se o céu de Nova York não me pareceu o mais belo do mundo; o que sei é que ele
derrama em ondas de luz a alegria, a vida, a coragem, sobra a mais admirável
procissão de mocidade e de beleza humana que jamais passou diante dos meus
olhos, a que flui e reflui todas as tardes e manhãs da Quinta Avenida para o Central
Park.
Ao americano, ao homem, não à mulher, e ao homem que não pertence à
elite do país, faltará o que se tem convencionado chamar maneiras, os toques ou
sinais, desconhecidos dos profanos, pelos quais os iniciados nos segredos
mundanos se reconhecem entre si; isto quer dizer somente que a americana é uma
raça que ainda está crescendo na mais perfeita igualdade e ganhando a vida em
desenfreada competição× Não há, porém, no mundo uma escola igual a essa para se
aprender o que, de hora em diante pelo menos, é o mais importante dos
preparatórios da vida, – a arte de contar consigo só. O menino americano, e quando
se diz o menino nos Estados Unidos entende-se a menina também, é metido desde
quase a primeira infância em um banho químico que lhe dá a cada fibra da vontade
e rijeza e a elasticidade do aço× Qualquer que seja o valor da cultura, nenhum pai
preferirá deixar ao filho mais um sentido intelectual a deixar-lhe o poderoso pick-meup
americano, o cordial que impede a enervação nos grandes transes morais× E que
o jogo da vida nos tempos modernos, – muito mais nos séculos que vão vir, em que
a concorrência será ainda mais numerosa e implacável, – não se parece com figuras
de minuete ou com divertimentos campestres do século passado, como os vemos
em um Boucher ou em um Goya; parece-se com as chamadas montanhas russas: é
um incessante despenhar a toda a velocidade, montanha abaixo, de trens que com o
impulso da descida transpõem as escarpas fronteiras para se precipitarem de novo e
de novo reaparecerem mais longe, e para essa contínua sensação de vertigem é
principalmente o coração que precisa ser robustecido. Segundo toda probabilidade,
os Estados Unidos hão de um dia parar, e então terão tempo para produzir a sua
sociedade culta, como os velhos países da Europa. Já nos Estados Unidos porções
da sociedade que param e querem permanecer em repouso; essas formam o
primeiro indício de uma aristocracia, que um dia será um grande poder na União,
uma grande influência ou conservadora ou artística.
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Em uma entrevista que concedeu há anos a um repórter americano, Herbert
Spencer concluiu com esta previsão sobre o futuro dos Estados Unidos: “De
verdades biológicas deve-se inferir que a mistura eventual das variedades aliadas da
raça Ariana que formam a população hão de produzir um mais poderoso tipo de
homem do que tem existido até hoje, e um tipo de homem mais plástico, mais
adaptável, mais capaz de suportar as modificações necessárias para a completa
vida social. Por maiores que sejam as dificuldades que os americanos tenham que
vencer e as tribulações por que tenham que passar, eles podem razoavelmente
contar com uma época em que hão de produzir uma civilização mais grandiosa do
que qualquer que o mundo tenha visto”.
É possível que seja aquela a lei biológica da mistura ariana, mas até hoje
ainda nenhum galho americano de tronco europeu mostrou poder dar a mesma flor
de civilização que a da velha estirpe. É possível que a civilização americana venha
um dia a ser mais grandiosa do que qualquer que o mundo conheceu, mas eu
consideraria perigoso, por enquanto, renunciar a Europa nos Estados Unidos a
tarefa de levar a cabo a obra da humanidade. Reduzida esta aos atuais elementos
americanos, muita nobre inspiração talvez nunca mais se pudesse renovar e o gênio
da raça humana não viesse nunca a reflorir. A educação americana parece a única
que não é convencional, que não é uma pura galvanização de estados de espírito de
outras épocas, de ideais clássicos e literários, que homens que vivem entre livros
insinuam aos que não têm tempo para ler. A idéia tem na América do Norte muito
menor papel na vida do que nos outros países, onde tudo está escrito e convertido
em regra, e dos quais se pode dizer, invertendo a célebre frase, que nada lhes cai
sob os sentidos que não tenha estado primeiro na inteligência. Os americanos, em
grande escala, estão inventando a vida, como se nada existisse feito até hoje. Tudo
isto sugere grandes inovações futuras, mas não existe ainda o menor sinal de que a
elaboração do destino humano ou a revelação superior feita ao homem tenha um dia
que passar para os Estados Unidos× A sua missão na história é ainda a mais
absoluta incógnita. Se ele desaparecesse de repente, não se pode dizer o que é que
a humanidade perderia de essencial, que raio se apagaria do espírito humano; não é
ainda como se tivesse desaparecido a França, a Alemanha, a Inglaterra, a Itália, a
Espanha.
CAPÍTULO XVIII
Meu pai
Por onde quer, entretanto, que eu andasse quaisquer que fossem as
influências de país, sociedade, arte, autores, exercidas sobre mim, eu fui sempre
interiormente trabalhado por outra ação mais poderosa, que apesar, em certo
sentido, de estranha, parecia operar sobre mim de dentro, do fundo hereditário, e
por meio dos melhores impulsos do coração. Essa influência, sempre presente por
mais longe que eu me achasse dela, domina e modifica todas as outras, que
invariavelmente lhe ficam subordinadas. É aqui o momento de falar dela, porque não
foi uma influência propriamente da infância nem do primeiro verdor da mocidade,
mas do crescimento e amadurecimento do espírito, e destinada a aumentar cada vez
mais com o tempo e a não atingir todo o seu desenvolvimento senão quando
póstuma, essa influência foi a que exerceu meu pai...
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Quando eu o vi pela primeira vez, em 1857, ele tinha 44 anos e acabava de
deixar o Ministério da Justiça. O Gabinete Paraná-Caxias (1853-57) fora o mais
longo que o Império até então tinha tido e ficou sendo a mais brilhante escola de
estadistas do reinado. O grupo dos “moços” que o marquês de Paraná reuniu em
torno de si, mostra de que maneira ele lia os homens e o futuro. Paranhos,
Wanderley, Pedreira, Nabuco estavam todos destinados a representar primeiros
papéis em política. Esse gabinete foi conhecido como o Ministério da Conciliação.
Ele correspondia ao pensamento, aceito pelo imperador depois do choque da última
guerra civil do Império, de abrir a política aos elementos liberais proscritos, sem tirar
a direção dela ao espírito conservador. Antes de entrar para o Ministério, fora
Nabuco quem melhor definira o alcance e os limites dessa nova política, da qual
devia ficar depois da morte de Paraná, e por muito tempo, quase que o solitário
continuador. Citarei em trecho desse seu discurso de 1853 como simples deputado,
discurso-programa, pode-se dizer, pelo muito que será interpretado e invocado
depois que por ele é feito ministro, porque basta esse trecho para dar idéia do seu
modo de insinuar nos espíritos uma direção nova, um rumo diverso do que se ia
levando.
É dos seus discursos o chamado a ponte de ouro. Os discursos de Nabuco
tinham entre os contemporâneos cada um o seu nome, ou, como esse, tirado pelos
adversários do alcance, da intenção que lhe atribuíram, ou dado pela imagem ou
frase mais expressiva, ou compreensiva, de que ele se serviria para caracterizar a
situação. “Eu entendo, dizia ele falando da idéia de conciliação, a qual estava no ar,
que é preciso fazer alguma concessão no sentido que o progresso e a experiência
reclamam, para que mesmo o orgulho e o amor-próprio não se embaracem ante a
idéia da apostasia; para que a transformação seja explicada pelo novo princípio,
pela modificação das idéias. A conciliação como coalizão e fusão dos partidos, para
que se confundam os princípios, para que se confundam os princípios, para que se
obliterem as tradições, é impraticável, e mesmo perigosa, e por todos os princípios
inadmissível; porque, destruídas as barreiras do antagonismo político que as
opiniões se opõem reciprocamente, postas em comum as idéias conservadoras e as
exageradas, estas hão de absorver aquelas; as idéias exageradas hão de triunfar
sobre as idéias conservadoras; as idéias exageradas têm por si o entusiasmo, as
idéias conservadoras somente à reflexão; o entusiasmo é do maior número, a
reflexão é de poucos; aquelas seduzem e coagem, estas somente convencem... A
história nos diz que nestas coalizões a opinião exagerada ganha mais que a opinião
conservadora...” E em seguimento: “Ouvi com repugnância uma idéia proferida nesta
casa, que os partidos por si é que se deviam conciliar. Entendo ao contrário que a
conciliação deve ser a obra do governo e não dos partidos, porque no estado atual,
se os partidos por si mesmo se conciliarem, será em ódio e despeito ao governo, e a
transação, versando sobre o princípio da autoridade, não pode deixar de ser
funestíssima à ordem pública e ao futuro do país...”
Esses quatro anos de Ministério foram para ele extremamente trabalhosos,
mas por igual fecundos. Meu pai vinha da magistratura e da Câmara com uma
reputação feita de jurisconsulto. No Ministério da Justiça ele a consolidou. Não tento
agora um resumo de sua obra, que extensamente recompuz em Um Estadista do
Império. Escolho alguns traços somente para definir a sua individualidade e a sua
influência. Coube-lhe em primeiro lugar acabar inteiramente com o tráfico de
africanos que Eusébio de Queiroz, seu antecessor, ferira de morte, mas que não
queria desaparecer senão mui lentamente; a menor fraqueza da parte de uma futura
administração fá-lo-ia renascer com dobrada ânsia de aproveitar a monção, porque
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seus quadros e material conservavam-se intatos no Brasil e em África. Nabuco
propõe como recurso extremo tirar-se o julgamento do crime aos jurados. Esse golpe
na “instituição popular” parecia uma enormidade aos idólatras do preconceito liberal:
ele, porém, sustentou-o com razões de uma coerção moral e social absoluta. “Em
1850, vós o sabeis, disse ele à Câmara, o grande mercado dos escravos era nas
costas; é aí que havia grandes armazéns de depósito onde todos iam comprar;
mediante essa lei de 5 de setembro de 1850”, – a lei de Eusébio de Queiroz, –
“essas circunstâncias se tornaram outras, os traficantes mudaram de plano. Apenas
desembarcados os africanos são para logo, por caminhos impérvios e por atalhos
desconhecidos, levados ao interior do país. A face destas novas circunstâncias que
pode o governo fazer com a lei de 4 de setembro de 1850, cuja ação é somente
restrita ao litoral? Se desejamos sinceramente a repressão, se não queremos
sofismá-la, devemos seguir os africanistas em seus novos planos... Não é para
abusar que o governo quer estas disposições, porque para abusar eram bastantes e
poderosos os meios que estão hoje à sua disposição... Um governo, a menos que
desconheça a sua missão, não pode por amor de um interesse comprometer os
outros interesses da sociedade: é na combinação de todos eles que consiste o
grande problema da administração pública... Eu vos disse que o governo tinha o
desejo sincero de reprimir o tráfico e não queria sofismar a repressão: não será
sofismar a repressão o encarregar ao júri o julgamento deste crime?... Os
africanistas não hão de deixar de procurar para o desembarque aqueles sítios em
que a opinião for favorável ao tráfico; não hão de internar os africanos senão para os
lugares em que acham proteção, e o júri desses lugares, os cúmplices, os
interessados, os coniventes no crime, podem julgá-lo?...” O governo triunfou, a lei
proposta foi votada pelas Câmaras... Ter ousado propor a derrogação da
competência do júri quando o tráfico estava expirante, era a coragem do verdadeiro
homem de Estado, cuja divisa deve ser o nil actum reputans de César. A glória não
seria mais de repressão depois do golpe de Eusébio; este a tinha tirado toda a
antecessores e sucessores igualmente; o que restasse a quem viesse depois dele
era somente o dever. Mais de uma vez meu pai teve que fazer frente aos defensores
teóricos da intangibilidade do júri para fazer triunfar o princípio superior da defesa
social. Assustava-o a estatística da impunidade, e entre as causas desse estado de
coisas ele contava o poderio das influências do interior que dominavam o júri e por
esse meio aumentavam e mantinham em obediência a sua vassalagem. Como
remédio propunha a concentração do júri nos lugares povoados bastante para terem
uma opinião independente.
Essa era a sua qualidade principal de político: adaptar os meios aos fins e
não deixar periclitar o interesse social maior por causa de uma doutrina ou de uma
aspiração. Como se mostrou com o júri, mostrou-se, ele, magistrado, com a
magistratura. A distribuição da justiça foi um de seus maiores empenhos na ordem
administrativa, uma boa magistratura, eficiente, instruída, prestigiada, era para ele a
solução de metade dos nossos problemas; levantar a vocação de juiz por todos os
meios ao alcance do Estado seria o complemento do seu outro desideratum:
levantar a vocação religiosa, formar um clero a cujas mãos se pudesse entregar a
guarda dos dez mandamentos, o depósito da moral e dos costumes. No entanto
será ele o principal sustentador das aposentadorias forçadas de magistrados
vitalícios; ele quem transformará em máxima do governo, em aspiração para os
homens de Estado, as palavras de um antigo chanceler francês, quando disse:
“Prefiro mil vezes ser julgado por um magistrado venal, porém, capaz, a sê-lo por um
magistrado honesto, porém, ignorante, porque o magistrado venal não faltará à
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justiça senão nas causas em que tiver interesse em fazê-lo, enquanto que o
magistrado ignorante só por um mero acaso pronunciará uma boa sentença”.
Da mesma forma com o clero. Como ministro da Justiça, ele dá um forte
impulso à educação do clero, propõe a criação de faculdades teológicas; é dele o
decreto que confere aos bispos o poder ex-informata conscientia sobre os seus
sacerdotes, sem o qual não seria praticável a arregimentação passiva da milícia
eclesiástica; e no entanto é ele quem interrompe no Brasil o noviciado monástico.
Seu pensamento, longe de se suprimir as ordens religiosas, era regenerá-las,
restituí-las à desejada pureza, ou, como ele disse em uma frase que se gravou na
memória de Pio IX, “levantar um muro de bronze entre o novo e o velho clero”.
Assim também serviu a Monarquia com lealdade e desinteresse; jovem ainda,
acadêmico de Olinda, partiu dele o primeiro grito ouvido e repercutido no Norte
contra as tendências republicanas de 7 de abril, mas a prerrogativa monárquica não
encontrou entre nós mais forte barreira do que fosse o seu espírito liberal fortemente
imbuído do preconceito constitucional. É característico do seu modo de compreender
a posição de conselheiro de Estado a franqueza com que perante o próprio
imperador ele sustenta máxima, – o rei reina e não governa.
De 1868 a 1871, em que a idéia foi abraçada pelo visconde do Rio Branco
que a converteu em lei, meu pai foi o principal agitador da libertação das gerações
futuras. Em 1866 ele votara por essa reforma em despacho de ministros e em 1867
fora o seu mais extremo defensor no Conselho de Estado, como relator do projeto
que depois se converteu na lei de 28 de setembro. Distribuindo no dia da vitória os
louros do triunfo. Francisco Octaviano render-lhe-á este tributo: “Ao seu nobre
colega o sr. Nabuco de Araújo também é indisputável a glória pelo zelo com que no
Conselho de Estado, na correspondência com os fazendeiros e na tribuna por meio
de eloqüentes discursos, fez amadurecer a idéia e tomar proporções de vontade
nacional”.
Essa foi a reforma a que ele se dedicou com maior interesse e amor...
Também desde 1866 o meu sonho, minha ambição para ele era que o seu nome
ficasse associado ao primeiro ato de emancipação do reinado... Quantas cartas
minhas escritas da academia, e conservadas, como ele fazia com todos os papéis
que recebia, encontrei depois exprimindo aquela esperança íntima de que ele viesse
a ser o Lincoln brasileiro! E de certo de sua carreira nenhum traço me é mais
precioso do que esse que reconstruí com fidelidade em sua Vida e que faz dele,
assim como Rio Branco foi o Robert Peel, o Cobden daquele primeiro movimento
abolicionista. Assim, se ao entrar eu para a Câmara em 1879 ele vivesse ainda, ao
passo que sua presença no Senado, modificaria em muita coisa a minha “liberdade
de ação, em um ponto, tenho a mais completa certeza, o meu papel teria sido o
mesmo, ainda mais acentuado: na questão dos escravos. Nessa ele não me
corrigiria nem me conteria. A sua atitude seria, como havia de ser a de Rio Branco
se assistisse a mais uma sessão legislativa, francamente favorável à abolição. Se
um e outro vivessem, o caráter revolucionário do movimento teria talvez sido evitado,
porque em ambos os partidos haveria no momento decisivo – depois foi tarde –,
quem se identificasse com a propaganda, impedindo assim no futuro a aspiração
liberal humana de tornar-se em fermento político... Eu não tenho, graças a Deus,
dúvida que esta seria a sua atitude, e posso assim dizer que em 1879 não fiz como
deputado senão continuar do ponto em que ele ficara, substituir-me a ele, com a
diferença natural entre minha mocidade e sua velhice, desenvolvendo em favor dos
escravos existentes o pensamento que ele assinalara como um dever nacional, tanto
no preparo como na discussão da lei que libertou as gerações futuras.
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Para o fim da vida seu liberalismo tinha tomado um tom muito acentuado, mas
era sempre sob formas concretas que ele encarava a liberdade. Assim ocupava-se
sobretudo das garantias judiciais da liberdade individual. Ele tinha um certo número
de fórmulas constitucionais, de máximas políticas, que faziam parte de sua lealdade
tanto à causa monárquica como à causa liberal. Conservador na mocidade e em
toda a parte da carreira em que a vida se expandia e a emulação o inspirava, foi na
idade do retraimento que ele rompeu com o partido da tradição, que a seu ver se
tornara uma oligarquia, tomando a forma de um triunvirato; chefe liberal, porém,
mostrou sempre preferir a maneira, o compasso, a compostura da velha escola à
lufa-lufa, promiscuidade e indisciplina do seu novo campo.
Estes traços bastariam para desenhar o homem de Estado: era uma natureza
liberal, com um impulso imaginativo muito pronunciado, vendo distintamente o ideal
político, mas querendo realidades e não fantasmas, preferindo um pouco de
liberdade que se pudesse deixar como a herança aos filhos, um bem-estar relativo, a
grandes direitos ilusórios, em cuja posse não se pudesse entrar; ou a grandes
reformas do mecanismo político que em nada melhorassem a condição do país.
Tinha um fundo de idealismo, formado de princípios inflexíveis, mas corrigido
sempre pela intuição nítida dos efeitos práticos da lei. Era um chefe de partido alheio
à pequena política, o que quer dizer que exercia uma espécie de autoridade moral
que os amigos e adversários compararam por vezes ao poder espiritual dos antigos
mikados.
Vivendo no meio de uma elite verdadeiramente notável de homens de Estado,
oradores, legisladores, a mais rica dos dois reinados em talento parlamentar,
tradições políticas e conhecimentos administrativos, ele teve longo tempo entre eles
por admissão geral o papel de oráculo. Para o fim falava raramente e uma tristeza
invencível misturava-se às suas adivinhações patrióticas. Hoje dir-se-ia, lendo-o, que
a uma distância de doze ou quinze anos o fim das instituições liberai projetava na
frente a sua sombra e que ele a via avançar sobre a tribuna do Senado.
Foi muitos anos depois e sua morte, estudando-lhe a vida, meditando sobre o
que ele deixou do seu pensamento, compulsando o vasto arquivo por ele
acumulado, a sua correspondência política, os testemunhos, as controvérsias,
suscitadas pela sua ação individual e as conseqüências a ela atribuídas por amigos
e adversários, que abrangi a personalidade política de meu pai. Na mocidade serme-
ia impossível ter dele a compreensão que depois formei; eu não teria as
faculdades para isso, a calma necessária para admirar o que só fala à razão, o
espírito de sistema, o gênio construtor. Mas se o estadista só podia ser medido e
avaliado por mim em outra fase do meu desenvolvimento, não sofri, toda a vida,
influência direta e positiva como a admiração que tive pelo homem. Sua grande
ciência eu sabia bem, eu via, estar nele e não nos livros, que literalmente não eram
senão autoridades de que ele se servia para o público, juízes, colegas... Mais,
porém, do que sua ciência, o que me dominava nele era a harmonia visível da sua
estrutura mental e moral, manifestada por uma serenidade e uma doçura sem igual.
Em 1860 meu pai mudou-se do Catete para a praia do Flamengo, onde
residiu até a morte. A casa era uma dessas construções maciças ainda do bom
tempo da edificação portuguesa do Rio de Janeiro, com proporções no interior de
um trecho de palácio ou de convento. Ali, naqueles salões, e quartos que eram
salas, ele estava à vontade, tinha o espaço e, com o mar em frente de suas janelas,
a variedade e o movimento exterior, precisos a um recluso dos livros. A sociedade
do Rio de Janeiro vinha às suas partidas e recepções; vizinhos, nos domingos, à
missa rezada em seu oratório; durante a sessão das Câmaras, deputados
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pernambucanos, e sempre os íntimos, como o marquês de Abrantes, Quarahim, os
antigos colegas. Isto, além das vezes que ia de carruagem ao Senado ou ao
escritório, constituía toda a distração que ele tinha fora do seu gabinete. Sua vida,
pode-se dizer, era exclusivamente cerebral, e nunca teve tempo, (nem um dia,
talvez, em toda ela), de interromper, de suspender, essa labor contínuo, que era
todo ele um serviço forçado, nenhuma parte, nem a mais insignificante sequer,
sendo de sua própria escolha ou inclinação...Desse modo de viver, encerrado entre
altas muralhas de livros, saindo da sua cela somente para se encontrar em presença
da família com os que a simpatia ou a fidelidade reunia em torno dele, resultou
aquela bondade cativante, que foi o seu principal traço.
É para mim hoje uma causa de arrependimento e compunção o não ter tido
como principal aspiração saciar-me, saturar-me dele, fazer do meu espírito uma
cópia, um borrão mesmo, do que havia impresso e gravado no dele, quando mais
não fosse, das notações que um instante retive, mas deixei apagar... Há lacunas que
não me seria possível reparar...Estou-me lembrando agora dos grandes volumes
encadernados que faziam companhia no degredo do escritório à duplicata dos
velhos praxistas...Era a coleção dos periódicos em que colaborara ou que redigira no
Recife... Estavam ali vinte anos de sua vida...Toda essa série dispersou-se,
desapareceu... Porque não coincidiu o interesse profundo, incomparável, que tudo
isso depois me inspirou com o tempo em que vivi ao lado dele? Este desejo de
recolher os menores vestígios do seu pensamento, os traços mais fugitivos da sua
reflexão, eu sempre era, na esfera em que ele produzia, pessoal, criadora,
transformadora do assunto que tratava, só me veio quando já não podia recorrer a
ele, pedir-lhe esclarecimentos, fazê-lo animar para mim aquela poeira com a vida
que estava só nele, dar-me a chave, o espírito da época, o caráter, o alcance, a
verdade real do que ali se representava, e de que só ele possuía as limitações, a
escala, o padrão definitivo em que tudo devia ser tomado...E em relação aos
personagens que conhecera, com quem vivera! Porque não fiz passar diante dele,
sem cansá-lo nem forçá-lo, a galeria dos seus contemporâneos para apanhar o
vestígio que lhe ficara de cada um?... No entanto, quanto não conversei com ele!
Anos inteiros meu maior prazer eram as horas que ele nos dava cada dia em que me
embebia em ouvi-lo e, ainda mais, em vê-lo... Hoje sinto não ter tido a ambição de
não ser senão o aparelho que recebesse para conservar o mais que fosse possível
dele, e cuja presença continua ao seu lado lhe fosse recolhendo as reminiscências,
os pontos de vista, as imagens representativas, em cinqüenta anos de atividade
cerebral traçaram em seu pensamento.
Feito este ato de contrição pelo que deixei de aproveitar dele para minha
própria formação e pelo que deixei perder ao seu espólio intelectual, a verdade é
que nenhuma sanção moral foi por muito tempo tão forte para mim como a
consciência da relação que me prendia a ele e que em todo o tempo estive sempre
pronto a renunciar a uma palavra dele – que a não disse –, a minha inspiração pela
sua, o papel que eu ambicionasse pelo que ele me desse. Como eu disse, só muito
mais tarde, vinte anos depois de o ter visto pela última vez, pude avaliar o que
chamo hoje o seu gênio político e sentir por ele toda a admiração consciente,
objetiva, de que sou capaz. Mas ainda assim o sentimento da sua superioridade no
seu tempo foi para mim instintivo. Longe dele, na minha esfera intelectual
independente, eu exprimiria muitas opiniões, diversas das suas, teria muito exagero
da linha que ele levava; não haveria hipótese, porém, de não ceder eu à menor
pressão que ele julgasse preciso exercer sobre mim, a uma persuasão que me
quisesse incutir. A pretensão da mocidade, que se inspira em si mesma e decreta a
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sua infalibilidade, porque só vê o lado das coisas ao seu alcance, desapareceria
sem hesitação a um apelo da sua ternura, a um toque da sua razão superior.
Prouvera a Deus tivesse sido assim nos primeiros anos da curiosidade intelectual
insaciável, quando primeiro travei conhecimento com a terra incógnita assinalada no
mapa da fé como o limite da própria imaginação.
O espetáculo da sua devoção concorreu mais do que nenhuma outra
influência para conservar durante anos intacta a minha crença; depois esta passou
por grandes abalos, mas aquela impressão predominante fez-me sempre tratar o
que me parecia essencial na religião como a esfera superior ou a fonte mais elevada
da inspiração humana... Alguma vez, entretanto, pensando nele e na sua grande
autoridade sobre mim, não deixei de sentir a vantagem que os espíritos
emancipados se atribuem em relação aos que nunca saíram da fé. Era no tempo em
que eu perguntava a mim mesmo se um homem, mesmo tendo o gênio de um Santo
Tomás de Aquino, podia ser chamado superior, se não tinha, em nosso século, outro
horizonte intelectual senão o da revelação... Talvez pensasse eu então como
consolo que meu pai também tivera dúvidas que não deixava perceber, ou que tinha
voltado à fé como uma síntese já pronta da vida humana em todas as suas relações
depois de ter debalde procurado construir outra por si mesmo. Só mais tarde
alcancei compreender que a inteligência pode trabalhar até ao fim inteiramente
alheia aos graves problemas religiosos que confundem o pensador que os quer
resolver segundo a razão, se nenhum choque exterior veio perturbar para ela a
solução recebida na infância. A dúvida não é sinal de que o espírito adquiriu maior
perspicuidade, é às vezes um simples mal-estar da vida. Uma existência ocupada
por grandes trabalhos pode não ter um momento para dar à dúvida religiosa. Se não
é exato dizer que a dúvida nunca ajudou nenhum dos grandes gênios da
humanidade no traço ou no aperfeiçoamento de sua obra, o número dos que ela
assistiu é seguramente pequeno comparado ao dos que não precisaram de um
sopro de negação para os inspirar e souberam criar, crendo. Uma coisa pelo menos
é certa, a saber, que as faculdades criadoras devem estar solidamente construídas
para que a dúvida não as faça produzir uma obra menos considerável ou menos
bela do que o faria a fé. A dúvida pode ser o indício de um novo destino humano, o
esboço de uma inteligência ainda por vir, mas ela levará muito tempo para chegar a
formar um sentido superior à religião. As minhas idéias sobre o que constitui a
superioridade intelectual mudaram felizmente muito desde esse tempo em que eu
procurava pretextos para atribuí-la a espíritos destituídos da faculdade da dúvida,
mas que em tudo mais me impunham admiração, como meu pai. Eu tomaria por
vezes então um literato, um escritor, como superior a um desses pensadores
ásperos, cuja idéia só se pode colher depois de quebrar o invólucro resistente que a
protege. É como se a flor que dura uma manhã devesse ser a última expressão do
mundo vegetal da preferência ao cedro milenário, pai da floresta.
CAPÍTULO XIX
Eleição de deputado
Até 1878 foi propriamente o período da minha formação política; o que se
segue, de 1879 a 1889, é o do papel que me tocou representar; o final – já agora
devo esperar todo ele assim – será o do amortecimento do interesse político e de
sua substituição por outros, talvez ainda mais irreais e quiméricos, porém, que de
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algum modo quadram melhor com o crepúsculo da vida, quando o espírito começa a
ouvir ao longe o toque de recolher. Durante aqueles dez anos a que me tenho
referido, não fui senão um curioso, atraído pelas viagens, pelo caráter dos diferentes
países, pelos livros novos, pelo teatro, pela sociedade. Uma vida invejável para mim
teria sido então o assistir dos bastidores aos grandes fatos contemporâneos,
conviver com os personagens, e, como distração do presente, ter direito de entrada
nas escavações de Atenas ou de Roma. No fim desta fase de lazaronismo
intelectual, quando sou pela primeira vez eleito para o Parlamento, eu tinha
necessidade de outra provisão de sol interior; era-me preciso, não mais o
diletantismo, mas a paixão humana, o interesse vivo, palpitante, absorvente, no
destino e na condição alheia, na sorte dos infelizes; aproveitar a minha vida em
qualquer obra de misericórdia nacional; ajudar o meu país, prestar os ombros à
minha época, para algum nobre empreendimento. Nenhuma causa política, dados
os elementos que descrevi, poderia causar-me esse entusiasmo, inspirar-me esses
arroubos; a política seria sempre a emoção partidária, incerta, negativa, o temor de
edificar desconfiado da solidez dos materiais e dos terrenos. Era preciso que o
interesse fosse humano, universal; que a obra tivesse o caráter de finalidade, a
certeza, a inerrância do absoluto, do divino, como tem as grandes redenções, as
revoluções de caridade ou da justiça, as auroras da verdade e da consciência sobre
o mundo. No Brasil havia ainda, no ano em que comecei minha vida pública, um
interesse daquela ordem, com todo esse poder de fascinação sobre o sentimento e
o dever, igualmente impulsivo e ilimitado, capaz do fiat, quer se tratasse da sorte de
criaturas isoladas, quer do caráter da nação... Tal interesse só podia ser o da
emancipação, e por felicidade da minha hora, eu trazia da infância e da
adolescência o interesse, a compaixão, o sentimento pelo escravo, – o bolbo que
devia dar a única flor da minha carreira...
O fato que me lançou na política foi a morte de meu pai, em março de 1878,
ano em que serei eleito pela primeira vez deputado... Ele morreu em tempo ainda de
assegurar a minha eleição que tinha ficado resolvida entre ele e o barão de Vila-
Bela, chefe político de Pernambuco. Souza Carvalho, que muito impugnou, depois
de morto meu pai, a minha candidatura, foi a Vila-Bela e referindo-se àquela morte,
disse-lhe: – “sublata causa, tollitur effectus”. Domingos de Souza Leão, porém, tinha
a religião da amizade e da lealdade, e a morte de Nabuco, em vez de delir o seu
compromisso, tornara-o de honra... Meu desejo íntimo era então continuar na
diplomacia... Minha mãe, porém, conservava a ambição de meu pai, de me ver
entrar na política, para um dia substituí-lo, sentar-me na sua cadeira de senador,
como ele se sentara na de meu avô, que já não fora o primeiro senador Nabuco,
porque encontrara no Senado seu tio José Joaquim Nabuco de Araújo, o primeiro
barão de Itapoã. Eu representaria assim no Parlamento a Quarta geração da mesma
família, o que não aconteceu, suponho, a nenhum outro. Como Martim Francisco
Júnior, neto e bisneto de parlamentares, as gerações políticas foram três, por serem
irmãos o avô e o bisavô, Martim Francisco e José Bonifácio.
Não me custou nada essa eleição... Custou sim a Vila-Bela na corte e na
província a Adolfo de Barros, que passou pela política como um perfeito gentleman,
seu presidente, incluírem-me na lista... Meu nome afastava o de outros que eram
antigos lutadores, como o dr. Aprígio Guimarães, popular na academia pelo seu
liberalismo republicano e sua eloqüência tribunícia. Eu não tinha que ter remorso
disso, fata viam invenient... Não era só meu nome que postergava o direito de
antigüidade; a chapa estava cheia de nomes novos; eu representava uma tradição
de serviços ao partido, os de meu pai, que valiam bem os de qualquer outro, e tinha
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confiança de que justificaria na Câmara a minha promoção rápida. Se não me deu
trabalho algum essa eleição, que foi feita pelo partido, dispondo de todos os
elementos oficiais, não deixou de ter para mim o seu episódio... Numa sessão
acadêmica de 2 de agosto, no teatro Santa Isabel, quando eu proferia, do camarote
do presidente, as primeiras palavras, fui acolhido pelos protestos e vozerias de um
grupo numeroso, que se tornou dominante, e que depois transferia para uma praça
da cidade o seu meeting de indignação contra mim... O tema do meu improviso, em
resposta aos epigramas e diatribes contra S. Cristóvão que tinham soado no palco,
fora este: a grande questão para a democracia brasileira, não é a monarquia, é a
escravidão. Posso dizer que experimentei por vezes a doçura da popularidade;
nada, porém, iguala o prazer de uma dessas tempestades levantadas contra si pelo
orador que se sente de posse da verdade e ao serviço da justiça, quando antevê
que esses que o injuriam naquele momento, estarão com ele no dia seguinte... Eu
deixava passar aquela onda raivosa e espumante, que a democracia
pernambucana, as reminiscências praieiras, e com imperfeito conhecimento do
indivíduo, do papel que ele ia representar, impeliam contra a minha candidatura... Eu
sabia que a palinódia havia de ser completa, que se desfaria o mal-entendu criado
entre mim e o povo do Recife, desde que ele visse o fim para o qual eu aspirava ao
seu mandato... Na verdade, a opinião do Partido Popular, ciumento dos seus foros e
tradições, mudou a meu respeito logo na primeira sessão em que tomei a palavra na
Câmara... Desde esse dia estabeleceu-se entre mim e o Recife uma afinidade que
nunca se interrompeu e que ainda hoje, em que estou quanto à política retirado de
tudo, estou certo, será a mesma, porque foi como que o encontro de duas opiniões
que se miraram uma na outra até às fontes do sentimento e reconheceram na
transparência do seu fundo a sinceridade de cada uma.
Foi um ano de atividade e de expansão único em minha vida, esse de 1879,
em que fiz a minha estréia parlamentar. Posso dizer que ocupei a tribuna todos os
dias, tomando parte em todos os debates, em todas as questões... O favor com que
era acolhido, os aplausos da Câmara e das galerias, a atenção que me prestavam,
eram para embriagar facilmente um estreante... Como hoje seria diverso, e quanto
tudo aquilo está desvalorizado para mim como prazer do espírito! Hoje é a gota
cristalina que mana da rocha do ideal – fonte oculta que todos temos em nós – e não
os grandes chafarizes e aquedutos da praça pública, que única me desaltera. Então
tudo me servia para assunto do discurso; eu falava sobre Marinha e Imigração, como
sobre a iluminação ou o Imposto de Renda, sobre o arrendamento do vale do Xingu
ou a eleição direta... Tinha o calor, o movimento, o impulso do orador; não conhecia
o valerá a pena? do observador que se restringe cada vez mais... O público, os
grandes auditórios eram para mim o que é hoje a minha cesta de papel, ou a
labareda que dá conta da exuberância supérfula do pensamento. Só muito tarde
compreendi por que os que vieram antes de mim se retraíam, quando eu me
expandia: em muitos era a saciedade, o enojo que começava; em alguns a troca da
aspiração por outra ordem de interesses mais utilitária; em outros, porém, era a
consciência que chegava à madureza, o amor da perfeição... Desses discursos sem
exceção que figuram em meu nome nos Anais de 1879 e 1880 eu não quisera salvar
nada senão a nota íntima, pessoal. a parte de mim mesmo que se encontre em
algum. Não assim com os que proferi na Câmara na semana de maio de 1888, nem
como os do Recife em 1884-1885, pronunciados no Teatro Santa Isabel. Esses são
o melhor da minha vida.
Quando disse que o período que vai até 1879 é o de minha formação política,
quis somente dizer que é o período em que adquiro a ferramenta com que hei de
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trabalhar em política: ainda assim a limitação do tempo não é precisamente exata,
porque é na própria política, na Câmara, sob o influxo e determinismo do papel que
escolho, que a verdadeira formação se opera, isto é, que as contradições se
conciliam, a subordinação dos impulsos e das tendências se dão, as afinidades
essenciais se pronunciam, os atritos interiores, as vacilações, as atrações ou
repulsões prejudiciais se eliminam, e o destino uma vez conhecido cria a vocação, a
tarefa mesma perfaz o instrumento.
Com efeito, quando entro para a Câmara, estou tão inteiramente sob a
influência do liberalismo inglês, como se militasse às ordens de Gladstone; esse é
em substância o resultado de minha educação política: sou um liberal inglês – com
afinidades radicais, mas com aderências whigs – no Parlamento brasileiro; esse
modo de definir-me será exato até o fim, porque o liberalismo inglês, gladstoniano,
macaulayano, perdurará sempre, será a vassalagem irresgatável do meu
temperamento ou sensibilidade política; no entanto, depois do primeiro ensaio, a
feição política tornar-se-á secundária, subalterna, será substituída pela identificação
humana com os escravos e esta é que ficará sendo a característica pessoal, tudo se
fundirá nela e por ela. Nesse sentido é a emancipação a verdadeira ação formadora
para mim, a que toma os elementos isolados ou divergentes da imaginação, os
extremos da curiosidade ou da simpatia intelectual, os contrastes, os antagonismos,
as variações de faculdades sensíveis à verdade, à beleza, que os sistemas mais
opostos refletem uns contra os outros, e constrói o molde em que a aspiração
política é vazada, e não ela somente, a inteligência, a imaginação, os próprios
sonhos e quimeras do homem.
Como eu disse, porém, há pouco, eu trazia da infância o interesse pelo
escravo... Esse episódio não será talvez descabido nestas recordações.
CAPÍTULO XX
Massangana
O traço todo da vida é para muitos um desenho da criança esquecido pelo
homem, e ao qual este terá sempre que se cingir sem o saber...Pela minha parte
acredito não ter nunca transposto o limite das minhas quatro ou cinco primeiras
impressões... Os primeiros oito anos da vida foram assim, com certo sentido, os de
minha formação instintiva, ou moral, definitiva... Passei esse período inicial, tão
remoto e tão presente, em um engenho de Pernambuco, minha Província natal. A
terra era uma das mais vastas e pitorescas da zona do Cabo...Nunca se me retira da
vista esse pano de fundo da minha primeira existência... A população do pequeno
domínio, inteiramente fechado a qualquer ingerência de fora, como todos os outros
feudos da escravidão, compunha-se de escravos, distribuídos pelos compartimentos
da senzala, o grande pombal negro ao lado da casa de morada, e de rendeiros,
ligados ao proprietário pelo benefício da casa de barro que os agasalhava ou da
pequena cultura que ele lhes consentia em suas terras. No centro do pequeno
cantão de escravos levantava-se a residência do senhor, olhando para os edifícios
da moagem, e tendo por trás, em uma ondulação do terreno, a capela sob a
invocação de S. Mateus. Pelo declive do pasto, árvores isoladas abrigavam, sob sua
umbela impenetrável, grupos de gado sonolento. Na planície estendiam-se os
canaviais cortados pela alameda tortuosa de antigos ingás carregados de musgos e
cipós, que sombreavam de lado a lado o pequeno rio Ipojuca. Era por essa água
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quase dormente sobre os seus largos bancos de areia que se embarcava o açúcar
para o Recife; ela alimentava perto da casa um grande viveiro, rondado pelos
jacarés, a que os negros davam caça, e nomeado pelas suas pescarias. Mais longe
começam os mangues que chegavam até à costa de Nazaré... Durante o dia, pelos
grandes calores, dormia-se a sesta, respirando o aroma, espalhado por toda a parte,
das grandes tachas em que cozia o mel. O declinar do sol era deslumbrante,
pedaços inteiros da planície transformavam-se em uma poeira de ouro; a boca da
noite, hora das boninas e dos bacuraus, era agradável e balsâmica, depois o silêncio
dos céus estrelados majestoso e profundo. De todas essas impressões nenhuma
morrerá em mim. Os filhos de pescadores sentirão sempre debaixo dos pés o roçar
das areias da praia e ouvirão o ruído da vaga. Eu por vezes acredito pisar a espessa
camada de canas que cercava o engenho e escuto o rangido longínquo dos grandes
carros de bois...
Emerson quisera que a educação da criança começasse cem anos antes dela
nascer. A minha educação religiosa obedeceu certamente a essa regra. Eu sinto a
idéia de Deus no mais afastado de mim mesmo, como o sinal amante e querido de
diversas gerações. Nessa parte a série não foi interrompida. Há espíritos que
gostam de quebrar todas as suas cadeias, e de preferência as que outros tivessem
criado para eles; eu, porém, seria incapaz de quebrar inteiramente a menor das
correntes que alguma vez me prendeu, o que faz que suporto cativeiros contrários, e
menos do que as outras uma que me tivesse sido deixado como herança. Foi na
pequena capela de Massangana que fiquei unido à minha.
As impressões que conservo dessa idade mostram bem em que profundezas
os nossos primeiros alicerces são lançados. Ruskin escreveu esta variante do
pensamento de Cristo sobre a infância: “A criança sustenta muitas vezes entre os
seus fracos dedos uma verdade que a idade madura com toda sua fortaleza não
poderia suspender e que só a velhice terá novamente o privilégio de carregar”. Eu
tive em minhas mãos como brinquedos de menino toda a simbólica do sonho
religioso. A cada instante encontro entre minhas reminiscências miniaturas que por
sua frescura de provas avant la lettre devem datar dessas primeiras triagens da
alma. Pela perfeição dessas imagens inapagáveis pode-se estimar a impressão
causada. Assim eu vi a criação de Miguel Ângelo, na Sixtina e a de Rafael, nas
Loggie, e apesar de toda a minha reflexão, não posso dar a nenhuma o relevo
interior do primeiro paraíso que fizeram passar diante dos meus olhos em um
vestígio de antigo mistério popular. Ouvi notas perdidas do Angelus na
Campanha Romana, mas o muezin
A razão que me fez não começar pelos anos da infância foi que estas páginas
tiveram, ao serem primeiro publicadas, feição política que foram gradualmente
perdendo, porque já ao escrevê-las diminuía para mim o interesse, a sedução
política. A primeira idéia fora contar minha formação monárquica; depois, alargando
o assunto, minha formação político-literáia ou literário-política; por último,
desenvolvendo-o sempre, minha formação humana, de modo que o livro confinasse
com outro, que eu havia escrito antes sobre minha reversão religiosa. É deste livro,
de caráter mais íntimo, composto em francês há sete anos, que traduzo este capítulo
para explicar a referência feita às minhas primeiras relações com os escravos.
Íntimo, o timbre que soa aos meus ouvidos à hora da oração, é o do pequeno
sino que os escravos escutavam com a cabeça baixa, murmurando o “Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo”. Este é o Millet inalterável que se gravou em mim.
Muitas vezes tenho atravessado o oceano, mas se quero lembrar-me dele, tenho
sempre diante dos olhos, parada instantaneamente, a primeira vaga que se levantou
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diante de mim, verde e transparente como um biombo de esmeralda, um dia em que,
atravessando por um extenso coqueiral atrás das palhoças dos jangadeiros, me
achei à beira da praia e tive a revelação súbita, fulminante, da terra líquida e
movente... Foi essa onda, fixada na placa mais sensível do meu kodak infantil, que
ficou sendo para mim o eterno clichê do mar. Somente por baixo dela poderia eu
escrever: Thalassa! Thalassa!
Meus moldes de idéias e de sentimentos datam quase todos dessa época. As
grandes impressões da madureza não têm o condão de me fazer reviver, que tem o
pequeno caderno de cinco a seis folhas apenas, em que as primeiras hastes da
alma aparecem tão frescas, como se tivessem sido calcadas nesta mesma manhã...
O encanto, que se encontra nesses eidoli grosseiros e ingênuos da infância, não é
senão o sentimento de que só eles conservam a nossa primeira sensibilidade
apagada... Eles são, por assim dizer, as cordas soltas, mas ainda vibrantes, de um
instrumento que não existe mais em nós...
Do mesmo modo que com a religião e a natureza, assim com os grandes
fatos morais em redor de mim. Estive envolvido na campanha da abolição e durante
dez anos procurei extrair de tudo, da história, da ciência, da religião, da vida, um
filtro que seduzisse a dinastia; vi os escravos em todas as condições imagináveis;
mil vezes li a Cabana do Pai Tomás, no original da dor vivida e sangrando; no
entanto a escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância,
em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha
vida. Eu estava uma tarde sentado no patamar da escada exterior da casa, quando
vejo precipitar-se para mim um jovem negro desconhecido, de cerca de dezoito
anos, o qual se abraça aos meus pés suplicando-me, pelo amor de Deus, que o
fizesse comprar por minha madrinha, para me servir. Ele vinha das vizinhanças,
procurando mudar de senhor, porque o dele, dizia-me, o castigava, e ele tinha fugido
com risco de vida... Foi este o traço inesperado que me descobriu a natureza da
instituição, com a qual eu vivera até então familiarmente, sem suspeitar a dor que
ela ocultava.
Nada mostra melhor, do que a própria escravidão, o poder das primeiras
vibrações do sentimento... Ele é tal, que a vontade e a reflexão não poderiam mais
tarde subtrair-se à sua ação e não encontram verdadeiro prazer senão em se
conformar... Assim eu combati a escravidão com todas as minhas forças, repeli-a
com toda a minha consciência, como a deformação utilitária da criatura, e na hora
em que a vi acabar, pensei poder pedir também minha alforria, dizer o meu nunc
dimittis, por ter ouvido a mais bela nova que em meus dias Deus pudesse mandar ao
mundo; e, no entanto, hoje que ela está extinta, experimentando uma singular
nostalgia, que muito espantaria um Garrison ou um John Brown: a saudade do
escravo.
É que tanto a parte do senhor era inscientemente egoísta, tanto a do escravo
era inscientemente generosa. A escravidão permanecerá por muito tempo como a
característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma
grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem
do país, e foi a que ele guardou; ele povoou-o, como se fosse uma religião natural e
viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou-lhe sua alma
infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem
concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o
suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte. Quanto a mim,
absorvi-a no leite preto que me amamentou; ela envolveu-me como uma carícia
muda toda a minha infância; aspirei-a na dedicação de velhos servidores que me
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reputavam o herdeiro presuntivo do pequeno domínio de que faziam parte... Entre
mim e eles deve ter-se dado uma troca contínua de simpatia, de que resultou a terna
e reconhecida admiração que vim mais tarde a sentir pelo seu papel. Este pareceume,
por contraste com o instinto mercenário da nossa época, sobrenatural a força de
naturalidade humana, e no dia em que a escravidão foi abolida, senti, distintamente,
que um dos mais absolutos desinteresses de que o coração humano se tenha
mostrado capaz não encontraria mais as condições que o tornaram possível.
Nessa escravidão da infância não posso pensar sem um pesar involuntário...
Tal qual o pressenti em torno de mim, ela conserva-se em minha recordação como
um jugo suave, orgulho exterior do senhor, mas também orgulho íntimo do escravo,
alguma coisa parecida com a dedicação do animal que nunca se altera, porque o
fermento da desigualdade não pode penetrar nela. Também eu receio que esta
espécie particular de escravidão tenha existido somente em propriedades muito
antigas, administradas durante gerações seguidas com o mesmo espírito de
humanidade, e onde uma longa hereditariedade de relações fixas entre o senhor e
os escravos tivessem feito de um e outros uma espécie de tribo patriarcal isolada do
mundo. Tal aproximação entre situações tão desiguais perante a lei seria impossível
nas novas e ricas fazendas do Sul, onde o escravo, desconhecido do proprietário,
era somente um instrumento de colheita. Os engenhos do Norte eram pela maior
parte explorações industriais, existiam apenas, para a conservação do estado do
senhor, cuja importância e posição avaliava-se pelo número de seus escravos.
Assim também encontrava-se ali com uma aristocracia de maneiras que o tempo
apagou, um pudor, um resguardo em questões de lucro, próprio das classes que não
traficam.
Fiz, há pouco, menção de minha madrinha... Das recordações da infância a
que eclipsa todas as outras e a mais cara de todas é o amor que tive por aquela que
me criou até aos meus oito anos como seu filho... Sua imagem, ou sua sombra,
desenhou-se por tal modo em minha memória, que eu a poderia fixar se tivesse o
menor talento de pintor... Ela era de grande corpulência, inválida, caminhando com
dificuldade, constantemente assentada – em um largo banco de couro que
transportavam de peça em peça da casa – ao lado da janela que deitava para a
praça do engenho, e onde ficava a estribaria, o curral e a pequena casa edificada
para o meu mestre, e que me servia de escola... Ela não largava nunca suas roupas
de viúva. Meu padrinho, Joaquim Aurélio de Carvalho, fora conhecido na Província
pelo seu luxo e liberalidade, de que ainda hoje se contam diversos rasgos. Estou
vendo, através de tantos anos, a mobília da entrada, onde ela costumava passar o
dia. Nas paredes, algumas gravuras coloridas representando o episódio de Inês de
Castro, entre as gaiolas dos curiós afamados, pelos quais seu marido costumava dar
o preço que lhe pedissem... ao lado em um armário envidraçado as pequenas
edições portuguesas dos livros de devoção e das novelas do tempo. Minha
madrinha ocupava sempre a cabeceira de uma grande mesa de trabalho, onde
jogava cartas, dava a tarefa para a costura e para as rendas a um numeroso
pessoal, provava o ponto dos doces, examinava as tisanas para a enfermaria
defronte, distribuía as peças de prata a seus afilhados e protegidos, recebia os
amigos que vinham todas as semanas atraídos pelos regalos de sua mesa e de sua
hospitalidade, sempre rodeada, adorada por toda sua gente, fingindo um ar severo
que não enganava a ninguém, quando era preciso repreender alguma mucama que
deixava a miúdo os bilros e a almofada para chalrear no gineceu, ou algum morador
perdulário que recorria demasiado à sua bolsa. Parece que seu maior prazer era
trocar uma parte das suas sobras em moedas de ouro que ela guardava, sem que
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ninguém o soubesse senão o seu liberto confidente, para me entregar quando eu
tivesse idade. Era a isso que ela chamava o seu invisível. Por ocasião da morte do
servo de sua maior confiança, ela escrevia à minha mãe pela mão de outros: “Dou
parte a V. Ex. e ao meu compadre, que morreu o meu Elias, fazendo-me uma falta
excessiva aos meus negócios. De tudo tomou conta, e sempre com aquela bondade
e humildade sem parelha, e ficou a minha casa com ele no mesmo pé em que era no
tempo do meu marido. Nem só fez falta a mim como a nosso filhinho que tinha um
cuidado nele nunca visto. Apesar d’eu ter parentes, a ele era quem eu o entregava,
porque se eu morresse para tomar conta do que eu lhe deixava para entregar a VV.
EEx... Mas que hei de fazer, se Deus quis?” Em outra carta, mais tarde, a última que
possuo, ela volta à morte de Elias: – “... o meu Elias, o qual fez-me uma falta
sensível, tanto a mim como ao meu filhinho, porque tinha cuidado nele maior
possível, como pelas festas que ele gosta de passear ia sempre entregue a ele...
Deus me dê vida e saúde até o ver mais crescido para lhe dar alguma coisa invisível,
como dizia o defunto seu compadre, pois só ficava isso do Elias, apesar de ter
ficado o Vítor, mano dele, que faço também toda a fiança nele...” Ah! querida e
abençoada memória, o tesouro acumulado parcela por parcela não veio a minhas
mãos, nem teria podido vir por uma transmissão destituída das formas legais, como
talvez tenhas pensado... mas imaginar-te, durante anos, nessa tarefa agradável aos
teus velhos dias de ajuntar para teu afilhado, que chamavas teu filho, um pecúlio
que lhe entregarias quando homem, ou outrem por ti a meu pai, se morresses
deixando-me menor; acompanhar-te em tuas conversas com o teu servo fiel, nessa
preocupação de amor de teus derradeiros anos, será sempre uma sensação tão
inexprimivelmente doce que só ela bastaria para destruir para mim qualquer amargor
da vida...
A noite da morte de minha madrinha é a cortina preta que separa do resto de
minha vida a cena de minha infância. Eu não imaginava nada, dormia no meu quarto
com a minha velha ama, quando ladainhas entrecortadas de soluços me acordaram
e me comunicaram o terror de toda a casa. No corredor, moradores, libertos, os
escravos, ajoelhados, rezavam, choravam, lastimavam-se em gritos; era a
consternação mais sincera que se pudesse ver, uma cena de naufrágio; todo esse
pequeno mundo, tal qual se havia formado durante duas ou três gerações em torno
daquele centro, não existia mais depois dela: seu último suspiro o tinha feito
quebrar-se em pedaços. A mudança de senhor era o que havia mais terrível na
escravidão, sobretudo se se devia passar do poder nominal de uma velha santa, que
não era mais senão a enfermeira dos seus escravos, para as mãos de uma família
até então estranha. E como para os escravos, para os rendeiros, os pobres, toda a
gens que ela sustentava, a que fazia a distribuição diária de rações, de socorros, de
remédios... Eu também tinha que partir de Massangana, deixado por minha
madrinha a outro herdeiro, seu sobrinho e vizinho; a mim ela deixava um outro dos
seus engenhos, que estava de fogo morto, isto é, sem escravos para o trabalhar...
Ainda hoje vejo chegar, quase no dia seguinte à morte, os carros de bois do novo
proprietário... Era a minha deposição... Eu tinha oito anos. Meu pai pouco tempo
depois me mandava buscar por um velho amigo, vindo do Rio de Janeiro. Distribuí,
entre a gente da casa tudo o que possuía, meu cavalo, os animais que me tinham
sido dados, os objetos do meu uso. “O menino está mais satisfeito, escrevia a meu
pai o amigo que devia levar-me, depois que eu lhe disse que a sua ama o
acompanharia.” O que mais me pesava era ter que me separar dos que tinham
protegido minha infância, dos que me serviram com a dedicação que tinham por
minha madrinha, e sobretudo entre eles os escravos que literalmente sonhavam
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pertencer-me depois dela. Eu bem senti o contragolpe da sua esperança
desenganada, no dia em que eles choravam, vendo-me partir espoliado, talvez o
pensassem, da sua propriedade... Pela primeira vez sentiram eles, quem sabe, todo
o amargo da sua condição e beberam-lhe a lia.
Mês e meio depois da morte de minha madrinha, eu deixava assim o meu
paraíso perdido, mas pertencendo-lhe para sempre... Foi ali que eu cavei com as
minhas pequenas mãos ignorantes esse poço da infância, insondável na sua
pequenez, que refresca o deserto da vida e faz dele para sempre, em certas horas,
um oásis sedutor. As partes adquiridas do meu ser, o que devi a este ou àquele, hão
de dispersar-se em direções diferentes; o que, porém, recebi diretamente de Deus, o
verdadeiro eu saído das suas mãos, este ficará preso ao canto de terra, onde
repousa aquela que me iniciou na vida. Foi graças a ela que o mundo me recebeu
com um sorriso de tal doçura que todas as lágrimas imagináveis não mo fariam
esquecer. Massangana ficou sendo a sede do meu oráculo íntimo: para impelir-me,
para deter-me e, sendo preciso, para resgatar-me, a voz, o frêmito sagrado, viria
sempre de lá. Mors omnia solvit... tudo, exceto o amor, que ela liga definitivamente.
Tornei a visitar doze anos depois a capelinha de S. Mateus onde minha
madrinha, d. Ana Rosa Falcão de Carvalho, jaz na parede ao lado do altar, e pela
pequena sacristia abandonada penetrei no cercado onde eram enterrados os
escravos... Cruzes, que talvez não existam mais, sobre montes de pedras
escondidas pelas urtigas, era tudo quase que restava da opulenta “fábrica”, como se
chamava o quadro da escravatura... Em baixo, na planície, brilhavam como outrora
as manchas verdes dos grandes canaviais, mas a usina agora fumegava e
assobiava com um vapor agudo, anunciando uma vida nova. A almanjarra
desaparecera no passado. O trabalho livre tinha tomado o lugar em grande parte do
trabalho escravo. O engenho apresentava do lado do “porto” o aspecto de uma
colônia; da casa velha não ficara vestígio... O sacrifício dos pobres negros que
haviam incorporado as suas vidas ao futuro daquela propriedade, não existia mais
talvez senão na minha lembrança... Debaixo dos meus pés estava tudo o que
restava deles, defronte dos columbaria onde dormiam na estreita capela aqueles
que eles haviam amado e livremente servido, ali, invoquei todas as minhas
reminiscências, chamei-os a muitos pelos nomes, aspirei no ar carregado de aromas
agrestes, que entretém a vegetação sobre suas covas, o sopro que lhes dilatava o
coração e lhes inspirava a sua alegria perpétua. Foi assim que o problema moral da
escravidão se desenhou pela primeira vez aos meus olhos em sua nitidez perfeita e
com sua solução obrigatória. Não só esses escravos não se tinham queixado de sua
senhora, como a tinham até o fim abençoado... A gratidão estava do lado de quem
dava. Eles morreram acreditando-se os devedores... seu carinho não teria deixado
germinar a mais leve suspeita de que o senhor pudesse ter uma obrigação com eles,
que lhe pertenciam... Deus conservara ali o coração do escravo, como o do animal
fiel, longe do contato com tudo que o pudesse revoltar contra a sua dedicação. Esse
perdão espontâneo da dívida do senhor pelos escravos figurou-se-me a anistia para
os países que cresceram pela escravidão, o meio de escaparem a um dos piores
taliões da história... Oh! os santos pretos! Seriam eles os intercessores pela nossa
infeliz terra, que regaram com seu sangue, mas abençoaram com seu amor! Eram
essas as idéias que me vinham entre aqueles túmulos, para mim, todos eles,
sagrados, e então ali mesmo, aos vinte anos, formei a resolução de votar a minha
vida, se assim me fosse dado, ao serviço da raça generosa, entre todas que a
desigualdade da sua condição enternecia em vez de azedar e, por sua doçura no
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sofrimento, emprestava até mesmo à opressão de que era vítima um reflexo de
bondade...
CAPÍTULO XXI
A abolição
Quando a campanha da abolição foi iniciada, restavam ainda quase dois
milhões de escravos, enquanto que os seus filhos de menos de oito e todos os que
viessem a nascer, apesar de ingênuos, estavam sujeitos até aos 21 anos a um
regime praticamente igual ao cativeiro. Foi esse imenso bloco que atacamos em
1879, acreditando gastar a nossa vida sem chegar a entalhá-lo. No fim de dez anos
não restava dele senão o pó. Tal resultado foi devido a muitas causas... Em primeiro
lugar, à época em que foi lançada a idéia. A humanidade estava por demais
adiantada para que se pudesse ainda defender em princípio a escravidão, como o
haviam feito nos Estados Unidos. A raça latina não tem dessas coragens. O
sentimento de ser a última nação de escravos humilhava a nossa altivez e emulação
de país novo. Depois, à fraqueza e à doçura do caráter nacional, ao qual o escravo
tinha comunicado sua bondade e a escravidão o seu relaxamento. Compare-se
nesse ponto o que ela foi no Brasil com o que foi na América do Norte. No Brasil, a
escravidão é uma fusão de raças; nos Estados Unidos, é a guerra entre elas.
Nossos proprietários emancipavam aos centos os seus escravos, em vez de se
unirem para linchar os abolicionistas, como fariam os criadores do Kentucky ou os
plantadores da Luisiana. A causa abolicionista exercia sua sedução sobre a
mocidade, a imprensa, a democracia; era um imperativo categórico para os
magistrados e os padres; tinha afinidades profundas com o mundo operário e com o
exército, recrutado de preferência entre os homens de cor; operava como um
dissolvente sobre a massa dos partidos políticos, cujas rivalidades incitava com a
honra que podia conferir aos estadistas que a empreendessem, e à própria dinastia
inspirava de modo espontâneo o sacrifício indispensável para o sucesso.
Cinco ações ou concursos diferentes cooperaram para o resultado final: 1º a
ação motora dos espíritos que criavam a opinião pela idéia, pela palavra, pelo
sentimento, e que a faziam valer por meio do Parlamento, dos meetings, da
imprensa, do ensino superior, do púlpito, dos tribunais; 2º a ação coerciva dos que
se propunham a destruir materialmente o formidável aparelho da escravidão,
arrebatando os escravos ao poder dos senhores; 3º a ação complementar dos
próprios proprietários, que, à medida que o movimento se precipitava, diminuíam
diante dele as resistências, libertando em massa as suas “fábricas”; 4º a ação
política dos estadistas, representando as concessões do governo; 5º a ação
dinástica.
As duas primeiras categorias formavam círculos concêntricos compostos
como eram em grande parte dos mesmos elementos. É a eles que pertence o
grosso do Partido Abolicionista, os líderes do movimento. Para colocar cada figura
no plano que lhe convém, com seu tamanho relativo, seria preciso outro juiz. Tendo
visto na luta e no esforço cada um dos veteranos dessa campanha, eu não me
perdoaria a mim mesmo a menor injustiça involuntária que fizesse a qualquer deles.
Dissentimentos profundos me separaram de muitos depois da vitória, mas o espírito
de imparcialidade que me anima a respeito de cada um faz ainda parte da lealdade
que acredito ter mantido perfeita durante a abolição para com todos os auxiliares
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dela, os da primeira como os da undécima hora. Não farei tampouco o livro de ouro
da grande propriedade brasileira nessa quadra. Na categoria dos chefes políticos
posso destacar, porém, três estadistas que prestaram ao movimento em épocas
diferentes um concurso decisivo: Dantas, que primeiro colocou ao serviço dela um
dos partidos constitucionais do país, o liberal, serviço da ordem do que Gladstone
prestou à causa irlandesa; Antônio Prado, que retirou o veto de S. Paulo à abolição,
quebrando assim a resistência até então compacta do Sul, a porção mais rica do
país, e João Alfredo, que levou o Partido Conservador a apresentar a lei da extinção
imediata, ato que mesmo nessa época foi uma grande audácia, e que pelo estado e
disposição geral da política só podia ter sido obra dele mesmo. José Bonifácio, cuja
adesão à idéia foi um contingente igual à libertação do Ceará, Cristiano Ottoni,
Silveira da Motta, e outros, eu os constaria na primeira classe, a dos propagandistas.
É-me quase impossível falar hoje da abolição senão por incidentes e figuras
destacadas... Tudo o que digo é sob a ressalva de que teria muito mais que dizer;
quando pronuncio um nome está subentendido que é apenas um de seu extenso
calendário, e que os díticos de um e outro lado estão cheios... Quem fará dentre os
contemporâneos essa história com imparcialidade, justeza e penetração, sem deixar
entrar nela a paixão política, o preço sectário, a fascinação ou sujeição pessoal?
Ninguém, decerto, o que quer dizer que haverá no futuro diversas histórias. A minha
contribuição para o assunto há de ser o meu arquivo, e alguns fragmentos a respeito
de diversos fatos em que estive envolvido ou de que tive conhecimento direto... Esse
trabalho, essa desobriga, ao mesmo tempo que depoimento pessoal, espero que
Deus me dará tempo e modo de o fazer como planejo. Seria uma espécie de chave
para o período que encerra a era monárquica.
Dentre aqueles com quem mais intimamente lidei em 1879 e 1880, e que
formavam comigo um grupo homogêneo, a nossa pequena igreja, as principais
figuras eram André Rebouças, Gusmão Lobo e Joaquim Serra... A igreja fronteira
era a de José do Patrocínio, Ferreira de Menezes, Vicente de Souza, Nicolau
Moreira, depois João Clapp com a Confederação Abolicionista. Se eu estivesse
escrevendo nesse momento um esforço do movimento abolicionista de 1879-1888,
já teria citado Jerônimo Sodré, que foi quem pronunciou o fiat, e passaria a citar os
meus companheiros de Câmara: Manoel Pedro, Correa Rabello, S. de Barros
Pimentel, e outros, porque o movimento começou na Câmara em 1879, e não, como
se têm dito, na Gazeta da Tarde de Ferreira de Menezes, que é de 1880, nem na
Gazeta de Notícias, onde então José do Patrocínio, escrevendo a Semana Política,
não fazia senão nos apoiar e ainda não adivinhava a sua missão. De certo pelos
escravos já vinham trabalhando Luís Gama e outros, mesmo antes da lei de 1871,
como trabalharam todos os colaboradores dessa lei; mas o movimento abolicionista
de 1879 a 1888 é um movimento que tem o seu eixo próprio, sua formação distinta,
e cujo princípio, marcha, velocidade, são fáceis de verificar; e um sistema fluvial do
qual se conhecem as nascentes, o volume da água e o valor de cada tributário, as
quedas, os rápidos, o estuário, e esse movimento começa, fora de toda dúvida, com
o pronunciamento de Jerônimo Sodré em 1879 na Câmara... Esse pronunciamento
vem resolvido da Bahia e rebenta na Câmara como uma manga d’água,
repentinamente. Nada absolutamente o fazia suspeitar... Ao ato de Jerônimo Sodré
filia-se cronologicamente a minha atitude dias depois... Mais tarde é que entram
Rebouças, Patrocínio, Gusmão Lobo, Menezes, Joaquim Serra... Isso não é apurar a
data dos primeiros escritos abolicionistas de cada um; os meus, por exemplo,
datavam da Academia... É reivindicar para a Câmara, para o Parlamento, a iniciativa
que se lhe tem querido tirar nesta questão, dando-se-a ao elemento popular,
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republicano... É uma pura questão de datas, desde que se der a data certa a cada
fato alegado, verificar-se-á o autem genuit acima... Reconheço que a minha
inscrição vem na ordem do tempo depois de Jerônimo Sodré... As outras, porém,
vieram depois da minha... Foi o movimento popular, talvez, que mais tarde incubou o
germe parlamentar, não o deixando morrer nas sessões seguintes, mas que o germe
foi parlamentar, que o liber generationis começou em 1879 com Jerônimo Sodré, é o
que se pode demonstrar com os próprios documentos, mesmo com aqueles em que
se pretenda o contrário, uma vez que sejam autênticos... A questão de iniciativa aliás
tem um interesse todo secundário, sobretudo, quando a idéia está no ar e o espírito
do tempo a agita por toda a parte. Não há nada mais difícil do que avaliar a
importância relativa dos diversos fatores de um movimento que se torna nacional. O
último dos apóstolos pode vir a ser o primeiro de todos, como S. Paulo, em serviços
e em proselitismo. Tudo na abolição prende-se, não se pode escrever-lhe a história
suprimindo qualquer dos seus elos... É um fato a reter: a compensação vai sempre
além, muito além, dos prejuízos que ela sofre, e, desse modo, até eles a
favorecem... Assim morre Ferreira de Menezes, mas Patrocínio toma a Gazeta da
Tarde; a minoria abolicionista de 1879 não é reeleita, surge a Confederação
Abolicionista; quando o Ceará conclui a sua obra, o Amazonas começa a dele;
demitido um presidente de Província (Teodureto Souto), é nomeado um presidente
do Conselho (Dantas); organizada a ação da polícia, aparece a agitação no Exército;
às sevícias da Paraíba do Sul e de Cantagalo sucede o combate do Cubatão; morto
José Bonifácio, toma o seu lugar em S. Paulo Antônio Prado; repelido pela Câmara
José Marianno, o Recife derrota o ministro do Império; vacilando o Partido Liberal,
move-se o Partido Conservador; parte o imperador, fica a princesa... Ninguém,
afinal, sabe quem fez mais pela abolição: se a propaganda, se a resistência: se os
que queriam tudo, se os que não queriam nada... Nada há mais ilusório que as
distribuições de glória... As lendas hão de sempre viver, como raios de luz na treva
amontoada do passado, mas a beleza delas não está em sua verdade, que é
sempre pequena; está no esforço que a humanidade faz, para assim reter alguns
episódios de uma vida tão extensa que, para abrangê-la, não há memória possível.
Não posso senão dar ao acaso algumas impressões, por isso deixo, não sem
constrangimento, de referir-me a nomes que entrariam em qualquer resumo, por
mais curto que fosse, note-se bem, do começo da propaganda... Os dois grupos de
que falei encontravam-se, trabalhavam juntos, misturavam-se, mas a linha divisória
era sensível: um representava a ação política, o outro a revolucionária, ainda que
cada um refletisse, por vezes, a influência do outro. Isso no tempo em que a idéia
está sendo lançada, pois dentro de pouco o movimento torna-se geral, e então há o
influxo das Províncias, há o Ceará, o Amazonas, o Rio Grande do Sul, Pernambuco,
a Bahia, S. Paulo, que surgem como grandes focos de propaganda... O movimento
abolicionista teve com efeito duas fases bem acentuadamente divididas: a primeira,
de 1879 a 1884, em que os abolicionistas combateram sós, entregues aos seus
próprios recursos, e a segunda, de 1884 a 1888, em que eles viram sua causa
adotada sucessivamente pelos dois grandes partidos do país. Em 1884, deu-se a
conversão do Partido Liberal e, em 1888, a do Partido Conservador. A fase
puramente abolicionista da campanha – por ocasião à fase política, que poderia
entrar na história dos dois partidos rivais – foi a primeira.
De todos, aquele com quem mais intimamente vivi, com quem estabeleci uma
verdadeira comunhão de sentimento, foi André Rebouças... Nossa amizade foi por
muito tempo a fusão de duas vidas em um só pensamento: a emancipação.
Rebouças encarnou, como nenhum outro de nós, o espírito antiesclavagista: o
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espírito inteiro, sistemático, absoluto, sacrificando tudo, sem exceção, que lhe fosse
contrário ou suspeito, não se contentando de tomar a questão por um só lado
olhando-a por todos, triangulando-a, por assim dizer – era uma de suas expressões
favoritas – socialmente, moralmente, economicamente. Ele não tinha, para o público,
nem a palavra, nem o estilo, nem a ação; dir-se-ia assim que em um movimento
dirigido por oradores, jornalistas, agitadores populares, não lhe podia caber papel
algum saliente, no entanto ele teve o mais belo de todos, e calculado por medidas
estritamente interiores, psicológicas, o maior, o papel primário, ainda que oculto, do
motor, da inspiração que se repartia com todos..., não se o via quase, de fora, mas
cada um dos que eram vistos estava olhando para ele, sentia-o consigo, em si,
regulava-se pelo gesto invisível à multidão..., sabia que a consciência capaz de
resolver todos os problemas da causa só ele a tinha, que só ele entrava na sarça
ardente e via o Eterno face a face...É-me tão impossível resumi-lo a ele em um traço
como me seria impossível figurar uma trajetória infinita... Depois da abolição ele
sempre teve o pressentimento de que a escravidão causaria uma grande desgraça à
dinastia, como assassinara a Lincoln. Seu maior amor talvez tenha sido pelos seus
alunos da Politécnica, mas como todas as suas recordações da “Escola”
transformaram-se em outros tantos tormentos, quando os viu glorificando o 15 de
novembro, que para ele era a desforra de 13 de maio!...
Do seu quarto no Hotel Bragança, em Petrópolis, onde durante anos notara
no seu diário a nossa pulsação comum, até o despenhadeiro do Funchal, que linha a
que descreveu André Rebouças! Ele foi o cortesão do “Alagoas”... Um republicano, a
quem veio a tocar na hora da amargura o papel de discípulo amado do velho
imperador banido... Foi um industrial, um engenheiro ousado e triunfante, que
acabou praticando o tolstoísmo... Foi um gênio matemático, um sábio, que reduziu a
sua ciência a uma serpentina em que de tudo distilava a abolição... Seu centro de
gravidade foi verdadeiramente sublime... Não posso ainda falar dele em relação a
mim, porque não o quisera fazer de modo incompleto... Prefiro mostrá-lo em relação
ao imperador. Aqui está uma dessas provas rápidas, fotogênicas, que ele sabia tirar
de si, e nas quais os que vieram com ele reconhecem-lhe a fisionomia, apanhada
com toda a mobilidade da sua expressão e com a inalterabilidade do seu afeto
humano. É por acaso que encontro esta carta dele:
“Cannes, 13 de maio de 1892.
Meu mestre e meu imperador – Não passará o 3º aniversário da libertação da
raça africana no Brasil, sem que André Rebouças dê novo testemunho de filial
gratidão ao mártir sublime da abolição.
Sinto-me feliz por ter sido escolhido pelo bom Deus para representar a
devotação da raça africana a V. M. Imperial e à princesa redentora, e alegro-me
repetindo-o incessantemente.
É hoje grato relembrar a síntese da nossa vida, como meu bom mestre disse
no Alagoas, quando comemoramos seu 64º aniversário.
Principiou em Petrópolis, em 1850, há 41 anos, examinando-me em aritmética, ainda
menino de colégio, e continuou, quase cotidianamente, nas lições e nos exames das
Escolas Militar, Central e de Aplicação na fortaleza da praia Vermelha até dezembro
de 1860.
Os anos de 1861 e 1862 foram de estudos práticos de caminho de ferro e de
portos de mar na Europa. A primeira Memória, escrita com o Antônio, datada de
Marselha, em 9 de junho de 1861, foi dedicada, como de justiça, ao nosso bom
mestre e imperador... Quando Vossa Majestade encontrava meu pai, suas palavras
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primeiras eram: – ‘Como vão os meninos? – Onde estão agora? – Recomende-lhes
sempre que estudem e que trabalhem’.
Voltamos ao Brasil em fins de 1862, e encetamos a vida prática nos trabalhos
militares de Santa Catarina, motivados pelo conflito Christie.
A 28 de dezembro de 1863 separei-me, pela primeira vez, do meu irmão
Antônio... Começava daí em diante o período industrial da minha vida.
Vossa Majestade e meu pai não queriam que eu tivesse uma orientação além
da vida tranqüila da ciência e do professorado; mas o visconde de Itaboraí, que
também me devotava afeição paternal, dizia: – ‘André!... Quero que você suceda ao
Mauá!...’
Sabe, Vossa Majestade quanto sofri da oligarquia politicante e da plutocracia
escravocrata nesses afanosos tempos... Só tenho hoje deles uma consolação: –
Projetei e construía as docas de Pedro II, concebi e dirigi o caminho de ferro Conde
d’Eu e sua bela estação marítima do Cabedelo.
Vossa Majestade gosta de recordar que, em Uruguaiana, salvamos juntos,
pelo nosso horror ao sangue, 7 mil paraguaios e centenas de brasileiros... Na atual
antipatia ao militarismo, apenas lembro-me dos trabalhos de Itapiru e Tuiuti.
Em 1880 começa a propaganda abolicionista. Nós, tribunos ardentes, só
tínhamos uma certeza e uma esperança: – o imperador. Em 1871 havia Vossa
Majestade concedido à filha predileta libertar o berço dos cativos com Paranhos,
visconde do Rio Branco.
Em 1888 a iniciativa partiu daquela que não pode ver lágrimas nem ouvir
soluços de pobres, de infelizes e de escravos, no amor santo de mártir do
cristianismo inicial, aspirando menos à glória na Terra do que anelando a
benemerência no céu, junto a Jesus, o redentor dos redentores.
Enfim... Creio que podemos esperar tranqüilos o juízo de Deus; porque
havemos cumprido sua grande lei, trabalhando pelo progresso da humanidade.
Agora, só tenho a dizer-lhe que desde 15 de novembro de 1889 perdi a linha
divisória entre meu pai e meu mestre e imperador, e que é na maior efusão de amor
que me assino – Com todo o coração – André Rebouças.”
Ou este itinerário, que me traçara para a fuga de escravos de S. Paulo para o
Norte, pura fantasia, mas tão cheio para todos nós de vestígios de sua originalidade,
de toques da sua generosa sensibilidade, quase impessoal:
“CAMINHO DE FERRO SUBTERRÂNEO do ALTO S. FRANCISCO AO CEARÁ
LIVRE
Estação inicial... S. Paulo; junto ao túmulo de Luís Gama.
Segunda Estação... Pirassununga.
Terceira Estação... Cachoeira de Moji-Guaçu.
Quarta Estação... Em pleno sertão, com rumo de Nordeste; o sol deve amanhecer à
direita e cair, à tarde, à esquerda.
Quinta Estação... Piumhy, nascente do rio S. Francisco, acompanhando sempre o
belo rio, abundante de peixes e de frutos deliciosos.
Sexta Estação... De um lado Goiás livre; do outro o sertão da Bahia, onde não há
capitães do mato.
Sétima Estação...Na Vila da Barra, onde começam as grandes cachoeiras do S.
Francisco.
Oitava estação... No varadouro das águas do S. Francisco para as do Parnaíba.
Nona Estação... No Paraíso – no Ceará Livre.”
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Matemático e astrônomo, botânico e geólogo, industrial e moralista, higienista
e filantropo, poeta e filósofo, Rebouças foi talvez dos homens nascidos no Brasil o
único universal pelo espírito e pelo coração... Pelo espírito teremos alguns, pelo
coração outros; mas somente ele foi capaz de refletir em si ao mesmo tempo a
universalidade dos conhecimentos e a dos sentimentos humanos. Quem sabe se
não foi a imagem que partiu o espelho! “Delirante ovação dos meus sonhos, escrevia
ele em 15 de maio de 1888 no seu diário. Anuncio-lhes o projeto de Triangulação
Moral e Cadastral do Brasil. Voto de louvor pela Congregação. Nova ovação.
Carregado pelos alunos por todo o peristilo.” Da abolição ele foi o maior, não pela
ação exterior, ou influência direta sobre o movimento, mas pela força e altura da
projeção cerebral, pela rotação vertiginosa de idéias e sensações em torno do eixo
consumidor e cadente, que era para ele o sofrimento do escravo. Era uma fornalha
cósmica a que ardia nele. Se Rebouças ainda é visto no seu tempo como uma
estrela de segunda grandeza, é porque estava mais longe do que todas... Dos
evangelistas da nossa boa nova ele é que teria por atributo a águia... Há no seu
estilo e nos seus moldes muita coisa que lembra S. João... Idealista todo ele é quase
só por símbolos que escreve... A ilha da Madeira foi a Pathmos de um apocalipse
infelizmente perdido, porque suas últimas páginas, voltado para o Sul, ele as
escrevia tomando por letras as estrelas e as constelações. Sua lenda, porém, está
feita, não há perigo para ele de esquecimento: a lenda do seu desterro e de sua
amizade a d. Pedro II.
Outro com quem vivi, até sua morte em grande aproximação de idéias, foi
Joaquim Serra. Desde 1880 até a abolição ele não deixou passar um dia sem a sua
linha... Minado por uma doença que não perdoa, salvava cada manhã o que
bastasse de alegria para sorrir à esperança dos escravos, a qual viu crescer dia por
dia, durante esses dez anos, como uma planta delicada que ele mesmo tivesse feito
nascer... Feita a abolição, desabrochada a flor, morria ele... E que morte! Que
saudade da mulher e dos filhos, da filhinha adorada, que não se queria afastar um
instante dele! Serra cumpriu a sua tarefa com uma constância e assiduidade a toda
prova, sem dar uma falta, e com o mais perfeito espírito de abnegação e de
lealdade... Renunciando os primeiros lugares, ele mostrava, entretanto, de mais em
mais uma agudeza de vista e uma clareza de expressão dignas de um verdadeiro
líder. Eu mesmo, que acreditava conhecê-lo, fui surpreendido pela ousadia da sua
manobra, quando uma vez ele prometeu ao barão de Cotegipe todo o nosso apoio –
nós respondíamos uns pelos outros – se fizesse concessões ao movimento. Ao
contrário de Rebouças, Serra era um espírito político, mas acima do seu partido, do
qual fora durante a oposição o mais serviçal dos auxiliares, colocava a nossa causa
comum com uma sinceridade íntima que nunca foi suspeitada... “Passamento do
grande Joaquim Serra, escreve Rebouças no seu diário, em 29 de outubro de 1888,
companheiro de Academia em 1854 e de luta abolicionista de 1880-1888, o
publicista que mais escreveu contra os escravocratas.” “Ninguém fez mais do que
ele, escrevia Gusmão Lobo por sua morte... e quem fez tanto?”
Gusmão Lobo é outro nome do nosso círculo interior... Alguns dos que
combateram juntos sem descanso, durante os primeiros cinco anos da propaganda,
os quais foram os anos do ostracismo político e social da idéia, acreditaram sua
tarefa, senão acabada, pelo menos grandemente aliviada no dia em que um grande
partido no governo, com os seus quadros, sua influência, seu eleitorado, sua
imprensa, adotou a causa de que eles eram até então os únicos arrimos... Entre
esses está Gusmão Lobo, que não teria deixado a pena de combate, se não tivesse
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visto a bandeira que ela protegia, passar triunfantemente das mãos dos agitadores
para as mãos de presidentes do Conselho. Na época decisiva do movimento, aquela
em que se teve que criar o impulso e torná-lo mais forte do que a resistência, isto é,
em que se venceu virtualmente a campanha, os seus serviços foram inapreciáveis...
Ele sozinho enchia com a emancipação o Jornal do Comércio desde a coluna
editorial, onde por toda a espécie de habilidades, artifícios e sutilezas, graças à boa
vontade do dr. Luís de Castro, conseguia ter a questão sempre em evidência... Seu
talento, seu estilo de escritor, airoso, perfeito, prismático, um dos mais belos e mais
espontâneos do nosso tempo, era verdadeiramente inexaurível... Ele achava
solução para tudo, tinha os expedientes e as finuras, como tinha a plástica da
expressão... Todo o seu trabalho foi anônimo e poderia assim passar despercebido
de outra geração, se não restasse o testemunho unânime dos que trabalharam com
ele... Era um assombro a variedade dos papéis que ele desempenhava na imprensa,
incalculável o valor da sua presença e conselho em nossas reuniões, e depois no
íntimo do Gabinete Dantas. Seu nome está escrito, por toda a parte, nas paredes
das catacumbas em que o abolicionismo nascente viveu os primeiros cinco anos
como uma pequena igreja perseguida, mas aparece cada vez mais raro à medida
que a nova fé se vai tornando religião oficial. É um dos enigmas do nosso tempo –
enigma nacional, porque se prende à questão do emurchecimento rápido de toda flor
do país – como semelhante talento renunciou mais tarde de repente a toda a
ambição...
Não quero fazer a galeria da abolição, mas, como dei, vencido pela saudade,
dois ou três perfis, tão imperfeitos, de amigos, pagarei também o meu tributo a José
do Patrocínio... Este é o representante do espírito revolucionário que com o espírito
liberal e o espírito de governo fez a abolição, mas que foi mais forte do que eles, e
acabou por os absorver e dominar... Sem o espírito governamental de homens como
Dantas, Antônio Prado e João Alfredo, não se teria chegado pacificamente ao fim,
nem tão cedo; sem o espírito humanitário, extreme de ódios e tendências políticas, a
abolição teria degenerado, em uma guerra de raças ou em um encontro de facções;
sem o trabalho vário, inapreciável, de cada um dos grandes fatores provinciais, que
conservarão sua autonomia na História, como o do Ceará, com João Cordeiro, o de
S. Paulo com Antônio Bento, o de Pernambuco com João Ramos, tomando esses
nomes como coletivos, o resultado teria sido diferente e talvez funesto. O que
Patrocínio, porém, representa é o fatum, é o irresistível do movimento... Ele é uma
mistura de Spartaco e de Camille Desmoulins... Os que lutavam somente contra a
escravidão eram como os liberais de 1789, da raça dos cegos de boa vontade,
senão voluntários, que as revoluções empregam para lhes abrirem a primeira
brecha...Patrocínio é a própria revolução. Se o abolicionismo no dia seguinte ao seu
triunfo dispersou-se e logo depois uma parte dele aliou-se à grande propriedade
contra a dinastia que ele tinha induzido ao sacrifício, é que o espírito que mais
profundamente o agitou e revolveu foi o espírito revolucionário que a sociedade
abalada tinha deixado escapar pela primeira fenda dos seus alicerces... Patrocínio
foi a expressão da sua época; em certo sentido, a figura representativa dela...
CAPÍTULO XXII
Caráter do movimento – A parte da dinastia
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A abolição teria sido uma obra de outro alcance moral, se tivesse sido feita do
altar, pregada do púlpito, prosseguida de geração em geração pelo clero e pelos
educadores da consciência. Infelizmente, o espírito revolucionário teve que executar
em poucos anos uma tarefa que havia sido desprezada durante um século. Uma
grande reforma social, para ser agradável a Deus, exige que a alma do próprio
operário seja purificada em primeiro lugar. São essas as primícias que ele disputa e
que lhe pertencem. A diferença é grande, mesmo para as empresas mais justas e
mais belas, se a levamos por diante com espírito da verdadeira caridade cristã, ou
se não empregamos nelas senão essa espécie de estímulo pessoal a que em moral
leiga se chama amor da humanidade. O reformador não vencerá completamente
pela cópia de justiça que a sua idéia contenha; o resultado da vitória depende do
grau de caridade que inspirar a germinação. A política é a arte de escolher as
sementes; a religião, a de lhes preparar o terreno.
O movimento contra a escravidão no Brasil foi um movimento de caráter
humanitário e social antes que religioso; não teve por isso a profundeza moral da
corrente que se formou, por exemplo, entre os abolicionistas da Nova Inglaterra. Era
um partido composto de elementos heterogêneos, capazes de destruir um estado
social levantado sobre o privilégio e a injustiça, mas não de projetar sobre outras
bases o futuro edifício. A realização da sua obra parava assim naturalmente na
supressão do cativeiro; seu triunfo podia ser seguido, e o foi, de acidentes políticos,
até de revoluções, mas não de medidas sociais complementares em benefício dos
libertados, nem de um grande impulso interior, de renovação da consciência pública,
da expansão dos nobres instintos sopitados. A liberdade por si só é fecunda, e sobre
os destroços da escravidão refar-se-á com o tempo uma sociedade mais unida, de
idéias mais largas, e é possível que esta proclame seus criadores aqueles que não
fizeram mais do que interromper a opressão que presidia aos antigos nascimentos,
os gemidos que assinalavam no Brasil o aparecer de mais uma camada social. A
verdade, porém, é que a corrente abolicionista parou no dia mesmo da abolição e no
dia seguinte refluía.
Durante a campanha abolicionista, em uma das eleições em que fui
candidato, um escravo, que parecia feliz, suicidou-se em uma fazenda de Cantagalo.
Contou-me uma senhora da família, anos depois, que perguntado no momento da
morte por que atentara contra si, se tinha alguma queixa, ele respondera ao senhor
que não, que pensou em matar-se somente porque “eu não tinha sido eleito
deputado...” Tenho convicção de que a raça negra por um plebiscito sincero e
verdadeiro teria desistido de sua liberdade para poupar o menor desgosto aos que
se interessavam por ela, e que no fundo, quando ela pensa na madrugada de 15 de
novembro, lamenta ainda um pouco o seu 13 de maio. Não se poderia estar em
contato com tanta generosidade e dedicação sem lhe ter um pouco adquirido a
marca. Desde a dinastia, que tinha um trono a oferecer, ninguém que tenha tomado
parte em sua libertação, o lastimará nunca. Não se lastima a emancipação de uma
raça, a transformação imediata do destino de um milhão e meio de vidas humanas
com todas as perspectivas que a liberdade abre diante das futuras gerações. Não há
raças ingratas. “Senhor Rebouças – dizia a princesa imperial a bordo do ‘Alagoas’,
que os levava juntos para o exílio – se houvesse ainda escravos no Brasil, nós
voltaríamos para libertá-los.”
Ah! decerto o trono caiu e muita coisa seguiu-se que me podia fazer pensar
hoje com algum travo nesses anos de perfeita ilusão... mas não, devia ser assim
mesmo... As conseqüências, os desvios, as aberrações, estranhas e alheias, não
podem alterar a perfeita beleza de uma obra completa, não destróem mais o ritmo
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de um ciclo encerrado... No dia em que a princesa imperial se decidiu ao seu grande
golpe de humanidade, sabia tudo o que arriscava. A raça que ia libertar não tinha
para lhe dar senão o seu sangue, e ela não o quereria nunca para cimentar o trono
de seu filho... A classe proprietária ameaçava passar-se toda para a República, seu
pai parecia estar moribundo em Milão, era provável a mudança de reinado durante a
crise, e ela não hesitou: uma voz interior disse-lhe que desempenhasse sua missão,
a voz divina que se faz ouvir sempre que um grande dever tem que ser cumprido ou
um grande sacrifício que ser aceito. Se a monarquia pudesse sobreviver à abolição,
este seria o seu apanágio; se sucumbisse, seria o seu testemunho. Quando se tem,
sobretudo uma mulher, a faculdade de fazer um grande bem universal, como era a
emancipação, não se deve parar diante de presságios; o dever é entregar-se
inteiramente nas mãos de Deus. E quem sabe... A impressão quando se olha da
altura da posteridade, da história, é que o papel nacional da dinastia tinha sido belo
demais para durar ininterruptamente... Não há tão extensos espaços de felicidade
nas coisas humanas; o surto prolongando-se traria a queda desastrosa. Essa
dinastia teve só três nomes. O fundador fez a independência do jovem país
americano, desintegrando a velha monarquia européia de que era herdeiro; seu filho
encontra aos quinze anos o Império enfraquecido pela anarquia, rasgando-se pela
ponta do Rio Grande, e funda a unidade nacional sobre tão fortes bases que a
Guerra do Paraguai, experimentando-a, deixou à prova de qualquer pressão interna
ou externa, e faz tudo isso sem tocar nas liberdades políticas do país que durante
cinqüenta anos são para ele um noli me tangere... Por último, sua filha renunciava
virtualmente o trono para apressar a libertação dos últimos escravos... Cada reinado,
contando a última regência da princesa como um embrião de reinado, é uma nova
coroação nacional: o primeiro, a do Estado; o segundo, a da nação; o terceiro, a do
povo... A coluna assim está perfeita e igual: a base, o fuste, o capitel. A tendência do
meu espírito é colocar-se no ponto de vista definitivo... Deste o 15 de novembro não
é uma queda, é uma assunção... É a ordem do destino para que a dinastia brasileira
fosse arrebatada, antes de começar o seu declínio, antes de correr o risco de
esquecer a sua tradição.
Decerto o exílio de imperador foi triste, mas também foi o que deu à sua figura
a majestade que hoje a reveste... Não, não há assim nada que me faça olhar para a
fase em que militei na política com outro sentimento que não seja o de uma perfeita
gratidão... Não devo à dinastia nenhuma reparação; não lhe armei uma cilada; na
humilde parte que me coube, o que fiz foi acenar-lhe com a glória, com a
imortalidade, com a perfeição do seu traço na História... Ninguém pode afirmar que,
desprezando a abolição, ela se teria mantido, ou que não teria degenerado... A
abolição em todo o caso era o seu dever, e ela recolheu a glória do ato; deu-nos
quitação...
Que seria feito na história da lenda monárquica brasileira se no mesmo dia se
tivesse proclamado a República e a Abolição? Gratidão infinita pelo 13 de maio, isso,
sim, lhe devo e deverei sempre; nunca, porém, reparação de um dano que não
causei.
CAPÍTULO XXIII
Passagem pela política
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Oh! o que não recebi nesses anos de luta pelos escravos! Como os sacrifícios
que por vezes inspirei eram maiores que os meus! Eu tinha a fama, a palavra, a
carreira política... É certo que não tive outras recompensas, mas essas eram as mais
belas para um moço, nesse tempo ávido de nomeada e das sensações do triunfo.
Era o meu nome que saía vitorioso das urnas numa dessas eleições que eletrizavam
os espíritos liberais de todo o país, que me traziam de longe as bênçãos dos velhos
quakers da Anti-Slavery Society, e até uma vez os votos de Gladstone... Aqueles,
porém, que concorriam para a vitória desapareceriam na lista anônima dos
esquecidos... Seus nomes, mesmo os principais, não ecoavam fora da Província...
Só, dentre eles, José Mariano era conhecido de todo o país e reputado o árbitro
eleitoral do Recife. Quem conhecia, porém, a Antônio Carlos Ferreira da Silva, então
simples guarda-livros em uma casa do Recife, que no entanto fez todas as minhas
eleições abolicionistas? A verdade é que era ele o espírito que movia tudo em meu
favor; sem ele tudo teria corrido em outra direção... Essa é a melhor prova do caráter
espontâneo, natural, popular, das minhas eleições do Recife, o ter bastado para
fazê-las um homem como ele, sincero, dedicado, inteligente, leal, hábil, todo coração
e entusiasmo sob uma máscara de frieza e misantropia, mas sem posição, sem
fortuna, sem status político, sem ligação de partido, simples abolicionista, nunca
aparecendo em público, e, além do mais, republicano confesso... Essa circunstância
só por si mostra bem a sinceridade, a humildade, a ingenuidade de todo esse
movimento de 1884-1888. Esse foi o meu paraninfo... Os muitos que trouxeram o
seu valioso concurso para o sucesso da causa comum, ou para meu triunfo pessoal,
como aconteceu com tantos, compreenderão o meu sentimento, quando ainda uma
vez revelo o segredo da minha relação com o Recife, dizendo que Antônio Carlos,
que nada era e nada quis ser, foi o verdadeiro autor dela... Não esqueço ninguém, a
começar por Dantas, que me fez quase forçadamente seguir para o Norte a pleitear
um dos distritos da Província: não esqueço decerto o dr. Ermínio Coutinho e o dr.
Joaquim Francisco Cavalcanti, de cuja dupla renúncia resultou a minha inesperada
eleição pelo quinto distrito, uma semana depois de anularem o meu diploma pelo
primeiro, passe eleitoral que surpreendeu a todos na Câmara e em que Antônio
Carlos foi grandemente ajudado pelo seu amigo dr. Coimbra. Também não esqueço
José Mariano, cuja lealdade para comigo foi perfeita em circunstâncias que poriam à
prova a emulação e a suscetibilidade de outro espírito, capaz de inveja ou de
ciúmes; nem a suave fisionomia, um puro Carlo Dolce, da sua meiga e amorosa d.
Olegarinha, tão cedo esvaecida, a qual nas vésperas da minha eleição, que José
Mariano fizera dele, contra o ministro do Império, fez empenhar jóias suas para o
custeio da luta, o que só vim a saber no dia seguinte, quando o partido as resgatou e
lhas foi levar... Não esqueço ninguém, nenhum dos chefes e centuriões liberais,
Costa Ribeiro, João Teixeira, Barros Rego, o Silva da Madalena, Faustino de Brito
do Peres: seria preciso citar cem, duzentos... Nenhum também desse grupo de
abolicionistas, que me recebeu com Antônio Carlos: Barros Sobrinho, João Ramos,
Gomes de Mattos, João Barbalho, Numa Pompílio, João de Oliveira, Martins Júnior,
todos eles; não esqueço os brilhantes artigos de tantos jornalistas distintos, sobre
todos Maciel Pinheiro, o amigo de Castro Alves, austero, rutilante, genial, figura que
lembra o traço velazquiano, ao mesmo tempo sombrio e luminoso. E são esses
somente os primeiros nomes que me vieram à pena. Outros, muitos outros, estão
igualmente presentes ao meu espírito como Aníbal Falcão e Souza Pinto, então os
chefes intelectuais da mocidade.
Duvido ter eu tido maior revelação, ou impressão exterior que ficasse atuando
sobre mim de modo mais permanente, do que essas eleições de 1884 a 1887 – a de
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1889, feita a abolição, não me interessava quase. Elas puseram-me em contato
direto com a parte mais necessitada da população e em mais de uma morada de
pobre tive uma lição de coisas tão pungente e tão sugestiva sobre o desinteresse
dos que nada possuem, que só a lembrança do que vi terá sempre sobre mim o
poder, o efeito de um exame de consciência... Eu visitava os eleitores, de casa em
casa, batendo em algumas ruas a todas as portas... A pobreza de alguns desses
interiores e a intensidade da religião política alimentada neles fez-me por vezes
desistir de ir mais longe... Doía ver o quanto custava a essa gente crédula a sua
devoção política. Diversos desses episódios gravaram-se-me no coração. Uma vez,
por exemplo, entrei na casa de um operário, empregado em um dos Arsenais, para
pedir-lhe o voto. Chamava-se Jararaca, mas só tinha de terrível o nome. Estava
pronto a votar em mim, tinha simpatia pela causa, disse-me ele; mas votando, era
demitido, perdia o pão da família; tinha recebido a “chapa de caixão”(uma cédula
marcada com um segundo nome, que servia de sinal), e se ela não aparecesse na
urna, sua sorte estava liquidada no mesmo instante. “Olhe, sr. doutor”, disse-me ele,
mostrando-me quatro pequenos, que me olhavam com indiferença, na mais perfeita
inconsciência de que se tratava deles mesmos, de quem no dia seguinte lhes daria
de comer... E depois, voltando-se para uma criancinha, deitada sobre os buracos de
um antigo canapé desmantelado: “Ainda em cima, minha mulher há dois meses
achou essa criança diante da nossa porta, quase morrendo de fome, roída pelas
formigas, e hoje é mais um filho que temos!” “No entanto, estou pronto a votar pelo
senhor – recomeçava ele, cedendo à sua tentação liberal – se o senhor me trouxer
um pedido do brigadeiro Floriano Peixoto.” Esse foi talvez o primeiro “florianista” do
país... “Pode vir por telegrama... Ele está no engenho, nas Alagoas... E o que ele me
pedir, custe o que custar, eu não deixo de fazer... Telegrafe a ele...” “Não, não é
preciso – respondi-lhe – vote como quer o governo, não deixe de levar a sua ‘chapa
de caixão’... não arrisque à fome toda essa gentinha que está me olhando... Há de
vir tempo em que o senhor poderá votar por mim livremente; até lá, é como se o
tivesse feito... Não devo dar-lhe um pretexto para fazer o que quer, invocando a
intervenção do seu protetor...” E saí, instando com a mulher, suplicando, com medo
que ele se arrependesse e fosse votar em mim.
Em outras coisas o chefe da família estava sem emprego havia anos por
causa de um voto dado ao partido da oposição; a pobreza era completa, quase a
miséria, mas todos ali tinham o orgulho de sofrer por sua lealdade ao partido... E
como entre os liberais, entre os conservadores. Eram coerentes na miséria, na
privação de tudo... Esse espetáculo seria decerto animador no mais alto grau para o
otimista desinteressado; este julgaria ter descoberto o refúgio da verdadeira
natureza humana escondida; para o candidato, porém, de cuja causa se tratava, era
terrivelmente pungente surpreender assim a agonia da dignidade... Posso dizer,
quanto a mim, eu não teria ousado ser mais um dia pretendente a um posto que
custava tanto sofrimento, se não fosse para servir a causa de outros ainda mais
infelizes do que essas vítimas da altivez do pobre, da paixão e ilusão política do
povo. Hoje, quem sabe, eu não teria talvez em nenhum caso a força, a coragem de
insinuar aos bons, aos crédulos, aos ingênuos, sacrifícios pessoais dessa ordem em
favor de uma causa que não fosse diretamente deles. Faria com todos o que fiz com
o bom Jararaca: aconselharia que não sacrificassem os seus... Mas a luta pela
justiça é isso mesmo, é o sacrifício de gerações inteiras pelo direito às vezes de um
só, para resgatar a injustiça feita a um oprimido, talvez um estranho. Decerto, não
tenho remorsos nem me arrependo... Pessoalmente nenhum lucro terei de todas as
abnegações que vieram a mim; não capitalizai o sofrimento de tantos
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desinteressados... Consola-me nada ter tirado da abolição senão o gozo de algumas
impressões da tribuna e de nomeada, que foram apenas uma expansão como
qualquer outra da mocidade... Graças a Deus, favor este inestimável, nenhum lucro
material, direto ou indireto, me resultou nunca das idéias que me seduziram e com
as quais seduzi a outros...
Mas, ainda uma vez, o que recebi foi incalculável. Só Deus mesmo, que vê os
sofrimentos que se escondem e cujo orgulho é passarem invisíveis no meio da
multidão, pode fazer tal conta. Sou um cativo do Recife. Ninguém que não tenha
acompanhado um dos candidatos, de casa em casa, das areias do Brum aos canais
dos Afogados, durante a campanha da abolição, pode avaliar o que custou àqueles
bairros de população densa, vivendo na mais completa destituição de tudo, o
acolhimento que me deram. Para chegar à Câmara tive os ombros dos que não
tinham de seu senão o trabalho de suas mãos e que se arriscavam, carregados de
família, a verem fechar-se-lhes no dia seguinte a oficina, a serem despedidos,
despejados, depois de me terem dado o voto... O que me fica de todo esse episódio,
o único de minha carreira política, é um sentimento acabrunhador de falência...Meu
único ativo é a gratidão. O passivo é ilimitado... Foram milhares os que me
ofereceram tudo o que tinham, isto é, como nada tinham, o que eram, o que podiam
ser, e posso dizer que o aceitei em nome dos escravos. Muitos ter-se-ão levantado
outra vez, e seguido seu caminho pelas estradas abertas desde então, mas que
todas parecem conduzir à mesma miragem que abrasa o horizonte... Terão ido, ou
irão indo, coitados, de ilusão em ilusão, de desprendimento em desprendimento, de
lealdade em lealdade... Não importa. O fato para mim dominante é que em um
momento da minha vida pedi e aceitei o sacrifício absoluto de muitos pela causa que
eu defendia... Decerto, foi a mais nobre, a mais augusta das causas; mas o fato é
que eu era ali o representante dela, que em grande parte a dedicação, o sacrifício
era por mim, como era meu o triunfo, minha a carreira, meu o futuro político...
A impressão que me ficou da política, exceto esse quadro doloroso do
sacrifício ingênuo dos simples, dos bons, dos que sofrem, pelos que se elevam,
posso dizer que me lembra um jardim encantado do Oriente, onde tudo eram formas
enganadoras de existências petrificadas, imobilizadas, à espera da palavra que as
libertasse; onde a rosa, que nunca desbotava, exprimia a presença oculta de uma
paixão que não queira perjurar-se; onde o mármore alabastrino das fontes
significava o corpo imaculado de que vertia contínuo o sangue puro dos martírios do
amor e da verdade; onde os rouxinóis que cantavam eram parte de amantes a quem
era defeso procurarem-se sob a forma humana... Tudo ali estava suspenso,
transportado a outra escala do ser, a outra ordem de sensibilidade e de afetos... Era
o mesmo fato, mas com diferente aspiração, diferente consciência, diferente
vontade, e para o qual por isso mesmo o tempo não corria, como no sonho... A cena
política foi também para mim um puro encantamento... Sob a aparência de partidos,
Ministérios, Câmaras, de todo o sistema a que presidia com as suas longas barbas
níveas o velho de S. Cristóvão, o gênio brasileiro tinha encarnado e disfarçado o
drama de lágrimas e esperanças que se estava representando no inconsciente
nacional, e à geração do meu tempo coube penetrar no vasto simulacro no momento
em que o sinal, o toque redentor, ia ser dado, e todo ele desabar para aparecer em
seu lugar a realidade humana, de repente chamada à vida, restituída à liberdade e
ao movimento... Por isso não trouxe da política nenhuma decepção, nenhum
amargor, nenhum ressentimento... Atravessei por ela durante a metamorfose.
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CAPÍTULO XXIV
No Vaticano
Em episódio da abolição, a minha ida a Roma em começo de 1888, contarei
aqui, porque será um elo em minha vida, um toque insensível de despertar para
partes longamente adormecidas de minha consciência.
Eu tinha sempre lastimado a neutralidade do clero perante a escravidão, o
indiferentismo do seu contato com ela... Para o fim, porém, a voz dos bispos se fez
ouvir em um momento de inspiração. Por ocasião do jubileu sacerdotal de Leão XIII,
eles publicaram, quase todos, pastorais convidando os seus diocesanos a oferecer
como dádiva ao santo padre cartas de liberdade. Esse apelo dos prelados oferecia
uma oportunidade ao Partido Abolicionista de pedir ao soberano pontífice a sua
intervenção em favor dos escravos, e eu resolvi aproveitá-la.
Eu acabara de ser eleito deputado pelo Recife, batendo o ministro do Império,
e essa eleição soou como o dobre da resistência escravista. Nos poucos dias que
restavam da sessão parlamentar de 1887, vim ao Rio de Janeiro tomar assento na
Câmara, mas o objeto principal da minha vinda ao Rio era conseguir, e consegui, o
pronunciamento moral do Exército contra a escravidão, a dissociação absoluta entre
a força pública e as funções dos antigos capitães de mato. Para ocupar as férias
parlamentares hesitei entre essa ida a Roma e uma viagem aos Estados Unidos,
onde o acolhimento que eu teria por intermédio dos antigos abolicionistas podia dar
grande repercussão à nossa causa em todo o continente americano. Preferindo ir a
Roma, fui levado sobretudo pela idéia de que uma manifestação do santo padre
tocaria o sentimento religioso da regente.
Era-me, decerto, permitido recorrer ao papa, como a qualquer outro oráculo
moral que pudesse inspirar a princesa, falar-lhe ao ideal e ao dever. Durante dez
anos não visei a outra coisa senão a capitar o interesse da dinastia, e a acordar o
sentimento do país. A opinião pública do mundo parecia-me uma arma legítima de
usar em uma questão que era da humanidade toda e não somente nossa. Para
adquirir aquela arma fui a Lisboa, a Madri, a Paris, a Londres, a Milão, ia agora a
Roma, e se a escravidão tivesse tardado ainda a desaparecer, teria ido a
Washington, a Nova York, a Buenos Aires, a Santiago, a toda a parte onde uma
simpatia nova por nossa causa pudesse aparecer, trazendo-lhe o prestígio da
civilização. Se havia falta de patriotismo em procurar criar no exterior – tomado não
como poder material, mas como refletor moral universal, que é para nós – uma
opinião que nos chegasse depois espontaneamente com a grande voz da
humanidade, não posso negar que fui um grande culpado... Teria sido o mesmo
crime que o de W. L. Garrison desembarcando na Inglaterra, para comovê-la contra
a escravidão nos Estados Unidos; o mesmo erro que o dos delegados dos diversos
congressos internacionais antiesclavagistas. A consciência, a simpatia humana é,
porém, uma força que nunca é proibido procurar chamar a si e pôr ao serviço de seu
país ou da causa que se defende.
Chegando a Londres em dezembro, em janeiro parti para Roma com cartas
do cardeal Manning, que a Anti-Slavery Society e mr. Lilly, da União Católica inglesa,
me tinham obtido. Em Roma encontrei um apoio igualmente útil, o do nosso ministro,
o sr. Souza Correa, antigo colega e amigo meu. Ele pôs-me logo em contato com o
cardeal secretário do Estado, que me acolheu de modo supremamente benévolo.
Roma estava repleta de peregrinos por causa do jubileu, no Vaticano o trabalho era
enorme; apesar disso, consegui abrir caminho até o santo padre. Em 16 de janeiro
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eu apresentava o meu memorial ao cardeal Rampolla. Hoje eu o teria redigido de
outro modo, mas hoje não tenho mais o ardor do propagandista... Aqui estão alguns
trechos dessa súplica; por eles se verá que o meu apelo não era somente pelos
escravos do Brasil, mas por toda a raça negra, pela África, onde pouco tempo depois
devia surgir arrebatadamente a grande figura do cardeal Lavigerie:
“Sem exceção quase, os bispos brasileiros declararam em pastorais que o
modo mais digno e mais nobre de celebrar o aniversário sacerdotal de Leão XIII era
para os possuidores darem liberdade aos seus escravos e para os outros membros
da comunhão empregarem em cartas de alforria os donativos que quisessem
oferecer ao santo padre.
O apelo moralmente unânime dos nossos prelados não podia deixar de
exercer as maior influência sobre o movimento abolicionista, que já arrastava
consigo a opinião, e seguiu-se uma manifestação religiosa e nacional, que pela sua
própria grandeza mostra que a abolição no Brasil não é mais uma divergência entre
os partidos políticos... Pela manumissão de multidões de escravos em nome do
santo padre, o seu jubileu ficará sendo a elevação à liberdade de centenas de novas
famílias brasileiras.
De todos os dons postos aos pés de Leão XIII o tributo do Brasil sob a forma
desses libertos cristãos, que tomam de longe parte em sua glorificação universal, é
talvez a única oferta que terá feiro derramar ao santo padre lágrimas de
reconhecimento.
Eis aí, Eminência Reverendíssima, a esplêndida ocasião que se oferece ao
soberano pontífice de interceder, de intervir, de ordenar em favor dos escravos
brasileiros. Dessas cartas de alforria depositadas de seu augusto trono, Leão XIII
pode fazer a semente da emancipação universal. Uma palavra de Sua Santidade
aos senhores católicos no interesse dos seus escravos, cristãos como eles, não
ficaria encerrada nos vastos limites do Brasil, teria a circunferência mesma da
religião, penetraria como uma mensagem divina por toda a parte onde a escravidão
ainda existe no mundo.
O papa acaba de canonizar a Pedro Claver, o Apóstolo dos Negros. Na época
adiantada da civilização em que vivemos, há infelizmente ainda escravidão bastante
no mundo para que Leão XIII possa acrescentar a seus outros títulos o de Libertador
dos Escravos.
Alguns dos seus ilustres predecessores procederam por vezes contra a
escravidão; tendo esta por única origem o tráfico, está de fato compreendida nas
bulas que o condenaram, mas os tempos em que esses imortais pontífices falaram
não são os nossos, a humanidade então não havia feito esforços para apagar o seu
crime de tantos séculos contra a África, cuja raça infeliz parece destinada a sofrer,
sob formas diversas do mesmo preconceito, a fatalidade da sua cor. Um ato de Leão
XIII, generoso, ardente, inspirado na espontaneidade de sua alma, contra a maldição
que pesa sobre aquela raça, seria um benefício incalculável.
Nenhum pensamento político intervém na súplica que dirijo ao chefe do
mundo católico em favor dos mais infelizes dos seus filhos. Não quero senão pôr o
seu coração de pai em comunicação direta com o deles. Desse contato da caridade
com o martírio não pode jorrar senão a onda de misericórdia que eu espero. Por ela
o jubileu de Leão XIII será assinalado como uma data da redenção humana em toda
a parte onde a raça negra se possa julgar a órfã de Deus”.
Em 10 de fevereiro seguinte, Sua Santidade concedia-me uma audiência
particular. Dei conta dela no mesmo dia, escrevendo para o País... Dentre os papéis
velhos que formam “as parcelas de minha vida”, a expressão é de uma carta do
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imperador – outro papel velho que é para mim uma relíquia – este há de ser sempre
um dos mais preciosos; a emoção que ele guarda não poderia ser repetida. e é
dessas que aumentam à medida que os anos se afastam... Por isso o reproduzo
agora:
O Papa e a Escravidão
“Tive hoje a honra de ser recebido em audiência particular pelo papa, e como
essa audiência me foi concedida com relação ao assunto político que me fez vir a
Roma, não devo demorar a reconstrução da conversa que tive com Sua Santidade e
que eu trouxe do Vaticano taquigrafada, fotografada na memória. Foi uma insigne
benevolência de Sua Santidade conceder-me tal audiência em um tempo em que
cada um de seus momentos está de antemão empenhado aos bispos, arcebispos, e
católicos proeminentes, que lhe vêm trazer algum dom por ocasião de seu jubileu.
O papa está constantemente a receber numerosas deputações influentes de
todas as partes do mundo e dirige-se sempre a elas com uma alocução animada.
Esse acréscimo de trabalho às suas constantes ocupações de cada dia não deixa
muito tempo de descanso ao santo padre, sobre quem os seus 78 anos, juntos à
majestade da tiara, começam a pesar; no entanto é nessas horas de repouso que
Sua Santidade recebe individualmente os homens notáveis do mundo católico e
conversa com eles largamente sobre o assunto pelo qual cada um se interessa.
Eu, porém, era um desconhecido e não vinha trazer nada ao papa, vinha só
pedir-lhe: nenhum serviço tinha prestado nunca à Igreja, e a questão que me
ocupava exigia que Sua Santidade lesse antes uma série de documentos e fizesse
alguma meditação sobre a grave resposta que me ia dar. Isto era um esforço, e, nas
circunstâncias especiais do jubileu, a atenção a mim prestada pela mais alta de
todas as individualidades humanas é um ato a que ligo ainda maior apreço e
reconhecimento por saber que na minha humilde pessoa foi aos escravos do Brasil
que Leão XIII quis acolher paternalmente e fazê-los chegar até ao seu augusto
trono, como, simbolicamente, o mais elevado de todos os lugares de refúgio.
O papa recebe em audiência particular, sem testemunha alguma. Ninguém
está na sala senão ele e a pessoa a quem a audiência é concedida. Em uma sala
contígua está um secretário e um oficial da guarda, mas uma vez introduzido no
pequeno salão, o visitante acha-se a portas fechadas em presença somente de Leão
XIII. O papa, que lia um livro de versos latinos quando fui anunciado, mandou que
me assentasse numa cadeira ao lado da sua e perguntou-me em que língua devia
falar-me. Eu preferi o francês.
A impressão que senti todo o tempo da audiência, que não durou menos de
três quartos de hora, não se parece com a sensação causada pela presença de um
dos grandes soberanos do mundo. O trono brasileiro é uma exceção. Nunca no
Brasil teve homem tão acessível como o imperador, nem casa tão aberta como S.
Cristóvão. Mas os monarcas em geral são educados e crescem, porque a sua
condição é superior à do resto dos homens, na crença de que são ‘melhores’ do que
a humanidade. A todas as vantagens do papado como instituição monárquica,
notavelmente a eletividade, é preciso acrescentar essa superioridade do papa sobre
os outros soberanos, que estes nascem, vivem e morrem no trono, e que os papas
só chegam à realeza nos últimos anos da vida, isto é, que vivem toda a vida como
homens e no trono não fazem quase senão coroar a sua carreira. Esse caráter
‘humano’ da realeza pontifícia é a condição principal de seu prestígio, assim como a
eletividade é a condição da sua duração ilimitada e o espírito religioso a da sua
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seleção moral. Eu diria mesmo que a sós com o papa a expressão é antes a do
confessionário que a dos degraus do trono, se ao mesmo tempo não houvesse
franqueza e na reserva de Sua Santidade alguma coisa que exclui desde o princípio
a idéia de que ali esteja o confessor interessado em descobrir o fundo da alma do
seu interlocutor. A impressão dominante é, entretanto, de confiança absoluta, como
se, entre aquelas quatro paredes, tudo o que se pudesse dizer ao sumo pontífice
tomasse caráter de uma conversa íntima com Deus, de quem estivesse ali o
intérprete e o medianeiro.
As palavras que caíram dos lábios do santo padre gravaram-se-me na
memória, e não creio que se apaguem mais, nem creio que eu deixe de ouvir a voz e
o tom firme com que foram ditas. O papa começou notando que ele me havia
demorado muito tempo em Roma, mas que eram numerosos os seus deveres nesse
momento, ao que respondi que o meu tempo não podia ser melhor empregado do
que esperar a palavra de Sua Santidade. – ‘Eu ia aos Estados Unidos, disse eu a
Leão XIII, onde está a maior parte da raça negra da América; mas quando os nossos
bispos começaram a falar com deliberação e de comum acordo a propósito do
jubileu de Vossa Santidade e a pedir a emancipação dos escravos como o melhor e
mais alto modo de o solenizar no Brasil, pensei que devia antes de tudo vir a Roma
pedir a Vossa Santidade que completasse a obra daqueles prelados, condenando,
em nome da Igreja, a escravidão. Conseguindo isto de Vossa Santidade, nós,
abolicionistas, teríamos conseguido um ponto de apoio na consciência católica do
país, que seria da maior vantagem para a realização completa da nossa esperança.’
Sua Santidade respondeu-me: – Ce que vous avez à coeur, l’Eglise aussi l’a à
coeur. A escravidão está condenada pela Igreja e já devia há muito tempo ter
acabado. O homem não pode ser escravo do homem. Todos são igualmente filhos
de Deus, des enfants de Dieu. Senti-me vivamente tocado pela ação dos bispos, que
aprovo completamente, por terem de acordo com os católicos do Brasil escolhido o
meu jubileu sacerdotal para essa grande iniciativa... É preciso agora aproveitar a
iniciativa dos bispos para apressar a emancipação. Vou falar nesse sentido. Se a
encíclica aparecerá no mês que vem ou depois de Páscoa, não posso ainda dizer...
— O que nós quiséramos, observei, era que Vossa Santidade falasse de
modo que a sua voz chegasse ao Brasil antes da abertura do Parlamento, que tem
lugar em maio. A palavra de Vossa Santidade exerceria a maior influência no ânimo
do governo e da pequena parte do país que não quer ainda acompanhar o
movimento nacional. Nós esperamos que Vossa Santidade diga uma palavra que
prenda a consciência de todos os verdadeiros católicos.
– Ce mot je le dirai, vous pouvez en être sûr – respondeu-me o papa – e,
quando o papa tiver falado, todos os católicos terão que obedecer.
Estas últimas palavras o papa mais repetiu duas ou três vezes, sempre na
forma impessoal; não ‘quando eu tiver falado’, mas sempre ‘quando o papa tiver
falado’.
Acredito ter sido absolutamente leal para com os meus adversários na
exposição que fiz em seguida à Sua Santidade da marcha da questão abolicionista
no Brasil. O papa fez-me diversas perguntas, a cada uma das quais respondi com a
completa lealdade que devia primeiro ao papa, e depois aos meus compatriotas.
Descrevi o movimento abolicionista no Brasil, como tendo-se tornado
proeminentemente um movimento da própria classe dos proprietários, e dei, como
devia, e é justo, aos operários desinteressados da última hora a maior parte na
solução definitiva do problema, que sem a sua generosidade seria insolúvel.
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Referi-me à brilhante ação do sr. Prado e ao efeito moral do nobre
pronunciamento do sr. Moreira de Barros como fatos do maior alcance. Expus como
não havia na história do mundo exemplo de humanidade de uma grande classe igual
à desistência feita pelos senhores brasileiros dos seus títulos de propriedade
escrava. Disse que essa era a prova real de que escravidão no Brasil tinha sido
sempre uma instituição estrangeira, alheia ao espírito nacional, o que é ainda
confirmado (isto não disse ao papa), pelo fato de que os estrangeiros no Brasil
foram, e são ainda hoje, de toda a comunhão, os que menos simpatia mostraram ao
movimento libertador. Quanto à família imperial, repeti ao sumo pontífice que o que
há feito em nossa lei a favor dos escravos, é devido à iniciativa e imposição do
imperador, ainda que seja pouco. – ‘Uma dinastia, acrescentei, tem interesses
materiais que dependem do apoio de todas as classes e não pode afrontar a má
vontade de nenhuma, muito menos da mais poderosa de todas. O papado, porém,
não depende de nenhuma classe, por isso coloca-se no ponto de vista da moral
absoluta, que nenhuma dinastia pode tomar sem destruir-se.’ Falando do atual
presidente do Conselho, disse a Sua Santidade que ele era um homem a quem a
Igreja no Brasil devia muito por ter sido ele o principal autor da anistia, que pôs
termo ao conflito de 1873, mas que, nessa questão, não tínhamos motivos para
supor que ele quisesse ir além da lei atual, o que era positivamente contrário ao
desejo unânime da nação. – ‘Eu, porém, acrescentei, não peço a Vossa Santidade
um ato político ainda que as conseqüências políticas que a nação há, de sem
dúvida, tirar do ato que imploro sejam incontestáveis. Felizmente, Vossa Santidade
está em uma posição donde não vê os partidos, mas só os princípios. O que nós
queremos é um mandamento moral, é a lição da Igreja sobre a liberdade do homem.
Não há governo no mundo que possa ter a pretensão de que o papa, ao estabelecer
um princípio de moral universal, pare para considerar se esse princípio está de
acordo ou em conflito com os interesses políticos desse governo. Agora mesmo um
sacerdote brasileiro foi preso por acoitar escravos. Nós, abolicionistas, por toda parte
acoitamos escravos. Fazemos o que faziam os bispos da Média Idade com os
servos. O sentimento da nação, isto posso afirmar a Vossa Santidade, é unânime, e
a palavra do chefe da Igreja não encontraria ninguém para disputá-la.’
O papa então repetiu-me que a sua encíclica abundaria nos sentimentos do
Evangelho, que a causa era tão sua como nossa, e que o governo mesmo veria que
era de boa política reconhecer a liberdade a que todo o filho de Deus tem direito
pelo seu próprio nascimento, e que o papa falaria ao mesmo tempo que da
liberdade, da necessidade de educar religiosamente essa massa de infelizes,
privados até hoje de instrução moral.
O cardeal Czacki me tinha falado igualmente no dever de dar educação moral
aos libertos, e nesse sentimento parece que na América do Norte e nas Antilhas o
catolicismo vai tentar um grande esforço. Simpatizando com o princípio da nossa
propaganda abolicionista e pondo em relevo a responsabilidade que nós,
abolicionistas, havíamos contraído, o cardeal Czacki pôs o dedo no que é a ferida
da raça negra, ainda mais degradada talvez do que oprimida, e, do ponto de vista
católico, me disse que não havia outro meio para fazer desses escravos de ontem
homens moralizados, senão espalhar largamente entre eles a educação religiosa
que não tiveram nunca. Como respondi ao cardeal, assim respondia ao papa. –
‘Antes de começar o movimento abolicionista em 1879, disse eu ao sumo pontífice, o
partido liberal a que pertenço, em conseqüência da luta com os bispos em 1873, luta
sobre a qual os conservadores haviam pronunciado a anistia, achava-se
principalmente voltado para as medidas de secularização dos atos da vida civil,
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quase todos ainda confiados entre nós à Igreja. Com essas medidas desenvolveu-se
mesmo um estado de guerra entre o liberalismo e a Igreja. Desde que começou o
movimento abolicionista, entretanto, morreram todas as outras questões, e
literalmente há nove anos não se tem tratado de outra coisa no país. Estabeleceu-se
então uma verdadeira trégua de Deus entre homens de todos os modos de sentir e
pensar a respeito das outras questões. O primeiro que na Câmara elevou a voz para
pedir a abolição imediata, o deputado Jerônimo Sodré, é um católico proeminente. O
co-proprietário do jornal abolicionista de Pernambuco, que sustenta a minha política,
é o presidente de uma sociedade católica, o sr. Gomes de Mattos. Os bispos e os
abolicionistas trabalham agora de comum acordo. Essa trégua tem durado até hoje
sem perturbação, e espero que dure por muito tempo ainda. Abolida a escravidão,
resta proteger o escravo livre. Nesse campo nada em nossas leis impede que a
Igreja entre em concorrência para obter a clientela da raça que tiver ajudado a
resgatar. Não seremos nós, abolicionistas, que havemos de impedir a aproximação
entre os novos cidadãos e a única religião capaz de os conquistar para a civilização.
As vistas do país voltar-se-ão para as outras questões do melhoramento da
condição do povo, da criação da vida local, em que pode e deve continuar a trégua,
ou melhor, a aliança. Se a Igreja conseguir recomendar-se ao reconhecimento da
raça escrava, concorrendo para o seu resgate, os abolicionistas por certo não lhes
hão de aconselhar a ingratidão.’
O Papa ouviu-me todo o tempo com a maior simpatia e justificou-me de ter
pedido mais que o cardeal Manning julgara razoável que eu pedisse. Sua
Eminência, com efeito, aconselhou-me a pedir ao papa a repromulgação das bulas
de alguns dos seus antecessores e eu pedi um ato ‘pessoal’ de Leão XIII – ‘As
circunstâncias mudam, disse-me o papa, os tempos não são os mesmos; quando
essas bulas foram publicadas, a escravidão era forte no mundo, hoje ela está
felizmente acabada.’
– ‘O ato de Vossa Santidade, disse-lhe eu, terminando, será uma página da
história da civilização cristã que ilustrará o seu pontificado... Sua encíclica levantarse-
á tão alto aos olhos do mundo, dominando o movimento da abolição como a
cúpula de S. Pedro sobre a Campanha Romana.’
“Aí está mais ou menos reproduzida a longa audiência particular que leão XIII
me fez a excelsa honra de conceder-me, e que Sua Santidade terminou com uma
bênção especial para a causa dos escravos. Eu antes havia enviado ao
subsecretário de Estado, monsenhor Mocenni, a recente pastoral do bispo do Rio,
sentindo não ter podido encontrar os números do País em que apareceram as dos
outros prelados. Assim mesmo tive a fortuna de achar em retalho as pastorais dos
bispos de Mariana, do Rio Grande do Sul e do arcebispo da Bahia, que todas foram
enviadas ao cardeal Rampolla. A admirável carta do bispo de Diamantina, à qual
especialmente me referi, quando falei ao papa, não a pude encontrar. Com a
encíclica prometida e já anunciada por toda a Europa, esses pastorais formariam um
belo livro de fraternidade humana.
A demora que tive em Roma impede-me de voltar pelos Estados Unidos,
porque não teria mais tempo de preencher qualquer dos fins com que ia à grande
República. Mas estou satisfeito, contente. A palavra do papa terá para todos os
católicos maior influência do que poderia ter qualquer outra manifestação em favor
dos escravos. Nenhuma consciência recusará ao chefe da religião o direito de
pronunciar-se sobre um fato como a escravidão, que estabelece um vínculo entre o
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senhor e o escravo, equivalente a entrelaçar-lhes para sempre as almas e as
responsabilidades. Na maneira de se exprimir de Leão XIII não vi a mínima
vacilação, a mais leve preocupação de torcer o ensinamento moral para adaptá-lo às
circunstâncias políticas. Vi tão-somente a consciência moral brilhando, como um
farol, com uma luz indiferente aos naufrágios dos que não se guiarem por ela.
Roma, 10 de fevereiro de 1888.”
Como o cardeal Czacki tinha tido razão de dizer que eu ia levar ao papa um
verdadeiro bombom!... Infelizmente, a diplomacia envolveu-me na questão, o
Ministério conservador alarmou-se com a intenção manifestada pelo papa, e
conseguiu demorar a encíclica... A curta demora foi bastante para ela só aparecer
depois de abolida a escravidão no Brasil... Entre a queda de Cotegipe e a abolição,
o espaço foi tão pequeno que a bela obra de Leão XIII só veio a ser publicada
quando não havia mais escravos no Brasil. A bênção, porém, do santo padre à
nossa causa, a palavra que ele ia proferir, essas desde o fim de fevereiro, ainda sob
o gabinete Cotegipe, o país os conheceu pelas minhas revelações... A surpresa da
emancipação total foi tão agradável a Leão XIII que, como post-scriptum à sua carta
lapidária sobre a escravidão, ele mandou à princesa imperial a Rosa de Ouro.
Meu papel foi, como se viu, muito humilde. Simples portador para o cardeal
Rampolla e monsenhor Mocenni das cartas de apresentação do cardeal Manning, eu
não fiz, apresentado a Leão XIII as pastorais dos nossos bispos sobre o seu jubileu,
senão oferecer-lhe um assunto a todos os respeitos digno dele... A imaginação do
papa abrangeu logo toda a grandeza do serviço que ele podia prestar à
humanidade, o tema incomparável proporcionado às suas letras... Se de alguma
coisa me posso lisonjear é de ter ligado como uma aspiração comum à causa dos
escravos no Brasil a causa da África... Poucos meses depois do pronunciamento
que supliquei ao santo padre, chegará a Roma o cardeal Lavigerie e o papa o
investirá na cruzada africana que foi a nobre coroação da sua vida... Em uma carta
da Anti-Slavery Society mr. Charles Allen fez-me a honra de dizer que fui eu que
preparei junto ao papa o caminho para mr. Lavigerie... Nos discursos do grande
apóstolo da África, no que ele disse tantas vezes ex abundantia cordis, o que se vê
é que, quando ele chegou a Roma, Leão XIII estava possuído, dominado, inflamado
do fervor antiesclavagista... A parte que me coube em tudo isso foi apenas a de ser
quem – na ocasião do seu jubileu sacerdotal e da canonização de S. Pedro Claver,
ocasião tão favorável para o desabrochar dessa e de outras generosas iniciativas e
aspirações de reinado – teve a fortuna de atrair o grande espírito de Leão XIII,
disputado por tantas solicitações, para o problema que mais o podia fascinar.
Foi bem forte a impressão que eu trouxe de Roma... Nos fins de abril, não se
sabendo ainda até onde iria a reforma anunciada pelo novo Gabinete João Alfredo,
assisto à festa da libertação em massa de uma fazenda do Paraíba e a lembrança
que me ocorre é a das maravilhas do Vaticano... Que emoções essas da abolição!
Como tudo se fundia em uma mesma nota, misteriosa e íntima, como se tivéssemos
em nós nesses momentoso coração dos escravos em vez do nosso próprio! É este o
trecho em que descrevi aquela emoção da Bela Aliança...
“Há três meses tive a fortuna de assistir à missa do papa na capela Sixtina.
Nesse tempo eu não esperava que a hora da abolição estivesse tão prestes a soar,
e tinha ido pedir a Leão XIII, na desconfiança de que a Regência era um vicereinado
e o vice-reinado da escravidão, uma palavra que movesse o sentimento
religioso da princesa... Como eu estava enganado e quem não estava, a começar
pelo próprio presidente do Conselho! Durante aquela missa, em que tudo para mim
era novo, e, quando o vulto do papa entre os cardeais prendia todas as atenções,
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por entre a música da Sixtina, ouvindo a qual sente-se que a voz humana é o único
de todos os instrumentos que sobe além da terra, eu pelo menos não podia tirar os
olhos desse teto, que é a maior página do belo escrita pelo homem... Que
oportunidade única a de tal cerimônia e de tal acompanhamento para reler a Bíblia
de Miguel Ângelo e decorar o seu poema da criação!... Pois bem, a missa da Bela
Aliança renovou-me a emoção infinita da Sixtina... Havia nela outros tantos
elementos de grandeza combinados...Não havia o sumo pontífice, nem o coro
angélico, nem os frescos de Miguel Ângelo... Estava ali, porém, o representante do
papa abençoado em nome dele a reconciliação das duas raças; havia lágrimas em
todos os olhos, a ansiedade, igualmente apreensiva para todos, os que iam dar e os
que iam receber a liberdade, e para nós a mais suave de todas as sensações
possíveis: a de ver recuar as trevas da escravidão do rosto de uma raça, esse
grande fiat lux, ver o barro ontem informe, o escravo, acordar homem, como o Adão
de Miguel Ângelo, na claridade matinal da criação... O pensamento voltava quase
quatro séculos atrás, à primeira missa dita no Brasil, quando ele tomou o nome de
Terra de Santa Cruz... Quatro séculos para a cruz recuperar o seu verdadeiro
sentido de símbolo da redenção e para a missa significar o sacrifício de Deus pelo
homem!... Vendo diante deles aquela a quem iam dever a liberdade, e olhando para
a Senhora da Piedade no nicho do altar, os escravos na confusão dos seus dois
grandes reconhecimentos deviam ter sentido os rubis, como lágrimas de sangue, do
resplendor da mãe de Deus, baixar um momento sobre a cabeça da sua redentora
ajoelhada...”
Ah! os tempos em que se escrevia assim! Em que o coração, e só o coração,
era que fazia o ditado, e tão rápido que a pena não o podia acompanhar. Para mim
teria sido uma diminuição sensível da emoção humana que a campanha
abolicionista me causou, se eu não tivesse essa página da minha ida a Roma para
reler, esse encontro conosco da simpatia e do fervor de Leão XIII. Por que tão tarde
tive eu a idéia desse apelo, que devera talvez ter sido o primeiro? Quero crer que na
abolição, tão súbita foi ela, tudo veio a tempo... A lembrança dessa visita a Roma
seguida tão de perto do fim da escravidão e da queda da monarquia, que era o
termo forçado da minha carreira política, não podia deixar de crescer no vazio da
minha tarefa acabada e da impossibilidade de assumir outra equivalente... Uma nova
vida vai datar daquelas impressões religiosas assim assimiladas no ardor de um
combate que devia encerrar e resumir a minha vida militante... Uma nova camada de
minha formação desenha-se insensivelmente desde esse meu momentâneo contato
com Leão XIII – ou por outra a camada primitiva começa a descobrir-se depois de
perdido por tão longos anos o veio de ouro da infância... Qualquer que seja a
verdade teológica, acredito que Deus nos levará de algum modo em conta a
utilidade prática de nossa existência, e enquanto o cativeiro existisse, estou
convencido de que não eu poderia dar melhor emprego à minha do que
combatendo-o. Essa vida exterior, eu sei bem, não pode substituir a vida interior,
mesmo, quando o espírito de caridade, o amor humano, nos animasse sempre
A senhora a quem me referia era uma compatriota nossa, que casara em
Paris com um jovem e elegante russo. Há dela um admirável retrato em tamanho
natural, obra de Pistner. A suavidade e doçura de madama Haritoff, a tão popular d.
Nicota, emprestavam-lhe uma beleza toda de expressão, com seus longos cabelos
pretos, seus grandes olhos luminosos, sua tez de um moreno mate, e a graça de seu
corpo, tinha para os estrangeiros um caráter especial, distintamente brasileiro.
Em nosso trabalho. A satisfação de realizar, por mais humilde que seja a
esfera de cada um, uma parcela de bem para outrem, de ajudar a iluminar com um
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raio, quando, quando não fosse senão de esperança, vidas escuras e subterrâneas
como eram as dos escravos, é uma alegria intensa que apaga por si só a lembrança
das privações pessoais e preserva da inveja e da decepção. Essa alegria todos que
tomaram parte no movimento abolicionista devem tê-la sentido por igual. Enquanto a
luta contra a escravidão durasse, penso que a religião não sairia para mim do estado
latente de ação humanitária... Muitas vezes mesmo, a religião não consegue
desprender-se da tarefa ordinária da vida, e é somente quando essa tarefa acaba ou
se interrompe que as perquisições interiores começam, que se quer penetrar o
mistério, que se sente a necessidade de uma crença que explique a vida. Até lá
basta o próprio papel que desempenhamos; o crítico não aparece sob o ator; a
dúvida não distrai da ação exterior contínua. Enquanto se é um simples instrumento,
por pequeno que seja o círculo traçado em torno de nós, a imaginação se encerra
nele, e a vida interior não se insinua sequer à consciência... A ação é uma distração.
E só acabada ela que em certa ordem de espíritos as afinidades superiores se
pronunciam... Quero crer, para os que sucumbem nessa fase, que o benefício que
eles possam fazer eliminem parte da impureza que carregam em sua inconsciência
moral, ou religiosa – o que é o mesmo, e ainda pior... Não posso hoje pensar na
minha ida a Roma em 1888 sem sentir que então germes esquecidos nos primeiros
sulcos da meninice reviveram, para germinar mais tarde ao calor de outras
influências... Não fui em vão a Roma, do ponto de vista do meu sentimento
religioso...
CAPÍTULO XXV
O barão de Tautphoeus
Nenhuma influência singular atuou sobre mim mais do que a de meu mestre,
o velho barão de Tautphoeus. Com sua imaginação toda tomada pela história, ele
costumava nos anos de meu ardente liberalismo chamar-me Alcibíades. Certamente
ele realizava para mim o tipo de Sócrates. Se não trazia a máscara de Sileno
emprestada ao grande ateniense, mesmo fisicamente, sobretudo para a velhice, ele
tinha muitos dos traços socráticos: a coragem fria, a calma imperturbável, a
resistência à fadiga, o gosto da palestra, da conversação intelectual, da companhia
dos moços, a completa abstração de si, a modéstia, a alegria de viver como
espectador do universo, cedendo sempre todavia aos outros o melhor lugar, o forte
espiritualismo, a indiferença pelo ridículo, o respeito da ordem social, quem quer que
a encarnasse. Sua mocidade é um tanto legendária ainda, e nada seria mais
interessante do que apurar os fatos a respeito dela. O que ouvi por vezes a meu
irmão Sizenando – esse tinha por Tautphoeus uma admiração entusiástica e
conviveu com ele muito mais intimamente do que eu, a quem em compensação ele
deu o melhor de seus últimos dias, suas derradeiras tardes – foi que, jovem,
Tautphoeus, antes forçado a expatriar-se da Baviera por motivo revolucionário,
acompanhara o rei Othon à Grécia, depois viera viver em Paris, nas vizinhanças do
ano 30, e freqüentava a plêiade liberal do Journal des Débats até que emigrou para
o Brasil.
Muito míope, usava de um vidro quadrado, que pelo hábito contínuo da leitura
como que se colocava automaticamente; e ainda menos do que o monóculo,
deixava ele o charuto... Sempre com um grosso volume alemão debaixo do braço,
caminhava horas inteiras no mesmo andar, alheio ao mundo exterior... Era um
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homem que sabia tudo. Sua conversação era inesgotável, e raro ele mesmo a
dirigia. O assunto lhe era indiferente, e até o fim, anos seguidos, dia após dia, nunca
ele se encontrou senão com interlocutores curiosos de ouvi-lo sobre os pontos que
mais lhe interessavam. Era literalmente como um dicionário que a cada instante
alguém manuseasse, ou uma enciclopédia que um abrisse no artigo Babilônia, logo
outros nos artigos Invasão dos Bárbaros, Adam Smith, Lutero, Hieróglifos,
Amazonas, Arquitetura Gótica, Liberdade de Testar, Raízes Gregas, Papel Moeda,
Culturas Tropicais, Alberto Dürer, Divina Comédia, ao acaso. Era somente ferir a
tecla, pôr a pergunta no aparelho, e esperar o desenrolar da resposta, como a que
daria o Lexicon de Meyr, ou a História Universal de Cesar Cantu. Ele falava de um
modo uniforme, sem ênfase, sem colorido, sem expressão mesmo, mas era um
jorrar sem fim de ciência, de erudição, como se naquele mesmo dia tivesse estado a
estudar o assunto. Nada mais diferente da ostentação frívola de ciência com que
tanta gente se apraz em deslumbrar o ouvinte que lhe oferece inadvertidamente um
assunto ao seu alcance, do que essas dissertações científicas, up to date, a que
Tautphoeus se entregava perante os seus discípulos, que todos o ficavam sendo,
para sempre, jornalistas, professores, ministros de Estado que fossem...
A abundância de idéias gerais, de ponto de vista sugestivos, de matéria para
reflexão em sua conversa, era notável. Pode-se dizer que esse homem que não
escreveu nunca, pelo menos no Brasil, publicou maior número de ensaios, de teses
históricas e outras, do que todos os nossos escritores juntos: unicamente suas
contínuas edições tiradas a pequeno número de exemplares dissipavam-se como a
palavra, quando não eram convertidas em trabalho alheio. Que lhe importava isto?
Ele era destituído de ambição. Esse respeitador por sistema da ordem hierárquica e
da pragmática social, que nunca levou a mal que os poderes de um dia se
considerassem seus superiores, que os afidalgados da véspera olhassem com
desdém para o seu título hereditário, vendo-o mestre de meninos, era um sábio da
Grécia, praticando com o espírito e a inteireza pagã a filosofia do Eclesiaste: Vanitas
vanitatum... Desde muito cedo ele adquiriu a esse respeito a perfeita imunidade.
Tendo que ganhar a vida em país estrangeiro por meio de lições, enterrou tudo que
pudesse restar-lhe dos velhos preconceitos aristocráticos de seu país, das
aspirações à elegância, à vida de prazer, ostentação, e sucessos mundanos da sua
mocidade em Paris, entrou no papel que lhe fora distribuído com a mesma
simplicidade como se o recebesse por herança... em uma palavra, sem
ressentimento, sem queixa, sem murmúrio. Bebeu a água da carioca com o mesmo
espírito de conformação com que teria bebido a água de Lethes... Esqueceu-se de si
mesmo para entrar em seu novo destino... Mas também desde logo como ele
penetrou os mais íntimos refolhos e singularidades do país que devia ser sua
segunda pátria, e que ele amou como tal! Sua posição era involuntariamente
considerada subalterna ainda pelos mais capazes de compreender – o que não é o
mesmo que sentir – a profissão do criador intelectual como essencialmente nobre.
Ele, porém, mostra-se indiferente no meio da arlequinada social sabendo bem que
no mundo, ninguém o disse melhor do que Calderon, todos sonham o que são.
Mas que profundeza no sentir! Se todo o mundo estava fora do seu lugar –
ele não pretendia isso, pelo contrário, pensava que a distribuição era justa, que as
posições e responsabilidades eram dadas aos melhores, somente estes não faziam
o melhor, não procuravam dar o mais que podiam – quando todo o mundo estivesse,
ele ao menos queria estar no seu... Conservador e católico, conheci-o muito abalado
como o Kulturkampf, por sua idéia alemã de que o maior político do mundo – para
ele Bismarck certamente o era – não podia ser atraiçoado naquela questão ao
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mesmo tempo pelo seu faro nacional e pelo seu instinto conservador. O seu
conservantismo entranhado era também parte da sua filosofia, por isso ele tinha
pelas nossas instituições um sentimento de que nós mesmos éramos incapazes: o
de veneração idealista. Desse simples funcionário do Estado, que não tinha de seu
senão seu modesto ordenado de cada dia, e além disso, estrangeiro de origem,
partiu talvez o único grito de: Viva a Constituição do Império! que se ouviu – tão
fraca era já a voz – em 15 de novembro ao desfilar das tropas do general Deodoro
pela rua do Ouvidor. Talvez alguém olhando para o velho que fazia sem medo tal
protesto, pensasse que era um protegido do imperador alucinado pela catástrofe que
o tragaria também. Não o era porém; favores, ele o não devia, nem gratidão; tudo o
que tivera fora em concurso, do qual os competidores desistiam, louvando-se em
sua fama... Não era um despeitado, era um filósofo, era o homem que melhor
estudara a psicologia do nosso país e que mais se conformara a ela até aquele ato,
que lhe pareceu nacionalmente fatídico, como para os judeus o partir-se ao meio do
véu do templo...
Um traço dessa sua penetração já assinalei uma vez, lembrando que foi ele
quem me fez notar que o nosso interesse pelas coisas públicas é tanto menor
quanto o assunto mais de perto nos concerne. É assim, dizia-me ele, que os
negócios do município nos interessarão sempre a todos menos que os da Província,
os da Província menos que a política geral. Para mostrar quanto era precário o
nosso self-government, não bastava essa diferença que cresce na razão direta do
interesse que devíamos sentir? Outra observação dele que revela a prontidão do
seu espírito, foi a nossa conversa sobre a impermeabilidade inglesa a idéias e
concepções alheias. Eu dava a lentidão dos ingleses em apanhar e compreender o
ponto de vista, a novidade estrangeira, como um sinal talvez de menor vivacidade
intelectual do que a dos povos continentais: “Pelo contrário, observou-me ele, as
palavras serão minhas, a idéia é dele, essa repugnância ao que vem de fora do país,
essa suspeita contra o que não é conforme ao instinto da raça, prova antes a
originalidade dela, a força de sua própria produtividade, o orgulho das suas criações
nacionais... Essa resistência foi que permitiu à Inglaterra dar ao mundo um
Shakespeare”. Foi essa reflexão talvez que me levou a pensar que o
cosmopolitismo, na esfera da concepção intelectual, não é um elemento criador,
nem uma superioridade invejável: pelo contrário, a dificuldade de assimilar, de sentir
o que não tem afinidades com a nossa própria produção, é antes uma virtude do que
um defeito; a permeabilidade prejudica a solidez e conservação das qualidades
próprias, isto é, da própria natureza.
Se eu tivesse que precisar o que devo a Tautphoeus, assinalaria, entre tantos
outros trabalhos de lapidação que acredito serem dele, duas aquisições, a que em
certo sentido se poderiam chamar transformações íntimas. A primeira, sem que aliás
a sugestão partisse dele, nem mesmo que ele tivesse consciência deste ponto de
vista meu – quem sabe se ele o não combateria? – é que diante dele, pensando
nele, me habituei a considerar o juízo do historiador como o juízo definitivo, o que
importa, final, e por isso aquele que se deve desde logo visar. Não pode haver maior
revolução para o espírito do que essa, de colocar-nos espontaneamente em frente
do solitário juiz de biblioteca do futuro e não dos juízes sem número de praça pública
do momento atual. Perante aquele juiz o nosso nome pode não ser citado, os
testemunhos incompletos podem ser-nos injustamente favoráveis ou desfavoráveis,
mas a sua opinião é a que conta, é a que vale.. O juízo da multidão que hoje nos
eleva ou nos deprime, esse representa apenas a poeira da estrada. Não é preciso
que sejamos atores, para que essa concepção da verdadeira instância que decide
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das reputações nos afete, por assim dizer, em cada um dos nossos móveis de ação,
estímulos e afinidades morais: o efeito é o mesmo sobre o espectador, o curioso, o
transeunte, o indiferente. É, em menor escala, está visto – porque esta é a maior de
todas as possíveis diferenças nos motivos de inspiração e de conduta – como a
mudança da concepção pagã, que o importante é a vida, para a concepção cristã,
que é a eternidade. Feita a redução das aspirações da própria alma para as da
inteligência ou do espírito, a metamorfose é também profunda entre viver, ou ver
viver, tendo-se em vista os contemporâneos e tendo-se em vista a posteridade.
Tratando-se da posteridade, está claro que é sempre preciso imaginar o espaço de
algumas gerações, dar toda a margem ao esquecimento... No momento atual são
milhares, milhões que julgam; pouco a pouco o tribunal se vai reduzindo, até que os
grandes personagens vêm a depender da sentença de um juiz singular, um
Mommsen, um Ranke, um Curtius, um Macaulay, encerrado em sua livraria,
procurando animar-se para com eles de uma paixão retrospectiva, toda ela puro
entusiasmo, ilusão de ator, na qual não figura nenhum dos sentimentos, um único
sequer, nem das paixões verdadeiras que eles inspiram...
Outra transição que lhe devi... Como hei de explicá-lo que se entenda
somente a nuança, e não mais? Porque quero crer que os germes se
desenvolveriam por si mesmos, mas sinto que o seu influxo benéfico penetrou até o
terreno onde eles se estavam talvez formando sem eu o sentir...
Nós tínhamos nos últimos tempos da vida de Tautphoeus uma pequena
solidão em Paquetá, para as vizinhanças do chamado Castelo, em um remanso
daquelas encantadoras paragens. Era uma antiga casa térrea a que um dos
proprietários, um inglês, juntara uma varanda em roda e a meio um pequeno
sobrado com venezianas verdes e balcão por onde subia uma trepadeira, dando-lhe
um aspecto ao mesmo tempo singelo e pitoresco de residência estrangeira. A frente
deitava para o mar, e a parte baixa da costa do outro lado formava um suave fundo
de quadro. A casa estava sobre uma pequena elevação, e o declive para a praia era
tomado por um grande tabuleiro de grama, cuidadosamente tratado, como em um
parque. A ilha de Paquetá é uma jóia tropical, sem valor para os naturais do país,
mas de uma variedade quase infinita para o pintor, o fotógrafo, o naturalista
estrangeiro. Para mim ela tinha a sedução especial de ser uma paisagem do Norte
do Brasil desenhada na baía do Rio. Enquanto por toda parte à entrada do Rio de
Janeiro o que se vê são granitos escuros cobertos de flores contínuas guardando a
costa, em Paquetá o quadro é outro: são praias de coqueiros, campos de cajueiros,
e à beira-mar as hastes flexíveis das canas selvagens alternando com as velhas
mangueiras e os tamarindos solitários. Ao lado, entretanto, dessas miniaturas do
Norte encontram-se na ilha a cada canto do mar rochas revestidas com a mesma
característica vegetação fluminense.
Tautphoeus fora sempre um apaixonado da nossa natureza. Desde que
chegara ao Brasil tinha sido um explorador de suas belezas. A madrugada, a alta
noite, a distância não eram impedimento para ele, tratando-se de um nascer do sol,
um efeito de luar, um fio de água descendo pela pedra, um jequitibá escondido na
mata virgem. Toda a vida ele vivera nesse colóquio íntimo de namorado com a luz e
a terra do Brasil; um raio de sol iluminando o Corcovado ou o Pão de Açúcar era
uma saudação misteriosa do poder criador a que ele sempre respondia... Ao vê-lo
sentado, a escutar os pássaros na mata ao lado, eu associava insensivelmente o
mestre com as minhas primeiras lições de inglês e lembrava-me do vizir do sultão
Mahmud. Os arredores do Rio de Janeiro especialmente o seduziam. Ele era de
todos os passeios a que o convidassem para qualquer dos pontos pitorescos, que aí
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são sem número. Passar a tarde sob o arvoredo secular que se encontra em tantas
das ilhas, observando o glorioso colorido das montanhas ao pôr do sol, era uma
verdadeira volúpia para ele. A nossa vivenda de Paquetá agradava-lhe por lhe dar,
com o silêncio e isolamento que cercava a biblioteca, a escolha, à vontade, do mar,
do campo e da montanha: as praias extensas, a floresta acessível, a planície
atapetada, se lhe agradava passear; a água serena, o mar fechado à vista, como um
lago suíço, se queria tomar o nosso barco e mandar o Mudo, o nosso saudoso
remador, abrir a vala para os pequenos ilhotes de onde se avistam de um extremo
os Órgãos de Teresópolis, e no outro a serrania da cidade...Ele vinha sempre aos
sábados e ficava o domingo, e às vezes, nas curtas férias que tinha, dias seguidos...
Era visivelmente a despedida. Suas faculdades estavam intatas, ele era desses em
que se sente que o espírito não sofrerá deperecimento, que se apagará de repente
no meio de uma contemplação ou meditação mais intensa e prolongada; mas as
forças físicas estavam em declínio, via-se o cansaço de ter pensado tanto e o
involuntário tributo à dúvida: se teria bem aproveitado o tempo, ou se teria vivido em
vão. Ele tomara muito a sério o gosto da obscuridade, a modéstia, o retraimento;
cortejara demais o esquecimento, e via talvez que este estava a ponto de envolvê-lo,
exceto em alguns raros espíritos, onde sua lembrança duraria mais algum tempo,
até eles mesmos serem por sua vez envolvidos...
Como foram suaves esses dias finais que ele nos deu, tão penetrantes, tão
profundamente melancólicos, da melancolia, porém, dos momentos que quiséramos
tornar eternos, ou que outros viessem gozar deles ao nosso lado para não se
esvaecerem de todo, como um meteoro deslumbrante!... O seu prazer, muitas
vezes, era sentar-se em um banco à beira do mar, do lago, eu devia dizer pela
impressão que dava, e dali assistir à tarde, cujas cambiantes no ar, no céu, na água,
nas cores do horizonte, no murmúrio e no silêncio da solidão, eram uma gama de
que ele não perdia a mais insignificante transição... Quantas outras vezes, de dia, ao
passarmos na mata ao lado da casa, quando se ia abrindo caminho para
passarmos, não me pedia ele que não tocasse na natureza, que respeitasse o
intricado, o selvático, o inesperado de tudo aquilo, porque aquela desordem era
infinitamente superior ao que a arte pudesse tentar... Ele achava a mais pobre e
árida natureza mais bela do que os jardins de Salústio ou de Luiz XIV. Ah! Se tem
sido ele o descobridor e possuidor da América, o machado nunca teria entrado
nela... E o tição? Uma queimada era para ele igual a um auto de fé. O incêndio ao
lamber essas resinas preciosas, essa seiva, esses sucos de vida, esse sem-número
de desenhos caprichosos de artistas inexcedíveis cada um no seu gênero, modelos
de cor e de sensibilidade todos eles únicos, parecia consumir com uma dor cruel,
vibrante, todas as suas ligações sensíveis com a natureza e a vida universal, os
nervos todos de sua periferia intelectual.
O seu amor pela nossa natureza foi muito grande. Quantas vezes introduzi
em nossas conversas a idéia de uma viagem à Europa para ver se despertava nele
afinidades esquecidas, recordações latentes. Toda essa parte européia, porém,
estava morta, atrofiada; em vez dela o que havia, esta, vivaz e peregrina, era uma
sensibilidade nova, americana, a brasileira... Era um eterno encantado da nossa
terra. Ela lhe dizia o que a nós não diz, e que talvez seja preciso ter tido e
renunciado por ela uma primeira encarnação, um outro mundo, para se poder sentir.
Se nós brasileiros pudéssemos ter aquele amor! Esse perene envelhecimento de
Tautphoeus foi uma das influências que desenvolveram em mimo gosto, o encanto,
ainda que de minha parte puramente sentimental e ingênuo, que o contato de nosso
país tem hoje para mim... Em Tautphoeus aquele amor era diferente: era fino,
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espiritual, intelectual, estético... em mim será uma simples afinidade do coração,
uma ternura, uma saudade da vida, mas esta afinidade deverá muito ao espetáculo
do carinhoso devaneio daquele sábio, daquele grego antigo, daquele filósofo
nascido e formado em outros climas, perante a amenidade, a doçura dos trópicos, o
pitoresco da nossa moldura agreste, os toques de mutação de nossa cenografia
natural, a modulação, o colorido, a solidão íntima de nossa paisagem.
No tempo da minha vanglória literária duas coisas me feriam nele: que com
toda sua ciência ele não escrevesse nada e que pudesse ser tão submissamente
católico. Agora em nossos passeios pela floresta, em nossas soirées à beira da
minha pequena enseada, dourada pelo luar, era sobre a religião que versavam
nossas conversas... Oh! que admiráveis monólogos os dele! A última vez que
atravessou o nosso mare clausum voltou para casa para morrer. O vestígio do seu
pensamento ficou por muito tempo comigo, e ainda por vezes lhe sinto a ondulação
fugidia. Foi por minhas palestras com ele que compreendi por fim que um grande
espírito podia ficar à vontade, livre, em uma religião revelada, do mesmo modo que
foi graças a ele que compreendi que os escritores não formam por si sós a elite dos
pensadores, que há ao lado deles, talvez acima, uma espécie de Trapa intelectual
votada ao silêncio, e onde se refugiam os que experimentam o desdém da
publicidade, de sua ostentação vulgar, de seu mercenarismo mal disfarçado, de seu
modo frívolo, de sua apropriação do bem alheio, de sua falta de sinceridade interior.
O horror da cena, hoje do mercado, não pode ser um sinal de inferioridade
intelectual.
O resumo da impressão que eu guardo dele está feito por Goethe
conversando com Eckermann sobre Alexandre de Humboldt: “Que homem ele é! Há
tanto tempo, tanto, que o conheço, e ele é sempre novo para mim. Pode-se dizer
que não tem igual, nem em ciência, nem em experiência. Além disso, há uma
variedade de aspectos nele como não encontrei em ninguém. Qualquer que seja o
assunto de conversa que se procure, está sempre no seu próprio terreno e despeja
sobre nós tesouros de informações. É como uma fonte de várias bicas, sob as quais
basta colocar um cântaro para logo o encher, e donde estão sempre a correr jorros
de água fresca inesgotável. Ele passará aqui alguns dias, e já me parece que há de
ser para mim como se tivesse vivido muitos anos”. Ouvi-lo, vê-lo, viver com ele, era
literalmente esquecer o presente e reunir-se à comitiva de Sócrates... Ele era uma
dessas cópias, que nem por serem cópias, nem por se reproduzirem seguidamente
de época em época entre diferentes nações, deixam de conservar a superioridade, a
primazia do original, o mais nobre dos modelos humanos.
CAPÍTULO XXVI
Os últimos dez anos (1889-1899)
A queda do Império pusera fim à minha carreira... A causa monárquica devia
ser o meu último contato com a política... De 1889 a 1890 estou todo sob a
impressão do 15 de novembro, seguindo-se ao 13 de maio; escrevo então os meus
solilóquios em uma Tebaida onde podia andar centenas de milhas sem deparar com
o refúgio de outro praticante... Em 1891 minha maior impressão é a morte do
imperador. De 1892 a 1893 há um intervalo: a religião afasta tudo mais, é o período
da volta misteriosa, indefinível da fé, para mim verdadeira pomba do dilúvio
universal, trazendo o ramo da vida renascente... De 1893 a 1895 sofro o abalo da
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Revolta, da morte de Saldanha, de que saem meus dois livros Balmaceda e a
Intervenção... Desde 1893, porém, o assunto que devia ser a grande devoção
literária da minha vida, a Vida de meu pai, tinha-se já apossado de mim e devia
seguidamente durante seis anos ocupar-me até absorver-me...
Como escrevia algumas páginas atrás, o meu espírito adquirira em tudo a
aspiração da forma e do repouso definitivo. A nossa dinastia tivera em 15 de
novembro o que chamei uma assunção: vivera e acabara como uma encarnação
nacional. O condão deixado pela fada no berço da nossa nacionalidade foi quebrado
e lançado fora; quem nos diz que o desfecho não estava previsto por ela? A
Independência, a unidade nacional, a Abolição: nenhuma dinastia jamais insculpiu
na sua pirâmide um tão perfeito cartouche... Quando eu pensava no papel
representado pela casa reinante brasileira, d. Pedro I, Pedro II, d. Isabel, e nas
condições de unanimidade, espontaneidade, e finalidade nacional necessárias para
ela o poder de novo desempenhar de acordo com a sua lenda, o problema excedia a
minha imaginação, e parecia-me um atentado contra a História querer-se
acrescentar, a não ser por mão de mestre, de uma segurança, de uma delicadeza,
de uma felicidade a toda prova, um novo painel àquele tríptico...
Por outro lado, durante os anos que trabalhei na Vida de meu pai a minha
atitude foi insensivelmente sendo afetada pelo espírito das antigas gerações que
criaram e fundaram o regime liberal que a nossa deixou destruir... O que eu
respirava naquela vasta documentação não era um espírito monárquico inconciliável,
bastando como uma religião, como uma bem-aventurança, aos que por ela se
destacavam do mundo... A monarquia para aquelas épocas de arquitetos, pedreiros
e escultores políticos incomparáveis era uma bela e pura forma, mas que não podia
existir por si só; o interesse, o amor, o zelo, o fervor patriótico deles dirigia-se à
substância nacional, o país; sua vassalagem ao princípio monárquico era apenas um
preito rendido à primeira das conveniências sociais... Para tais homens,
verdadeiramente fundadores, um terremoto poderia subverter as instituições, mas o
Brasil existiria sempre, e à sua voz seria forçoso acudir, qualquer que fosse o
vendaval em torno, e quanto mais ferido, mais mutilado, mais exausto, maior o dever
de o não abandonar... Eles não estabeleceriam nunca o dilema entre a monarquia e
a pátria, porque a pátria não podia ter rival.
A impressão desses sentimentos varonis, dessa antiga lealdade, foi grande
em mim e à medida que eu a ia respirando, o desejo aumentava de não deixar pelo
menos o meu túmulo murado do lado do futuro...Compreendo a carta de Berryer
moribundo a Henrique V, como compreendo a carta de Chambord sobre a bandeira
branca; a monarquia francesa gerara uma uma cavalaria, um ponto de honra
aristocrático, um espírito de classe à parte, e mesmo assim era como o próprio
Berryer, como Chateaubriand, como o duque de Aumale – “La France était toujours
là!” – que os nossos antigos homens de Estado desde os tempos coloniais, e o
imperador lhes refletia o sentimento patriótico absoluto, colocavam a pátria fora de
competição com qualquer outra idéia ou sentimento... Eu, porém, não tinha uma
parcela de legitimismo, de direito divino; minha caracterização, o acento tônico, era
outra: liberal, não no sentido passageiro, político, da expressão, mas no seu sentido
humano, eterno, e como liberal a aspiração sintética de minha vida tinha que ser a
de não me dissociar, qualquer que fosse sua forma de governo, nos destinos do
meu país.
Assim, mesmo como monarquista, me fui pouco a pouco distanciando da
política. Meu espírito cristalizara sob faces que o fariam sempre rejeitar como
antipolítico... Que podia eu mais tentar sozinho, por mim mesmo? Em 1879 eu me
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alistara para uma campanha que supunha havia de durar além de minha vida; fiz
assim, posso dizer, voto perpétuo de servir uma grande causa nacional: o que devia
mais de trinta anos, durou somente nove, mas nem por isso economizei forças,
iniciativa, imaginação para outros empreendimentos... A abolição, além disso, pelo
seu sopro universal, isolara-me dos partidos, afastara-me da sua esfera contencisa;
por hábito eu agora aspirava a viver em regiões de ar mais dilatado, onde se
respirasse a unanimidade moral, a fé, o otimismo humano, o oxigênio das grandes
correntes de ideal...
Demais, eu me convenci de que os partidos, os homens, as instituições rivais
em uma mesma sociedade hão de ter o mesmo nível, como líquidos em vasos que
se comunicam; de que o pessoal político é um só, os idealistas, os ultra, de cada
lado sendo imperceptíveis minorias; por último, de minha inaptidão para lidar com o
elemento pessoal, de que dependem em política quase todos os resultados... Erame
de todo impossível encontrar de novo em mim o impulso, o movimento, o ímpeto
das nossas antigas cargas da abolição... Lutas de partidos, meetings populares,
sessões agitadas da Câmara, tiradas de oratória, tudo isso me parecia pertencer à
idade da cavalaria... Agora o menor problema político causava-me uma timidez
invencível, tornava-se nacional, internacional, e todos convertiam-se em
casos de consciência. Uma série de reflexões, que tomavam a forma de máximas
políticas, eram outros tantos avisos de perigo sobre qualquer superfície
desconhecida que eu quisesse pisar... Eu desistia assim de lidar de ora em diante
com partidos e com acontecimentos; minha esfera tornara-se toda subjetiva... “Há
épocas em que o associar-se, ainda mesmo com outros melhores do que nós, é trair
o ideal próprio que cada um tem em si e que lhe cumpre a seu modo lapidar e polir
ao infinito.” Esta minha frase sobre o isolamento de André Rebouças, quando não
imaginava o fim melancólico que ele havia de ter, exprime muito do meu próprio
sentimento... É preciso roubar ao mundo uma parte da vida, e é melhor que seja a
final, para dá-las aos pensamentos e às aspirações que não queremos que morram
conosco.
Os últimos dez anos são assim o período em que o interesse político cederá
gradualmente o lugar ao interesse religioso e ao interesse literário até ficar reduzido
quase somente ao que tem de comum com eles... Quando digo interesse político,
quero dizer o espírito político, porquanto a emoção, a parte que tomo na sorte do
país aumenta com as peripécias, as contingências, os vórtices dos novos dramas. O
autor e o ator desaparecem; o espectador, esse, porém, sente a sua ansiedade
crescer e tornar-se angustiosa... Posso portanto terminar aqui a história de minha
formação política, e mesmo de toda a minha formação, porque das novas influências
que me vão dominar no resto da vida, a religiosa já se a encontrou na infância e a
das letras na mocidade. As letras lutaram em mim anos seguidos, como se viu,
contra a política, sempre com superioridade, até vir a abolição, que durante os dez
anos as relegou, como tudo mais, a imensa distância. Extinto este grande foco de
atração, nenhum outro teria o mesmo poder contra elas... Ainda assim talvez tenha
apenas havido entre elas a política uma verdadeira fusão... A história é com efeito o
único campo em que me seria dado ainda cultivar a política, porque nele não terei
perigo de faltar à indulgência, que é a caridade do espírito, nem à tolerância, que é a
forma de justiça a que eu posso atingir... São essas duas das faces, a que há pouco
aludi, sob que meu espírito cristalizou.
Dizendo as letras, quero apenas dizer o que elas podem ser para mim: o lado
belo, sensível, humano das coisas que está ao meu alcance, a ressonância, a
admiração, o estado d’alma que elas me deixam... Foi a necessidade de cultivar
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interiormente a benevolência o que, talvez, me dispôs a trocar definitivamente a
política pelas letras, a dar a minha vida ativa por encerrada, reservando, como
vocação intelectual – a política não fora outra coisa para mim – o saldo de dias que
me restasse para polir imagens, sentimentos, lembranças que eu quisera levar na
alma... Olhei a vida nas diversas épocas através de vidros diferentes: primeiro, no
ardor da mocidade, o prazer, a embriaguez de viver, a curiosidade do mundo;
depois, a ambição, a popularidade, a emoção da cena, o esforço e a recompensa da
luta para fazer homens livres (todos esses eram vidros de aumento)...; mais tarde,
como contrastes, a nostalgia do nosso passado e a sedução crescente de nossa
natureza, o retraimento do mundo e a doçura do lar, os túmulos dos amigos e os
berços dos filhos (todos esses são ainda prismas); mas em despedida ao Criador,
espero ainda olhá-la através dos vidros de Epípeto, do puro cristal sem refração: a
admiração e o reconhecimento...
FIM
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