Walmir Ayala
ESTAÇÃO
Na geladeira as frutas
escurecem de mortas
as peras são secretas
usinas de água doce,
um mamão decepado
mostra a íntima carne
e as goiabas oloram
seu verão serenado.
Mas são mortas e lentas
neste ofertório as frutas.
Um vapor congelado
contorna seu mistério.
E elas posam no ardor
do branco cemitério
de seu grave pomar.
E a geladeira inventa
surdo primaverar.
(Antologia poética, Ed. Leitura, Rio, I 965)
ARTE POÉTICA
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Por isso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
Walmir Ayala
AQUÁRIO ACESO
Os peixes submersos dormem
Nadando um sonho enorme
- o aquário é breve e claro,
com selvas silenciosas
que o todo-poderoso
nutre de grão e larva.
No entanto os peixes dormem.
Qualquer tremor das águas
e nadam aclarados
sonhando-se acordados
sonhando-se acordados.
POMAR ABERTO
Teu doloroso cheiro de laranjas
inventa este pomar que me embriaga
há vespas inflamadas e um luar
enclausura em teu peito a rosa amarga
deste gemido em que és como o desenho
de um rosto antigo, de um sorriso em pedra
(eterno e solitário). Este sorriso
que de repente no silêncio medra
e corta os fios da noite em que viajo
para os sempres de mim, tão decididos:
então nos laranjais escuto o adágio,
e o coração que ocultas é sonoro
como a ilha do amor em que me perco
e onde me salvo, e para sempre choro.
A Maria Helena Cardoso
O REINO
A José Olimpio Vasconcelos
Época de goiabas — no meu quarto
o aroma delas se incrustou no gesso
do cavalo troiano que o lagarto
cavalga; e estas goiabas de comêço
de estação sobrenadain o hausto farto
do olfato — o meu cavalo escarva o avêsso
do branco onde se funde e em cujo parto
goiabas e lagartos têm seu preço.
Assim meu quarto esta estação de aroma
envolve - e das goiabas me apercebo
que é tudo hora frutal que em tudo assoma;
e tenho para reino os meses quatro
do aroma de goiaba, e é minha carne
o gesso em que cavalgam, tais lagartos.
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Domingo
O domingo é um refúgio,
uma grande sala com candelabros bizarros
mas sem conforto.
É um relógio sem medo, uma cadeira sem encosto.
O azeite da vida começa sempre amanhã.
Olhamos o domingo como se fosse a máscara
dissimulada – atrás dela o punhal ou o mel.
Passeamos nos domingos como as feras em suas jaulas.
Tentamos perceber o grande acontecimento que não chega,
porque até os mortos, geralmente, deitam-se ontem
em seus leitos acolchoados.
O domingo é um touro sozinho numa arena.
METAL DE OURO
Metal de ouro e não ouro — bronze (ninho
do som) — falsa retórica. Metal
dado a azinhavre e pátina e ferrugem,
sino de antecedência dos que mugem:
bois; e vêem dois, os sinos combatendo
nos arcos de pescoços amorosos,
bronze alado e de feno, mais que o treno
das aves nos estercos vegetais.
Ardendo na pupila o ouro da tarde,
e o triturado trigo impregnando
de ouro os cascos e as crinas. Animais
rompendo ares bucólicos, as carnes
luzindo, os chifres áureos digladiando,
e a hora sôbre os corpos auriamando.
FILIAÇÃO
Ando buscando minha mãe e a hora
sêca me dá seu ventre sem memória.
Reclamo o leite e me assedia a asa
de uma galera por meu mar em fora.
Depois penso escutar: palavra ou rasa
cintilação de praia. Os olhos cerro,
suspiro fundo e aqueço o frio corpo
que elegi para mãe no meu destêrro.
E assim constato que só posso o alheio
dispor organizando e que me faltam.
tradições: o arco mínimo de um seio.
E sinto o quanto Deus cm mim se apóia,
sou êle próprio e rasgo os véus de cinza
sou treva e sou espírito que bóia.
O AEROMOÇO
Dos cintos que se cinge, dos aéreos
subornos que respira;
das rotas que viaja, voajando,
(e voa a vida) — os alvos em que mira
Sendo a um tempo da flexa o sangue brando
e seu rotor e guia, o que percorre
o restrito arcabouço, o louro o moço
que no temor da mãe, freqüente, morre.
O dono da maçã desorientada
a um transporte nos étereos — o dono
de rebanhos, rebanhos e rebanhos...
Pastor, o que as ovelhas abandonam,
só, nos aços das asas isolado
entre cajados mudos e tamanhos.
CANTO DO REI
Rico de ouro não sou, porém. fabrico
o sol cada manhã, estendo penas
(pássaro matinal) e atinjo antenas
de desespêro no meu vôo ubiquo.
Se tu, pálio de párias, me condenas
à rude mendicância onde claudico,
abro a minha canção no espaço oblíquo
das tuas superadas açucenas.
Jardineiro não sou. Feitor dos astros,
recrio minha aurora de aderências
na prematura submersão dos mastros.
Nas quilhas dêstes barcos que me sobram,
é que o sol dos meus ouros se conforma,
e as luas do meu reino se desdobram.
É TEMPO
É tempo das auroras de tão gastas
rasgarem seus cabelos nos arames,
que andam touros rondando a graça livre
dos arautos de Deus nascidos homens.
É tempo das calçadas desservidas
de austero passo desejarem gládios
e que sejam de rótulas e nervos
as asas da arca para outra viagem.
E que coisas dirão que de tardias
terão sêlo de morte em cada espinho
(rosa?) melhor dizer: gente banida
(que de tal material se formam clãs);
e os que na Arca estão de si não sabem
mais do que o morto quando junta as mãos.
O ESPELHO
Efêmero, não sei se neste espelho
terei repetição do meu contôrno,
ou se já erguida a mão se esboça o tôrno
onde serei refeito. Amplo conselho
talvez disseque meu findar-se morno,
e o Artífice me aguarda, ileso e velho,
pondo-me paternal sôbre o joelho
à espera do devido e exato forno.
Depois, Pai tão maior, de amor ferido,
de um barro tão mais rubro há de engendrar-me
para dar-me feliz ao chão do olvido,
Mas sempre num espelho irei achar-me,
noutro chão, noutra vida, em barro ou vidro
onde me outorguem tempo de sonhar-me.
HOJE ME DÓI A VIDA COMO UM CRAVO
Hoje me dói a vida como um cravo
e morro de desejo de morrer,
sinto pelo meu sangue se acender
a aurora de infortúnio em que me lavo.
Que vale desta forma receber
o dom da luz, o lídimo conchavo
de cada dia, se a carpir me agravo
no sítio onde devera florescer?
Hoje me dói o sol na córnea gasta
de tanto pranto não vertido, e adeja
a asa da solidão em minha carne.
Percorro como um louco iconoclasta
o adro de mim, o grito, sem que veja
instrumento melhor para quebrar-me.
A ROSA E O RIO
Ó tu de couro, de ouro e de granito
mas sempre rosa, sempre colunada
fronte de solidão, tristeza alada
e prêsa entre dois portos do infinito,
Cativa que do caule ao rude grito
a nada mais consente a côr velada,
raiz de espinho, face deplorada
pelo vento inconstante em rumo aflito.
Mas não te deixam olhos tão fugazes
pois nos meus ficas, transitórias e eterna,
e em meus rios de versos te desfazes;
mas não de todo, pois na minha mágoa
resta a inédita forma livre e interna:
rosa de seixo, areia, espuma e água.
POSTAL
O mar, postal, é verde, ou não, cerúleo —
o mar é mar de crinas, potro e lastro
onde têxteis côres dão a aguda
forma de suas barracas: árvore e astro.
Arvore pela sombra, astro no muito
de universo que lado a lado formam...
O mar, postal, não vê que cada mastro
ao longe é êle que cumpre seu circuito.
Mas tanto muda que se desampara
e crava, e da janela vou tangendo
nêle meu coração de asas e espuma.
O mar, postal, é orgia que carrego
por outros mares de aço, de concreto
e de tôrres, sem lágrima nenhuma,
O MANEQUIM
Tua cera é precoce, em que abelha, em que rosa
em que filtro, em que sêca e empedernida forma,
em que sôpro êstes lábios, e o nariz em que olfato
nutriu cova e mucosa — em que tuba esta orelha?
E esta bôca fingida e a destroçada abelha
de asas despedaçadas por dedos de meninos,
de alfinetes no ventre e zumbindo, e zumbindo
lamentos pequeninos.
E êste silêncio morto e êstes braços portáteis
com ensaios de abraço, e êstes tecidos breves
armados no estertor da mudez prematura.
E êstes cactos nos pés, nos desertos artelhos,
êste tórax fugaz onde brota o legume
de um segrêdo floral e apiário ciúme
[O edifício e o verbo. Rio de Janeiro, São José, 1961]
A MINHA MORTE SÃO AS COISAS
A minha morte são as coisas
e não poder retê-las,
é a matéria que existe
e resiste
à minha sorte,
como as estrelas.
A minha morte é a manhã
que se estende claríssima
sem temor, é este amor
de só desesperança,
como um clamor.
A minha morte é esta voz
por que a garganta enseia
e não sabe,
ela cabe
inteira nos meus olhos
que a lágrima incendeia.
Sobretudo é
esta vontade
de chorar e ir chorando
como uma única pergunta
sem remédio:
até quando?
CRER
Creio em mim. Creio em ti. Deus, onde mora?
Na vontade de crer que me consente
humano e ardente.
No meu repouso em ti, que me alimenta.
No que vejo e recebo, nesta vara
florida num deserto, em meu maná
de agora e de jamais. Saber-me hoje
tão digno do tempo que me mata
é arder-me em Deus, e este saber me basta.
ISTO É TUDO
As urnas estão fechadas,
os corações estão mudos,
mas o amor paira e condena —
isto é tudo.
As mãos vão entrelaçadas,
o olhar é sereno e agudo,
e o amor é mais do que as almas —
isto é tudo.
A lágrima quase aponta,
O desejo é um breve escudo,
e o amor é quase nada —
isto é tudo.
PENHOR
Quanto pode valer um pássaro
de canto puro e goela solta
que gosta de carícia e se espreguiça
como qualquer amado amante?
O dono levou-o à penhora
por trinta e oito mil
cruzeiros. Diz
que vale o dobro.
Avaliado, não dá mais do que mil e quinhentos
diz o causídico do banco, e chama de brincadeira
esta causa de tão pessoal alcance.
Falando por seu advogado
o dono do pássaro diz
que o assunto é muito sério
e pede mesmo que o pássaro
seja tratado com carinho
pois cantando e recebendo amor
é que se prova valioso.
Neste poema, atentem, a palavra é tão banal,
mas o miolo é pura
poesia.
Difícil é contar como canta o pássaro.
Aí é que seríamos sublimes.
ARTE POÉTICA
Na adolescência eu queria escrever poemas eternos.
Poemas que não envelhecessem.
Aspirava os pensamentos abstratos, as idéias transcendentes,
jogava palavras como anzóis atrás de uma baleia azul.
Eu queria a estação permanente dos fatos,
aquela zona de mistério que transforma os acontecimentos
em reflexos cíclicos
de uma realidade essência.
Eu desprezava a transitoriedade, dava-me engulhos o trivial,
pousava meu dente na polpa indizível da transcendência.
Hoje eu pouso o coração da poesia na bandeja das coisas que passam,
eu sei que, como todas as civilizações,
a nossa tem um fim,
e já durou demais.
Eu sinto o cheiro de seu sangue congelado,
adivinho o pus acumulado sob sua pele túrgida.
Sei que seremos de repente uma sobrevivência arqueológica.
Porisso não ambiciono mais, para o meu poema, esta imaginária
duração,
esta idade virtual com pés de efêmero tato.
Não desejo para o gênero humano poemas capazes de sobreviver
à sua legítima história,
mergulho no cotidiano com um alívio e uma surpresa que me renovam
a vida.
Não quero mais fazer poemas que não sejam tributo do instante,
quero tocar o perecível e segurar entre os dedos sua respiração
oscilante. Faço poemas transitórios e fugazes.
Os poemas eternos eu deixo para a vida eterna.
Extraídos do livro Estado de Choque; a poesia de Walmir Ayala. São Paulo: Galeria Parnaso; Massao Ohno Editores, 1980. s.p.;
De
ÁGUAS COMO ESPADAS
São Paulo: LR Editores, 1983
A CAÇA
Os caçadores de homens varam a noite com seus olhos de punhal.
Levam os punhos cerrados cerrados e um desejo ardente de agressão.
Irmãos dos delinqüentes eles vasculham os ninhos poluídos
e esmagam com os saltos das botas as ninhadas perplexas.
Os caçadores e sua caça estão sobrepostos como camadas contíguas
de uma mesma era de terror.
ROTA
Quem elabora estas inúteis palavras
com que as coisas se ataviam,
e são indagações, gritos, silêncios
reticentes?
Quem,
me pergunta agora sobre a hora
que eu não quis habitar de qualquer signo,
infladas do nada do vento?
Direção
cujo gosto apenas eu percebo:
silenciosamente recortado,
recrio o labirinto.
PASSEIO
Passeio com meu filho pelo mundo
e é pouco para amá-lo este percurso.
Toco seus olhos de cristal escuro
e ele me vê robô, cavalo, urso.
Ele me vê raiz, me desafia,
briga e ama num elo conseqüente
com tudo os que é real, e me anuncia.
Passeio com meu filho à luz do dia,
e a luz fecunda a noite que nos une
num sonho latejante de silêncio.
Concentro-me de amá-lo com a uma
guarda a alucinação de seu perfume,
e penso, piso a terra, restituo
em dom de amar a amarga antecedência
do filho que eu não fui e que construo.
De
CANTANTA
Poemas
Rio de Janeiro: Edições GRD, 1966.
O CORPO
Girasol com manga rosa
pequeno corpo acendido
no corpo imenso do mundo
cornamusa sonorosa.
Manga rosa, manga rosa,
rosa do clamor profundo
rosa, de fruto e de flor.
Eu de pedra, tu de incenso.
Tu de lume, eu de amargor.
Girasol com manga rosa,
muletas de mudo amor,
cada espádua madurando
sumos — e a rosa cravando
no sono arestas do rosa
na doce manga aflorando.
Girasol com manga rosa,
repousa, que repousando
vão os andores da santa
rosa, e que te vão levando
pela doçura da manga,
pequena rosa que gira,
sol a pino, gira, rosa
mortal te dilapidando.
Girasol com manga rosa,
qual o verão? Onde? Quando?.
PROTESTO
Não é no teu corpo que se imola
para a ceia dos meus sentidos
a vítima núbil, a áurea mola
que cinge o amor recente aos idos.
Mas é também no teu corpo que corre
o sangue que o meu sangue socorre.
Não é no teu corpo que se ergue
a guerra fria dos meus nervos.
nem nasceram tuas transparências
para a cegueira dos meus dedos.
Mas é também no teu corpo insano
que perscruto meu desconforto humano.
Não é no teu corpo, nos teus olhos
de fauno, que colho as minhas ditas,
nem o jasmim de tua boca flore
para a visão que me solicita.
Mas é também no teu corpo único
que o amor à forma do Amor reúno.
Não é no teu corpo que concentro
minha sede (esta sede ferina
que morre de seu farto alimento
e vive de quanto se elimina)
Mas é também teu corpo a medida
destas águas sobre a minha ferida.
Não é no teu corpo, mas é tanto
no teu corpo meu último refúgio,
que amoroso e em pânico me insurjo
contra a fonte que és: júbilo e pranto.
Mas é também no teu corpo o tudo
da solidão em que me aclaro e escudo.
Em teu corpo, canal que brande e acalma
minha alma, este pássaro árduo e mudo
na estranha migração da tua alma.
De
O EDIFÍCIO E O VERBO
Rio de Janeiro: Livraria São José, 1961
O COMEDOR
Não sei que posição tomar sentado à mesa.
O cadáver aberto à minha frente, a salsa, o azeite
e o olhar de quem me chamará de hiena.
O cadáver de meu irmão, olhos vazados,
posição hirta, e eu como trincar
assim, todo enredado de piedade?
Garfo e faca. A lâmina se estira
e nem ruído fará na polpa. Ah, bom tempero,
sei de teu gosto intacto nas mandíbulas
minhas, já tão cansadas desta fome.
A parte mais amorfa me contenta
a que eu não saiba coxa, orelha, lombo...
Mas chamarão de hiena, eu sei, a gente
que te come voraz, vendo que hesito
e gritarão quando cravar
dente em teu corpo macio, irmã Vitela..
Saio daqui, da mesa, onde te expões
nadando o molho do teu próprio sangue.
Eu me recuso, pois teu osso como um cetro
esmagará meu crânio deglutido,
e eu, teu devorador, sendo engolido
pelo acéfalo tempo, mais banquetes
manterei nestas mesas imaturas.
O REINO
A José Olímpio Vasconcelos
Época de goiabas — no meu quarto
o aroma delas se incrustou no gesso
do cavalo troiano que o lagarto
cavalga; e estas goiabas de começo
de estação sobrenadam o hausto farto
do olfato — o meu cavalo escarva o avesso
do branco onde se funde e em cujo parto
goiabas e lagartos têm seu preço.
Assim meu quarto esta estação de aroma
envolve — e das goiabas me apercebo
que é tudo hora frutal que em tudo assoma;
e tenho para reino os meses quatro
do aroma de goiaba, e é minha carne
o gesso em que cavalgam tais lagarto
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TEXTOS EM ESPAÑOL
WALMIR AYALA
Trad. Pilar Gómez Bedate
MI MUERTE SON LAS COSAS
Mi muerte son las cosas
y no poder asirlas,
la materia que existe
y resiste
a mi suerte,
como las estrellas.
Mi muerte es la mañana
que se extiende clarísima
sin temor, y este amor
de mi desesperanza
sola, como un clamor.
Mi muerte es esta voz
que la garganta ansía
y no cabe,
entera cabe
en estos ojos míos
que la lágrima incendia.
Sobre todo es
este deseo
de llorar e ir llorando
con una única pregunta:
¿hasta cuándo?
CREER
Creo en mí. Creo en ti. Dios, ¿dónde vive?
En el afán de fe que me consiente
humano y ardiente.
En mi reposo en ti, que me alimenta,
en lo que veo y tomo, en esta vara
florida en un desierto, en mi maná
de ahora y de por siempre. Este hoy saberme
merecedor del tiempo que me mata
es abrasarme en Dios, y esta saber me basta.
ESTO ES TODO
Las urnas están cerradas,
los corazones están mudos,
peor el amor paira y condena:
esto es todo.
Las manos van entrelazadas,
la mirada es serena y aguda,
y el amor es más que las almas:
esto es todo.
La lágrima casi apunta,
el deseo es un breve escudo,
y el amor es casi nada:
esto es todo.
Extraídos de la REVISTA DE CULTURA BRASILEÑA, Tomo IV, septiembre 1965, número 4, p. 312-321. Edición de la Embajada de Brasil en Madrid, España.
POEMA À MÁQUINA DE MOER CARNE
O perfil da máquina
tem muito de gótico,
mói por dentro a carne,
por fora é um pórtico
onda a alma da carne
lava seu delito.
Numa cruz geométrica
justapõe-se a máquina:
nem canta nem pensa,
mais que nunca espera
que a mão saturada
lhe dê movimento,
e um corpo de sangue,
de músculo e vento
vai sendo crivado
de dentes secretos,
de ocultas agulhas,
de engrenagens surdas,
e se transformando
em carne moída.
Assim como a vida.
##############
O supermercado
Eu estava selecionando uns pés de couve-flor quando meu marido me disse: "Espere um momento que vou cumprimentar Heloisa". Não levantei os olhos do balcão das verduras nem sequer pensei que só poderia ser aquela Heloisa, uma mulher forte e invulnerável cuja estabilidade doméstica tinha sido até motivo de inveja para mim algumas vezes. Meus dedos correram por sobre as alfaces, remexi os tomates, pesei uma quantidade de cenouras, e nem ergui os olhos para ver para onde ele se dirigira, para ver onde estaria Heloisa. Andei puxando o carrinho que ele deixara ao meu lado, com a mercadoria meticulosamente arrumada, à sua maneira. As salsichas junto com a manteiga, os iogurtes e os queijos suportando a caixa de ovos, os pacotes de arroz e feijão acolchoando a leveza dos biscoitos. Andei pelos corredores de gêneros variados mas já não escolhi nada. Nem sequer passei os olhos pela lista que a empregada me entregara ao sair de casa. Prestei muita atenção em todas as coisas, aquelas naturezas mortas, oferecendo-se. A vitrine das carnes, os buchos e fígados, a nobreza dos filés, rubores suspensos iluminados de uma claridade valorativa de suas nuances de sangue. As laranjas, as batatas, os abacaxis, os grandes balcões de salgados, carnes secas, toucinhos, despojos de seres mortos e conservados num requinte de temperos. As caixinhas de gelatina, com as frutas impressas em cores inesquecíveis, disfarçando os sabores artificiais que a empregada atenuaria com frutas e cremes de baunilha e morango, com claras batidas e outros recursos de enriquecer aquelas doçuras transparentes e monótonas.
Não procurei meu marido, embora imaginasse que num momento esbarraria com ele e Heloisa, sabendo que estariam falando do jardim, das plantas exóticas que Heloisa tinha o dom de descobrir em chácaras distantes. Ou então de uma raça de galinhas poedeiras, cujos ovos de grande valor nutritivo não poderiam ser comparados àqueles de gema vermelha, que eu tinha escolhido mecanicamente no correr da tarde. Não é que Heloisa quisesse comparativamente me subestimar, mas ela era assim, e eu é que me subestimava junto dela. Se é que a Heloisa que meu marido fora saudar era aquela que eu supunha.
Passei duas horas andando com aquele carrinho, sem acrescentar um grão ao já escolhido. Parei na lanchonete e comi uma coxinha de galinha. A fome pousada em meu lábio não determinou o menor luxo seletivo. Comi a coxinha de galinha como podia ter comido o cachorro quente ou o rizzoli, só para sobreviver. Pensei num momento em procurar meu marido mas desisti "ele deve estar falando com Heloisa". Olhei o pátio do supermercado e vi nosso carro. Ele está com a chave. Vasculhei a bolsa de dinheiro e verifiquei que a chave estava comigo. Eu não dirigia há tanto tempo. Ele voltaria? Que importância tinha isso, eu precisava ir embora. Foi o guarda que me alertou "vai fechar". Eu era a última freguesa a andar por aqueles corredores e notei que as moças das caixas me olhavam com ar cansado e irritado. Estavam tão tristes que eu tive vontade de chorar, de lamentar seu destino vendido tão barato, horas e horas apertando botões de máquinas registradoras em troca do dinheiro da passagem e da comida. Vi-as todas muito humilhadas, mas ainda pela necessidade de aceitarem o jogo daquela maneira enquanto invisíveis e gordos os donos das alcachofras e dos presuntos rolavam entre os lábios charutos de Havana.
Paguei e saí. Onde estaria meu marido? E Heloisa? Coloquei as compras no carro e rodei pelo bairro, tentando reconhecer um ou outro. Depois decidi ir para casa.
A empregada me recebeu como se nada tivesse acontecido, sequer me perguntando pelo adiantado da hora. Recolheu as compras e preparou-me o banho. Mergulhei na banheira de água quente. Quase adormeci. A água, ao esfriar, fez-me voltar à realidade. Fui para cama. O telefone não tocou. No dia seguinte muito cedo voltei ao supermercado sem ter contado a ninguém o acontecido. Tive medo de estar sendo ridícula, ou louca. Que me dissessem de repente "Que marido?". Ou, o que era pior, "olha ele ali". Fiquei todo o tempo rodando entre aqueles corredores, como se fosse coisa dali, uma das moças das caixas, ou mesmo uma das máquinas registradoras. Saí, no fim do expediente, sem ter comprado nada.
No terceiro dia é que eu descobri que o supermercado tinha andares diversos, escadas rolantes. Andei de cima para baixo, de baixo para cima, e parecia que os lugares eram sempre outros, como num labirinto. Fiquei feliz de andar por caminhos novos, onde poderia esbarrar com meu marido e ouvir ele dizer "— Que sorte você chegar já ia ao seu encontro". Eu sabia que isso não ia acontecer porque meu marido e Heloisa deveriam estar como eu, perdidos naquele labirinto, com espelhos multiplicando as caixas das douradas uvas, e os pêssegos e nêsperas tocadas de raras abelhas. Comecei a sentir que me desprendia dos valores antigos, e que só me interessava trilhar aquele caminho sem fim, no qual ele estaria sempre adiante, e eu atrás, sem ponto de encontro, sem retorno. Eu teria sonhado a minha vida? Ou estaria agora entrando num sonho maior? Senti-me tonta, percebi que minha roupa estava suja e que a urina corria pelas minhas pernas abaixo. Senti o grande peso da solidão, pela primeira vez. Indaguei a mim mesma qual o caminho a seguir, mas antes de me responder vi que me amparavam e levavam para determinado lugar, um lugar muito branco, com uma mesa muito branca onde eu comecei a adormecer. Deixei que cuidassem de mim, com um sorriso de infantil prazer me corrigindo os lábios. Quando voltei a mim já não reconheci o mundo que me davam. Estava cada vez mais longe dele, mais longe. Buscando encontrá-lo e me distanciando, de tal maneira que se o visse agora talvez nem reconhecesse.
Walmir Félix Solano Ayala, poeta, romancista, crítico de arte, contista, memorialista e autor de literatura infantil, nasceu em Porto Alegre (RS) no dia 04/01/1933. Seu primeiro livro, "Face dispersa", foi publicado em 1955. Em 1956 mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro. Dentre suas mais de cem obras, destacamos: "Diário I (Difícil é o Reino)"; "A Beira do Corpo" (romance); "Chico Rei e a Salamanca do Jarau" (teatro); "A Toca da Coruja" (literatura infantil, Prêmio Nacional de Literatura Infantil do INL)"; "Ponte Sobre o Rio Escuro" (contos, Prêmio Nacional de Ficção do INL) e "A fuga do Arcanjo" (diário íntimo). O intelectual ora enfocado faleceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 28/08/1991.
O texto acima foi extraído da antologia "Ficção - Histórias para o prazer da leitura", Editora Leitura - 2007, pág. 266, organização de Miguel Sanches Neto.
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