quarta-feira, 9 de março de 2011

Olavo Bilac - Antologia e "TARDE"















DANTE NO PARAISO




Olavo Bilac




Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz:
Triste no sumo bem, triste no excelso instante,
O poeta compreendera o mal de ser feliz.

Saudoso, ao ígneo horror do báratro distante,
Ao vórtice tartáreo o olhar volvendo, quis
Regressar à geena, onde a turba ululante
Nos torvelins raivando arde na chama ultriz:

E fatigou-o a paz do esplendor soberano;
Dos réprobos lembrando a irrevogável sorte,
A estância abominou do perpétuo prazer;

Porque no coração, cheio de amor humano,
Sentiu que toda a Vida, até depois da morte,
Só tem uma razão e um gozo só: sofrer!



BEETHOVEN SURDO




Olavo Bilac




Surdo, na universal indiferença um dia,
Beethoven, levantando um desvairado apelo,
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo...
E o seu mundo interior cantava e restrugia.

Torvo o gesto, perdido o olhar, hino o cabelo,
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,
Os astros em torpor na imensidade fria,
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.

Era o nada, a eversào do caos no cataclismo,
A síncope do som no páramo profundo,
O silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo,..

E Beethoven, no seu supremo desconforto,
Velho e pobre, caiu, como um deus moribundo,
Lançando a maldição sobre o universo morto!




BENEDICITE!




Olavo Bilac




Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o teto;
E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,
Fez, e aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo;

E o que o feno forjou; e o piedoso arquiteto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;
E o que deu uma esmola ao primeiro mendigo;

E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;
E o que inventou o canto; e o que criou a lira;
E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...

Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!



A MISSÃO DE PURNA




Olavo Bilac



(Do Evangelho de Buddha)
[Mantivemos a grafia original]
Ora Buddha, que, em prol da nova fé, levanta
Na India antiga o clamor de uma cruzada santa
Contra a religião dos Brahmanes, - medita.

Immensa, em torno ao sabio, a muldidão se agita :
E há nessa multidão, que enche a planicie vasta,
Homens de toda a especie, Aryas de toda a casta.

Todos os que (a principio, enchia Brahma o espaço)
Da cabeça, do pé, da côxa ou do antebraço
Do deus vieram á luz para povoar a terra :
- Kchátrias, de braço forte armado para a guerra ;
Çakias, filhos de reis; leprosos perseguidos
Como cães, como cães de lar em lar corridos ;
Os que vivem no mal e os que amam a virtude ;
Os ricos de belleza e os pobres de saúde ;
Mulheres fortes, mães ou prostitutas, cheio
De tentações o olhar ou de alvo leite o seio ;
Guardadores de bois ; robustos lavradores ,
A cujo arado a terra abre em fructos e flores ;
Creanças ; anciãos ; sacerdotes de Brahma ;
Párias, Sudras servis rastejando na lama ;
- Todos acham amor dentro da alma de Buddha,
E tudo nesse amor se eterniza e transmuda...
Porque o sabio, envolvendo a tudo, em seu caminho
Na mesma caridade e no mesmo carinho,
Sem distincção promette a toda a raça humana
A bemaventurança eterna do Nirvana.

Ora, Buddha medita...
Á maneira do orvalho,
Que, na calma da noite, anda de galho em galho
Dando vida e humidade ás arvores crestadas,
- Aos corações sem fé e ás almas desgraçadas
Concede o novo credo a esperança do somno :
Mas... as almas que estão, no horrivel abandono
Dos desertos, de par com os animaes ferozes,
Longe do humano olhar, longe de humanas vozes,
A rolar, a rolar de peccado em peccado?...

Ergue-se Buddha :
"Purna!
O discipulo amado
Chega :
"Purna ! é mister que a palavra divina
Da agua do mar de Oman á agua do mar da China,
Longe do Indus natal e das margens do Ganges,
Semeies, atravez de dardos, e de alfanges,
E de torturas ! "
Purna ouve sorrindo, e cala...
No silencio em que está, um sonho doce o embala.
No profundo clarão do seu olhar profundo
Brilham a ancia da morte e o desprezo do mundo.
O corpo, que o rigor das privações consome,
Esqueletico, nú, comido pela fome,
Treme, quasi a cahir, como um bambú com o vento;
E erra-lhe á flor da bocca a luz do firmamento
Presa a um sorriso de anjo...
E ajoelha junto ao Santo :
Beija-lhe o pó dos pés, beija-lhe o pó do manto.

"Filho amado ! - diz Buddha - essas barbaras gentes
São grosseiras e vis, são rudes e inclementes ;
Se os homens (que, em geral, são máos os homens todos)
Te insultarem a crença, e a cobrirem de apodos,
Que dirás, que farás contra essa gente inculta ? "

"Mestre ! direi que é boa a gente que me insulta,
Pois, podendo ferir-me, apenas me injuria...

"Filho amado ! e se a injuria abandonando, um dia
Um homem te espancar, vendo-te fraco e inerme,
E sem piedade aos pés te pizar, como a um verme ?
"Mestre ! direi que é bom o homem que me magôa,
Pois, podendo ferir-me, apenas me esbordôa...
" Filho amado ! e se alguem, vendo-te agonisante,
Te furar com um punhal a carne palpitante ?

" Mestre! Direi que é bom quem minha carne fura,
Pois, podendo matar-me apenas me tortura...

" Filho amado ! e se, emfim, sedentos de mais sangue,
Te arrancarem ao corpo enfraquecido e exsangue
O ultimo alento, o sopro ultimo da existencia,
Que dirás, ao morrer, contra tanta inclemencia ?

" Mestre ! direi que é bom quem me livra da vida...
Mestre ! direi que adoro a mão boa e querida,
Que, com tão pouca dôr, minha carne cançada
Entrega ao summo bem e á summa paz do Nada ! "
" Filho amado ! - diz Buddha - a palavra divina,
Da agua do mar de Oman á agua do mar da China,
Longe do Indus natal e dos valles do Ganges,
Vae levar, atravez de dardos e de alfanges !
Purna ! ao fim da Renuncia e ao fim da Caridade
Chegaste, estrangulando a tua humanidade !
Tu, sim ! pódes partir, apóstolo perfeito,
Que o Nirvana já tens dentro do proprio peito,
E és digno de ir prégar a toda a raça humana
A bemaventurança eterna do Nirvana ! "



Bilac, Olavo. Poesias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1916:243.




Delírio

Nua, mas para o amor não cabe o pejo
Na minha a sua boca eu comprimia.
E, em frêmitos carnais, ela dizia:
– Mais abaixo, meu bem, quero o teu beijo!

Na inconsciência bruta do meu desejo
Fremente, a minha boca obedecia,
E os seus seios, tão rígidos mordia,
Fazendo-a arrepiar em doce arpejo.

Em suspiros de gozos infinitos
Disse-me ela, ainda quase em grito:
– Mais abaixo, meu bem! – num frenesi.

No seu ventre pousei a minha boca,
– Mais abaixo, meu bem! – disse ela, louca,
Moralistas, perdoai! Obedeci...



OUVIR ESTRELAS

"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muitas vezes desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...


E conversamos toda a noite, enquanto
A via-láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.


Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizem, quando estão contigo?"


E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas."


(Poesias, Via-Láctea, 1888.)


NEL MEZZO DEL CAMIN...


Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
E a alma de sonhos povoada eu tinha...


E paramos de súbito na estrada
Da vida: longos anos, presa à minha
A tua mão, a vista deslumbrada
Tive da luz que teu olhar continha.


Hoje, segues de novo... Na partida
Nem o pranto os teus olhos umedece,
Nem te comove a dor da despedida.


E eu, solitário, volto a face, e tremo,
Vendo o teu vulto que desaparece
Na extrema curva do caminho extremo.


(Poesias, Sarças de fogo, 1888.)


A UM POETA


Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, no silêncio e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!


Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica, mas sóbria, como um templo grego.


Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:


Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
É a força e a graça na simplicidade.


(Tarde, 1919.)


LÍNGUA PORTUGUESA


Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura;
Ouro nativo, que, na ganga impura,
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!


Amo o teu viço e o teu aroma
De virgens selvas e de oceanos largos!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


Em que da voz materna ouvi: "meu filho!"
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


(Tarde, 1919.)


AS ONDAS


Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto mar anima as ondas.
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:


Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.


Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabatro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;


E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva...


(Tarde, 1919.)


OS SINOS


Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais casta,
Para transmigrações, para metempsicoses!


Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!


Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!


Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!


(Tarde, 1919.)


HINO À BANDEIRA


Salve, lindo pendão da esperança,
Salve, símbolo augusto da Paz!
Tua nobre presença à lembrança
A grandeza da Pátria nos traz.


Recebe o afeto que se encerra
em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil.


Sobre a imensa nação Brasileira
Nos momentos de festa e de dor,
Paira sempre, sagrada bandeira
Pavilhão da Justiça e do Amor!


Recebe o afeto que se encerra
Em nosso peito juvenil,
Querido símbolo da terra,
Da amada terra do Brasil.


O CAÇADOR DE ESMERALDAS


III


Fernão Dias Pais Leme agoniza. Um lamento
Chora longo, a rolar na longa voz do vento.
Mugem soturnamente as águas. O céu arde.
Trasmonta fulvo o sol. E a natureza assiste,
Na mesma solidão e na mesma hora triste,
À agonia do herói e à agonia da tarde.


Piam perto, na sombra, as aves agoireiras.
Silvam as cobras. Longe, as feras carniceiras
Uivam nas lapas. Desce a noite, como um véu...
Pálido, no palor da luz, o sertanejo
Estorce-se no crebo e derradeiro arquejo.
- Fernão Dias Pais Leme agoniza, e olha o céu.


Oh! esse último olhar ao firmamento! A vida
Em surtos de paixão e febre repartida,
Toda, num só olhar, devorando as estrelas!
Esse olhar, que sai como um beijo da pupila,
- Que as implora, que bebe a sua luz tranqüila,
Que morre... e nunca mais há de vê-las!


Ei-las todas, enchendo o céu, de canto a canto...
Nunca assim se espalhou, resplandecendo tanto,
Tanta constelação pela planície azul!
Nunca Vênus assim fulgiu! Nunca tão perto,
Nunca com tanto amor sobre o sertão deserto
Pairou tremulamente o Cruzeiro do Sul!


Noites de outrora!... Enquanto a bandeira dormia
Exausta, e áspero o vento em derredor zunia,
E a voz do noitibó soava como um agouro,
- Quantas vezes Fernão, do cabeço de um monte,
Via lenta subir do fundo do horizonte
A clara procissão dessas bandeiras de ouro!


Adeus, astros da noite! Adeus, frescas ramagens
Que a aurora desmanchava em perfumes selvagens!
Ninhos cantando no ar! suspensos gineceus
Ressoantes de amor! outonos benfeitores!
Nuvens e aves, adeus! adeus, feras e flores!
Fernão Dias Pais Leme espera a morte... Adeus!


O Sertanista ousado agoniza, sozinho...
Empasta-lhe o suor a barba em desalinho;
E com a roupa de couro em farrapos, deitado,
Com a garganta afogada em uivos, ululante,
Entre os troncos da brenha hirsuta, - o Bandeirante
Jaz por terra, à feição de um tronco derribado...


E o delírio começa. A mão, que a febre agita,
Ergue-se, treme no ar, sobe, descamba aflita,
Crispa os dedos, e sonda a terra, e escava o chão:
Sangra as unhas, revolve as raízes, acerta,
Agarra o saco, e apalpa-o, e contra o peito o aperta,
Como para o enterrar dentro do coração.


Ah! mísero demente! o teu tesouro é falso!
Tu caminhaste em vão, por sete anos, no encalço
De uma nuvem falaz, de um sonho malfazejo!
Enganou-te a ambição! mais pobre que um mendigo,
Agonizas, sem luz, sem amor, sem amigo,
Sem ter quem te conceda a extrema-unção de um beijo!


E foi para morrer de cansaço e de fome,
Sem ter quem, murmurando em lágrimas teu nome,
Te dê uma oração e um punhado de cal,
- Que tantos corações calcaste sob os passos,
E na alma da mulher que te estendia os braços
Sem piedade lançaste um veneno mortal!


E ei-la, a morte! e ei-lo, o fim! A palidez aumenta;
Fernão Dias se esvai, numa síncope lenta...
Mas, agora, um clarão ilumina-lhe a face:
E essa face cavada e magra, que a tortura
Da fome e as privações maceraram, - fulgura,
Como se a asa ideal de um arcanjo a roçasse.


IV


Adoça-se-lhe o olhar, num fulgor indeciso;
Leve, na boca aflante, esvoaça-lhe um sorriso...
- E adelgaça-se o véu das sombras. O luar
Abre no horror da noite uma verde clareira.
Como para abraçar a natureza inteira,
Fernão Dias Pais Leme estira os braços no ar...


Verdes, os astros no alto abrem-se em verdes chamas;
Verdes, na verde mata, embalançam-se as ramas;
E flores verdes no ar brandamente se movem.
Chispam verdes fuzis riscando o céu sombrio;
Em esmeraldas flui a água verde do rio,
E do céu, todo verde, as esmeraldas chovem...


E é uma ressurreição! O corpo se levanta:
Nos olhos, já sem luz, a vida exsurge e canta!
E esse destroço humano, esse pouco de pó
Contra a destruição se aferra à vida, e luta,
E treme, e cresce, e brilha, e afia o ouvido, e escuta
A voz, que na solidão só ele escuta, - só:


"Morre! morrem-te às mãos as pedras desejadas,
"Desfeitas como um sonho, e em lodo desmanchadas...
"Que importa? dorme em paz, que o teu labor é findo!
"Nos campos, no pendor das montanhas fragosas,
"Como um grande colar de esmeraldas gloriosas,
"As tuas povoações se estenderão fulgindo!


"Quando do acampamento o bando peregrino
"Saía, ante manhã, ao sabor do destino,
"Em busca, ao Norte e ao Sul, de jazida melhor,
" - No cômoro de terra, em que teu pé poisara,
"Os colmados de palha aprumavam-se, e clara
"A luz de uma lareira espancava o arredor.


"Nesse louco vagar, nessa marcha perdida,
"Tu foste, como o sol, uma fonte de vida:
" Cada passada tua era como um caminho aberto!
"Cada pouso mudado, uma nova conquista!
"E enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,
"Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!


"Morre! tu viverás nas estradas que abriste!
"Teu nome rolará no largo choro triste
"Da água do Guaicuí... Morre, Conquistador!
"Viverás quando, feito em seiva o sangue, aos ares
"Subires, e, nutrindo uma árvore, cantares
"Numa ramada verde entre um ninho e uma flor!


"Morre! germinarão as sagradas sementes
"Das gotas de suor, das lágrimas ardentes!
"Hão de frutificar as fomes e as vigílias!
"E um dia, povoada a terra em que te deitas,
"Quando, aos beijos do sol, sobrarem as colheitas,
"Quando, aos beijos do amor, crescerem as famílias,


"Tu cantarás na voz dos sinos, nas charruas,
"No esto da multidão, no tumultuar das ruas,
"No clamor do trabalho e nos hinos da paz!
"E, subjugando o olvido, através das idades,
"Violador de sertões, plantador de cidades,
"Dentro do coração da pátria viverás!"


Cala-se a estranha voz. Dorme de novo tudo.
Agora, a deslizar pelo arvoredo mudo,
Como um choro de prata algente o luar escorre.
E sereno, feliz, no maternal regaço
Da terra, sob a paz estrelada do espaço,
Fernão Dias Pais Leme os olhos cerra. E morre.



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Olavo Bilac
A TARDE


À memória
de
José do Patrocínio,
meu amigo,
é dedicado este livro.

8 outubro - 1918.

O. B.


"... La nostra vita è siccome uno arco montando e volgendo... Avemo dunque che Ia gioventute nel quarantacinquesimo anno se compie: e siccome I'adolescenza è in venticinque anni che procede montando alia gioventute; cosí il discendere, cioè la senettute, è altrettanto tempo che succede alla gioventute; e cosí si termina Ia senettute nel settantesimo anno... Dov'é da sapere che la nostra buona e diritta natura ragionevolmente procede in noi, siccome vedemo procedere la natura delle piante in quelle; e però altri costumi e altri portamenti sono ragionevoli ad una età più che ad altre; nelli quali I'anima nobilitata ordinariamente procede per una semplice via, usando li suoi atti nelli loro tempi e etadi siccome al'ultimo suo frutto sono ordinari."


(DANTE - "Il Convito", trat. quarto, cap. XXIV.)

Hino á Tarde


Glória jovem do sol no berço de ouro em chamas,
Alva! natal da luz, primavera do dia,
Não te amo! nem a ti, canícula bravia,
Que a ti mesma te estruis no fogo que derramas!


Amo-te, hora hesitante em que se preludia
O adágio vesperal, - tumba que te recamas
De luto e de esplendor, de crepes e auriflamas,
Moribunda que ris sobre a própria agonia!


Amo-te, ó tarde triste, ó tarde augusta, que, entre
Os primeiros clarões das estrelas, no ventre,
Sob os véus do mistério e da sombra orvalhada,


Trazes a palpitar, como um fruto do outono,
A noite, alma nutriz da volúpia e do sono,
Perpetuação da vida e iniciação do nada.

Ciclo

Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!


Dia. A flor, - o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A arvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!


Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!


Pátria


Pátria, latejo em ti, no teu lenho, por onde
Circulo! e sou perfume, e sombra, e sol, e orvalho!
E, em seiva, ao teu clamor a minha voz responde,
E subo do teu cerne ao céu de galho em galho!


Dos teus liquens, dos teus cipós, da tua fronde,
Do ninho que gorjeia em teu doce agasalho,
Do fruto a amadurar que em teu seio se esconde,
De ti, - rebento em luz e em cânticos me espalho!


Vivo, choro em teu pranto; e, em teus dias felizes,
No alto, como uma flor, em ti, pompeio e exulto!
E eu, morto, - sendo tu cheia de cicatrizes,


Tu golpeada e insultada, - eu tremerei sepulto:
E os meus ossos no chão, como as tuas raízes,
Se estorcerão de dor, sofrendo o golpe e o insulto!


Língua Portuguesa


Ultima flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...


Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!

Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,


Em que da voz materna ouvi: "meu filho!",
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O gênio sem ventura e o amor sem brilho!


Música Brasileira


Tens, as vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.


Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.


És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:


E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.


Anchieta


Cavaleiro da mística aventura,
Herói cristão! nas provações atrozes
Sonhas, casando a tua voz às vozes
Dos ventos e dos rios na espessura:


Entrando as brenhas, teu amor procura
Os índios, ora filhos, ora algozes,
Aves pela inocência, e onças ferozes
Pela bruteza, na floresta escura.


Semeador de esperanças e quimeras,
Bandeirante de "entradas" mais suaves,
Nos espinhos a carne dilaceras:


E, porque as almas e os sertões desbraves,
Cantas: Orfeu humanizando as feras,
São Francisco de Assis pregando às aves...


Caos


No fundo do meu ser, ouço e suspeito
Um pélago em suspiros e rajadas:
Milhões de vivas almas sepultadas,
Cidades submergidas no meu peito.


As vezes, um torpor de águas paradas...
Mas, de repente, um temporal desfeito:
Festa, agonia, júbilo, despeito,
Clamor de sinos, retintim de espadas,


Procissões e motins, glórias e luto,
Choro e hosana... Ferver de sangue novo,
Fermentação de um mundo agreste e bruto...


E há na esperança, de que me comovo,
E na grita de dúvidas, que escuto,
A incerteza e a alvorada do meu povo!

Diziam que...


"Diziam que, entre as nações sobreditas, moravam algumas monstruosas.

Uma é de anãos, de estatura tão pequena, que parecem afronta dos homens; - chamados Goiasis.

Outra é de casta de gente, que nasce com os pés ás avessas, de maneira que quem houver de seguir seu caminho há de andar ao revés do que vão mostrando as pisadas; chamam-se Matuius.

Outra é de homens gigantes, de dezesseis palmos de alto, adornados de pedaços de ouro por beiços e narizes, e aos quais todos os outros pagam respeito; têm por nome Curinqueás.

Finalmente que há outra nação de mulheres, também monstruosas no modo do viver (são as que hoje chamamos Amazonas, e de que tomou o nome o rio) porque são guerreiras, que vivem por si só sem comércio de homens; vivem entre grandes montanhas; são mulheres de valor conhecido...

Padre Simão de Vasconcelos.

(Crônica da Companhia de Jesus no Estado do Brasil, 1663, Liv. I, cap. 31.)


I
Os Monstros


Não me perdi numa ilusão... Perdi-me
Na existência, entre os homens. E encontrei-os,
Vivos, bem vivos! - estes monstros feios,
Cujo peso afrontoso a terra oprime.


Mas há monstros no bem, como no crime:
Outros houve, que em hinos e gorjeios
Talvez viveram e morreram, cheios
De extrema formosura e ardor sublime.


Ah! no dia da cólera tremenda,
Os monstros bons, agora fugitivos
Desta míngua de fé que nos infama,

Ressurgirão no epílogo da lenda:
Os mortos voltarão varrendo os vivos,
E os maus se afogarão na própria lama!


II


Os Goiasis


Ainda viveis, espíritos obscenos,
Como nos dias do Brasil inculto,
Na inteligência anãos, como no vulto;
Como no corpo, no moral pequenos.


Espremeis a impotência do ódio estulto
Em pérfidos esguichos de venenos..
Tendes baixeza em tudo: nem, ao menos,
Força na inveja e elevação no insulto!


Répteis humanos, no coleio dobre
De rastos babujais templos e lares;
Contra os bons, contra os fortes de alma nobre,


Línguas e dentes dardejais nos ares:
Mas só podeis ferir, na raiva pobre,
Em vez dos corações, os calcanhares.


III


Os Matuius


De pés virados, marcha avessa e rude,
Dedos atrás, calcâneos para a frente,
Ainda viveis, mentores sem virtude,
Que a verdade escondeis à vossa gente!

Sabeis, - e errais propositadamente,
Traidores nas lições e na atitude:
Aos corações o vosso exemplo mente,
Como no solo o vosso rasto ilude.


Pobre quem calca o vosso piso errado:
Em vez da liberdade encontra um muro;
Pedindo a salvação, cai num pecado;

E acha em lugar da glória o lodo impuro:
Para seguir-vos, vai para o passado;
Por imitar-vos, foge do futuro.


IV

Os Curinqueãs


Ainda viveis! Conheço-vos, felizes
Morubixabas de ambições astutas,
Que em desgraçadas e mesquinhas lutas
Desgovernais misérrimos países!


Já tendes paços em lugar de grutas...
Mas, apesar do tempo e dos vernizes,
- Se os não trazeis por beiços e narizes,
Os botoques guardais nas almas brutas.


Pobres de idéias, ávidos de foros,
Rudes pastores de servil rebanho,
Espirrais arrogância pelos poros...


Sois sempre os mesmos Curinqueãs de antanho:
Vastos e estéreis, ocos e sonoros,
Unicamente grandes no tamanho!


V
As Amazonas


Nem sempre durareis, eras sombrias
De miséria moral! A aurora esperas,
Ó Pátria! e ela virá, com outras eras,
Outro sol, outra crença em outros dias!


Davi renascerá contra Golias,
Alcides contra os pântanos e as feras:
Os corações serão como crateras,
E hão de em lavas mudar-se as cinzas frias.


As nobres ambições, força e bondade,
Justiça e paz virão sobre estas zonas,
Da confusa fusão da ardente escória.


E, na sua divina majestade,
Virgens, reviverão as Amazonas
Na cavalgada esplêndida da glória!

O Vale


Sou como um vale, numa tarde fria,
Quando as almas dos sinos, de uma em uma,
No soluçoso adeus da ave-maria
Expiram longamente pela bruma.


É pobre a minha messe. É névoa e espuma
Toda a glória e o trabalho em que eu ardia...
Mas a resignação doura e perfuma
A tristeza do termo do meu dia.


Adormecendo, no meu sonho incerto
Tenho a ilusão do prêmio que ambiciono:
Cai o céu sobre mim em pirilampos...


E num recolhimento a Deus oferto
O cansado labor e o inquieto sono
Das minhas povoações e dos meus campos.

A Montanha


Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha,
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha:


Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha;
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias,
Mudas servas aos pés de uma rainha.


Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a acolhê-las;


E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Ultima a receber o adeus do dia,
Primeira a ter a bênção das estrelas!


Os Rios


Magoados, ao crepúsculo dormente,
Ora em rebojos galopantes, ora
Em desmaios de pena e de demora,
Rios, chorais amarguradamente,


Desejais regressar... Mas, leito em fora,
Correis... E misturais pela corrente
Um desejo e uma angústia, entre a nascente
De onde vindes, e a foz que vos devora.


Sofreis da pressa, e, a um tempo, da lembrança.
Pois no vosso clamor, que a sombra invade,
No vosso pranto, que no mar se lança,


Rios tristes! agita-se a ansiedade
De todos os que vivem de esperança,
De todos os que morrem de saudade...


As Estrelas


Desenrola-se a sombra no regaço
Da morna tarde, no esmaiado anil;
Dorme, no ofego do calor febril,
A natureza, mole de cansaço.


Vagarosas estrelas! passo a passo,
O aprisco desertando, às mil e às mil,
Vindes do ignoto seio do redil
Num compacto rebanho, e encheis o espaço...


E, enquanto, lentas, sobre a paz terrena,
Vos tresmalhais tremulamente a flux,
- Uma divina música serena


Desce rolando pela vossa luz:
Cuida-se ouvir, ovelhas de ouro! a avena
Do invisível pastor que vos conduz...


As Nuvens


Nuvem, que me consolas e contristas,
Tenho o teu gênio e o teu labor ingrato:
Essas arquiteturas imprevistas
São como as construções em que me mato...


Nunca vemos, misérrimos artistas,
A vitória deste ímpeto insensato:
A um sopro benfazejo, que conquistas!
A um hálito cruel, que desbarato!


Nuvens de terra e céu, brincos do vento,
Vai-se-nos breve a essência no ar varrida...
Irmã, que importa? ao menos, num momento,


No fastígio falaz da nossa lida,
Tu, nas miragens, e eu, no pensamento,
Somos a força e a afirmação da Vida!

As Árvores


Na celagem vermelha, que se banha
Da rutilante imolação do dia,
As árvores, ao longe, na montanha,
Retorcem-se espectrais à ventania.


Árvores negras, que visão estranha
Vos aterra? que horror vos arrepia?
Que pesadelo os troncos vos assanha,
Descabelando a vossa rumaria?


Tendes alma também... Amais o seio
Da terra; mas sonhais, como sonhamos,
Bracejais, como nós, no mesmo anseio...


Infelizes, no píncaro do monte,
(Ah! não ter asas!...) estendeis os ramos
À esperança e ao mistério do horizonte.


As Ondas


Entre as trêmulas mornas ardentias,
A noite no alto-mar anima as ondas.
Sobem das fundas úmidas Golcondas,
Pérolas vivas, as nereidas frias:


Entrelaçam-se, correm fugidias,
Voltam, cruzando-se; e, em lascivas rondas,
Vestem as formas alvas e redondas
De algas roxas e glaucas pedrarias.


Coxas de vago ônix, ventres polidos
De alabastro, quadris de argêntea espuma,
Seios de dúbia opala ardem na treva;


E bocas verdes, cheias de gemidos,
Que o fósforo incendeia e o âmbar perfuma,
Soluçam beijos vãos que o vento leva...


Crepúsculo na Mata


Na tarde tropical, arfa e pesa a atmosfera.
A vida, na floresta abafada e sonora,
Úmida exalação de aromas evapora,
E no sangue, na seiva e no húmus acelera.


Tudo, entre sombras, - o ar e o chão, a fauna e a flora,
A erva e o pássaro, a pedra e o tronco, os ninhos e a
hera,
A água e o reptil, a folha e o inseto, a flor e a fera,
- Tudo vozeia e estala em estos de pletora.


O amor apresta o gozo e o sacrifício na ara:
Guinchos, berros, zinir, silvar, ululos de ira,
Ruflos, chilros, frufrus, balidos de ternura...


Súbito, a excitação declina, a febre pára:
E misteriosamente, em gemido que expira,
Um surdo beijo morno alquebra a mata escura...


Sonata ao Crepúsculo


Trompas do sol, borés do mar, tubas da mata,
Esfalfai-vos, rugindo, - e emudecei... Apenas,
Agora, trilem no ar, como em cristal e prata,
Rústicos tamborins e pastoris avenas.


Trescala o campo, e incensa o ocaso, numa oblata.
- Surgem da Idade de Ouro, em paisagens serenas,
Os deuses; Eros sonha; e, acordando à sonata,
Bailam rindo as subtis alípedes Camenas.


Depois, na sombra, à voz das cornamusas graves,
Termina a pastoral num lento epitalâmio...
Cala-se o vento... Expira a surdina das aves.


E a terra, noiva, a ansiar, no desejo que a enleva,
Cora e desmaia, ao seio aconchegando o flâmeo,
Entre o pudor da tarde e a tentação da treva.


O Crepúsculo da Beleza


Vê-se no espelho; e vê, pela janela,
A dolorosa angústia vespertina:
Pálido, morre o sol... Mas, ai! termina
Outra tarde mais triste, dentro dela;


Outra queda mais funda lhe revela
O aço feroz, e o horror de outra ruína:
Rouba-lhe a idade, pérfida e assassina,
Mais do que a vida, o orgulho de ser bela!


Fios de prata... Rugas... O desgosto
Enche-a de sombras, como a sufocá-la
Numa noite que aí vem... E no seu rosto


Uma lágrima trêmula resvala,
Trêmula, a cintilar, - como, ao sol posto,
Uma primeira estrela em céu de opala...


O Crepúsculo dos Deuses


Fulge em nuvens, no poente, o Olimpo. O céu delira.
Os deuses rugem. Entre incêndios de ouro e gemas,
Há torrentes de sangue, hecatombes supremas,
Heróis rojando ao chão, troféus ardendo em pira,


Ilíadas, bulcões de gládios e díademas,
Ossa e Pélio tombando, e Zeus em raios de ira,
E Acrópoles em fogo, e Homero erguendo a lira
Em reverberações de batalhas e poemas...


Mas o vento, embocando as bramidoras trompas,
Clangora. Rolam no ar, de roldão, num tumulto,
Os numes e os titãs, varridos à rajada:


E ódio, furor, tropel, fastígio, glória, pompas,
Chamas, o Olimpo, - tudo esbate-se, sepulto
Em cinza, em crepe, em fumo, em sonho, em noite, em nada.


Microcosmo


Pensando e amando, em turbilhões fecundos
És tudo: oceanos, rios e florestas;
Vidas brotando em solidões funestas;
Primaveras de invernos moribundos;


A Terra; e terras de ouro em céus profundos,
Cheias de raças e cidades, estas
Em luto, aquelas em raiar de festas;
Outras almas vibrando em outros mundos;


E outras formas de línguas e de povos;
E as nebulosas, gêneses imensas,
Fervendo em sementeiras de astros novos;


E todo o cosmos em perpétuas flamas...
- Homem! és o universo, porque pensas,
E, pequenino e fraco, és Deus, porque amas!


Dualismo


Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Corno se, a arder, no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.


Pobre, no bem como no mal, padeces;
E, rolando num vórtice vesano,
Oscilas entre a crença e o desengano,
Entre esperanças e desinteresses.


Capaz de horrores e de ações sublimes,
Não ficas das virtudes satisfeito,
Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:


E, no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.

Defesa

Cada alma é um mundo à parte em cada peito...
Nem se conhecem, no auge do transporte,
Os jungidos do vínculo mais forte,
Almas e corpos num casal perfeito:


Dormindo no calor do mesmo leito,
Votando os corações à mesma sorte,
Consigo levam à velhice e à morte
Um recato de orgulho e de respeito...


Ficam, por toda a vida, as duas vidas
Na mais profunda comunhão estranhas,
No mais completo amor desconhecidas.


E os dois seres, sentindo-se tão perto,
Até num beijo, são duas montanhas
Separadas por léguas de deserto.


A um Triste


Outras almas talvez já foram tuas:
Viveste em outros mundos... De maneira
Que em misteriosas dúvidas flutuas,
Vida de vidas múltiplas herdeira!


Servo da gleba, escravo das charruas
Foste, ou soldado errante na sangueira,
Ou mendigo de rojo pelas ruas,
Ou mártir na tortura e na fogueira...


Por isso, arquejas num pavor sem nome,
Num luto sem razão: velhos gemidos,
Angústias ancestrais de sede e fome,


Dores grandevas, seculares prantos,
Desesperos talvez de heróis vencidos,
Humilhações de vítimas e santos...

Pesadelo


Às vezes, uma vida abominanda
Vives no sono, em que a hórrida matula
Dos íncubos e súcubos te manda
O eco do inferno que referve e ulula.


Um mundo torpe nos teus sonhos anda:
O ódio, a perversidade, a inveja, a gula,
Espíritos da terra, sarabanda
Das grosseiras paixões que a treva açula.


Assim, à noite, no ínvio da floresta,
No mistério das sombras, entre os pios
Dos noitibós, o candomblé se apresta:


Batuques de capetas, rodopios
De curupiras e sacis em festa,
Em sinistros risinhos e assobios.

A Iara

Vive dentro de mim, como num rio,
Uma linda mulher, esquiva e rara,
Num borbulhar de argênteos flocos, lara
De cabeleira de ouro e corpo frio.


Entre as ninféias a namoro e espio:
E ela, do espelho móbil da onda clara,
Com os verdes olhos úmidos me encara,
E oferece-me o seio alvo e macio.


Precipito-me, no ímpeto de esposo,
Na desesperação da glória suma,
Para a estreitar, louco de orgulho e gozo...


Mas nos meus braços a ilusão se esfuma:
E a mãe-d'água, exalando um ai piedoso,
Desfaz-se em mortas pérolas de espuma.

Ressurreição


Como às vezes, piedoso, o sol se inclina
Sobre um pântano, e acende-o, e da água ascosa
No atro fundo, ergue Alhambras de ouro e rosa,
Catedrais e Krêmlins de prata fina,


- Também, da alta região que nos domina,
Tu pairas sobre mim, sombra piedosa:
Sinto em mim, como numa nebulosa,
Mundos novos, ardendo em luz divina...


São torres vivas, cúpulas fulgentes,
Zimbórios igneos, toda a arquitetura
Dos sonhos que a ambição do Ideal encerra,


Subindo em largos surtos, em torrentes,
Galgando o céu, para brilhar na altura
E desfazer-se em versos sobre a terra...


Benedicite!


Bendito o que, na terra, o fogo fez, e o tecto;
E o que uniu a charrua ao boi paciente e amigo;
E o que encontrou a enxada; e o que, do chão abjeto,
Fez, aos beijos do sol, o ouro brotar do trigo;


E o que o ferro forjou; e o piedoso arquiteto
Que ideou, depois do berço e do lar, o jazigo;
E o que os fios urdiu; e o que achou o alfabeto;
E0 que deu uma esmola ao primeiro mendigo;


E o que soltou ao mar a quilha, e ao vento o pano;
E o que inventou o canto; e o que criou a lira;
E o que domou o raio; e o que alçou o aeroplano...


Mas bendito, entre os mais, o que, no dó profundo,
Descobriu a Esperança, a divina mentira,
Dando ao homem o dom de suportar o mundo!

Sperate, Creperi!

Não sei. Duvido e espero. Na ansiedade,
Vago, entre vagas sombras. Se não rezo,
Sonho; e invejo dos crentes a humildade
E o orgulho dos filósofos desprezo.


Como um Jó miserável da verdade
E de receios farto como um Creso,
Adormeço a tristeza que me invade
E engano o coração cansado e leso...


Talvez haja na morte o eterno olvido,
Talvez seja ilusão na vida tudo.
Ou geme um deus em cada ser ferido...


Não afirmo, não nego. É vão o estudo.
Quero clamar de horror, porque duvido:
Mas, porque espero, - espero, e fico mudo.


Respostas na Sombra


"Sofro... Vejo envasado em desespero e lama
Todo o antigo fulgor, que tive na alma boa;
Abandona-me a glória; a ambição me atraiçoa;
Que fazer, para ser como os felizes?"
- Ama!


"Amei... Mas tive a cruz, os cravos, a coroa
De espinhos, e o desdém que humilha, e o dó que infama;
Calcinou-me a irrisão na destruidora chama;
Padeço! Que fazer, para ser bom?"
- Perdoa!


"Perdoei... Mas outra vez, sobre o perdão e a prece,
Tive o opróbrio; e outra vez, sobre a piedade, a injúria;
Desvairo! Que fazer, para o consolo?"
- Esquece!

"Mas lembro... Em sangue e fel, o coração me escorre:

Ranjo os dentes, remordo os punhos, rujo em fúria...
Odeio! Que fazer, para a vingança?"

- Morre!


TRILOGIA

I

Prometeu

Filhas verdes do mar, e ó nuvens, num incenso,
Beijai-me! e bendizei o meu sangue e o meu pranto!
Quando sucumbo e sou vencido, - exulto e venço:
A minha queda é glória e o meu rugido é canto!


Sob os grilhões, espero; escravizado, penso;
E, morto, viverei! Domando a carne e o espanto,
Invadindo de estrela a estrela o Olimpo imenso,
Roubei-lhe na escalada o fogo sacrossanto!


Forjando o ferro, arando o chão, prendendo o raio,
Dei aos homens o ideal que anima, e o pão que [nutre...

Debalde o ódio, e o castigo, e as garras me consomem:


Quando sofro, maior, mais alto, quando caio,
Sou, entre a terra e o céu, entre o Cáucaso e o abutre,
- Sobre o martírio, o orgulho, e, sobre os deuses, Homem!


II
Hércules


Que vale o orgulho? A dor é, como a vida, eterna;
Mas a força defende, e a compaixão redime.
Sou, na humana floresta a planta heróica e terna:
Contra a violência um roble, e pura a prece um vime.


Por onde reviveu, silvando, a hidra de Lema,
Fuzilou no meu braço a cólera sublime;
Os monstros persegui de caverna em caverna,
Sufoquei de antro em antro a peste, a infâmia e o crime:

E, ó Homem, libertei-te!... E, enfim, depondo a clava,
Inerme semideus, sonhei, doce fiandeiro,
De roca e fuso, aos pés de Onfália, num arrulho...


Alma livre no assomo, e na piedade escrava,
Sou raio e beijo, ardor e alívio, águia e cordeiro,
- A força que liberta, e o amor que vence o orgulho!


III
Jesus


Mas sempre sofrerás neste vale medonho...
Que importa? Redentor e mártir voluntário,
Para a tua miséria um reino imaginário
Invento, glória e paz num futuro risonho.


Para te consolar, no opróbrio do Calvário,
Hóstia e vítima, a carne, o sangue e a alma deponho:
Nasce da minha morte a vida do teu sonho,
E todo o choro humano embebe o meu sudário.


Só liberta a renúncia. Ó triste! a sombra imensa
Dos braços desta cruz espalha sobre o mundo
A utopia celeste, orvalho ao teu suplício.


Sou a misericórdia ilusória da crença:
Sobre a força, a fraqueza; e, sobre o amor fecundo,
A piedade sem glória e o inútil sacrifício!


Dante no Paraíso


... Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz:
Triste no sumo bem, triste no excelso instante,
O poeta compreendera o mal de ser feliz.

Saudoso, ao ígneo horror do báratro distante,
Ao vórtice tartáreo o olhar volvendo, quis
Regressar à geena, onde a turba ululante
Nos torvelins raivando arde na chama ultriz:


E fatigou-o a paz do esplendor soberano;
Dos réprobos lembrando a irrevogável sorte,
A estância abominou do perpétuo prazer;


Porque no coração, cheio de amor humano,
Sentiu que toda a Vida, até depois da morte,
Só tem uma razão e um gozo só: sofrer!


Beethoven Surdo


Surdo, na universal indiferença, um dia,
Beethoven, levantando um desvairado apelo,
Sentiu a terra e o mar num mudo pesadelo...
E o seu mundo interior cantava e restrugia.


Torvo o gesto, perdido o olhar, hirto o cabelo,
Viu, sobre a orquestração que no seu crânio havia,
Os astros em torpor na imensidade fria,
O ar e os ventos sem voz, a natureza em gelo.


Era o nada, a eversão do caos no cataclismo,
A síncope do som no páramo profundo,
O Silêncio, a algidez, o vácuo, o horror no abismo...


E Beethoven, no seu supremo desconforto,
Velho e podre, caiu, como um deus moribundo,
Lançando a maldição sobre o universo morto!


Milton Cego


Desvendava-se ao cego o mistério:
(As idades
Sem princípio; de sol a sol, de terra a terra,
A eterna combustão que maravilha e aterra,
Geradora de bens e de ferocidades;


Cordilheiras de espanto e esplendor, serra a serra,
De infinito a infinito; asas em tempestades,
Tronos, Dominações, Virtudes, Potestades,
Luz contra luz, furor de chama e glória em guerra;


E os rebeldes, rodando em rugidoras vagas;
E o Éden, e a tentação, e, entre o opróbrio e a alegria,
O amor florindo ao pé da amaldiçoada porta;


E o Homem em susto, o céu em ira, o inferno em pragas;
E, imperturbável, Deus, na sua glória!...)
Ardia
O poema universal numa retina morta.

Miguel Ângelo Velho

"Vieram-lhe o amor e a poesia, no
declínio da vida. Na mocidade, foi
de costumes austeros. Aos cinqüenta
e um anos, conheceu Vittoria Colonna;
escreveu para ela canções, sonetos,
madrigais, exaltação do cérebro,
temperada de misticismo; ela admirou-
o, mas não o amou. Quando Víttoria
morreu, Buonarrotti beijou a mão do
cadáver, não ousando beijar-lhe a fronte."
(M. MONNIER - La Renaíssance.)


E pensava: - "Perder a chama peregrina,
Que extrai da pedra um Deus, do barro imundo um Santo;
E este punho, que alçou a cúpula divina

De São Pedro, e amassou "Moisés" de luz e espanto;


E esta alma, que arquiteta os mundos na oficina:
O "Dia", força e graça, e a "Noite", sombra e encanto,
E o "Juízo Final" da Capela Sixtina
E "Judit", flor de sangue, e "Pietà", flor de pranto;



Tudo: tinta, pincel, escopro, camartelo,
Ouro, fama, poder, glória, gênio, virtude,
- Por um milagre só, no amor que me abandona:


Morrer, e renascer ardente, moço, belo,
E, como o meu "Davi", clarão de juventude,
Aparecer, sorrindo, a Vittoria Colonna!"

No Tronco de Goa

Camões sofre, na infâmia da clausura,
Pária sem honra, náufrago sem nome;
E rala, na saudade que o consome,
O pobre peito contra a pedra dura.


O seu gênio ilumina a abjeta lura...
Mas a vida das carnes se lhe some:
Míngua de pão, e, outra mais negra fome,
Indigência de beijos e ventura.


Do próprio fel, dos íntimos venenos,
Faz a glória da pátria e a luz da raça;
E chora, na ignomínia. Mas, ao menos,


Possui, na mesquinhez da terra crassa
E na vergonha de homens tão pequenos,
O orgulho de ser grande na desgraça.


EDIPO


I
A Pítia


"Repetiu-me Apolo o vaticínio: que eu
seria o assassino de meu pai; e rei; e
marido de minha mãe, sem a conhecer;
e tronco de uma prole infame!..."
(SÓFOCLES - Édipo Rei.)


Em Delfos. Com pavor, de pé, no ádito escuro,
Édipo escuta... O deus, rugindo de ira e ameaça,
Pela boca da Pítia em êxtase, devassa
O tempo, e o arcano véu destrama do futuro:


"Rolarás do fastígio à ignomínia e à desgraça!
Rompendo de um mistério o impenetrável muro,
Num sólio ensangüentado e num tálamo impuro
Gerarás, parricida, a mais odiosa raça!"


É a Esfinge, a glória, o reino, o assassínio de Laio,
E o amor sinistro... Assim troveja a voz de Apolo
E enche o sacrário... O céu carrega-se de bruma;


Fuzila; estruge o chão; reboa no antro o raio...
E, enquanto Édipo tomba inânime no solo,
Sobre a trípode a Pítia, em baba, ulula e escuma.

II
A Esfinge


"Bem-vindo sejas à cidade de Cadmo,
nosso libertador e nosso rei, que, com
a tua penetração de espírito e o auxílio
divino, levantaste o tributo de sangue
que pagávamos à cruel Esfinge!"

(SÓFOCES - Édipo Rei.)


Perto de Tebas, junto a um monte, sobre o Ismeno,
Águia e mulher, serpente e abutre, deusa e harpia,
Tapando a estrada, à espera, - aterrava e sorria
O monstro sedutor, horrível e sereno:

"Devoro-te, ou decifra!" Era fascínio o aceno;
A voz, morna e sensual, tinha afeto e ironia,
Graça e repulsa; e a luz dos olhos escorria
Fluido filtro, estilando um pérfido veneno.


Mas Édipo desvenda o enigma... Ruge em fúria
O Grifo, e escarva o chão, bate contra o rochedo,
Rola em vascas, em sangue ardente a areia tinge,


E fita o campeador no uivar da extrema injúria.
E o Herói recua, vendo, entre esperança e medo,
Rancor e compaixão no verde olhar da Esfinge.


III
Jocasta

"Trevas espessas! eterna, horrível noite!
sou dilacerado pelo espinho da dor e
pela memória dos meus crimes!"
(SÓFOCLES - Édipo Rei.)


Édipo vê cumprir-se o oráculo funesto:
Tebas entregue, em luto, à peste que a devasta,
E, sobre o trono em sânie e o leito desonesto,
Morta, infâmia da terra e asco de céu, Jocasta.


Louco, vociferando, erguendo a grita e o gesto
Contra os deuses, mordendo a poeira em que se arrasta,
O mísero, medindo o parricídio e o incesto,
Quer da vista apagar a lembrança nefasta:


Os dois olhos, às mãos, das órbitas arranca
Em sangue borbotando, em lágrimas fervendo,
Para o pavor matar na esmagada retina...


Mas, cego embora, - vê Jocasta hedionda, branca,
Enforcada, a oscilar, como um pêndulo horrendo,
Compassando, fatal, a maldição divina.

IV
Antígona

"Disse-me também o oráculo que
morrerei aqui, quando tremer a
terra, quando o trovão rolar,
quando o espaço brilhar..."
(SÓFOCLES - Édipo em Colona.)


A terra treme. Rola o trovão. Brilha o espaço.
Chega Édipo a Colona, em andrajos, imundo,
Sombra ansiosa a fugir do próprio horror profundo,
Ruína humana a cair de miséria e cansaço.


Mas, quando o ancião vacila, órfão da luz do mundo,
- Antígona lhe estende o coração e o braço,
E, filha e irmã, recolhe ao maternal regaço
O rei sem trono, o pai sem honra, moribundo.


É o ninho (a terra treme...) amparando o carvalho,
A flor sustendo o tronco! Édipo (o espaço brilha...)
Sorri, como um combusto areal bebendo o orvalho.


É o fim (rola o trovão...) da miseranda sorte:
O cego vê, fitando o céu do olhar da filha,
Na cegueira o esplendor, e a redenção na morte.


Madalena

"Maria Madalena, Maria de Tiago, e
Salomé compraram aromas, para irem
embalsamar a Jesus. Mas, olhando,
viram revolvida a pedra... E Jesus,
tendo ressurgido, apareceu primei-
ramente a Maria Madalena."
(S. MARCOS cap. XVI.)


Quedaram, frio o sangue, as mulheres chorosas,
Sem cor, sem voz, de espanto e medo. E, de repente,
Caíram-lhes das mãos as ânforas piedosas
De bálsamo odoroso e de óleo recendente.

Enfeitiçou-se o chão de um perfume dormente,
E o arredor trescalou de essências capitosas,
Como se a terra toda abrisse o seio, e o ambiente
Se enchesse de jasmins, de nardos e de rosas.


E Madalena, muda, ao pé da sepultura,
Tonta da exalação dos cheiros, em delírio,
Viu que uma forma, no ar, divinamente bela,


Vivo eflúvio, vapor fragrante, alva figura,
Aroma corporal, pairava...
Como um lírio,
Num sorriso, Jesus fulgia diante dela.

Cleópatra

"Cleopatra diffidava... Fu persuasa che
il vincitore la destinava al trionfo...
Ottaviano, corse in gran fretta a salvare
la sua preda, la trovó, sul letto, adorna
della sua piú bella veste di regina,
addormentata per sempre..."

(G. FERRERO - Grandezza e decadenza
di Roma.)


Não! que importava a queda, e o epílogo do drama:
O trono, o cetro, o povo, o exército, o tesouro,
As províncias, a glória, e as naus, no sorvedouro
De Actium, e Alexandria entregue ao saque e à chama?

Não! que importava o horror da entrada em Roma: a fama
De Otávio, e o seu triunfo, entre a púrpura e o louro,
E a plebe em grita, e o céu cheio das águias de ouro,
E o Egito, e o seu império, e os seus troféus, na lama?


Não! Que importava o amor perdido? Que importava
O naufrágio do orgulho, a vergonha, a tortura
Do ódio do vencedor ou da piedade alheia?


Mas entrar desgrenhada, envelhecida, escrava,
Rota, sem o arraiar da sua formosura,
Sol sem fulgor...
Matou-a o medo de ser feia.


A Velhice de Aspásia

Velha, Aspásia, como um clarão, na Academia
E na ágora, surgia e ofuscava as mais belas;
E, sob as cãs, e sob as roupagens singelas,
Aureolada do amor de Péricles, sorria...


Do Helesponto, do Egeu, do Jônio, em romaria,
Vinham vê-la e admirá-la efebos e donzelas.
E eles: "Que sol nos teus cabelos brancos!" E elas:
"Brilha mais do que a aurora o final do teu dia!"


Ela e a Acrópole, frente a frente, alvas, serenas,
Unidas no esplendor, gêmeas na majestade,
Eram a forma e a idéia, iluminando Atenas.


Aspásia, deusa clara e simples, na moldura
Do céu, nume feliz, perfumava a cidade...
Era uma religião a sua formosura!

A Rainha de Sabá

"O rei Salomão deu à rainha de Sabá o
que ela lhe desejou, e lhe pediu, afora
os presentes que ele mesmo lhe deu
com liberalidade real. A rainha voltou, e
se foi para o seu reino com os seus servos."
(REIS, L. III, cap. X, 13.)


"Que mais queres? Sião? e, entre os bosques sombrios,
O meu colar de cem cidades deslumbrantes?
O Líbano, pompeando em paços, em mirantes,
Em cedros, em pavões, em corças, em bugios?


O povo de Israel, em tribos formigantes
Do Eufrates ao mar Morto e o Egito? Os meus navios,
As esquadras de Hirão, coalhando o oceano e os rios,
Atestadas de prata e dentes de elefantes?


O meu leito, ainda olente e morno do teu sono?
O cetro? O gineceu, e a guarda, e as mil mulheres
Como escravas, rojando aos teus pés? O meu trono?


Os vasos do holocausto? O templo de ouro e jade?
A ara, em sangue e fulgor, ante Jeová?... Que queres?"

.............................................................

- "O teu último beijo... o deserto... e a saudade..."


A Morte de Orfeu


"Em vão as bacantes da Trácia procuram
consolá-lo. Mas Orfeu, fiel ao amor de
Eurídice, encarcerada no Averno, repeliu
o amor de todas as outras mulheres.
E estas, despeitadas, esquartejaram-no."

Houve gemidos no Ebro e no arvoredo,
Horror nas feras, pranto no rochedo;

E fugiras as Mênadas, de medo,
Espantadas da própria maldição.

Luz da Grécia, pontífice de Apolo,
Orfeu, despedaçada a lira ao colo,
A carne rota ensangüentando o solo,
Tombou... E abriu-se em músicas o chão...

A boca ansiosa em nome disse, um grito,
Rolando em beijos pelo nome dito;
"Eurídice", e expirou... Assim Orfeu,

No último canto, no supremo brado,
Pelo ódio das mulheres trucidado,
Chorando o amor de uma mulher, morreu...

Gioconda

Deu-te o grande Leonardo ao sorriso a ironia,
Insídia, e eterno ardil, na luminosa teia:
Tal, a Belerofonte a Quimera sorria,
E a Esfinge de Gizé sorri na adusta areia...


A cilada do amor, o embuste da utopia,
O desejo, que abrasa, e a esperança, que enleia,
Chispam na tua boca impenetrável, fria...
Seduzes, através dos séculos, sereia!


Esse leve clarão no teu lábio, indeciso,
É a dobrez ancestral, a malícia primeva
Da Ísis, da pecadora altriz do Paraíso:


Porque, para extrair as gerações da treva,
A serpe, e a Adão, e a Deus, com o teu mesmo sorriso,
Sorria, astuta e forte, a mãe das raças, Eva.

Natal


No ermo agreste, da noite e do presepe, um hino
De esperança pressaga enchia o céu, com o vento...
As árvores: "Serás o sol e o orvalho!" E o armento:
"Terás a glória!" E o luar: "Vencerás o destino!"


E o pão: "Darás o pão da terra e o pão divino!"
E a água: "Trarás alívio ao mártir e ao sedento!"
E a palha: "Dobrarás a cerviz do opulento!"
E o tecto: "Elevarás do opróbrio o pequenino!"


E os reis: "Rei, no teu reino, entrarás entre palmas!"
E os pastores: "Pastor, chamarás os eleitos!"
E a estrela: "Brilharás, como Deus, sobre as almas!"


Muda e humilde, porém, Maria, como escrava,
Tinha os olhos na terra em lágrimas desfeitos;
Sendo pobre, temia; e, sendo mãe, chorava.

Aos Meus Amigos de São Paulo

Se amo, padeço, e sonho, a recompensa
É a melhor que me dais, neste agasalho:
Desta ternura, sobre mim suspensa,
Desce todo o valor do quanto valho.

Não tenho aroma que vos não pertença:
Vêm de vós a doçura e o bem que espalho;
Valemos todos pela nossa crença,
Na comunhão do amor e do trabalho.

Operário modesto, abelha pobre,
De vós e para vós o mel fabrico,
E abençôo a colmeia que nos cobre.

Só do labor geral me glorifico:
Por ser da minha terra é que sou nobre,
Por ser da minha gente é que sou rico.

A um Poeta


Longe do estéril turbilhão da rua,
Beneditino, escreve! No aconchego
Do claustro, na paciência e no sossego,
Trabalha, e teima, e lima, e sofre, e sua!


Mas que na forma se disfarce o emprego
Do esforço; e a trama viva se construa
De tal modo, que a imagem fique nua,
Rica mas sóbria, como um templo grego.


Não se mostre na fábrica o suplício
Do mestre. E, natural, o efeito agrade,
Sem lembrar os andaimes do edifício:


Porque a Beleza, gêmea da Verdade,
Arte pura, inimiga do artifício,
E a força e a graça na simplicidade.

Vila Rica

O ouro fulvo do ocaso as velhas casas cobre;
Sangram, em laivos de ouro, as minas, que ambição
Na torturada entranha abriu da terra nobre:
E cada cicatriz brilha como um brasão.

O ângelus plange ao longe em doloroso dobre,
O último ouro do sol morre na cerração.
E, austero, amortalhando a urbe gloriosa e pobre,
O crepúsculo cai como uma extrema-unção.

Agora, para além do cerro, o céu parece
Feito de um ouro ancião que o tempo enegreceu...
A neblina, roçando o chão, cicia, em prece,

Como uma procissão espectral que se move...
Dobra o sino... Soluça um verso de Dirceu...
Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.

New York


Resplandeces e ris, ardes e tumultuas;
Na escalada do céu, galgando em fúria o espaço,
Sobem do teu tear de praças e de ruas
Atlas de ferro, Anteus de pedra e Brontes de aço.

Gloriosa! Prometeu revive em teu regaço,
Delira no teu gênio, enche as artérias tuas,
E combure-te a entranha arfante de cansaço,
Na incessante criação de assombros em que estuas.

Mas, com as tuas Babéis, debalde o céu recortas,
E pesas sobre o mar, quando o teu vulto assoma,
Como a recordação da Tebas de cem portas:


Falta-te o Tempo, - o vago, o religioso aroma
Que se respira no ar de Lutécia e de Roma,
Sempre moço perfume ancião de idades mortas...

Último Carnaval

Íncola de Suburra ou de Sibarís,
Nasceste em saturnal; viveste, estulto,
Na folia das feiras, no tumulto
Dos caravançarás e dos bazares;

Morreste, em plena orgia, entre os esgares
Dos arlequins, no delirante culto;
E a saudade terás, depois sepulto,
Herói folião, dos carnavais hílares...

Talvez, quem sabe? a cova, que te esconda,
Uma noite, entre fogos-fátuos, se abra,
Como uma boca escancarada em risos:

E saltarás, pinchando, numa ronda
De espectros aos tantãs, dança macabra
De esqueletos e lêmures aos guizos.


Fogo-Fátuo


Cabelos brancos! dai-me, enfim, a calma
A esta tortura de homem e de artista:
Desdém pelo que encerra a minha palma,
E ambição pelo mais que não exista;

Esta febre, que o espírito me encalma
E logo me enregela; esta conquista
De idéias, ao nascer, morrendo na alma,
De mundos, ao raiar, murchando à vista:

Esta melancolia sem remédio,
Saudade sem razão, louca esperança
Ardendo em choros e findando em tédio;

Esta ansiedade absurda, esta corrida
Para fugir o que o meu sonho alcança,
Para querer o que não há na vida!


Inocência


Como, em vez de uma paz desiludida,
Posso eu ter, nesta idade, esta confiança,
Que me leva a correr a toda brida
Na pista de uma sombra de esperança?


Esta velhice ingênua me intimida:
Tanto ardor, tanta fé, que me não cansa,
E, em mais de meio século de vida,
Tanta credulidade de criança!

Rio, inocente, ao sol, como uma rosa;
Ainda arquiteto mundos sobre a areia;
Anoiteço em miragem luminosa.

E ainda imagino a minha taça cheia,
E emborco-a: "Oh! Vida!..."; e quero-a, e acho-a formosa,
Como se não soubesse quanto é feia!


Remorso


Às vezes, uma dor me desespera...
Nestas ânsias e dúvidas em que ando,
Cismo e padeço, neste outono, quando
Calculo o que perdi na primavera.

Versos e amores sufoquei calando,
Sem os gozar numa explosão sincera...
Ah! mais cem vidas! com que ardor quisera
Mais viver, mais penar e amar cantando!

Sinto o que esperdicei na juventude;
Choro, neste começo de velhice,
Mártir da hipocrisia ou da virtude,

Os beijos que não tive por tolice,
Por timidez o que sofrer não pude,
E por pudor os versos que não disse!


Milagre


Depois de tantos anos, frente a frente,
Um encontro... O fantasma do meu sonho!
E, de cabelos brancos, mudamente,
Quedamos frios, num olhar tristonho.

Velhos!... Mas, quando, ansioso, de repente,
Nas suas mãos as minhas palmas ponho,
Ressurge a nossa primavera ardente,
Na terra em bênçãos, sob um sol risonho:

Felizes, num prestígio, estremecemos;
Deliramos, na luz que nos invade
Dos redivivos êxtases supremos;

E fulgimos, volvendo à mocidade,
Aureolados dos beijos que tivemos,
No divino milagre da saudade.

A Cilada

O perfume, o silêncio, a sombra... Os ninhos
Emudecem... E temos, sonhadores,
A humildade das ervas nos caminhos
E uma inocência de anjos entre as flores.

Mas há na tarde morna ignotos vinhos,
Secretos filtros, pérfidos vapores,
Amavios, feitiços e carinhos
Moles, quebrados e perturbadores...

E, de repente, o incêndio dos sentidos:
As mãos frias tateando na ansiedade,
As bocas que se buscam num queixume,

E o corpo, o sangue, o espírito perdidos,
E a febre, e os beijos... e a cumplicidade
Da sombra, do silêncio, do perfume...


Perfeição


Nunca entrarei jamais o teu recinto:
Na sedução e no fulgor que exalas,
Ficas vedada, num radiante cinto
De riquezas, de gozos e de galas.

Amo-te, cobiçando-te... - E, faminto,
Adivinho o esplendor das tuas salas,
E todo o aroma dos teus parques sinto,
E ouço a música e o sonho em que te embalas.

Eternamente ao meu olhar pompeias,
E olho-te em vão, maravilhosa e bela,
Adarvada de altíssimas ameias.

E à noite, à luz dos astros, a horas mortas,
Rondo-te, e arquejo, e choro, ó cidadela!
Como um bárbaro uivando às tuas portas!


Messídoro


Por que chorar? Exulta, satisfeita!
És, quando a mocidade te abandona,
Mais que bela mulher, mulher perfeita,
Do completo fulgor senhora e dona.

As derradeiras messes aproveita,
E goza! A antevelhice é uma Pomona,
Que, se esmerando na final colheita
Dos frutos áureos, a paixão sazona.

Ama! e frui o delírio, a febre, o ciúme,
E todo o amor! E morre como um dia
Em fogo, como um dia que resume

Toda a vida, em anseios, em poesia,
Em glória, em luz, em música, em perfume,
Em beijos, numa esplêndida agonia!


Samaritana


Numa volta de estrada, em sede insana,
Vi-te. Ao lado, a frescura da cisterna.
E tinhas a expressão piedosa e terna,
Como na Bíblia, da Samaritana.

Deste-me de beber. Mas quanto engana,
Às vezes, a piedade, e a esmola inferna!
Deste-me de beber da fonte eterna,
De onde a torrente dos remorsos mana.

Com a água que me deste (que contraste
De ti para a mulher de Samaria!)
A boca e o coração me envenenaste:

Maior do que o da sede, este tormento,
Esta ânsia singular, esta agonia
Que é de saudade e de arrependimento!


Um Beijo


Foste o beijo melhor da minha vida,
Ou talvez o pior... Glória e tormento,
Contigo à luz subi do firmamento,
Contigo fui pela infernal descida!

Morreste, e o meu desejo não te olvida:
Queimas-me o sangue, enches-me o pensamento,
E do teu gosto amargo me alimento,
E rolo-te na boca malferida.

Beijo extremo, meu prêmio e meu castigo,
Batismo e extrema-unção, naquele instante
Por que, feliz, eu não morri contigo?

Sinto-te o ardor, e o crepitar te escuto,
Beijo divino! e anseio, delirante,
Na perpétua saudade de um minuto...


Criação


Há no amor um momento de grandeza,
Que é de inconsciência e de êxtase bendito:
Os dois corpos são toda a Natureza,
As duas almas são todo o Infinito.

É um mistério de força e de surpresa!
Estala o coração da terra, aflito;
Rasga-se em luz fecunda a esfera acesa,
E de todos os astros rompe um grito.

Deus transmite o seu hálito aos amantes:
Cada beijo é a sanção dos Sete Dias,
E a Gênese fulgura em cada abraço;

Porque, entre as duas bocas soluçantes,
Rola todo o Universo, em harmonias
E em glorificações, enchendo o espaço!


Maternidade

"O Senhor disse à mulher: Por que
fizeste isto? Eu multiplicarei os
teus trabalhos!"
(Gen., cap. III.)


Ventre mártir, a rútila visita
Do amor fecundo te arrancou do sono:
E irradias, lampejas como um trono
De animado marfim que à luz palpita!

Ergues-te, em esto de orgulhoso entono:
Fere-te enfim a maldição bendita!
Tens o viço da Terra, quando a agita,
Rico de orvalhos e de sóis, o outono.

Augusto, em gozo eterno, o teu suplício...
Feliz a tua dor propiciatória...
- Rasga-te, altar do torturante auspício,


E abra-se em flores tua alvura ebórea,
Ensangüentada pelo sacrifício,
Para a maternidade e para a glória!

Os Amores da Aranha

Com o veludo do ventre a palpitar hirsuto
E os oito olhos de brasa ardendo em febre estranha,
Vede-a: chega ao portal do intrincado reduto,
E na glória nupcial do sol se aquece e banha.

Moscas! podeis revoar, sem medo à sua sanha:
Mole e tonta de amor, pendente o palpo astuto,
E recolhido o anzol da mandíbula, a aranha
Ansiosa espera e atrai o amante de um minuto...

E ei-lo corre, ei-lo acode à festa e à morte! Um hino
Curto e louco, um momento, abala e inflama o fausto
Do aranhol de ouro e seda... E o aguilhão assassino

Da esposa satisfeita abate o noivo exausto,
Que cai, sentindo a um tempo, - invejável destino!
A tortura do espasmo e o gozo do holocausto.


Os Amores da Abelha

Quando, em prônubo anseio, a abelha as asas solta
E escala o espaço, - ardendo, êxul do corcho céreo,
Louca, se precipita a sussurrante escolta
Dos noivos zonzos, voando ao nupcial mistério.

Em breve, sucumbindo, o enxame arqueja, e volta...
Mas o mais forte, um só, senhor do excelso império,
Segue a esquiva, e, em zunzum zeloso de revolta,
Entoa o epitalâmio e o cântico funéreo:

Toca-a, fecunda-a, e vence, e morre na vitória...
A esposa, livre, ao sol, no alto do firmamento,
Palra, e, rainha e mie, zumbe de orgulho e glória;

E, rodopiando, inerte, o suicida sublime,
Entre as bênçãos da luz e os hosanas do vento,
Rola, mártir feliz do delicioso crime.


Semper Impendent...


Se amas, se da velhice entras a porta escura,
Maldize o teu amor, que é um triste adeus à vida!
Porque no teu amor de velho se mistura
Ao enlevo de um noivo a angústia de um suicida.

Louco! vês entreabrir-se a cova, na doçura
Do aconchego nupcial que ao gozo te convida;
E, na incerteza atroz da carícia futura,
Cada afago te dói como uma despedida.

Sofres um estertor em cada abraço, um grito
Em cada beijo, em cada anseio uma saudade:
É um rolar, um ferver num inferno infinito!

No desesperador prazer do teu transporte,
Sentes a crispação da treva que te invade,
O doloroso amargo ante-sabor da morte...


O Oitavo Pecado


Vivendo para a morte, alegre da tristeza,
Temendo o fogo eterno e a danação sulfúrea,
Gelaste no cilício, em ascética fúria,
A alma ridente, o sangue em esto, a carne acesa.

Foste mártir e herói da própria natureza.
Intacto de ambição, de desejo ou de injúria,
Para ganhar o céu, venceste a ira, a luxúria,
A gula, a inveja, o orgulho, a preguiça e a avareza.

Mas não amaste! E, além do Inferno, um outro existe,
Onde é mais alto o choro e o horror dos renegados:
Ali, penando, tu, que o amor nunca sentiste,

Pagarás sem amor os dias dissipados!
Esqueceste o pecado oitavo: e era o mais triste,
Mortal, entre os mortais, de todos os pecados!


Salutaris Porta


Para conter aquela imensa chama,
Os nossos corações eram pequenos:
Tivemos medo da paixão... E ao menos
Não vimos tanto céu mudado em lama!

O velário correu-se antes do drama.
E não houve perfídias nem venenos
Entre os nossos espíritos serenos,
Que a saudade do prólogo embalsama.

Bendigamos o amor que foi tão curto,
O sonho vago que expirou tão cedo,
Sossobrado no porto antes do surto!

Feliz o idílio que não teve história!
Salvando-nos do tédio, o nosso medo
Foi uma porta de ouro para a glória!


Assombração


Conheço um coração, tapera escura,
Casa assombrada, onde andam penitentes
Sombras e ecos de amor, e em que perdura
A saudade, presença dos ausentes.


Evadidos da paz da sepultura,
Num tatalar de tíbias e de dentes,
Revivem os fantasmas da ternura,
Arrastando sudários e correntes.

Rangem os gonzos no bater das portas,
E os corredores enchem-se de prantos...
Um mundo de avejões do chão se eleva,

Ressuscitado pelas horas mortas:
Frios abraços gemem pelos cantos,
Beijos defuntos fogem pela treva.


Palmeira Imperial


Mostras na glória um coração mesquinho...
Numa beleza esplêndida, que aterra,
Passas desencadeando um ar de guerra,
Sem deixar um perfume no caminho.

Como a palmeira, não susténs um ninho!
Não és filha, mas hóspeda da Terra;
Subjugando a planície, na alta serra,
- Cruel às aves, seca de carinho.

Ha no deslumbramento do teu porte
Tédio, orgulho, desdém: talvez saudade
De outra vida, ambição talvez da morte...

Como a palmeira, tens a majestade,
E dela tens a desgraçada sorte:
A avareza da sombra e da piedade.


Diamante Negro


Vi-te uma vez, e estremeci de medo...
Havia susto no ar, quando passavas:
Vida morta enterrada num segredo,
Letárgico vulcão de ignotas lavas.

Ias como quem vai para um degredo,
De invisíveis grilhões as mãos escravas,
A marcha dúbia, o olhar turvado e quedo
No roxo abismo das olheiras cavas...

Aonde ias? aonde vais? Foge o teu vulto;
Mas fica o assombro do teu passo errante,
E fica o sopro desse inferno oculto,

O horrível fogo que contigo levas,
Incompreendido mal, negro diamante,
Sol sinistro e abafado ardendo em trevas.


Palavras


As palavras do amor expiram como os versos,
Com que adoço a amargura e embalo o pensamento:
Vagos clarões, vapor de perfumes dispersos,
Vidas que não têm vida, existências que invento;

Esplendor cedo morto, ânsia breve, universos
De pó, que um sopro espalha ao torvelim do vento,
Raios de sol, no oceano entre as águas imersos,
- As palavras da fé vivem num só momento...

Mas as palavras más, as do ódio e do despeito,
O "não!" que desengana, o "nunca!" que alucina,
E as do aleive, em baldões, e as da mofa, em risadas,

Abrasam-nos o ouvido e entram-nos pelo peito:
Ficam no coração, numa inércia assassina,
Imóveis e imortais, como pedras geladas.


Marcha Fúnebre

"Thamuz, Thamuz, panmegas tethneke!...


Como se ouviu no Epiro, outrora, o extremo grito
"Pã morreu!", - na amplidão reboe o meu lamento:
Torpe a ambição, perdido o amor, inane o alento,
Nestas baixas paixões de um século maldito!

Rolem trenos no oceano e elegias no vento!
Concentrai-vos na dor do funerário rito,
O asas e ilusões num miserere aflito,
E, ó flores num responso, e, ó sonhos num memento!

Bocas, bradando ao céu de minuto em minuto,
Olhos, velando a terra em sudários de pranto,
Corações, num rufar de tambores em luto,

Guaiai, carpi, gemei! e ecoai de porto a porto,
De mar a mar, de mundo a mundo, a queixa e o espanto:
O grande Pá morreu de novo! O Ideal é morto!


O Tear


A fieira zumbe, o piso estala, chia
O liço, range o estambre na cadeia;
A máquina dos Tempos, dia a dia,
Na música monótona vozeia.

Sem pressa, sem pesar, sem alegria,
Sem alma, o Tecelão, que cabeceia,
Carda, retorce, estira, asseda, fia,
Doba e entrelaça, na infindável teia.

Treva e luz, ódio e amor, beijo e queixume,
Consolação e raiva, gelo e chama
Combinam-se e consomem-se no urdume.

Sem princípio e sem fim, eternamente
Passa e repassa a aborrecida trama
Nas mãos do Tecelão indiferente...

O Cometa


Um cometa passava... Em luz, na penedia,
Na erva, no inseto, em tudo uma alma rebrilhava;
Entregava-se ao sol a terra, como escrava:
Ferviam sangue e seiva. E o cometa fugia...

Assolavam a terra o terremoto, a lava,
A água, o ciclone, a guerra, a fome, a epidemia;
Mas renascia o amor, o orgulho revivia,
Passavam religiões... E o cometa passava,

E fugia, riçando a ígnea cauda flava.
Fenecia uma raça; a solidão bravia
Povoava-se outra vez. E o cometa voltava...

Escoava-se o tropel das eras, dia a dia:
E tudo, desde a pedra ao homem, proclamava
A sua eternidade! E o cometa sorria...


Diálogo


O mancebo perfeito e o velho humilde e rude
Viram-se. E disse ao velho o mancebo perfeito:
"Glória a mim! sorvo o céu num hausto do meu peito!"
E o velho: "Engana o céu... Tudo na terra ilude..."

"Rebentam roseirais do chão em que me deito!"
"A alma da noite embala a minha senectude..."
"Quando acordo, há um clarão de graça e de saúde!"
"Pudesse ser perpétua a calma do meu leito!"

"Quero vibrar, agir, vencer a Natureza,
Viver a Vida!" "A Vida é um capricho do vento..."
"Vivo, e posso!" "O poder é uma ilusão da sorte..."

"Herói e deus, serei a beleza!" "A beleza
É a paz!" "Serei a força!" "A força é o esquecimento..."
"Serei a perfeição!" "A perfeição é a morte!"


Avatara


Numa vida anterior, fui um cheik macilento
E pobre... Eu galopava, o albornoz solto ao vento,
Na soalheira candente; e, herói de vida obscura,
Possuía tudo: o espaço, um cavalo, e a bravura.

Entre o deserto hostil e o ingrato firmamento,
Sem abrigo, sem paz no coração violento,
Eu namorava, em minha altiva desventura,
As areias na terra e as estrelas na altura.

Às vezes, triste e só, cheio do meu desgosto,
Eu castigava a mão contra o meu próprio rosto,
E contra a minha sombra erguia a lança em riste...

Mas o simum do orgulho enfunava o meu peito:
E eu galopava, livre, e voava, satisfeito
Da força de ser só, da glória de ser triste!


Abstração


Há no espaço milhões de estrelas carinhosas,
Ao alcance do teu olhar... Mas conjeturas
Aquelas que não vês, ígneas e ignotas rosas,
Viçando na mais longe altura das alturas.

Há na terra milhões de mulheres formosas,
Ao alcance do teu desejo... Mas procuras
As que não vivem, sonho e afeto que não gozas
Nem gozarás, visões passadas ou futuras.

Assim, numa abstração de números e imagens,
Vives. Olhas com tédio o planeta ermo e triste,
E achas deserta e escura a abóbada celeste.

E morrerás, sozinho, entre duas miragens:
As estrelas sem nome - a luz que nunca viste,
E as mulheres sem corpo - o amor que não tiveste!


Cantilena

Quando as estrelas surgem na tarde, surge a [esperança...
Toda alma triste no seu desgosto sonha um Messias:
Quem sabe? o acaso, na sorte esquiva, traz: a mudança
E enche de mundos as existências que eram vazias!

Quando as estrelas brilham mais vivas, brilha a esperança...
Os olhos fulgem; loucas, ensaiam as asas frias:
Tantos amores há pela terra, que a mão alcança!
E há tantos astros, com outras vidas, para outros dias!

Mas, de asas fracas, baixando os olhos, o sonho cansa;
No céu e na alma, cerram-se as brumas, gelam as luzes:
Quando as estrelas tremem de frio, treme a esperança...

Tempo, o delírio da mocidade não reproduzes!
Dorme o passado: quantas saudades, e quantas cruzes!
Quando as estrelas morrem na aurora, morre a esperança...


Sonho


Ter nascido homem outro, em outros dias,
- Não hoje, nesta agitação sem glória,
Em traficâncias e mesquinharias,
Numa apagada vida merencória...


Ter nascido numa era de utopias,
Nos áureos ciclos épicos da História,
Ardendo em generosas fantasias,
Em rajadas de amor e de vitória:

Campeão e trovador da Idade Média,
Herói no galanteio e na cruzada,
Viver entre um idílio e uma tragédia;

E morrer em sorrisos e lampejos,
Por um gesto, um olhar, um sonho, um nada,
Traspassado de golpes e de beijos!

Ruth


Pede pouco! Mais tem do que um monarca
O pobre, tendo o pouco que pedia:
E é rico, achando, ao terminar do dia,
Paz no espírito e pão no fundo da arca,

Triste, ó alma, a ambição que o mundo abarca!
Perde tudo quem quer a demasia.
Poupa o riso e o prazer! porque a alegria
Tanto é mais doce quanto mais é parca.

Feliz, modesto coração, te dizes,
Quando vais, como Ruth, em muda prece,
Empós dos segadores mais felizes:

Feliz é o simples, que, feliz, procura
Uma espiga apanhar da alheia messe,
Um resto miserável da ventura.


Abisag


Cedes a um velho inválido e insensato,
(Mais insensato do que tu!) sorrindo,
A graça e o viço do teu corpo lindo,
A tua formosura e o teu recato...

Em breve, louca! o teu delírio findo,
Compreenderás o horror deste contrato:
Ter dado aroma a quem não tem olfato,
Pedir amparo ao que já está caindo.

Ele, um dia, amargando a sua glória,
Chorando o seu império e o teu degredo,
O teu remorso e o seu pavor covarde,

Morrerá de vergonha na vitória:
Triste ilusão, que te acordou tão cedo!
Fortuna triste, que o escolheu tão tarde!


Estuário


Viverei! Nos meus dias descontentes,
Não sofro só por mim... Sofro, a sangrar,
Todo o infinito universal pesar,
A tristeza das cousas e dos entes.

Alheios prantos, em cachões ardentes,
Vêm ao meu coração e ao meu olhar:
- Tal, num estuário imenso, acolhe o mar
Todas as águas vivas das vertentes.

Morre o infeliz, que unicamente encerra
A própria dor, estrangulada em si...
Mas vive a Vida que em meus versos erra;

Vive o consolo que deixei aqui;
Vive a piedade que espalhei na terra...
Assim, não morrerei, porque sofri!

Consolação


Penso às vezes nos sonhos, nos amores,
Que inflamei à distância pelo espaço;
Penso nas ilusões do meu regaço
Levadas pelo vento a alheias dores...

Penso na multidão dos sofredores,
Que uma bênção tiveram do meu braço:
Talvez algum repouso ao seu cansaço,
Talvez ao seu deserto algumas flores...

Penso nas amizades sem raízes,
Nos afetos anônimos, dispersos,
Que tenho sob os céus de outros países...

Penso neste milagre dos meus versos:
Um pouco de modéstia aos mais felizes,
Um pouco de bondade aos mais perversos...


Penetralia


Falei tanto de amor!... de galanteio,
Vaidade e brinco, passatempo e graça,
Ou desejo fugaz, que brilha e passa
No relâmpago breve com que veio...

O verdadeiro amor, honra ou desgraça,
Gozo ou suplício, no íntimo fechei-o:
Nunca o entreguei ao publico recreio,
Nunca o expus indiscreto ao sol da praça.

Não proclamei os nomes, que, baixinho,
Rezava... E ainda hoje, tímido, mergulho
Em funda sombra o meu melhor carinho.

Quando amo, amo e deliro sem barulho;
E, quando sofro, calo-me, e definho
Na ventura infeliz do meu orgulho.


Prece


Durma, de tuas mãos nas palmas sacrossantas,
O meu remorso. Velho e pobre, como Jó,
Perdendo-te, a melhor de tantas posses, tantas,
Malsinado de Deus, perdi... Tu foste a só!

Ao céu, por teu perdão, a minha alma, que encantas,
Suba, como por uma escada de Jacó.
Perdi-te... E eras a graça, alta entre as altas santas,
A sombra, a força, o aroma, a luz... Tu foste a só!

Tu foste a só!... Não valho a poeira que levantas,
Quando passas. Não valho a esmola do teu dó!
- Mas deixa-me chorar, beijando as tuas plantas,

Mas deixa-me clamar, humilhado no pó:
Tu, que em misericórdia as Madonas suplantas,
Acolhe a contrição do mau... Tu foste a só!


Oração a Cibele


Deitado sobre a terra, em cruz, levanto o rosto
Ao céu e às tuas mãos ferozes e esmoleres.
Mata-me! Abençoarei teu coração, composto,
Ó mãe, dos corações de todas as mulheres!

Tu, que me dás amor e dor, gosto e desgosto,
Glória e vergonha, tu, que me afagas e feres,
Aniquila-me! E doura e embala o meu sol posto,
Fonte! berço! mistério! Ísis! Pandora! Ceres!

Que eu morra assim feliz, tudo de ti querendo:
Mal e bem, desespero e ideal, veneno e pomo,
Pecados e perdões, beijos puros e impuros!

E os astros sobre mim caiam de ti, chovendo,
Como os teus crimes, como as tuas bênçãos, como
A doçura e o travor de teus cachos maduros!


Eutanásia


Antes que o meu espírito no espaço
Fuja em suspiro etéreo e vago fumo,
Em versos e esperanças me consumo,
E espalho sonhos pelo bem que faço.

Até no instante em que seguir o rumo
Para o sono final do teu regaço,
Ó terra, sorverei, no extremo passo,
Da vida em febre o capitoso sumo.

Seja a minha agonia uma centelha
De glória! E a morte, no meu grande dia,
Pairando sobre mim, como uma abelha,

Sugue o meu grito de última alegria,
O meu beijo supremo, - flor vermelha
Embalsamando a minha boca fria!

Introibo!


Sinto às vezes, à noite, o invisível cortejo
De outras vidas, num caos de clarões e gemidos:
Vago tropel, voejar confuso, hálito e beijo
De cousas sem figura e seres escondidos...

Miserável, percebo, em tortura e desejo,
Um perfume, um sabor, um tacto incompreendidos,
E vozes que não ouço, e cores que não vejo,
Um mundo superior aos meus cinco sentidos.

Ardo, aspiro, por ver, por saber, longe, acima,
Fora de mim, além da dúvida e do espanto!
E na sideração, que, um dia, me redima,

Liberto flutuarei, feliz, no seio etéreo,
E, ó Morte, rolarei no teu piedoso manto,
Para o deslumbramento augusto do mistério!


Vulnerant Omnes, Ultima Necat


Rio perpétuo e surdo, as serras esboroas,
Serras e almas, ó Tempo! e, em mudas cataratas,
As tuas horas vão mordendo, aluindo, à toa...
Todas ferem, passando: e a derradeira mata.

Mas a vida é um favor! De crepe, ou de ouro e prata,
Da injúria ou do perdão, do opróbrio ou da coroa,
Todas as horas, para o martírio, são gratas!
Todas, para a esperança e para a fé, são boas!

Primeira, que, em meu ninho, os primeiros arrulhos
Me deste, e a minha Mãe deste um grito e um orgulho,
Bendita! E todas vós, benditas, na ânsia triste

Ou no clamor triunfal, que todas me feristes!
E bendita, que sobre a minha cova aberta
Pairas, última, ó tu que matas e libertas!

Frutidoro

Fruto, depois de ser semente humilde e flor,
Na alta árvore nutriz da Vida amadureço.
Gozei, sofri, - vivi! Tenho no mesmo apreço
O que o gozo me deu e o que me deu a dor.

Venha o inverno, depois do outono benfeitor!
Feliz porque nasci, feliz porque envelheço,
Hei de ter no meu fim a glória do começo:
Não me verão chorar no dia em que me for.

Não me amedrontas, Morte! o teu apelo escuto,
Conto sem mágoa os sóis que me acercam de ti,
E sem tremer à porta ouço o teu passo astuto.

Leva-me! Após a luta, o sono me sorri:
Cairei, beijando o galho em que fui flor e fruto,
Bendizendo a sazão em que amadureci!

Os Sinos


Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais casta,
Para trasmigrações, para metempsicoses!

Cantai, sinos! Daqui por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!

Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!

Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos,
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!


Sinfonia


Meu coração, na incerta adolescência, outrora,
Delirava e sorria aos raios matutinos,
Num prelúdio incolor, como o alegro da aurora,
Em sistros e clarins, em pífanos e sinos.

Meu coração, depois, pela estrada sonora
Colhia a cada passo os amores e os hinos,
E ia de beijo a beijo, em lasciva demora,
Num voluptuoso adágio em harpas e violinos.

Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, arde
Em flautas e oboés, na inquietação da tarde,
E entre esperanças foge e entre saudades erra...

E, heróico, estalará num final, nos clamores
Dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores,
Para glorificar tudo que amou na terra!





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